“Mar de Papoulas” não tem um protagonista, a narrativa se reveza por um grupo de pessoas que de origens muito diversas formará a tripulação do Ibis e se manterá unida ao longo da triologia: um marinheiro americano, mulato, que descobre que os mares do Oriente lhe dão a oportunidade de passar por branco, abrindo inesperados caminhos de ascensão social; um casal de camponeses indianos em fuga por conta de um amor adúltero impossível por razões de casta e honra familiar; um aristocrata indiano falido e injustamente condenado por fraude, com um insperável amigo chinês que conheceu na cadeia; uma jovem órfã francesa que herdou do pai cientista um temperamento questionador e rebelde e um elenco fascinante de personagens secundários vindos de todas as partes do globo. Eles falam uma língua mágica, um amálgama de vários idiomas, incrivelmente rico e poético. Aviso – li o original em inglês e ignoro como ficou a tradução para o português, é uma tarefa dificílima adaptar a inventividade do autor.
O navio também é parte do elenco. O Ibis transportava escravos da África para as Américas, mas quando a Grã-Bretanha começou a combater esse comércio, ele foi adaptado para outros negócios, como levar ópio da Índia à China e carregar prisoneiros e trabalhadores que assinaram contratos de “servidão por dívidas” para colônias européias.
O romance começa com a chegada do Ibis à cidade indiana de Calcutá, depois de uma jornada tumultuada que começou na América do Norte e passou pelo Cabo da Boa Esperança e pelas Ilhas Maurício. O contexto histórico é o da década de 1830. Os britânicos dominam a Índia, sobretudo por meio da Companhia das índias Orientais, e estão em sérias tensões com a China. Importam de lá seda, porcelana e outros artigos caros, mas não conseguem fazer com que os chineses se interessem por suas manufaturas. Até que o ópio desponta como solução para o déficit comercial.
O ópio é uma droga poderosa fabricada a partir da papoula, cultivada na Ásia meridional. No tempo do império britânico, a Índia era o principal centro produtor (hoje em dia, é o Afeganistão, as receitas financiam os Talibãs). Os lucros eram tão fabulosos que as melhores terras viraram plantações monocultoras dedicadas às exportações para a China, com os grandes comerciantes tomando terras de camponeses e rivais mais fracos. Naturalmente, as autoridades chinesas se preocuparam com a situação e tentaram proibir o ópio, levando a uma série de guerras pelas quais os britânicos impuseram não só o produto, mas também sua dominação territorial sobre vários dos portos do país.
Os personagens de Ghosh são arrastados pelos acontecimentos e têm posições ambíguas com relação ao ópio, de fascínio, medo ou desprezo. Alguns são viciados na droga. Seu épico é uma visão pós-colonial da globalização, o que significa que ele é muito crítico dos britânicos e dos valores de seu império: todos os personagens cristãos e ingleses são maus e trapaceiros, bem como a maioria dos indianos associados a eles. Ghosh é mais simpático aos franceses e americanos, bem como a hindus e muçulmanos. Seus perfis psicológicos são simples, por vezes maniqueístas (não chega nem perto de um Joseph Conrad, por exemplo) seu ponto forte é a compreensão de várias culturas e o modo como narra de forma divertida e inteligente os desencontros entre elas, bem como as sínteses inesperadas.
“Mar de Papoulas” é apenas o primeiro volume da triologia, e basicamente conta a história de como a tripulação do Ibis se conheceu. O segundo livro da série, “River of Smoke”, já foi publicado, com muitos elogios. Há um quê de “Senhor dos Anéis” ou “Guerra nas Estrelas” no estilo e escala do trabalho de Ghosh, em seu entretenimento de alta qualidade.