terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Dilma na Argentina: direitos humanos como agenda positiva



A presidente Dilma Roussef realizou sua primeira viagem como chefe de Estado. A escolha da Argentina foi importante, para sinalizar a importância da sempre complexa agenda bilateral, mas também para frisar o que promete ser marca da diplomacia de Dilma: mudanças com respeito aos direitos humanos.

A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas da China e dos Estados Unidos. A balança do comércio exterior havia sido tradicionalmente favorável aos argentinos, mas o quadro mudou após a crise de 1998-2002 e tem provocado tensões. De la Rúa e os Kirchner adotaram barreiras para tentar conter o desequilíbrio: elevaram tarifas acima do permitido pelo Mercosul, impuseram proibições administrativas às importações brasileiras (esquema que dá margem para muita corrupção) e extraíram um mecanismo bilateral de negociação de salvaguardas que desagradou ao Paraguai e Uruguai, demais sócios plenos do bloco regional. Empresas brasileiras que operam na Argentina também sofreram com medidas como os controles de preços e quebras de contrato por parte do governo.

Apesar do déficit argentino, a relação econômica com o Brasil lhes é muito importante, pelo enorme fluxo de investimentos e de turistas, além da importância crucial do mercado consumidor brasileiro para a indústria do país vizinho. Mais da metade da produção de automóveis, por exemplo, é exportada para o Brasil. Ambas as nações são parceiras significativas na produção de energia, com pesquisa conjunta na área nuclear e planos de construir usinas hidrelétricas no rio Uruguai.

Para além da conjuntura, os problemas comerciais refletem uma dificuldade estrutural: a necessidade da Argentina administrar seu declínio relativo diante de um Brasil em ascensão, do qual depende economicamente. Cabe lembrar que até a década de 1950, o país vizinho tinha um PIB maior do que o gigante brasileiro, e mesmo hoje em dia a qualidade de vida e os indicadores sociais são melhores por lá. É difícil, muito difícil, chegar a acordos sobre esses assuntos, em especial com a persistência de uma estúpida ideologia da rivalidade - a imagem abaixo mostra uma inacreditável campanha da prefeitura de São Paulo, que retrata o mosquito da dengue com a camisa da seleção argentina de futebol! Por isso aumenta a importância de uma "agenda positiva" nas relações bilaterais, e o tema dos direitos humanos pode preencher esse vácuo.



A ditadura militar argentina de 1976-1983 foi a pior da América do Sul, deixando como saldo entre 9 mil e 30 mil mortos, a guerra das Malvinas e tragédias humanitárias como o sequestro de bebês filhos de desaparecidos políticos (estima-se que cerca de 400 crianças foram roubadas, pouco mais de 100 foram descobertas) e os vôos da morte, no qual prisioneiros dopados eram atirados no rio da Prata. Diante de tanta brutalidade, não espanta que os argentinos liderem os esforços regionais em assuntos como a memória do período autoritário e a punição aos torturadores e assassinos.

A presidente Dilma é a primeira chefe de Estado brasileira a ter sido torturada e torço para que essa experiência terrível se reflita em um compromisso para erradicar esse crime ainda tão comum no Brasil. No campo externo, Dilma anunciou mudanças, com indicações que no Conselho de Direitos Humanos da ONU o país terá comportamento mais crítico aos regimes repressivos, citando o Irã como exemplo.

O Brasil é um ator de influência crescente no Oriente Médio, mas ainda é um participante secundário das crises da região. Na América Latina, ao contrário, o país pode e deve ter papel de destaque na consolidação da democracia e dos direitos humanos. Isso significa atitudes diversas com respeito a Cuba e à Venezuela, nos quais a defesa incondicional dos respetivos governos poderia ser substituída por mediações como a que a Espanha realizou junto a Havana, resultando na libertação de dezenas de presos políticos.

A reunião da presidente Dilma com as Mães e Avós da Praça de Maio sinaliza outra agenda importante: o reforço da memória regional sobre as ditaduras, como passo para eliminar problemas pendentes como o ocultamento dos restos mortais dos desaparecidos brasileiros, pelo o qual o governo brasileiro já sofreu inclusive condenações internacionais, na Organização dos Estados Americanos.

PS - Hoje ocorre no Egito a "Marcha do Milhão", contra Mubarak e pela democracia. Amanhã comento-a no blog.

5 comentários:

Anônimo disse...

Acredito que a rivalidade é baseada na ignorância, desde que viajei pra Argentina, e conheci nosso país vizinho, só tenho os admirado mais.

Anna Maria disse...

Maurício!
Achei de um significado extraordinário a visita da Dilma à Argentina, por várias razões.
Veja só: ela passou apenas 6 horas em Buenos Aires e, para além do compromisso com a Presidenta Christina, decidiu encontra-se com Las Madres e las Abuelas de Plaza de Mayo.
Isto é de um simbolismo tremendo, e sinaliza para a importância do resgate da memória histórica latino-americana. Sinaliza, ainda (espero eu) que as atrocidades da ditadura militar não passarão em brancas nuvens neste mandato.
Segundo: esta foi a primeira visita internacional dela. A decisão de ir para a Argentina mostra a importância das relações no âmbito regional latino-americano. De quebra, ainda ajuda a romper essa rivalidade idiota que existe entre Brasil e Argentina, que só nos tem feito mal.
E, por fim, o fato de termos duas presidentas nestes dois gigantes sulamericanos é também de um grande significado para nós, mulheres latino-americanas, que tanto caminho ainda temos que percorrer neste continente onde ainda pulula o machismo.

Valeu, Maurício!
Beijo!

Anna Maria

Maurício Santoro disse...

Salve, Anônimo.

Também acho e me parece que essa rivalidade foi algo que ficou muito marcado (e estimulado) pelas respectivas ditaduras. Talvez um dia eu escreva algo sobre como esses sentimentos de hostilidade foram construídos.

Anninha,

Concordo, o simbolismo da viagem foi enorme, e bem pensado pelas duas presidentes. Espero que elas possam levar adiante esse projeto comum em direitos humanos, porque tudo indica que a agenda econômica continuará complicada.

Abraços

Patricio Iglesias disse...

Meu caro:
Concordo totalmente na importância do vôo da Dilma. Ao margem da economia (sejamos realistas, nosso déficit é estrutural) creio que a postura mais clara no campo dos DDHH do Brasil no novo governo pode ajudar muito não só no caminho da verdade respeito aos crimes das ditaduras, mas também, com uma maior intransigência dianto do Irã, ao avanço do Caso AMIA.
Abraços

PS: Espero seus comentários amanhã à queda do Mubarak :D

Maurício Santoro disse...

Salve, Patricio.

Aparentemente a presidente Dilma irá mudar a posição brasileira com respeito ao Irã, mas não está claro para mim se isso vai significar uma postura diferente na causa AMIA. É provável que não, porque os atentados envolveram o Hezbolá, uma força importante no Líbano, país-chave para a diplomacia brasileira no Oriente Médio (há mais descendentes de libaneses por aqui do que no próprio Líbano).

Abraços