terça-feira, 19 de maio de 2009

Valsa com Bashir



Texto escrito com Bruno Borges.

Às vezes os melhores documentários são feitos de imagens falsas. “Valsa com Bashir”, animação do cineasta israelense Ari Folman é um mergulho nas relações entre história, memória e culpa, a partir da experiência do diretor no Exército de Israel, durante a trágica guerra entre esse país e o Líbano, em 1982. Folman propõe uma reflexão pessoal e coletiva sobre as responsabilidades nas atrocidades contra civis ocorridas no conflito, sobretudo o massacre nos campos de refugiados de Sabra e Shatila.

O filme começa com um amigo do cineasta-narrador o procurando para relatar um pesadelo recorrente, no qual é perseguido por dezenas de cachorros que matou numa aldeia libanesa. Ele então indaga ao diretor sobre seus próprios traumas de guerra e Folman responde que não lembra de nada. Mas naquele mesmo dia ele é assaltado por uma memória misteriosa, de três rapazes observando uma paisagem urbana devastada. Em busca do significado daquelas imagens, ele parte atrás de seus antigos colegas de Exército, e de psicológos especializados em estresse pós-traumático, em busca sobre o que ocorreu de fato no Líbano. O resultado é uma viagem dolorosa, mas de autodescoberta, que mudará a imagem que o cineasta tem de si mesmo.

O Contexto Histórico da Guerra



A invasão israelense do Líbano em junho de 1982 foi fruto de duas circunstâncias, uma interna e outra externa. A primeira delas foi uma progressiva radicalização da luta política libanesa entre cristãos maronitas (os falangistas) e os árabes liderados pela OLP de Yasser Arafat. Essa polarização – que refletia alinhamentos baseados também no contexto da Guerra Fria – deixou o Líbano refém de uma luta que transbordava suas fronteiras. A segunda circunstância foi o cálculo político do Primeiro-Ministro Menachem Begin e do então Ministro da Defesa israelense Ariel Sharon de que Israel poderia se beneficiar duplamente da situação no Líbano: ao apoiar os falangistas, Israel tentaria eliminar fisicamente a ameaça da OLP e ocupar o sul do Líbano, garantindo uma zona "tampão" contra qualquer ataque às suas cidades fronteiriças por forças remanescentes da OLP ou de uma atuação maior da Síria.

A ocupação tornou-se longa e custosa para Israel. O objetivo declarado, o fim dos terroristas, não se concretizou assim como a Síria passou a ocupar o vácuo político aberto pelo enfraquecimento da OLP. O que era vendido à opinião pública como uma guerra justa de proteção passou a envolver a presença de jovens soldados israelenses durante 18 anos em uma zona empobrecida e destruída pelos combates diários entre facções. A participação direta norte-americana no conflito a partir de 1983 ajudou a complicar ainda mais uma situação politicamente delicada. Durante esse período, os árabes libaneses passaram também por uma transformação importante: de "esquerdistas" seculares do início da OLP, os anos subseqüentes mostraram uma radicalização religiosa e de sua atuação tática.

A Desconstrução dos Mitos Heróicos



Os protagonistas de “Valsa com Bashir” são muito diferentes dos heróis dos filmes de guerra tradicionais. São rapazes bastante jovens, adolescentes em transição para a vida adulta. Assustados, pressionados pela sociedade e com frequência assombrados por memórias familiares do Holocausto, sentem que precisam fazer algo pelo país. Para alguns, vestir a farda e portar armas é a prova de fogo para suas dúvidas sobre masculinidade. À medida que se embrenham no Líbano, as fragilidades juvenis se manifestam em atos de covardia, em crueldades contra civis (por vezes praticadas por combinação de medo e imprudência) e na perplexidade diante de uma guerra estranha, cujas batalhas se dão em ruas residenciais, com moradores que observam o espetáculo da varanda – como na extraordinária sequência que dá título ao filme, na qual uma tropa israelense é encurralada por guerrilheiros da OLP.

A invasão do Líbano também diferiu bastante das guerras anteriores de Israel, em particular a dos Seis Dias (1967) e a do Yom Kippur (1973) – eventos que mobilizaram toda a sociedade e envolveram a própria sobrevivência do Estado. Os soldados de “Valsa com Bashir” viveram outra experiência, a de lutar num país estrangeiro, que embora vizinho, parece muito distante. Numa passagem, o narrador volta a Israel de folga e vê com surpresa que o cotidiano segue normalmente, sem que ninguém se dê conta dos sofrimentos e sacrifícios pelos quais ele e seus colegas passam no Líbano.

O Debate Contemporâneo em Israel e nos EUA

Apesar de envolvida em conflitos desde a fundação de seu Estado, sempre houve uma discussão política bastante aberta e vigorosa dentro da sociedade israelense sobre seus rumos e suas práticas. O Israel de hoje é cada vez mais complexo: uma sociedade com economia bastante desenvolvida e com população cada vez mais diversa, e o debate se torna cada vez mais individualista sobre o futuro.

Apesar da forte guinada para a direita nas últimas eleições, a controvérsia sobre o papel do uso da força em Israel é bem mais rico e plural do que é nos EUA, por exemplo. Apesar de possuírem uma voz e influência importantes para o debate interno de Israel, ouvir argumentos da esquerda isralense nos Estados Unidos seria praticamente um tabu. O lobby dos judeus norte-americanos tem sido criticado por especialistas por preconizar uma política externa agressiva no Oriente Médio, dificultando as relações de Washington com os países muçulmanos da região.

2 comentários:

Anônimo disse...

Jogador,

acabei de ver o documentário. Excelente! Me recordei das nossas conversas sobre a realidade da guerra vs a guerra dos filmes de Hollywood. Há sempre um forte medo, insegurança e imperícia dos soldados recém saídos da adolescência. A guerra não é para fracos, mas é na guerra que as fraquezas presentes em cada um se mostram.
Me recordei também do seu comentário sobre o Collin Powell com medo dos recrutas na Guerra do Vietnã.
Com um vasto poder militar, o Estado de Israel cometeu excessos em algumas ocasiões. O MacNamara começa o documentário "Fog of War" dizendo isso: "Todo comandante militar que é honesto consigo próprio reconhecerá que cometeu excessos no uso do poder militar".

obrigado novamente pela dica!

Helvécio.

Maurício Santoro disse...

Meu caro,

Adorei o filme, e pena que você não esteve na sessão, comigo, Bruno e João Daniel, porque a conversa que se seguiu foi tão boa quanto o documentário.

Para mim, o mais impressionante foi o lado humano da história e a progressiva tomada de consciência por parte do narrador. Inesquecível.

abraços