quarta-feira, 15 de julho de 2009

Primárias e Plebiscitos



Nas últimas semanas o tema da democracia na América Latina anda em debate, em função do golpe em Honduras. Com a ênfase nas preocupações trazidas pela quartelada em Tegucigalpa, pouco se falou em algo mais discreto, embora importante, no Uruguai. Me refiro à realização das primárias nos principais partidos, e aos plebiscitos sobre a anulação da Lei de Anistia e o fim da criminalização do aborto. A disputa presidencial e as consultas populares ocorrerão no dia 25 de outubro.

O sistema político uruguaio é, ao lado do chileno e do costa-riquenho, o mais estável da América Latina. Os partidos Nacional e Colorado existem desde o século XIX. Na década de 1970 foi criada a Frente Ampla, que reúne várias agremiações de esquerda, e que conquistou em 2004 a presidência do país. Desde 1999 as três siglas realizam eleições primárias para definir seus candidatos às disputas presidenciais, à semelhança do que acontece nos Estados Unidos. Faz a gente pensar nas práticas autoritárias que prevalecem em muitos países da região, onde tais decisões são tomadas pelos cardeais partidários a portas fechadas.

Os candidatos selecionados pelos uruguaios refletem a pluralidade ideológica do país. O presidenciável da Frente Ampla é o senador José Mujica (foto abertura), ex-guerrilheiro dos Tupamaros, preso e torturado durante a ditadura. Pelo Partido Colorado, o candidato é Pedro Bordaberry – filho do presidente civil que liderou a marcha uruguaia para o autoritarismo, ao aceitar a tutela das Forças Armadas para combater os Tupamaros. Pelo Nacional, é o ex-presidente Luis Alberto Lacalle (abaixo), um conservador associado às reformas liberais da década de 1990.



As pesquisas indicam uma disputa acirrada entre Mujica e Lacalle, com novidades interessantes como a importância do voto dos uruguaios que vivem no exterior – cerca de 750 mil, num país com pouco mais de três milhões de habitantes. Muitos deixaram o Uruguai durante a grave crise do início da década, e agora há um movimento de retorno, em função da catástrofe econômica na Europa.

As eleições presidenciais serão em outubro, e junto com elas ocorrerão dois plebiscitos. Um é para fazer com o que o aborto deixe de ser crime (embora não o legalize). A medida tinha sido aprovada pelo Senado, mas vetada pelo presidente Tabaré Vázquez. O tema vem sendo debatido há cinco anos no Uruguai e divide a Frente Ampla. Polêmicas à parte, o país tem avançado bastante na legislação que diz respeito a questões como o tratamento de transexuais no serviço público e no combate à discriminação por orientação sexual.

O outro é para decidir sobre a anulação da Lei de Anistia, negociada com os militares na transição da ditadura para a democracia. Os uruguaios agora têm a possibilidade de revogá-la, e aumentar os processos (já há alguns em curso) contra autoridades que torturaram e mataram durante o regime autoritário. Até o ex-ditador do país foi preso recentemente, aliás durante uma visita minha a Montevidéu. Não me esqueço das pessoas comemorando nas ruas. Naturalmente, há influência das mudanças na política de direitos humanos na Argentina e no Chile, mas também o resultado da consolidação democrática no próprio Uruguai.

Contudo, meus amigos uruguaios estão indecisos com relação ao plebiscito, questionando se é boa idéia rever uma decisão tomada há tanto tempo. A opinião pública está mais favorável. A ver.

3 comentários:

Patricio Iglesias disse...

Meu caro:
Aqui resoaram as internas partidárias. Algumas figuras já falaram de que o Uruguai é um exemplo pra nós e até o gobernador de San Juan, Gioja, dez que temos que aplicar o mesmo sistema. Saria muito legal, devolvindo ao povo uma maior participaçäo. Eu sempre lembro de faz dez anos atrás, em 1999, quando os dois maiores partidos, o PJ e a Alianza, convocaram a eleiçöes internas e até Acción por la República (o partido de direita neoliberal do momento) chamou a uma votaçäo telefônica entre Béliz e Cavallo (se você queria votar pelo Béliz tinha que digitar um número e, se pelo Cavallo, outro). Coisa perdida desde a crise de 2002.
Gostaria muito, como imagina, que o Uruguai possa se reencontrar com seu passado mais sombrio. Creio que, se até nós, muito menos maduros do que eles, chegamos revisar o capítulo mais difícil da nossa história, com mais raçäo eles poderäo fazer o mesmo.
Saludos!

carlos disse...

caro santoro,

taí uma boa notícia, meu camarada. talvez venha para contrabalançar o golpe da milicada em honduras.

o uruguai de obdulo varella vem num caminhar vigoroso pela democracia. estabilizado politicamente tem a oportunidade, mediante um democrático plebiscito, de enfrentar de vez seus fantasmas que continuam putrefatos e insepultos.

parabéns aos "cisplatinos", e, particularmente, continuo torcendo pela frente ampla. fazer o que?

abçs

Maurício Santoro disse...

Oi, Patricio.

Considere-se com sorte, pois no Brasil as primárias uruguaias não tiveram repercussão entre os partidos, talvez pela concentração na crise do Senado...

Curiosamente, o PJ adotou uma parte da legislação eleitoral uruguaia - a Lei de Lemas - mas adaptou-a, no sentido de permitir que o partido lançasse mais de um candidato. Daí situações como as eleições presidenciais de 2003, com Menem, Kirchner, Rodriguez Saa, todos pelos peronistas...

Caro Carlos,

A Frente Ampla tem uma estrutura política muito interessante. Fiquei particularmente impressionado pela riqueza dos debates internos e pelo alto preparo dos militantes. Outro bom exemplo para os partidos brasileiros.

Abraços