segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Azeredo da Silveira: depoimento



Nasceu guerreiro, nasceu lutando.
João Guimarães Rosa, falando do amigo Antônio Azeredo da Silveira

O Brasil, em razão de fatores objetivos, tem um destino de grandeza ainda relativa em nossos dias, ao qual não terá como se furtar, e isso lhe impõe a obrigação de encarar seu papel no mundo em termos prospectivos fundalmentamente ambiciosos. Digo ambição no sentido de vastidão de interesses e escopo de atuação, e não no desejo de hegemonia ou de preponderância.

O papel de uma chancelaria é por o país à frente do seu tempo.
Azeredo da Silveira

A Editora da FGV lançou na semana passada "Azeredo da Silveira: um depoimento", organizado por meu amigo Matias Spektor. Trata-se de uma série de longas entrevistas que o ex-chanceler do presidente Ernesto Geisel deu ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da FGV, do qual sou professor. O depoimento foi dado entre 1979 e 1982 às professoras Maria Regina Soares de Lima e Monica Hirst - fui assistente daquela e orientando de doutorado desta. Silveira foi o mais importante ministro brasileiro das Relações Exteriores desde o barão do Rio Branco, e sua busca de um "pragmatismo ecumênico e responsável" foi a face internacional do projeto Brasil-Potência, uma influência fortíssima na atual diplomacia de "potência emergente".

Silveira era um diplomata de carreira que ocupou postos de relevo a partir da década de 1960, entre os quais se destacaram sua atuação nas negociações econômicas e políticas da ONU, em Genebra (comércio, desenvolvimento, não-proliferação nuclear) e os anos em que serviu como embaixador na Argentina, no período conturbado das ditaduras de Onganía e Lanusse, e do segundo peronismo. Geisel o escolheu como chanceler justamente porque queria alguém que destravasse as relações entre Brasília e Buenos Aires, perturbadas pela oposição argentina ao projeto brasileiro de construir a usina de Itaipu, em parceria com o Paraguai.

À frente do Itamaraty entre 1974 e 1979, Silveira comandou impressionante renovação diplomática e conceitual, no sentido em que mudou a maneira pela qual se pensava política externa. Reestabeleceu relações com a China comunista (haviam sido rompidas depois do golpe de 1964), parou com o apoio a Portugal na África, reconhecendo os novos regimes marxistas das ex-colônias lusitanas no continente, firmou um ousado acordo de cooperação nuclear com a Alemanha Ocidental, aproximou-se dos países árabes no contexto dos choques do petróleo e procurou resolver tensões entre o Brasil e os vizinhos sul-americanos, como o Peru, que então vivia sob uma ditadura militar de esquerda.

Com os EUA, Silveira a princípio encontrou um parceiro em Henry Kissinger (a relação é o tema do excelente livro anterior do Matias), com quem estabeleceu um entendimento de alto nível. Mas quando os republicanos (Nixon e Ford) foram substituídos pelo democrata Jimmy Carter, os conflitos se agravaram em torno da oposição americana ao acordo nuclear entre Brasil e Alemanha, e pela decisão de Carter de transformar a ditadura brasileira no símbolo de sua nova política de defesa dos direitos humanos na América Latina. Geisel reagiu denunciando o acordo de cooperação militar com os Estados Unidos, que vinha dos anos 50.

Com frequência se diz que a diplomacia de Geisel foi "terceiro-mundista", mas essa é uma interpretação errônea. Silveira preferia falar em "universalização da política externa" e dedicou intensa atenção às grandes potências, procurando estabelecer parcerias com Grã-Bretanha, França, Itália, Alemanha e Japão como modo de reduzir a dependência brasileira dos Estados Unidos - o ponto foi especialmente pronunciado na questão nuclear.

Também é fascinante observar o jogo entre política e economia. O chanceler observou que certos bons negócios na África - como os acordos com a Nigéria - só foram possíveis quando o Brasil se afastou do colonialismo português e do regime racista da África do Sul. A carta comercial foi igualmente útil para convencer os militares da importância de se reaproximar da China comunista, embora Silveira reconheça que isso era apenas um pretexto, pois seu real objetivo era demonstrar que a diplomacia brasileira era capaz de posições autônomas diante dos grandes temas globais. O chanceler criticava bastante a imprensa nacional (em especial o Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil) por seu provincianismo intelectual e sua falta de percepção da realidade internacional.

Silveira foi um grande operador, mas não era um intelectual que colocasse seu pensamento em discursos memoráveis, livros e artigos. Daí a enorme importância deste depoimento para todos os que se interessam pela política externa brasileira.

Nenhum comentário: