sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Sem Fronteiras



Há anos acompanho o Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro com zelo religioso. A única alteração na devoção é qual das mostras merecerá minha gratidão eterna. Em 2009, a escolha recaiu em “Fronteiras e Limites”, que reuniu excelente seleção de documentários sobre temas globais. Certamente alimentarão minhas aulas pelos próximos meses. Destaco dois filmes: “Estado de Emergência”, sobre os Médicos Sem Fronteiras, e “A Batalha pelo Tribunal [Penal Internacional]”.

“Estado de Emergência” (Living in Emergency) é uma crônica realista e não-idealizada do trabalho dos MSF, a partir de duas missões da organização. Na Libéria, enfrentam o desafio de gerenciar o único hospital da capital, Monróvia, metrópole de 1 milhão de habitantes, e gerenciam postos médicos no interior, em áreas de difícil acesso. A situação é a de administrar os precários serviços de saúde numa sociedade que luta para se reconstruir após um devastador conflito bélico. Na República Democrática do Congo, as condições são ainda mais dramáticas. Lá, os MSFs operam uma clínica em plena zona de guerra, em precárias condições de segurança.



O documentário é um trabalho de edição fenomenal, que sintetizou em cerca de duas horas dois anos de filmagens. A narrativa acompanha a história de diversos médicos, com destaque para quatro deles. Três estão na Libéria: a italiana que comanda o hospital de Monróvia, um veterano cirurgião americano que abandonou a vida confortável nos EUA para tentar redescobrir sua fé na medicina e um jovem australiano inseguro e assustado, confinado no interior do país. No Congo, o protagonista é outro australiano, bem mais experiente, que se esforça para salvar a missão do fechamento iminente.

Todos os personagens são humanos, dolorosamente humanos. Saudades de casa, desconforto, estresse e problemas de comunicação entre pessoas de culturas diferentes fazem com que as missões mostradas no filme às vezes pareçam saídas de um episódio de House ou de MASH. É uma visão crítica dos MSFs, mas que olha com simpatia a organização. Há humor, também. Minha cena favorita é um menino no Congo – em meio à guerra civil - que censura um médico por fumar, alertando que é prejudicial à saúde.

“A Batalha pelo Tribunal” é um filme comprometido com o ideal daquela corte: justiça internacional para os responsáveis por genocídio, crimes contra a humanidade e atrocidades de guerra. O documentário é uma aula magna sobre a criação dessa instituição, suas regras e o complexo ambiente político no qual ela precisa operar, em constante enfrentamento para definir o que pode ser o padrão global para lidar com esse tipo de violação dos direitos humanos.



O filme está organizado a partir de alguns dos casos trabalhados pelo Tribunal: Uganda (a guerra civil contra o Exército de Resistência do Senhor), República Democrática do Congo, Sudão (o genocídio em Darfur) e a ameaça da instituição em intervir no conflito da Colômbia. Há ainda uma excelente discussão das mudanças de posições dos Estados Unidos – que de defensores dos tribunais para julgar crimes de guerra na Iugoslávia e em Ruanda passaram a opositores ferrenhos desse tipo de organização.

O documentário tem um grupo bem definido de heróis – o procurador-chefe do Tribunal, o argentino Luis Ocampo, seus assistentes e as ONGs que apóiam suas causas, e ocasionalmente os criticam. O filme é amplamente favorável a Ocampo, o que não é pouco neste momento em que ele está sob severo ataque.

Ambos os filmes se concentram nas violações de direitos humanos na África, mas senti falta de discussões sobre outros tipos de contexto. Afinal, os MSFs operam nas favelas do Rio de Janeiro, e seu fundador é agora o ministro de relações exteriores da França.

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