quarta-feira, 31 de março de 2010

Ditadores Contemporâneos, o Livro



Em janeiro e fevereiro lecionei na Casa do Saber um curso sobre Ditadores Contemporâneos, conforme comentei por aqui. Logo depois, ministrei uma versão ampliada na Fundação Getúlio Vargas. Agora, a convite do meu chefe na FGV, transformo meus apontamentos em um livro, que será publicado no segundo semestre na coleção de bolso da Fundação.

Comecei a trabalhar nele há uma semana e descobri que escrever é, sobretudo, (re)ler. São vários detalhes que preciso checar, datas e nomes da história política dos países sobre os quais disserto, dados a respeito das economias locais e até citações poéticas de algum artista que se opõe ao ditador de plantão. Meu ritmo tem andado bastante rápido, de modo que espero cumprir meu prazo e enviar os originais para a editora da FGV em junho.

O foco do livro – e dos dois cursos – é analisar a persistência dos regimes autoritários após a Guerra Fria. Examinar por que a “terceira onda de democratização” não foi tão longe como se poderia esperar, e na realidade recuou em países-chave, como a Rússia. Cheguei a algumas conclusões.

A primeira: o nacionalismo se tornou a principal ideologia que busca legitimar as ditaduras. Isso vale até para regimes que continuam a pagar tributo ao marxismo, como China e Cuba. A idéia é que a nação está cercada de inimigos traiçoeiros – os EUA, as potências ocidentais, os terroristas islâmicos, os separatistas, o que seja – e que a mão forte autoritária é necessária para manter a integridade do território e o desenvolvimento.

Segunda: a religião desempenha papéis muito diferenciados, e pode servir tanto como esteio quanto como oposição aos ditadores contemporâneos. Na Rússia e no Irã, os clérigos estão de modo geral vinculados ao projeto de identidade nacional autoritária. Em Cuba e no Zimbábue, a religião é um elemento importante para aglutinar a oposição. E há países como a China nos quais movimentos espirtuais são encarados com profundas desconfianças pelo Estado – os budistas no Tibete, os muçulmanos em Xinjiang, mas até a autoajuda da Nova Era, como a da Falun Gong.

Outro ponto é que a gestão da economia também é bastante diversificada. China, Rússia e Vietnã conseguiram alto índice de crescimento sob regimes autoritários. Coréia do Norte e Zimbábue foram fiascos totais, à beira do colapso. Irã e Cuba ocupam um meio termo, com algumas reformas bem-sucedidas e muito descontentamento social resultante da persistência de deficiências estruturais.

Um caso à parte são as ditaduras do petróleo, que se beneficiaram da alta absurda do preço dessa commodity. Dedicarei um capítulo somente para elas, cruzando as teorias sobre “maldição dos recursos naturais” com alguns estudos de caso, como as advertências que Celso Furtado escreveu para a Venezuela das décadas de 1950/1970, e que continuam a se aplicar diante das políticas de Hugo Chávez.

segunda-feira, 29 de março de 2010

O Clube do Bangue Bangue



Na semana passada comentei sobre os erros e falhas dos correspondentes de guerra, agora é o momento de ressaltar o papel positivo que a imprensa desempenha em grandes conflitos políticos. Mais especificamente: como um grupo de repórteres fotográficos cobriu com talento e coragem a violência étnica que matou 14 mil pessoas na África do Sul, entre 1990 e 1994, e quase impediu a transição do apartheid para a democracia. O trabalho dos jornalistas foi fundamental para mostrar como elementos do governo, em especial na polícia, estimularam o conflito para tentar sabotar o diálogo. A história é contada no livro autobiográfico “O Clube do Bangue Bangue: instantâneos de uma guerra oculta”, de Greg Marinovich.

Marinovich foi um dos quatro repórteres que formaram o grupo, e ganhou um Pulitzer por sua foto de um homem zulu sendo queimado vivo pela multidão de xhosas numa favela próxima a Johannesburgo. Os outros membros do Clube eram os sul-africanos Kevin Carter, Ken Oosterbroek e o moçambicano João Silva. Todos eram jovens, na faixa dos 20/30 anos, com um histórico de rebeldia e inquietação, sérios problemas familiares e com drogas, extremamente habilidosos no que faziam e com a tendência a se viciar na adrenalina da violência. O talento cobrou uma conta trágica: Carter também ganhou um Pulitzer, pela imagem de um urubu espreitando uma menina faminta no Sudão, mas se matou depois disso, em parte angustiado por não ter ajudado a criança (ele já havia tentado o suicídio anteriormente, por problemas profissionais). Oosterbroek morreu atingido por uma bala perdida num confronto entre militares e gangsters e o próprio Marinovich foi atingido duas vezes, na África do Sul e no Lesoto.



Os quatro amigos cobriam uma guerra particular, que acontecia em seu próprio país, mas num mundo à parte. Nos anos finais do apartheid, as favelas e periferias negras estouraram em choques armados entre milícias que apoiavam o Congresso Nacional Africano, partido de Mandela, e os paramilitares zulus que tentavam um acordo de última hora com o apartheid para extrair privilégios em sua província originária, Natal. O conflito tinha dimensões étnicas, mas também refletia o choque rural/urbano, pois se tratava dos migrantes zulus atacando os grupos mais antigos nas favelas, usando como base os albergues para trabalhadores do campo . O governo – ou ao menos seus elementos mais extremistas - usou os zulus para tentar desacreditar Mandela e muitos temeram que a situação na África do Sul degenerasse num massacre comparável ao da Bósnia e de Ruanda. Foi por um fio: o chefe zulu só concordou participar nas eleições democráticas poucos dias antes da votação.

A polícia do apartheid protegia as milícias zulus e em alguns casos fazia ela mesma o trabalho sujo de assassinar os partidários do Congresso Nacional Africano. O trabalho do Clube do Bangue Bangue foi importante para denunciar os abusos que ocorriam então, embora a real escala do envolvimento governamental só tenha se tornado conhecida no fim da década de 1990, pelos trabalhos da Comissão de Verdade e Reconciliação. Aliás, o arcebispo Desmond Tutu, que a presidiu, assina o prefácio do livro.



Marinovich é um cronista excepcional da violência estúpida que presenciou, mas também relata de forma emocionante o despertar político do país, e de sua própria consciência, à medida que o filho de imigrantes croatas se torna mais próximo das comunidades negras, que até então ele conhecia apenas como empregados e serventes. Além da importância como documento histórico, seu livro é uma ótima análise sobre a criação de uma cultura de desconfiança com relação ao Estado que permeia muito da atual onda de criminalidade na África do Sul.

Os amigos fotojornalistas foram ironizados pela imprensa local como os “papparazzi do bangue bangue”, mais tarde mudados para “clube” a pedido deles mesmos. Marinovich é bastante direto ao relatar como ficaram viciados na emoção da guerra, e como a transição para a democracia deixou muitos deprimidos, e os impulsionou a buscar adrenalina em outras situações de conflito: ex-Iugoslávia, Somália, Sudão, Israel/Palestina. Uma tremenda história, que está sendo adaptada ao cinema. Tem tudo para render um grande filme.

sexta-feira, 26 de março de 2010

O Pacote de Ajuda à Grécia



A cúpula da União Européia em Bruxelas chegou a uma solução negociada para socorrer a Grécia, pela qual cerca de 2/3 dos recursos virão dos países da zona do euro, e o restante, do FMI. O acordo prevê regras bastante duras para que Atenas possa utilizar o dinheiro e constituiu, na prática, a vitória da posição da Alemanha, que teme precisar pagar por todos os outros membros da UE em sérios apuros financeiros, como Espanha, Portugal e Itália.

A União Européia concordou em criar um fundo de segurança com cerca de 22 bilhões de euros, que poderá ser utilizado pelo governo grego para evitar a moratória de sua dívida pública. O risco é concreto, pois Atenas deve pagar 20 bilhões somente em abril e maio. O total devido é de 300 bilhões de euros... As autoridades gregas já adotaram um severo pacote de corte de gastos, que inclui reduções de até 1/3 nos salários dos funcionários, aumento na idade mínima para aposentadoria e outras medidas drásticas. Mas elas não são suficientes: as finças públicas do país tem sido pessimamente administradas há vários anos.

A grande preocupação alemã é justamente não estabelecer um precedente de auxílio incondicional para membros da UE em dificuldades, que poderia estimular falta de cuidado com a administração desses Estados. Trata-se daquilo que no mercado de seguros é conhecido como "risco moral": o motorista passa a dirigir pior, porque sabe que em caso de acidente, a seguradora cobrirá os prejuízos. Berlim não quer arcar com a conta. Para que Atenas possa sacar o dinheiro, precisará obter o consenso de todos os países da eurozona, o que dá à Alemanha poder de veto.

Os demais países europeus, em particular a França, pressionavam por uma solução que envolvesse somente a UE, e deixasse de fora o FMI. O Fundo continua a ser visto como uma instituição que deve ser usada em casos que envolvam países na América Latina, África e Ásia. No máximo, nações na periferia da UE, como Hungria. Mas não um país da zona do euro. Pesam também fatores puramente domésticos: o FMI é comandado por um político socialista francês, rival do presidente Sarkozy, que acaba de perder as eleições regionais para a esquerda.

Não será fácil para os líderes da UE venderem o socorro à Grécia para seus eleitores, num momento de austeridade no continente. O governo britânico, por exemplo, anunciou nesta semana corte de 25% no orçamento, para se estenderem até 2017!

quarta-feira, 24 de março de 2010

A Reforma Obama na Saúde



As maiores expansões do Estado ocorrem em momentos de guerras ou de crise econômica. O contexto atual explica as bases da reforma do sistema de saúde que o presidente Obama conseguiu aprovar após longo e difícil processo - 14 meses de negociação, e uma sucessão de votações apertadas, que em no momento mais tenso foi por apenas 7 votos. É a mais importante legislação social nos EUA desde a "Grande Sociedade" de Lyndon Johnson, na década de 1960. Mas - sinal dos tempos - é de uma fragilidade enorme, muito mais restrita do que qualquer mecanismo semelhante existente na Europa Ocidental, e mostra o quanto o espaço público americano foi corroído por 30 anos de debates políticos radicalizados e amargos.

A idéia de que o Estado deve fornecer proteção social aos desvalidos começou a ser implementada na Europa a partir de fins do século XIX. Inicialmente, tratavam-se de benefícios como aposentadorias, pensões e seguro-desemprego, pagos àqueles trabalhadores que contribuíam, compulsoriamente, para os sistemas oficiais. Com a I Guerra Mundial, o tema da habitação entrou com força na agenda. E a II Guerra Mundial marcou o advento do Estado de Bem-Estar Social, com benefícios universais, concedidos a todos os cidadãos. O National Health System britânico é um exemplo célebre.

Theda Skocpol chama a atenção para o fato de que os EUA foram pioneiros no embrião de redes de proteção social - pensões concedidas aos veteranos da guerra civil. Mas depois ficaram para trás, por razões que até hoje são motivo de discussões para os especialistas. Pesam fatores como a maior influência do individualismo no país, a fragmentação dos trabalhadores em linhas raciais e culturais, dificultando ação política conjunta, um sistema eleitoral que tende ao bipartidarismo e complica a formação de partidos com agendas mais radicais etc. Talvez até a ausência dos traumas nacionais representados pela destruição bélica na Europa. Na década de 1930, o New Deal introduziu mecanismos importantes de seguridade social, como seguro-desemprego, mas não estendeu suas redes de proteção à saúde.

O máximo que os americanos conseguiram foram programas públicos de atendimento médico para grupos minoritários e de necessidades especiais - idosos, pessoas muito pobres e veteranos de guerra. Pelos números atuais, cerca de 2/3 da população dependem de planos de saúde financiados pelos empregadores - se forem demitidas, perdem o benefício. Outros 10% pagam planos privados, muito caros. É uma situação curiosamente semelhante àquela que vigorou no Brasil de Vargas e da ditadura militar, antes da criação do Sistema Único de Saúde, na Nova República.

O foco principal da reforma Obama são cerca de 32 milhões de americanos que não têm cobertura de saúde. Eles receberão auxílio governamental para comprarem planos privados, e serão obrigados a fazê-lo, no que é sem dúvida o ponto mais controverso da legislação. A lei também prevê regulação mais rígida para os planos de saúde, sobretudo no sentido de forçá-los a atender pessoas que já tinham doenças e problemas médicos antes de contratá-los. São arranjos muito inferiores aos existentes nos Estados de Bem-Estar Social europeus.

O sistema americano atual é caro e ineficiente. Os EUA gastam espantosos 15,3% do PIB com saúde, cerca do dobro da média européia, e ainda assim tem ampla parcela da população sem cobertura ou com atendimento inadequado. A previsão é que a reforma Obama atenda a cerca de 95% dos americanos, mas ainda ficarão de fora grupos significativos, como imigrantes ilegais e pessoas tão pobres que sequer têm as informações para procurar o auxílio governamental.

Mesmo essa reforma limitada foi obtida a alto custo pelo presidente. Os republicanos foram contra, em bloco, numa atitude polêmica que pode ter prejudicado bastante o partido - as próximas eleições legislativas dirão. É certo que boa parte da população teme as medidas mais controversas da reforma, e a eleição de um senador republicano no ultra-democrata Massachussets (para a vaga do apóstolo-mor da reforma, Ted Kennedy) indica isso. Mas há pontos bem mais consensuais na nova lei, que agradam até aos conservadores. Obama também precisou enfrentar os descontentes entre os democratas, em particular a linha anti-aborto, que extraiu dele concessões de que o financiamento público não seria usado para esse tipo de atividade.

As disputas sobre a reforma não acabaram. Diversos estados americanos iniciaram ações judiciais para alegar a inconstitucionalidade da reforma. E o Senado ainda deve votar a chamada "reconciliation bill", uma versão amenizada da reforma, costurada pelo Congresso para tentar diminuir as tensões provocadas pelo debate.

A especulação atual é se a vitória de Obama na reforma da saúde irá ajudá-lo a aprovar seus próximos projetos legislativos, como a reforma do sistema financeiro e das leis de enfrentamento da mudança climática. A ver.

segunda-feira, 22 de março de 2010

A Primeira Vítima



A primeira vítima de uma guerra é a verdade, nos diz o jornalista australiano Phillip Knightley em seu “The First Casualty: from the Crimea to Vietnam, the war correspondent as hero, propagandist, and myth maker”. Knightley aponta horrendas falhas de reportagem em mais de 100 anos de jornalismo de guerra. Erros e omissões que aconteceram por uma mistura de incompetência (desconhecimento da língua e cultura locais sendo os pecados mais comuns), dos efeitos da censura e da manipulação política governamental e da vaidade de profissionais que acreditaram nas próprias ilusões de glamour.

O moderno jornalismo de guerra começou na Criméia em meados da década de 1850, graças aos avanços tecnológicos – telégrafo, ferrovias, navios a vapor – que permitiam mobilidade mais rápida aos repórteres e às notícias enviadas por eles. Também contou, e muito, a ampliação do público leitor, fazendo com que o caro negócio de enviar um correspondente ao exterior se tornasse viável financeiramente. O inventor do ofício foi o jornalista William Howard Russell, que a serviço do The Times denunciou o despreparo do Exército britânico, em particular as péssimas condições médicas e sanitárias, no conflito contra a Rússia. Russell foi hostilizado e ameaçado pelos militares, mas seus artigos contribuíram para melhoras significativas.

Já a guerra civil americana se mostrou um desastre jornalístico. Os repórteres da União e do Sul escreviam mais motivados por propaganda do que em busca de objetividade, e deixaram de perceber momentos cruciais do conflito, como a importância do discurso de Gettysburg, de Lincoln, ou a invenção da “guerra total” pelo general Sherman, em sua marcha para tomar Atlanta e dividir a Confederação em duas.

Em linhas gerais, a ideologia também prevaleceu sobre o bom jornalismo nos conflitos coloniais e na Primeira Guerra Mundial, sendo que neste último caso implacáveis sistemas de censura atrapalharam muito mesmo os bons profissionais.

Não faltam figuras pitorescas, como Winston Churchill, que era simultaneamente militar e jornalista, e usava as reportagens que escreveu no Sudão e na África do Sul – onde sempre se retratava heroicamente – como trampolim para sua carreira política. Ernest Hemingway fazia parecido e até “conquistava” cidades, aceitando a rendição de autoridades em nome dos exércitos que cobria como repórter.

Mas Knightley destaca alguns mestres que mantiveram o espírito crítico e os ideiais humanitários em meio às carnificinas, como o italiano Luigi Barzini, eterna consciência da brutalidade da guerra. Ou John Reed, em sua extraordinária observação sobre a Revolução Russa. E ainda Evelyn Waugh, que usou os absurdos que viu na Etiópia como matéria-prima para sua sátira romanceada dos correspondentes, “Scoop”.

A guerra civil espanhola rende um dos capítulos mais dramáticos de Knightley, pela polarização política e manipulação ideológica entre nacionalistas e republicanos, e como cada grupo conseguiu recrutar numerosos jornalistas. Mesmo tragédias como o bombardeio de Guernica quase não foram compreendidas no calor dos fatos, pelas suspeitas de que se tratassem apenas de propaganda.

Knightley também é crítico do modo como a Segunda Guerra Mundial foi coberta, mas é interessante como examina o surgimento de novos estilos de correspondentes, menos presos aos esteriótipos machistas e focados no cotidiano dos soldados (como Ernie Pyle) ou aos grandes desdobramentos da história. É emocionante ler como Ed Murrow implorou a seus ouvintes que acreditassem em seus relatos sobre os recém-descobertos campos de concentração.

O capítulo sobre o Vietnã mostra como a cobertura da mídia começou sintonizada com a propaganda dos governos Kennedy e Johnson, e foi aos poucos se transformando pelo choque dos repórteres com o racismo, brutalidade e a corrupção do conflito. A ofensiva vietcongue do Tet, em 1968, despertou a opinião pública para os descaminhos da estratégia americana no Sudeste Asiática.

Li a primeira edição do livro, de 1975, posteriormente foram lançadadas atualizações abarcando até as guerras do Kosovo (1999) e do Iraque (2003). Mas os pontos principais de Knightley estão bem demarcados nos estudos de caso anteriores e os problemas que ele observa se aplicam em grande medida às falhas da imprensa nos conflitos atuais.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Lula em Israel



Lula foi o primeiro chefe de Estado brasileiro a visitar Israel, e saiu-se bem, apesar da viagem ser um campo minado, tanto pelas ambiguidades e falta de clareza da política externa brasileira quanto pelas contradições da região.

O Brasil iniciou aproximações mais intensas com o Oriente Médio a partir da década de 1960, no âmbito da política externa brasileira e dos esforços em ampliar a agenda diplomática do país para além dos parceiros tradicionais nas Américas e na Europa Ocidental. A região se tornou bastante importante para o Brasil nos anos 70 e 80 do século passado. O país importava mais de 75% do petróleo que consumia, e via nos países árabes uma fonte essencial de abastecimento, além de compradores para a indústria bélica brasileira.

O político brasileiro Osvaldo Aranha presidia a Assembléia Geral da ONU quando esta aprovou a criação de Israel, mas a política externa do Brasil deu pouca atenção ao novo país, uma vez que as prioridades brasileiras eram as nações árabes, e a comunidade judaica brasileira nunca foi um lobby muito ativo na diplomacia nacional (ao contrário da portuguesa, ou da libanesa). O Brasil teve dois chanceleres judeus – os primos Horácio Lafer (anos 50) e Celso Lafer (anos 90), mas isso não alterou a frieza tradicional das relações com Israel. Durante o governo Geisel, o Brasil apoiou a controversa resolução da ONU que equiparava o sionismo ao racismo. (mais tarde as Nações Unidas a cancelaram).

Esse é o panorama histórico que precede a importante viagem de Lula. O governo brasileiro acenou com gestos de aproximação a Israel, como a ratificação do acordo de livre comércio entre o país e Mercosul – o primeiro tratado desse tipo que o bloco firma com uma nação fora da América Latina. O presidente brasileiro fez um belo discurso de condenação ao racismo, incluindo a repulsa àqueles que negam o Holocausto. Também fez uma bonita apresentação na Knesset, o parlamento israelense, defendendo diálogo e negociação na região.

Lula frisou os pontos de discordância com relação a Israel, ressaltando a oposição brasileira à construção de assentamentos israelenses em territórios palestinos – mesma postura aliás, adotada pelos Estados Unidos. O tema está fervendo na agenda internacional, pela decisão de erguer casas para colonos judeus em bairros palestinos de Jerusalém. O presidente brasileiro também se recusou a visitar o túmulo do fundador do sionismo, o jornalista austríaco Theodor Herzl.

Ecos da postura de Geisel, uma vez que Lula realizou uma jornada emocionada à tumba do líder palestino Yasser Arafat? Talvez, mas pesou mais a gafe da chancelaria israelense, que quis improvisar a visita, pois a cerimônia não estava prevista na agenda acordada entre os dois países. O que dizer do ministro das Relações Exteriores, Avigdor Lieberman, que boicotou a visita de Lula? Sem dúvida, que o presidente israelense Shimon Peres é mesmo o melhor interlocutor do Brasil em um governo tão dividido por extremismos e contradições.

Outro item de discordância entre Brasil e Israel foi, claro, o Irã. A atitude brasileira de condenar sanções e propor o diálogo como modo de lidar com o programa nuclear iraniano tem encontrado forte oposição no Oriente Médio, na Europa e nos EUA. Meu amigo Matias Spektor escreveu há poucos dias um artigo no qual examina os argumentos da diplomacia brasileira. Além das negociações em Israel, Lula esteve também nos territórios palestinos, na Jordânia e na Síria. É uma demonstração da “identidade BRIC” do Brasil, o novo papel internacional do país como potência emergente, com uma agenda muito mais ambiciosa do que qualquer outra nação latino-americana na região. Mas para além de generalidades sobre paz mundial e aumento da influência, o que governo brasileiro almeja de concreto no Oriente Médio?

quarta-feira, 17 de março de 2010

Gabriel García Márquez: uma vida



O escritor colombiano Gabriel García Márquez brincou que todo autor respeitável deveria ter um biógrafo inglês. O seu, Gerald Martin, cumpriu a tarefa com maestria. Após quase 20 anos de pesquisa, lançou um estupenda biografia, que examina a gênese do universo criativo de García Márquez e destrincha suas relações políticas com sua Colômbia natal e com a Revolução Cubana, de quem se tornou o principal defensor intelectual.

García Márquez passou a infância em pequenas cidades e vilarejos da costa caribenha da Colômbia. Sobretudo Arataca, cujas lendas ele imortalizaria na Macondo de “Cem Anos de Solidão”, sua obra-prima. Seu modelo era o avô materno, um coronel que lutou pelos liberais na Guerra dos Mil Dias, e em cuja casa o escritor viveu quando pequeno.

Na juventude, García Márquez foi estudar em Bogotá, mas nunca se sentiu à vontade na capital da Colômbia, situada nos Andes e de costumes bem mais conservadores do que a parcela tropical do país. Estudou Direito, sem se formar, se iniciou no jornalismo e assistiu ao terrível Bogotazo, a rebelião popular que marcou o início de La Violéncia, a guerra civil entre conservadores e liberais que se arrastou pela década de 1950.




Mas então García Márquez era menos interessado em política do que em literatura, cinema e jornalismo, e viveu aos trancos e barrancos como repórter por uma série de países: Colômbia, Venezuela, França, Estados Unidos e, finalmente, México, onde foi muito bem acolhido e desfrutou de um excelente ambiente cultural, no qual floresceu seu casamento com Mercedes e cresceram seus dois filhos, Rodrigo e Gonzalo.

Seus primeiros romances, como “La Hojarasca” e “Ninguém Escreve ao Coronel” começaram a torná-lo conhecido como escritor. A fama internacional veio com “Cem Anos de Solidão”, em 1967, saga familiar que mistura guerras civis, massacres de trabalhadores nas plantações de banana, ciganos, mitos e que se tornou um dos livros mais amados do século XX. García Márquez se tranformou numa celebridade global, íntimo de estadistas e artistas, e o Nobel conquistado em 1982 apenas reforçou seu status.

O escritor despontou no contexto do boom da literatura latino-americana, no qual também figuraram outros autores de primeiro quilate, como Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar e Carlos Fuentes. Eram bastante amigos, mas García Márquez e Vargas Llosa terminaram adversários e protagonistas de uma célebre briga a socos, num coquetel explosivo que envolvia rivalidade pessoal, disputas amorosas e divergências políticas.

O cerne da polêmica foi Cuba. García Márquez fez parte da equipe da Prensa Latina, a tentativa da Revolução de 1959 de criar uma agência de notícias internacionais que desafiasse as grandes empresas ocidentais. O projeto fracassou em meio às disputas internas do próprio governo cubano, mas o escritor conseguiu aos poucos se aproximar de Fidel Castro e ambos se tornaram grandes amigos. García Márquez mediou alguns esforços humanitários – como libertar presos políticos cubanos – mas se calou diante do autoritarismo e das violações de direitos humanos do regime de Castro e com o tempo se transformou em algo muito próximo a seu propagandista, ao passo que outros intelectuais foram rompendo progressivamente com a Revolução cubana, criticando seu autoritarismo.



Aliás, García Márquez é fascinado pelo poder e pela proximidade com presidentes de diversos matizes, inclusive ditadores como Castro e como o general panamenho Omar Torrijos. Gerald Martin examina muito bem como isso reflete em sua obra, em particular nos romances “O Outono do Patriarca” e “O General em seu Labirinto”, que apesar de tratar de Bolívar, incorpora algo de Fidel.

García Márquez esposou outras causas políticas, como a condenação às ditaduras latino-americanas (em especial a de Pinochet) e o apoio à transição democrática na Espanha. Em sua Colômbia natal, seus esforços foram mais contraditórios e falhos. Seus projetos de revistas jornalísticas nunca prosperaram muito e sua relação com líderes políticos locais foram tensas. Ele oscilou da proximidade com os guerrilheiros do M-19 ao flerte com conservadores no contexto da ascensão do poder do narcotráfico. Na Venezuela, onde morou, García Márquez não gosta de Chávez, talvez porque seja amigo íntimo de seus adversários, como o ex-presidente Carlos Andrés Pérez (que Chávez tentou depor num golpe militar, em 1992) e do líder de esquerda Teodoro Petkoff.

Na maturidade, a obra literária de García Márquez passou a abordar principalmente o tema do amor, que parece coincidir com certo desencanto com o poder. Martin é entusiasta do romance “O Amor nos Tempos do Cólera”, e mais crítico com respeito aos livros mais recentes do escritor (como “Memórias de Minhas Putas Tristes”). O biógrafo retrata o declínio da saúde de García Márquez, como sua luta contra o câncer e problemas neurológicos que o têm acometido com frequencia.

segunda-feira, 15 de março de 2010

A Batalha pelos Royalties



A batalha política pela distribuição dos royalties e participações especiais do petróleo traz para o Brasil os conflitos em torno de recursos naturais que estouraram em outros países sul-americanos, em particular na Bolívia e no Peru. Ao contrário dessas nações, o Estado brasileiro é uma federação, mas a fragilidade do pacto federativo nacional ficou demonstrada no processo que culminou com a aprovação, na Câmara dos Deputados, da emenda ao projeto de lei 5938/09, que prejudica intensamente os maiores estados produtores, principalmente o Rio de Janeiro, que perderia R$7 bilhões por ano.

O Rio recebe cerca de 70% dos royalties e participações especiais destinados aos governos estaduais, e em torno de 2/3 do equivalente para os municípios. A imagem acima, da Petrobras, mostra a distribuição em 2008 dos royalties (barril à esquerda) e da participação especial sobre os grandes campos (direita).

O petróleo banca 13% do orçamento do Rio e com frequência mais de 70% das receitas das cidades mais beneficiadas pelo boom petrolífero, como Campos, Macaé e Rio das Ostras. Os setores ligados à exploração dos hidrocarbonetos cresceram mais de 400% desde a aprovação da lei do petróleo, em 1997 e se tornaram o núcleo mais dinâmico da economia fluminense. Não é à toa que o governador chorou (vídeo abaixo) e convocou uma passeata de protesto para a quarta-feira.



Há uma série de restrições jurídicas que limitam a aplicação dos recursos petrolíferos. Por exemplo, eles não podem ser usados para custear folha de pagamento, pois o governo federal temia que os hidrocarbonetos se tornassem uma maneira de aumentar os gastos públicos, minando os esforços de equilíbrio fiscal da década de 1990. No entanto, podem ser utilizados para financiar a previdência, como faz o Rio de Janeiro, e para pagar a dívida do estado com a União. Nos municípios, a gestão desses recursos é mais problemática e há casos de desperdício que se tornaram notórios, como um prefeito que colocou piso de shopping center em uma praça à beira-mar.

A dependência financeira do petróleo é perigosíssima, pois os recursos oriundos dos hidrocarbonetos são muito instáveis. Oscilam de acordo com o volume de produção, com o preço do barril, com a cotação do dólar. E estão sujeitos à mudanças políticas bruscas, como a que a Câmara aprovou há poucos dias. Também é uma demonstração dos percalços do sistema partidário brasileiro: o relator da emenda, Ibsen Pinheiro, é membro do PMDB, do qual o governador do Rio é um dos principais líderes. Mas a votação dos deputados se deu por lealdades estaduais, e não por fidelidade a programas partidários.

O governo do Rio de Janeiro trabalha com as possibilidades de negociar a próxima votação no Senado, pedir ao presidente Lula que vete as mudanças na lei, e de questionar na justiça a constitucionalidade da alteração. A multiplicação dos recursos petrolíferos seria uma tentação muito forte até para países com desigualdades regionais menos dramáticas do que o Brasil.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Brasil, EUA e o Conflito do Algodão



As retaliações que o governo do Brasil anunciou contra os Estados Unidos são o capítulo mais recente de uma disputa comercial sobre subsídios ao algodão que dura quase uma década. As autoridades brasileiras têm acumulado vitórias sobre o tema na Organização Mundial do Comércio, mas ainda não foram capazes de mudar o comportamento de suas contrapartes americanas. O conflito atual atingiu um novo patamar e está sendo observado com atenção por outros países em desenvolvimento. Estão em jogo cerca de US$800 milhões e a efetividade do sistema de solução de controvérsias da OMC.

Os subsídios agrícolas dos Estados Unidos e da União Européia são uma das principais causas de distorções no comércio internacional. O auxílio financeiro que esses governos dão a seus agricultores permite que eles triunfem num mercado no qual, deixado por si mesmos, não seriam competitivos em função de seus altos custos de produção. No caso do algodão, os impactos internacionais são particularmente duros, prejudicam alguns dos países mais pobres, nações africanas como Benin, Mali, Chade e Burkina Fasso. Os EUA são os maiores exportadores mundiais de algodão, com a produção concentrada em dois estados sulistas, Texas e Geórgia.

OMC possui mecanismos para julgar e punir essas práticas, mas os processos são extremamente caros, tecnicamente muito complexos, e estão fora da capacidade da maioria dos Estados. O Brasil tem os recursos – financeiros e humanos – necessários para empreender uma disputa desse tipo, e tem usado a OMC com freqüência. Às vezes, a própria ameaça de iniciar um processo na organização funciona como um instrumento importante de barganha em negociações .

A primeira vitória brasileira no caso do algodão ocorreu em 2003. A OMC decretou que as políticas americanas – como pagar a indústrias que comprem a produção dos EUA – são ilegais e devem ser interrompidas. Como os Estados Unidos não cumpriram com a decisão da organização, o Brasil foi autorizado a retaliar, aumentando as tarifas sobre os produtos americanos. Isso não é algo fácil de ser feito, porque pode prejudicar setores econômicos que dependam das importações dos Estados Unidos.

O Brasil selecionou uma lista inicial com 200 produtos americanos que sofreriam aumento de tarifas de importação. Ao fim, o governo se decidiu por aplicar a medida a cerca de 100 deles, em valores estimados em US$560 milhões, em categorias que incluem eletrodomésticos da linha branca, xampus, batons e escovas de dente. Como se percebe, foram excluídos da retaliação bens de capital e outros insumos vitais para a indústria nacional.

A OMC também autoriza em alguns casos a chamada “retaliação cruzada”, pela qual os países podem tomar medidas que se relacionam a barreiras não-tarifárias e a produtos não envolvidos diretamente nas disputas. O objetivo é aumentar os custos de se violar as normas do comércio internacional, mobilizando grupos de pressão que possam fazer os governos mudar de atitude. Num exemplo famoso, a União Européia ameaçou retaliar o agronegócio americano em um conflito sobre os subsídios dos EUA ao aço. Deu certo e Bush cedeu.

O governo brasileiro também segue esse caminho e focou a retaliação cruzada na indústria automobilística americana, um setor poderoso politicamente e que vive uma séria crise. Foi uma escolha acertada. É possível que o Brasil faça o mesmo na área de patentes e propriedade intelectual, o que afetaria outros grupos importantes, como o farmacêutico. As medidas representam mais US$270 milhões.

Se a estratégia brasileira funcionar, estabelecerá uma referência importante para os países em desenvolvimento e fortalecerá a credibilidade da OMC com respeito a seus mecanismos de resolução de conflitos. Uma eventual mudança nos subsídios americanos ao algodão também favoreceria muito os países africanos, que têm destaque crescente na política externa brasileira.

O governo dos Estados Unidos tem mostrado certa disposição em negociar. Contudo, não é crível que o Congresso daquele país autorize qualquer tipo de diminuição nos subsídios ao algodão. Se houver solução, ela deve passar por acordos que dependam só do Executivo, como a possibilidade de transferência de tecnologia aos agricultores brasileiros.

quarta-feira, 10 de março de 2010

As Duas Espanhas e o Brasil



Há alguns anos insisto com meus alunos que as relações entre Espanha e América Latina são campo fértil para pesquisa. Em boa hora, o diplomata Tarcísio Costa lança seu “As Duas Espanhas e o Brasil”, fruto da tese que apresentou ao Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco. O livro é um excelente estudo sobre as transformações espanholas dos últimos 30 anos.

As “duas Espanhas” que Costa menciona no título são as heranças culturais contraditórias com as quais o país se defrontou ao longo do século XX. De um lado, as tradições católicas, unitárias e imperiais. De outro, a influência das idéias progressistas européias: liberalismo, democracia, socialismo. Desde que a Espanha perdeu os restos de seu império na guerra de 1898 com os Estados Unidos, tais dilemas dividiram seus líderes políticos e intelectuais, perpassando os anos turbulentos da República, da guerra civil e do franquismo.

Costa faz uma ótima síntese dos esforços de Franco em manter boas relações com o Ocidente – por exemplo, por meio de acordos comerciais com a Comunidade Econômica Européia – ao mesmo tempo em que se esforçava para preservar o autoritarismo do regime. Tudo isso ruiu com a transição para a democracia do Pacto de Moncloa, e os diversos grupos políticos espanhóis viam a integração à Europa como solução, como modo de garantir as liberdades cívicas, a economia de mercado e conter os extremistas.

As relações com a América Latina também ganharam destaque, em especial quando as empresas espanholas se tornaram investidoras de peso na região – no Brasil, só estão atrás em estoque de capital para as firmas dos Estados Unidos. Madri tem buscado trabalhar esses vínculos por meio da Comunidade Íbero-Americana, que ainda é um projeto em formulação, um tanto indefinido em termos de instituições. Mas há uma intensa cooperação cultural, na qual a Espanha utiliza com habilidades instrumentos como o Instituto Cervantes e a Fundação Carolina para aumentar sua influência.




Houve um consenso abrangente entre socialistas e conservadores quanto a esses objetivos nas décadas de 1980 e 1990, mas o contexto dos anos 2000 foi marcado pela “crispación”, pela crescente polarização entre os principais partidos políticos (PSOE e PP) sobre como lidar com temas polêmicos como o apoio à guerra dos EUA no Iraque, as relações com Cuba, Bolívia e Venezuela e com a Argentina pós-crise. Sob o governo conservador de Aznar, houve muitos incidentes controversos, agravados pelo hábito desse primeiro-ministro em dizer aos latino-americanos como se comportar. Seu pior momento foi o apoio à tentativa de golpe na Venezuela, em 2002.

Costa vê com otimismo as possibilidades das relações da Espanha com o Brasil, mas neste ponto minha interpretação é mais sombria do que a do diplomata. Vejo pelo menos três pontos de conflito entre os dois países. Primeiro, o crescimento do racismo e da xenofobia espanhóis, que tem vitimado muitos brasileiros (inclusive minha estagiária favorita!). Segundo, a situação preocupante da economia da Espanha, que marcha para uma séria crise há muito anunciada, com estouro da dívida pública, de uma bolha imobiliária e das dificuldades de ajuste com o euro.

Terceiro, a própria disputa por influência na América Latina. Quando servi no Conselho Nacional de Juventude, fui testemunha da enorme desconfiança do Itamaraty (ao menos, sob o governo Lula) com relação aos desígnios da Comunidade Ibero-Americana. O que para nós eram oportunidades interessantes de cooperação na área social, para a chancelaria soava como interferência européia numa região importante para o Brasil.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Quem Votou em Chávez?



O último número da revista acadêmica Latin American Research Review traz um artigo provocador de Noam Lupu. Doutorando em Princeton, ele analisa os dados eleitorais da última década na Venezuela e concluiu que o país não está polarizado em termos de classes sociais e apoio a Chávez. Pelo contrário, em certas disputas a base de sustentação do chavismo estaria na classe média, e não nos mais pobres. São observações interessantíssimas e que valem a reflexão.

Lupu afirma que somente na eleição presidencial de 1998 – a que conduziu Chávez ao poder pela primeira vez – houve o tipo de polarização ideológica que se costuma associar à Venezuela, com os mais pobres apoiando o chavismo e a classe média e a elite votando na oposição. Ao longo da década seguinte esses números se modificaram. Os muito ricos continuaram a se opor intensamente a Chávez, mas aos poucos o presidente ganhou adeptos na classe média e os perdeu entre os pobres. Lupu observa que o padrão de coalizões multiclassistas caracterizou outros líderes políticos latino-americanos carismáticos e controversos, como Perón.

O cerne do artigo de Lupu é a análise estatística dos resultados eleitorais, mas ele aponta algumas hipóteses para explicar as mudanças na base chavista. Suas observações:

A política econômica de Chávez e alguns de seus programas sociais, em particular na educação, beneficiaram a classe média com empregos, subsídios e bolsas de estudo.

O crescimento do crime e da violência nas favelas e bairros pobres da Venezuela teria levado muitas pessoas pobres a se afastar do presidente (o caso de Petare é emblemático), mesmo que admirem sua personalidade e recebam ajuda dos projetos sociais oficiais.

Me parece que ambas estão corretas, mas incompletas, e que é preciso examinar outras características do chavismo para entender o que ocorre com sua base de apoio. A doutrina ideológica de Chávez é um emaranhado de influências confusas e contraditórias que misturam do socialismo à doutrina social dos católicos de esquerda, mas o fio condutor desse labirinto é o nacionalismo, em especial na defesa de uma identidade latino-americana em oposição aos Estados Unidos. Essas idéias continuam muito forte e de grande apelo emocional em toda a região. Como ilustração, vejam a tabela abaixo, que mensura a opinião pública com respeito aos EUA ao longo da última década. Notem a hostilidade ao país registrada na América Latina, em particular na Argentina:




Não tenho os dados da Venezuela, mas tudo me leva a crer que serão bastante semelhantes às opinões na Argentina.

Outro ponto – e bem mais complexo – é a relação difícil de Chávez com os movimentos sociais e partidos de esquerda da Venezuela, que tem sido marcada por conflitos e rupturas. Apesar de ser um líder político há quase 20 anos, ele não conseguiu organizar um partido político disciplinado, como Perón. As alianças chavistas com as organizações populares me parecem muito mais frágeis, embora eu ressalte minhas informações incompletas sobre o tema. Espero encontrar trabalhos que examinem essas contradições.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Pachamama



Os latino-americanos sofremos de um déficit de imagens cinematográficas sobre nosso próprio continente, sobre nossos países, povos e costumes. E são ainda mais raros os olhares brasileiros para as demais nações da região. Por isso, é especialmente importante o lançamento do documentário “Pachamama”, de Eryk Rocha (filho do cineasta Glauber), que narra uma viagem ao Peru e à Bolívia, acompanhando as transformações sociais em curso nos Andes. Aliás, trata-se de uma parceria com o Laboratório de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos mais dinâmicos e criativos centros de pesquisa a respeito da América Latina.

O filme tem uma brevíssima narração em off, limitada ao início, e no resto do documentário o espectador é estimulado e pensar e refletir por meio de um conjunto de belíssimas imagens que vão da Amazônia às minas de estanho bolivianas, passando pela arquitetura deslumbrante de Cuzco, no Peru, e por manifestações nas ruas de La Paz e El Alto.

Eryk filma as pessoas comuns com grande empatia e respeito, e desse modo temos depoimentos excelentes de uma grande variedade de personagens: ativistas de associações de moradores, índios na fronteira do Peru com o Brasil, velhos camponeses narrando mitos de criação da Terra e condenando o genocídio perpetrado pelos espanhóis, militantes da autonomia das províncias bolivianas, entusiastas de Evo Morales, peruanos descrentes de tudo, crianças fascinadas com a câmera.

Bolívia e Peru têm histórias semelhantes, mas realidades que são hoje muito diversas, e o filme mostra isso com clareza. Os dois países eram parte do Império Inca e foram subjugados pela Espanha por suas riquezas minerais. Após a Independência, foram governados por repúblicas oligárquicas que passaram por convulsões sociais depois de derrotas militares – respectivamente, para o Paraguai e o Chile. A diferença é que a Bolívia teve na Revolução de 1952 um impressionante processo de mudança que até hoje dá frutos, ao passo que as transformações no Peru foram bem mais limitadas e travadas pela violência e pelo autoritarismo, em particular pelos efeitos do terrorismo do Sendero Luminoso e da ditadura de Alberto Fujimori nas décadas de 1980/1990.

Em linhas gerais, o resultado é que os peruanos entrevistados no filme apresentam uma enorme descrença na política e no Estado, em atitudes nihilistas do tipo “tudo está perdido”. Na Bolívia, há uma intensa mobilização política – em torno dos movimentos sociais indígenas e dos grupos regionais que se opõem a eles e querem autonomia do poder central em La Paz. O risco no Peru é a apatia, na Bolívia, a polarização e a violência entre facções opostas. Mesmo assim, impressiona a articulação e clareza com a qual os bolivianos das diversas correntes expõem suas opiniões e defendem suas idéias.

No início do documentário, Eryk Rocha diz que filma os países vizinhos com o objetivo de fazer com que nós, brasileiros, pensemos um pouco sobre nós mesmos, a partir do olhar lançado para outros povos, que nos são próximos. De fato, Bolívia e Peru oferecem um jogo de espelhos para analisar a situação brasileira. O Brasil não tem movimentos sociais tão ativos e dispostos a cobrar resultados do Estado quanto os bolivianos – a maioria das organizações populares chegou a algum tipo de apoio/acomodação ou acordo com o governo Lula. As posições nihilistas dos peruanos encontram muito eco entre os brasileiros, sobretudo quando se trata de corrupção, mas a maioria dos brasileiros têm expectativas muito mais sólidas com relação ao Estado, que por aqui conseguiu construir ilhas de excelência de êxito inegável.

Enfim, bons temas para debates. Aguardo o lançamento do filme em DVD, para que eu possa usá-lo em sala de aula.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Chile: depois das tragédias



Terremotos, tsunamis, incêndios, saques... Primeiro o Haiti, agora o Chile. O país andino sofreu o segundo pior tremor de terra da sua história – e com 8.8 graus na escala Richter, um dos maiores já registrados, pode ter alterado o próprio eixo de rotação do planeta! O terremoto chileno foi cerca de 500 vezes mais potente do que aquele que devastou o Haiti, contudo, matou quase 800 pessoas, contra mais de duzentas mil na nação caribenha. A diferença se explica pela força do Estado no Chile. Ou mais precisamente: pela eficácia da legislação de regulação da construção civil, adotada pelos governos democráticos ao longo da década de 1990, e pela reação da defesa civil, da polícia e das Forças Armadas para socorrer as vítimas, mesmo sem conseguir evitar tumultos e roubos na cidade de Concepción, a mais atingida pelos desastres.

Os danos à infraestrutura do país estão estimados em cerca de 20% do PIB, péssima cifra em qualquer época, ainda mais em um momento de crise para uma economia dependente da exportação de poucas commodities e que encolheu 0,9% em 2009. Os preços mundiais do cobre, principal produto chileno, já aumentaram em função da expectativa que a produção nacional diminua. Os danos aos portos causados pelo maremoto também atrapalharão muito no escoamento das exportações.

A situação emergencial é a pior notícia possível para o presidente eleito Sebastián Piñera, que tomará posse no próximo dia 11. Com a necessidade de ações imediatas por parte do Estado, a agenda liberal do mandatário, de corte de gastos públicos, está evidentemente suspensa. Dada a calamidade que se abateu sobre o país, Piñera provavelmente terá que utilizar os recursos economizados no fundo de estabilização, criado justamente para ser usado em momentos de dificuldades como este.

Há um forte precedente histórico. O planejamento governamental no Chile está vinculado à experiência com outras tragédias naturais, em particular o grande terremoto de 1939, que deixou cerca de 30 mil mortos. A catástrofe marcou os esforços da recém-eleita Frente Popular em criar órgãos estatais de promoção do desenvolvimento, e o resultado foi a criação da Coporación de Fomento de la Producción, que então era uma experiência pioneira no ramo, comparável ao que havia de mais avançado no New Deal dos Estados Unidos.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Vidas Novas



Ingo Schulze (foto) é um escritor alemão que criou o mais original e instigante romance sobre a reunificação de seu país: “Vidas Novas” conta essa História no formato de uma série de cartas escritas por um anti-herói, Enrico Türmer, um homem de teatro que se torna um empresário jornalístico bem-sucedido e fraudulento nos anos turbulentos que se seguem à queda do muro. O próprio Schulze apresenta-se apenas como “organizador” da correspondência de Türmer, e diverte-se apontando as incoerências do “autor” em notas de rodapé. O tradutor da edição brasileira, Marcelo Backes, também se juntou à brincadeira com suas observações pessoais, resultando numa polifonia perfeitamente sintonizada com a confusão biográfica do protagonista.

As cartas de “Vidas Novas” foram escritas de janeiro a julho de 1990, um período crucial na história da Alemanha – o Muro caiu em novembro de 1989 e a união monetária entre os lados Ocidental e Oriental foi implementada oito meses depois. Os textos são todos de autoria de Türmer e seus destinatários são a irmã, um amigo de juventude e uma mulher ocidental que ele conhece na época e com que posteriormente se casa.



A correspondência para os dois primeiros interlocutores cobre os acontecimentos de 1990, as cartas para a futura esposa contam sua infância e juventude em cidades de província na Alemanha Oriental, com seus sonhos vagos e incoerentes de viver experiências sofridas para se tornar escritor e dissidente. De maneira inquieta, ele termina por servir o Exército no período tenso de Lei Marcial na vizinha Polônia, cursa a universidade e se torna diretor artístico de um teatro na pequena Altenburg, na qual vai morar com uma atriz e seu filho adolescente. O furacão político de 1989 o surpreende e ele toma parte do crescente movimento pelos direitos civis, mas sem nunca definir com certeza qual seu papel.

Após a queda do Muro, Türmer entra no turbilhão com seus compatriotas, experimentando as viagens de fim de semana às capitais ocidentais – retomando, de certo modo, a herança européia que lhe fora negada pelo regime comunista – e desfrutando de maneira atrapalhada dos novos benefícios do consumo. Ele conhece um empresário algo suspeito, Clemens von Barrista, com quem faz uma espécie de pacto fáustico (nenhum povo é tão obcecado pelo diabo quanto os alemães, já dizia Thomas Mann, que aliás também sofria da sina) que o leva a embarcar na aventura de fundar um jornal.

O formato epistolar adotado por Schulze é um golpe de mestre, pelo qual nunca temos o panorama objetivo do que realmente aconteceu com Türmer, e sim uma multiplicação de perspectivas, marcadas por engodos, trapaças, pequenas e grandes traições. A metáfora perfeita para a Alemanha Oriental - há um clima um tanto semelhante ao da personagem materna do filme “Adeus, Lênin”, cuja vida havia sido uma mentira tão grande quanto a fachada pela qual o regime autoritário do país buscava legitimidade. O ponto, diz Türmer, é que a reunificação não trouxe algo tão diferente, e talvez tenha apenas aumentado o repertório de maneiras pelas quais os seres humanos podem esconder coisas uns dos outros.

“Vidas Novas” é um romance de fôlego, de 750 páginas, e que consagra Schulze como um autor no qual precisamos ficar de olho. Ele veio ao Brasil para o lançamento do livro e se embrenhou na Amazônia em companhia de seu tradutor. Parece trama de ficção e quem sabe seja isso mesmo, pois Schulze anunciou que planeja escrever sobre a floresta. A conferir.