sábado, 2 de janeiro de 2010

A Comissão da Verdade e a Crise com os Militares



O projeto do novo Programa Nacional de Direitos Humanos provocou uma crise entre o governo Lula, o ministro da Defesa e os comandantes militares, que ameçam renunciar caso o documento seja aprovado. O ponto central que motivou a insubordinação da cúpula das Forças Armadas é a proposta de instalação de uma Comissão da Verdade para apurar as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura. Os militares temem que as investigações abram brechas na Lei de Anistia e resultem na condenação de torturadores, e encaram essa situação como vingança - “revanchismo”, na expressão que mais utilizam – dos antigos grupos da esquerda armada, que ocupam postos importantes no governo e podem chegar à Presidência caso a ministra Dilma Roussef seja eleita em outubro. O contexto regional também os preocupa: os vizinhos sul-americanos foram muito mais longe em iniciativas semelhantes.

Comissões de Verdade, Justiça e Reconcialiação foram implementadas em dezenas de países, sobretudo na América Latina e na África, na transição de regimes autoritários para democracias nas décadas de 1980/1990. A mais famosa é a sul-africana, que oferecia anistia aos depoentes, contanto que comprovassem que seus crimes tivesses motivações políticas. Em outras nações, os trabalhos das Comissões fundamentaram processos judiciais e auxiliaram na condenação de pessoas responsáveis por crimes contra a humanidade e violações de direitos humanos. Tradicionalmente, as Comissões incluem representantes dos regimes autoritários – em geral, militares e policiais – e das organizações que os combateram. Costumam abordar também as atrocidades cometidas pela oposição às ditaduras, mas quase sempre o fazem de modo secundário.

Os militares brasileiros com frequencia se queixam de que há uma dupla moral no julgamento sobre a ditadura, na qual se denunciam os crimes perpretados pelas autoridades do regime, enquanto os atos terroristas da esquerda (sequestros, assassinatos, atentados a bomba) são esquecidos, ou mesmo louvados como ações heróicas. Seu maior ressentimento é ver antigos membros da esquerda armada em cargos de prestígio como ministros e deputados, cortejados pela mídia, enquanto os oficiais das Forças Armadas que lutaram a guerra suja são execrados publicamente e encontram apoio sobretudo entre seus colegas de farda. Os sentimentos de amargura ecoam na crítica à política externa, como o apoio do governo Lula à ditadura em Cuba, os silêncios diante do autoritarismo na Venezuela e decisões como a concessão de refúgio a um terrorista condenado, como o italiano Cesare Battisti.

As Forças Armadas incorrem muitas vezes na mesma dupla moral, calando-se diante do terrorismo de direita (os atentados ao Riocentro, à OAB) e mostrando conivência, quando não apoio, à tortura e às prisões ilegais cometidas pela ditadura. O corporativismo intenso que prevalece entre os militares os impediu de reavaliar o período autoritário à luz dos novos valores democráticos da sociedade brasileira, criando um fosso perigoso entre a cúpula das Forças Armadas e a elite civil, que é péssimo para a formulação das políticas públicas e pouco salutar para o Estado de Direito. A recusa em aceitar uma Comissão da Verdade sobre a ditadura, mais de 20 anos após seu término, é sintoma dessa incapacidade em acompanhar a evolução da opinião pública brasileira.

O presidente Lula está numa posição muito favorável para negociar um acordo com a cúpula das Forças Armadas. Com 80% de aprovação popular, a economia em boa situação, amplo prestígio internacional e um aumento expressivo do orçamento para a Defesa, ele tem condições para mediar o diálogo entre militares, o ministro da Justiça e o secretário de Direitos Humanos da Presidência. O próprio cenário eleitoral favorece a pressão para um entedimento, pois os três principais pre-candidatos – Dilma, Serra, Marina – têm em comum a história de oposição ferrenha à ditadura. O “partido das vivandeiras” (as mulheres que seguiam os soldados nas guerras) certa vez invocado pelo marechal Castello Branco, já não tem espaço na vida pública brasileira.

E é bom que seja assim.

7 comentários:

Igor Moreno Pessoa disse...

Será que está chegando o momento que vamos ver alguém ser punido pelo crime cometido no período militar com respaldo do Estado? É uma vergonha a nossa situação quando olhamos para nossos vizinhos e observamos como eles lidaram com isso.
Abraços e feliz 2010!

Maurício Santoro disse...

Salve, Igor.

Até o Paraguai está revendo suas posições quanto à ditadura Stroessner, mas mesmo assim acho difícil que o Brasil avance muito nesse sentido.

Meu palpite é que o presidente Lula vai retirar os aspectos do Programa que mais irritaram os militares, porque foi assim que ele agiu no passado, nas outras crises que envolveram as Forças Armadas em seu governo.

Abraços

Mário Machado disse...

Não vou polemizar nesse assunto, mas uma investigação desse porte que se pretente poderia ser conduzida por quem não esteve envolvido diretamente na luta armada.

E mais se lutou tanto por uma anistia geral e irrestrita. Poderia se honrar o pacto que formou a nova democracia.

Maurício Santoro disse...

Salve, Mário.

Em geral as Comissões da Verdade reúnem que participaram tanto da repressão quanto da luta armada, embora eu concorde que o ideal é que sejam comandadas por mediadores que não tenham se envolvido com atos violentos. Poderia ser alguém da universidade, ou da Igreja.

A Anistia de 1979 não foi propriamente uma bandeira da sociedade, tratou-se mais de um gesto do governo militar como parte da transição "lenta, gradual e segura" para a democracia. Uma maneira de as Forças Armadas garantirem que seus membros não seriam processados pelas violações de DHs cometidas durante o período da ditadura.

abraços

Marcelo L. disse...

Prezado Mauricio,

Pegou muito mal nos círculos militares, junto com a nova ofensiva do caça grippen NG para ser ganhador, a resistência das compras pelo MD e eleições este ano teremos com certeza muitas trovoadas, denúncias etc.


Até por que uma questão espinhosa não só é a luta e repressão, mas as indenizações que também vão entrar na ordem do dia.

Maurício Santoro disse...

Salve, Marcelo.

Pois é, a FAB jogou mais lenha na fogueira. Aliás, será tema do meu post de amanhã.

As indenizações já tinham enfurecido os militares, mas é curioso como eles falharam em perceber que elas foram oferecidas, em grande medida, como um "cala a boca", uma alternativa às punições pelos crimes da ditadura.

Caro Guilherme,

A reação da imprensa à Comissão tem sido mais moderada, contraditória e matizada do que eu imaginava. Muitos colunistas têm criticado as Forças Armadas e defendido a apuração dos crimes do passado.

Mas concordo com você que nos falta sociedade na rua, pressionando. O contraste com a Argentina, onde morei em 2006/2007, é impressionante nessse sentido.

Abraços

José Elesbán disse...

Oi,

Citei este "post" no Blogoleone.

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