quinta-feira, 31 de maio de 2007

Rasga Coração



No fim de semana assisti a “Rasga Coração”, a obra-prima de Oduvaldo Viana Jr, que está em cartaz no Teatro Glória. Eu já havia lido a peça, mas o texto ganha muito ao ser encenado. O desempenho dos atores – em especial a atuação apaixonada de Zé Carlos Machado como o protagonista – dá a dimensão da fragilidade humana a trechos que de outro modo seriam muito rígidos.

“Rasga Coração” foi escrita nos anos 1970 e é estruturada em torno do conflito entre Custódio, um militante político, e seu filho adolescente. O personagem principal é um homem de meia idade que vive a rotina estreita da pequena classe média, preso a um emprego burocrático e a um casamento acomodado, sem amor. Ele não consegue entender o filho, que flerta com o movimento hippie e questiona seu comportamento, alegando que o compromisso do pai com sindicatos e greves continua preso à mesma lógica mecânica do sistema que ele afirma combater.

À medida que se desenvolve o conflito com o filho, Custódio lembra cenas de sua adolescência na década de 1930 e suas próprias disputas com o pai, que não aceitava seu entusiasmo com a nova ordem industrial que começava a nascer. O contraponto cômico a Custódio, que às vezes funciona como sua consciência, é seu amigo boêmio conhecido como Lorde Bundinha, que tem as falas mais engraçadas da peça.

Misturar passado e presente no palco, com as situações paralelas iluminando os dilemas dos personagens, não era novidade na década de 70, Arthur Miller e Nelson Rodrigues já faziam isso há mais de 30 anos. O destaque de “Rasga Coração” é a detalhada pesquisa histórica realizada por Vianinha. Impressiona o cuidado do dramaturgo em recolher gírias, canções, palavras de ordem e outras expressões da época em que se situa a ação. O problema é que a platéia não consegue acompanhar as referências, devido ao desconhecimento que a maioria dos brasileiros temos de nossa história.

Vianinha era militante do Partido Comunista e a peça às vezes se ressente de um tom que se pretende edificante, de ensinar ao espectador qual o comportamento correto. Nesses pontos é que a atuação do protagonista faz a diferença: Zé Carlos Machado dá a medida das hesitações e frustrações do personagem, que o levam a não conseguir compreender a rebeldia do filho, julgando-o erroneamente como um conformista.

Não quero dizer que Vianinha rezasse pela cartilha do realismo socialista. Longe disso. Ele fez parte do que talvez tenha sido a mais brilhante geração do teatro brasileiro, inovando no Arena ao colocar no centro dos palcos os temas nacionais. As circunstâncias da composição de “Rasga Coração” são elas mesmas dramáticas: o autor morria de câncer e queria a todo custo completar a peça. O segundo ato foi ditado de sua cama de hospital, pois ele já não tinha forças para escrever. Curioso contraste: a emoção à flor da pele desse trecho da peça em muito supera a arquitetura metódica e cuidadosa do primeiro.

Há momentos de grande beleza em “Rasga Coração”, como instante em que um rapaz diz a Custódio que o grande erro de seus contemporâneos foi ter abdicado da dúvida. Em outro diálogo, o mesmo personagem afirma que mais importante do que o conflito entre gerações é o conflito que cada geração trava dentro de si mesma.

Vianinha não chegou a ver “Rasga Coração” encenada. A censura proibiu a peça, apesar de não haver referências à ditadura militar que então governava o país. A campanha pela liberação da obra virou uma causa importante nos meios artísticos e sua encenação em 1979, um símbolo do processo de redemocratização do país.

E, meus amigos, ver três horas de espetáculo que se propõe a discutir o país, com paixão mas sem concessões patrioteiras, faz um bem danado.

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