quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Cortina de Açúcar


Camila Guzmán é filha do cineasta chileno Patrício Guzmán ("A Batalha do Chile", "Salvador Allende") e estreou como diretora com um documentário autobiográfico muito bonito: "Cortina de Açúcar". Ela conta a história de sua infância e adolescência em Cuba, de sua saída da ilha nos anos 90 e de seu reencontro com os amigos de juventude, que vivem num país muito diferente após década e meia de profunda crise econômica. Assisti ao filme na noite de ontem, na excelente mostra de documentários latino-americanos do Festival de Cinema do Rio de Janeiro.

Guzmán pai foi muito envolvido com o governo Allende e teve que se exilar do Chile após o golpe de Pinochet, em 1973. Foi para Cuba com a mulher e duas filhas pequenas - a futura cineasta tinha apenas dois anos. O casamento terminou pouco depois e Guzmán trocou a ilha pela Espanha. Mas as crianças tiveram uma infância feliz, no que Camila descreve como "o período de ouro da Revolução Cubana". É curioso, porque a maioria dos historiadores classifica aquela época de outra maneira, como o tempo do "Quinqüênio Cinza", das perseguições a artistas, escritores, homossexuais e do fracasso em aumentar a colheita de cana ao ponto em que fosse possível industrializar a ilha com esses recursos.

No entanto, Camila - e os amigos que entrevista no filme - falam daqueles anos com tranqüilidade e alegria, lembrando das brincadeiras de escola, do excelente nível educacional, dos serviços sociais fornecidos pelo Estado e do sentimento de pertencimento, de fazer parte de um projeto de construção de uma sociedade. Há apenas algumas reclamações ao excesso de burocracia e à chatice dos rituais de autocrítica, mas no tom bem-humorado de quem recorda um professor rabugento, mas querido.

Se esse era o "antes", o "agora" do documentário é o chamado "Período Especial", o eufemismo oficial cubano para a catástrofe econômica que se abateu sobre a ilha com o fim da URSS e do patrocínio que ela dava ao país. As condições de vida pioraram muito, da escassez de comida e combustível à deterioração das moradias. Tornou-se impossível manter uma boa qualidade de vida apenas com a combinação dos parcos salários e dos benefícios governamentais e as pessoas passaram a recorrer cada vez mais aos dólares enviados por parentes que emigraram. Ao mesmo tempo, a economia foi aberta a investimentos estrangeiros, principalmente no turismo, e as desigualdades sociais aumentaram na proporção em que alguns cubanos têm acesso às benesses do dinheiro que vem do exterior.

Tudo isso está bem captado em "Cortina de Açúcar", talvez com uma nostalgia algo exagerada do passado, mas um sentimento bastante compreensível diante das enormes dificuldades cotidianas enfrentadas pelos cubanos. Uma das cenas que mais me impressionou foi um rapaz falando dos amigos de escola que emigraram: são dezenas de nomes, para todo o planeta. Uma lista dolorosa à medida que ele aponta as pessoas numa velha fotografia de colégio.

O que é notável em Cuba é que a penúria econômica não se refletiu na qualidade da educação, que continua muito alta. Camila Guzmán mostra várias escolas e conversa com os alunos. Os prédios são limpos, arrumados, todas as salas têm livros, aparelhos de TVs etc. As crianças e jovens recebem material escolar e uniformes - a decadência é porque no passado ganhavam ainda mais. De fato, o que mais me impressionou quando visitei Cuba foi a alegria e as roupas impecáveis dos estudantes. Dá o que pensar para um país bem mais rico, como o Brasil, mas com péssimo nível educacional.



Outro ponto curioso do filme de Guzmán é como seus entrevistados falam com desenvoltura e criticam o governo. São todos muito articulados e chama a atenção como relacionam de maneira precisa as transformações na política internacional e em seu próprio país com as mudanças em sua vida íntima. Claro, efeitos da boa educação. Essas posturas coexistem com o autoritarismo e a repressão das autoridades cubanas, numa contradição que não consigo compreender. O Brasil, afinal, é uma democracia, mas as pessoas têm tanta dificuldade de conversar sobre política com um mínimo de conhecimento (que não seja o habitual niilismo de "sou contra tudo que aí está") que às vezes parece que nós é que vivemos numa ditadura, com cidadãos assustados e desconfiados.

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