segunda-feira, 8 de junho de 2009

Alexander Herzen



Vasculhando as prateleiras de um sebo, encontrei velho exemplar de “Meu Passado e Pensamentos”, de Alexander Herzen. Caindo aos pedaços, mas leitura agradabilíssima. Herzen foi um intelectual russo do século XIX, em geral considerado o pai do socialismo naquele país. Contudo, minha impressão é de que ele se situa muito mais na tradição liberal da época romântica, da valorização dos direitos individuais diante da autocracia czarista – não é à toa que o grande responsável por sua redescoberta contemporânea tenha sido Sir Isaiah Berlin.

Controvérsias classificatórias à parte, Herzen tem muito a dizer ao nosso tempo. O volume que comprei é uma coletânea que reúne material disperso por livros de memórias e panfletos políticos. O melhor, sem dúvida, é o relato autobiográfico sobre a juventude do autor na Rússia. Ele era filho de um poderoso aristocrata e freqüentou a Universidade de Moscou, então o bastião da luta pela liberdade no país. A vida de Herzen se confunde com a turbulenta história daquele período: nasceu quando seus pais fugiam da invasão de Napoleão, em 1812, e o acontecimento decisivo de sua adolescência foi a frustrada rebelião dezembrista. Ficou para sempre marcado pelos ideais libertários dos oficiais do Exército que desafiaram o czar Nicolau I.

Agitações estudantis que seriam inofensivas na França ou na Inglaterra levaram Herzen a ser banido para províncias distantes, onde foi obrigado a trabalhar como funcionário governamental. Após alguns anos, foi autorizado a voltar a Moscou e São Petersburgo, mas resolveu ir para o exterior. Viveu as revoluções da Primavera dos Povos de 1848 e passou por Itália, Suíça, Alemanha, França e Inglaterra, em companhia de rebeldes e revolucionários como Garibaldi, Bakunin e Proudhon. Como se vê pelo catálogo, a ideologia está mais para romantismo do que para o “socialismo científico” que começava a tomar forma, e de fato Marx e Herzen se detestavam, embora eu acredite que nunca tenham se conhecido pessoalmente.

O fracasso político das revoluções de 1848 foi acompanhado por uma série de tragédias pessoais para Herzen, como as mortes de sua esposa, de sua mãe e de um de seus filhos. Acabou refugiado Londres, um tanto desiludido e melancólico, mas a década de 1850 foi o auge de sua influência, exercida por meio de diversos jornais e revistas. O mais famoso foi “O Sino”, decisivo nos debates sobre a abolição da servidão na Rússia, e célebre pelas denúncias do abuso de poder czarista.



Herzen foi derrotado por uma das forças mais poderosas a emergir das revoluções de 1848: o nacionalismo de massas. Sua posição em defesa da rebelião da Polônia, então sob domínio do Império Russo, o tornou persona non grata em seu país, mesmo entre os que combatiam o czar. E a nova geração de rebeldes o achava um dinossauro liberal, de muitas palavras e poucas ações, e adotou uma postura radical (o termo “nihilismo” foi inventado para descrevê-los). Alguns viraram terroristas, e acabaram assassinando o imperador, na vã esperança de que, eliminando uma pessoa, fossem avançar as causas progressistas na Rússia.

Há pouco tempo, o dramaturgo Tom Stoppard (do qual comentei recentemente a peça “Rock and Roll”) escreveu a triologia “A Costa da Utopia” (a segunda foto do post), sobre os exilados russos, na qual Herzen, Bakunin e o crítico literário Belinsky, amigo de ambos, desempenham os papéis centrais. Como em muito da obra de Stoppard, o diálogo é entre os sonhos, esperanças e frustrações das revoluções. A triologia foi elogiada e premiada pela crítica – será que um dia será montada no Brasil? – e o mais interessante foi a experiência da encenação na própria Rússia:

Eles chegaram às praias russas logo que começou a disputa pela história do pensamento russo, quando uma luta está em curso pela identidade e pelo passado do país. Tudo que Herzen detestava está ressucitando: censura, a autocracia do Estado russo, a união macabra da ortodoxia, nacionalismo e autoritarismo. Depois de quase 15 anos do experimento democrático que seguiu o colapso do comunismo, a classe média russa está voluntariamente cedendo liberdades pessoais em troca de estabilidade nacional assim como os franceses fizeram em 1848. Como alguém da platéia declarou, “Sinto que a produção é tão atualizada que poderia ser fechada [pela polícia].”

6 comentários:

Patricio Iglesias disse...

Meu caro:
Creio que ninguém pode dizer que näo aprende do blog... é todo täo variado!
Sinceiramente näo tinha nem idéia do Herzen, mas é muito interessante e, como sempre, em um formato didáctico. Ri um pouquinho ao ler que o consideravam um "dinossauro liberal" e lembrar a cançäo do Charly García ("El amigo del barrio puede desaparecer, el que escribe en los diarios puede desaparecer, etc. pero los dinosaurios van a desaparecer"). Um pouco ingénuo o canto e, como você bem diz ao final, näo sei se por clonaçäo ou qué mas os dinossauros (autoritarismo, ultraliberalismo etc.) voltaram.
Saludos!

Patricio Iglesias

PD: Aqui ninguém pode ter dúvidas. Sendo täo velho o livro, ninguém va pensar que você foi pagado pra "fazer propaganda". Ha, ha, ha!

Hugo Albuquerque disse...

Eles chegaram às praias russas logo que começou a disputa pela história do pensamento russo, quando uma luta está em curso pela identidade e pelo passado do país. Tudo que Herzen detestava está ressucitando: censura, a autocracia do Estado russo, a união macabra da ortodoxia, nacionalismo e autoritarismo. Depois de quase 15 anos do experimento democrático que seguiu o colapso do comunismo, a classe média russa está voluntariamente cedendo liberdades pessoais em troca de estabilidade nacional assim como os franceses fizeram em 1848. Como alguém da platéia declarou, “Sinto que a produção é tão atualizada que poderia ser fechada [pela polícia].”

Maurício,

Se me permite discordar de alguns pontos que estão aí em cima, vamos lá:

1. Nunca houve comunismo na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

2. Nunca houve experimento democrático na Rússia pós-soviética; Yeltsin, nos momentos em que esteve ameaçado, usou de tanques e fraudes eleitorais até dizer chega.

3. O que há hoje é uma tentativa bisonha de pôr ordem no caos dos últimos anos via organização técnica de um Estado que não faz a menor questão de ser democrático;

4. Sobre as liberdades individuais, a população russa não pode ceder o que nunca teve.

Maurício Santoro disse...

Salve, Patricio.

Charly García e Herzen são uma dupla inusitada, mas acho que eles gostariam um do outro :-)

Caro Hugo,

Com todos os problemas da política russa na era pós-soviética, acredito que eles fizeram, sim, um experimento democrático, em particular no governo de Yelstin. O problema foi o caos social e a corrupção e violência extremas, que levaram a ascensão dos oligarcas e à cultura do medo na qual Putin floresceu.

Olhando para a história russa do século XIX, é espantoso a quantidade de pontos em comum, sobretudo na dificuldade de se constituir uma sociedade onde os direitos individuais, frente ao Estado, sejam consolidados.

abraços

Hugo Albuquerque disse...

Vamos com calma quanto a Yeltsin, Maurício. O sujeito soube muito bem se aproveitar daquele cenário de fim de mundo da queda da URSS, se elegeu, promoveu aquela terapia de choque lamentável e nos momentos que as coisas ficaram um pouco mais tensas, ele usou as Forças Armadas a rodo - lembra da Crise Constitucional de 93? Ou das eleições bem curiosas de 96? Não dá pra chamar aquilo de experiência democrática, no máximo, alguma coisa eleitoreira enquanto o país ficou naquele vazio.

Maurício Santoro disse...

Dá sim, Hugo, porque Yelstin realmente representou uma ruptura no período 1990-92, em particular por seu firme repúdio à tentativa de golpe contra Gorbatchev. Depois foi a tragédia que se seguiu, se bem que as condições russas eram tão terrível que provavelmente estavam além dos talentos de qualquer estadista.

Mas para além das ações dos governos russos, é importante olhar para a sociedade civil, e nesse sentido ocorreu muita coisa nos anos 1990: a tentativa de lidar com as violações de direitos humanos do período soviético, boas iniciativas de jornalismo investigativo, novas perspectivas culturais etc.

Abraços

Hugo Albuquerque disse...

A situação russa era mesmo ruim, mas isso não quer dizer que ela tenha sido agravada por Yeltsin, claro, isso pode variar de acordo com o que se considera por "democracia", mas quando eu leio coisas como isso

http://seansrussiablog.org/2009/01/24/the-private-killer/

ou assisto coisas como essas

http://www.youtube.com/watch?v=eQNjXmAWjqc

Não consigo relacionar o regime vigente com a ideia que eu tenho de democracia.

O que se viu num primeiro momento foi a bem intencionada e politicamente correta política reformista de Gorbachiov ir pro vinagre e Yeltsin e seus asseclas dilapidarem o Estado russo; é daí que surgem os oligarcas.

Na União Soviética dos fins dos anos 80, os pólos de poder eram o Partido, as Forças Armadas, a KGB e, por último, o Estado em sentido estrito e formal.

Danou-se o Partido e a KGB foi enfraquecida. Yeltsin governou com o poder que tinha no Estado e com a influência das Forças Armadas - que lhe foram fiés até o último dia do governo.

Enquanto isso, havia uma verdadeira guerra entre alguns ex-burocratas do regime soviético para ver quem ficava com o maior naco do nascente capitalismo russo - e o povo, meu caro, no máximo, quando se dignava a protestar, apanhava como cachorro.

A rede de proteção social que existia na União Soviética fora desmontada e a expectativa de vida no país foi parar no fundo do poço - onde se encontra até hoje.

Putin, por sua vez, é um fenômeno que aparece quando essa briga pelo poder se assenta e um grupulho de oligarcas se senta à mesa e decide o futuro do país: A Rússia que eles tanto se esforçaram para roubar iria, fatalmente, se desmanchar, eles precisavam de alguém com trânsito entre os destroços do país.

Putin foi esse homem; sua influência na Universidade de São Petersburgo, sua proximidade com os oligarcas locais e os contatos na FSB (ex-KGB) lhe gabaritavam para tanto.

Negociar com um caquético Yeltsin foi moleza, ele passou o bastão do Estado e das Forças Armadas, Putin, por sua vez, foi a face a estampar a grande ofensiva na Chechênia que já estava planejada há tempos.

Ele se elegeu fazendo uma campanha populista, prometendo acabar com os oligarcas quando, na verdade, pretendia acabar com os oligarcas que ameaçam os seus oligarcas. E assim foi feito: Khodorkovsky foi preso, Berezovsky foi chutado e as Burtinas e os Abramovichs da vida enriqueceram mais ainda.

Enfim, eu não deixaria de ver Putin como uma decorrência lógica de Yeltsin, infelizmente.