sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Adeus, Senhor Presidente



Na semana passada escrevi um pouco sobre o método de Planejamento Estratégico Situacional (PES) desenvolvido pelo economista chileno Carlos Matus. Fiquei surpreso com a quantidade de pessoas que me pediram mais detalhes, portanto aqui vai este post. Se você quer um guia rápido para as principais ideias do autor, recomendo o livro-entrevista “O Método PES”, do jornalista Franco Huerta. Se você está disposto a um caminho mais heterodoxo, a dica é “Adeus, Senhor Presidente: governantes governados”, do próprio Matus. Ambos estão publicados no Brasil pela Fundap, que também traduziu outras obras do autor.

"Adeus, Senhor Presidente" mistura romance e ensaio. Cada capítulo abre com uma parte ficcional, nas quais temos cinco cenas da trajetória política do presidente de um país qualquer, presumivelmente na América Latina. Elas começam com sua posse, em meio a grandes expectativas de mudanças, e terminam com suas reflexões, já afastado do poder, sobre por que desapontou seus eleitores e não conseguiu realizar o que prometeu – seu consolo é que seu sucessor tampouco é bem-sucedido. Entre uma e outra, há uma excelente descrição de uma reunião ministerial para discutir a crise do país e até uma tentativa rocambolesca e divertidísisma de golpe militar.


A parte, digamos, científica, aplica o método PES a cada situação difícil vivida pelo presidente e procura convencer o leitor de que as ferramentas ali expostas resolveriam os problemas. Há muitas percepções interessantes, oriundas da ampla experiência de Matus como consultor e ministro de Salvador Allende. Gosto principalmente de suas análises sobre como questões banais e obstáculos protocolares com frequencia impedem os líderes políticos de se dedicarem ao que realmente importa. Mas os diagramas e etapas do método são muito complicados e permaneço com dúvidas se é viável aplicá-lo em sua totalidade.

De todos os gêneros literários, o romance é o que mais se aproxima das ciências sociais, como sabe qualquer um que tenha lido Balzac ou Machado de Assis. Matus se revela um ficcionista de talento surpreendente, e suas descrições do cotidiano político latino-americano fazem qualquer habitante do continente se identificar com os dilemas do presidente e de seus ministros. Há de tudo no círculo presidencial: sindicalistas veteranos, homens do partido (socialista, à la chilena), empresários, tecnocratas com muitos títulos acadêmicos e nenhuma vivência política, intelectuais idealistas, jornalistas céticos, parentes corruptos e as eternas polêmicas da região, tais como a melhor maneira de equilibrar as finanças públicas, e, simultaneamente, expandir os serviços governamentais e estimular o crescimento econômico.

Há bastante humor e sátira em Matus, em especial no episódio da tentativa de golpe, mas também um afeto real pelos esforços das pessoas que querem fazer um bom trabalho e desenvolver politicas públicas de qualidade. Certas passagens do romance – como o trecho em que o presidente media com habilidade uma discussão entre empresários e sindicalistas – são muito ricas em calor humano, fazem pensar se não seriam um retrato biográfico de Allende em ação.

Sempre me pareceu que a América Latina é tão complexa, inesperada e caótica que as categorias das ciências sociais simplesmente não conseguem dar conta do recado de compreender a região. É preciso um toque a mais, de romance, poesia ou música. Matus lançou um modelo muito promissor de romance-ensaio, pena somente que tenha preferido se concentrear no segundo aspecto, que ocupa muito mais espaço no livro, mas diz menos do que a parte ficcional.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Pachakutik



Na mitologia dos índios quéchua que habitam os Andes, de quando em quando o mundo passa por um turbilhão e é virado de pernas para o ar. Pachakutik, dizem em sua língua, e não por acaso o termo batiza dois partidos políticos de base indígena. No domingo, 60% da população da Bolívia aprovou em referendo a nova Constituição, fechando um ciclo que começou na Venezuela (1999) e passou pelo Equador (2008). Nos três países, as leis básicas foram reescritas para incorporar as novas demandas de movimentos sociais. Apesar das diferenças entre os três processos, há muitos pontos em comum.

As novas Constituições fortalecem a participação do Estado na economia, em particular no que toca ao controle sobre os recursos naturais. Também são marcadas pela promessa da expansão de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais - sobretudo para os povos indígenas - estabelecendo legislação bastante avançada e progressista para os padrões internacionais.

No entanto, não seguem os modelos típicos das democracias ocidentais da América do Norte e da Europa, e são críticas às falhas dos sistemas representativos dessas regiões, adotando uma série de instrumentos de participação popular destinados a complementá-los e corrigir seus erros: conselhos comunitários, autonomias indígenas, práticas tradicionais de justiça. A natureza e composição de tais mecanismos estão entre os pontos mais controversos das cartas magnas andinas, pois não está claro como serão os mecanismos de prestação de contas dessas ferramentas e há riscos concretos de que possam se tornar instrumentos de líderes autoritários, tanto no Poder Executivo quanto em grupos de interesse organizados na sociedade civil.

Além disso, na ânsia de fortalecer as reivindicações de movimentos sociais oriundos das camadas mais pobres e discriminadas, os novos constituintes diminuíram o poder dos freios e balanços tradicionais da democracia representativa, como o Legislativo e o Judiciário. É fato que na América Latina essas instituições muitas vezes foram apenas veículos para o domínio de uma pequena elite agressiva e corrupta, mas ao reformá-las é preciso tomar cuidado para não jogar fora o bebê com a água suja do banho. A supressão de sua capacidade de equilibrar um Executivo fortalecido pode facilmente levar à demagogia de líderes que aspiram a falar diretamente com o povo, passando por cima de partidos e parlamentos. A tentativa de tantos mandatários andinos de introduzir leis permitindo reeleições perpétuas é um sinal claro do retrocesso que ameaça as jovens democracias da região.

Outro ponto polêmico - e um tanto surpreendente - é a questão do federalismo, ou antes, de sua ausência nas novas Constituições. Os grandes países latino-americanos, como Argentina, Brasil e México, adotaram com suas democratizações um considerável grau de autonomia para províncias, estados e municípios. O mesmo ocorreu na Europa, com uma série de reformas iniciadas na década de 1970, em particular em países com forte tradição regional, como Espanha, Itália e o Reino Unido. É de se esperar que algo semelhante aconteça nos Andes, cujos contrastes entre litoral, sierra e selva amazônica são enormes. Contudo, os conflitos entre provincias e poder central continuam a ser muito intensos e por vezes resvalar em risco de golpes, como se evidencia na Bolívia.

No entanto, a democracia não é uma lista de supermercado já pronta, que deve ser preenchida com escolhas em prateleiras pré-definidas. Ela é antes uma espécie de longa conversa, que nunca tem fim, e que com frequencia apresenta inovações por meio de tentativas e erros, acertos e hesitações. O pachakutik andino trará coisas boas e ruins, mas no balanço geral adiciona novas vozes ao coral democrático na América Latina. Que, esperamos, ainda terá muito o que cantar.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Hino da Repressão

Obama signs order to close Guantanamo in a year (Associated Press, 23 de janeiro)

Taken together, the orders would:

- Shut down the U.S. detention facility at Guantanamo Bay, Cuba, within one year.

- Prohibit the CIA from using coercive interrogation techniques that already are banned by the Pentagon.

- Shutter secret CIA "black site" prisons abroad where terror suspects have been held.

- End the practice of "extraordinary renditions" that transfer detainees to countries where they can be tortured.

- Scrap every legal opinion or memo issued during the presidency of George W. Bush that justify interrogation programs, including the use of waterboarding and other techniques, the CIA's black sites and extraordinary renditions.


Se atiras mendigos
No imundo xadrez
Com teus inimigos
E amigos, talvez
A lei tem motivos
Pra te confinar
Nas grades do teu próprio lar


Se no teu distrito
Tem farta sessão
De afogamento, chicote





Garrote, punção




A lei tem caprichos
O que hoje é banal
Um dia vai dar no jornal




E se definitivamente a sociedade só te tem desprezo e horror
E mesmo nas galeras és nocivo, és um estorvo, és um tumor
Que Deus te proteja
És preso comum
Na cela faltava esse um




Letra: Chico Buarque, Hino da Repressão (da Ópera do Malandro)
Música: George W. Bush

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Planejamento à Chilena


No imaginário político brasileiro, o Chile ficou associado à idéia de liberalização da economia. O aspecto é verdadeiro no que diz respeito ao comércio exterior, mas é curioso como a experiência chilena continua a ser uma referência importantíssima para a América Latina no que diz respeito ao planejamento governamental. Agora mesmo, no curso de formação de gestores de políticas públicas, tivemos longas aulas sobre o tema.

A atual coqueluche internacional é o método do Planejamento Estratégico Situacional (PES), elaborado pelo chileno Carlos Matus, um ex-ministro do presidente Salvador Allende (foto). O golpe de Estado de 1973 levou Matus a passar dois anos na prisão, e ele aproveitou o tempo para fazer um balanço bastante crítico dos erros que havia cometido no ministério, e em termos gerais, de todo o pensamento clássico sobre planejamento na América Latina.

Numa avaliação dura, Matus afirmou que era uma prática autoritária, que só tinha em conta um único ator: o próprio Estado. Ele formulou ferramentas alternativas, mais flexíveis, encarando o planejamento como um jogo com diversos participantes, cada um deles com sua estratégia e visão de mundo. Muitos elementos são imprevisíveis, mudam constantemente.

O PES realmente é interessante e impressiona ver o quanto Matus se esforçou para divulgá-lo - ele deve ter lecionado para metade dos tecnocratas da América Latina e criou uma fundação para divulgar o método, inclusive elaborando uma versão simplificada para ser usada em sindicatos e movimentos populares. A questão é que, na ânsia de promover suas idéias, Matus foi injusto com a longa experiência chilena, desqualificando iniciativas importantes.

Afinal, o planejamento governamental no Chile vem da década de 1930, quando a recém-eleita Frente Popular precisou lidar com os problemas humanitários ocasionados por um grande terremoto. O Estado criou a Corporación de Fomento de la Producción, uma espécie de BNDES local, que foi muito importante para a economia do país. Na época havia pouca coisa parecida, mesmo o New Deal americano dava os primeiros passos. Não é por acaso que a Comissão Econômica da ONU para a América Latina e o Caribe (CEPAL) foi instalada em Santiago. Por mais que algumas de suas práticas possam ser excessivamente esquemáticas para os dias de hoje, é preciso lembrar que na época a instituição rompeu com uma série de preconceitos pelos quais a região estaria condenada à pobreza e a permanecer como uma grande fazenda.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

O Discurso de Obama



Começou.

O discurso de posse de Obama consolidou as linhas políticas que o presidente seguiu na campanha - rejeição ao radicalismo ideológico, críticas à condução da economia, às guerras na Ásia, preocupação com a situação da educação e da saúde. Não foi uma peça de oratória inspirada, esteve apenas correta. A ânsia de encontrar um terreno comum entre as diversas correntes da sociedade o levou a se basear nos Pais Fundadores. Entendo o apelo emocional de se referia a Washington e Jefferson, mas me parece que os desafios que os Estados Unidos enfrentam atualmente tem poucos paralelos com o do nascimento da nação.

Gostaria que o discurso tivesse referências a Martin Luther King Jr e Franlin Roosevelt, e que colocasse em mais destaque a necessidade de diálogo e de paz, inclusive por parte do comportamento dos próprios americanos. Também me surpreendeu a ausência de citações a Linconl ou Kennedy, tão repetidamente mencionados por Obama em outras ocasiões.

O melhor trecho do discurso foi aquele em que o presidente conclamou os americanos a escolher "a melhor parte de sua história", e de fato muito de sua oratória está calcado em exemplos de situações difíceis nas quais os Estados Unidos demonstraram grande capacidade de reação e mudança. Contudo, Obama poderia ter dado mais destaque ao papel que os movimentos sociais e indíviduos contestadores tiveram nessa trajetória, em particular pela rejeição das injustiças que permeiam a sociedade americana. Afinal, é por causa de tais forças de transformação que Obama chegou à presidência.



No geral, o povo americano foi um espetáculo mais bonito e interessante do que o novo presidente. Realmente emocionante ver a alegria das pessoas, o entusiasmo com que milhões foram à capital, no frio congelante de janeiro. Desejo boa sorte a Obama, mas minha expectativa e esperança estão com os cidadãos comuns dos Estados Unidos. Oxalá a saída de Bush seja como retirar a tampa da panela de pressão e (re)desperte o engajamento cívico da população, depois da década mais medíocre da história contemporânea dos EUA.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Leila Diniz


Toda mulher quer ser amada
Toda mulher quer ser feliz
Toda mulher se faz de coitada
Toda mulher é meio Leila Diniz


Rita Lee, Todas as Mulheres do Mundo

Será que é divina a vida da atriz?
Chico Buarque e Edu Lobo, Beatriz


A coleção "Perfis Brasileiros", da Editora Companhia das Letras, publicou algumas das melhores biografias recentes dos grandes vultos da pátria, com ênfase em líderes políticos, como os dois imperadores e Getúlio Vargas. Sempre homens. Portanto, é boa nova a inclusão de uma mulher na série de "Leila Diniz: uma revolução na praia", do jornalista Joaquim Ferreira dos Santos. Dono de um texto fluente e agrádavel, ele conta a história da moça que fez época posando de bíquini quando grávida e liberando costumes e linguagem. E que inventou aos trancos e barrancos uma nova maneira de ser mulher, num país que tentava avançar em meio a uma ditadura que queria parar o relógio da cultura.

Leila entrou no teatro, cinema e televisão na década de 1960, quando essas atividades estavam na transição de uma ação entre amigos para um negócio moderno. Começou na TV ainda no tempo dos folhetins ambientados em terras exóticas e enredos melodramáticos, à la "O Sheik de Agadir", que não combinavam com seu jeito moleque contemporâneo, de jovem mulher que queria lidar com os homens de igual para igual, e não ficar restrita aos esteriótipos de mãe ou femme fatale. Consta que Janete Clair, que não gostava dela, teria dito que não havia lugar para a moça em uma de suas novelas, pois não estaria disponível um papel para prostituta.



Se Leila cavava um posto com dificuldade na televisão, encontrou um canal mais fácil de expressão no cinema, onde fez mais de uma dúzia de filmes, com destaque para "Todas as Mulheres do Mundo" (de 1966), escrito e dirigido por seu primeiro marido, Domingos de Oliveira. Por meio da história ele fez uma espécie de mea culpa do fim do casamento entre os dois. Na tela grande, o enredo tem final feliz, o que me lembrou o celébre encerramento de Annie Hall, onde Woody Allen afirma que a vida real é tão complicada que ao menos na ficção as coisas precisam acabar bem.

A vida amorosa, sentimental e sexual de Leila causou escândalo na época, mas para os padrões de hoje passaria tranquilamente como capa da Nova, ou quem sabe programa de debates no GNT, para sadia instrução da mocidade. Claro que em 1969 provocaram o risco do colapso da pátria, como na célebre entrevista ao Pasquim, que é uma espécie de canto de guerra da revolução sexual no Brasil. Foi a edição mais vendida do jornal oposicionista.

A bela biografia de Joaquim Ferreira dos Santos nunca coloca explicitamente a pergunta se Leila era feliz, mas o questionamento está lá, implícito. Como na declaração da atriz: “Nós, mulheres, queremos e não queremos ser independentes”. Um dos momentos mais bonitos é seu romance com o cineasta Rui Guerra, com foi casada brevemente e teve uma filha, Janaína, com quem aliás militei no movimento estudantil. A história de amor entre os dois foi diferente dos casos geralmente rumorosos de Leila, e é narrada com sensibilidade numa crônica de Danuza Leão, "O Homem Certo", citada de passagem no livro.

A ditadura perseguiu a atriz e lhe brindou com o chamado "Decreto Leila Diniz", que proíbia manifestações culturais contrárias "a moral e aos bons costumes". Mas Leila ganhou amigos inesperados, como o apresentador de TV Flávio Cavalcanti, um apoiador do regime autoritário, que no entanto a protegeu, oferendo-lhe emprego e até escondendo-a com sua família. Como é bem conhecido, Leila morreu tragicamente, num acidente de avião, em 1972. Ainda não tinha 30 anos. Falecer jovem e bonita é receita certa para se tornar um mito, mas cabe perguntar o que teria sido de sua carreira artística se ele tivesse continuado a trabalhar. Em seus últimos anos de vida já havia atuado em pornochanchadas de gosto bastante duvidoso. Será que teria se transformado numa versão mais bonita de Dercy Gonçalves? Ou teria continuado a se reinventar e apontar novos caminhos às mulheres brasileiras?

Não sei, torço pela segunda hipótese. Mas sem dúvida, Leila Diniz tem uma história de vida bem mais divertida do que a do imperador Pedro II. Já Pedro I, naturalmente, teria adorado o livro.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Os Desafios Burocráticos de Obama



Nesta semana li no Valor um artigo interessante, publicado originalmente no Wall Street Journal, que afirma que o governo Obama será marcado pela centralização do poder, pois reúne na Casa Branca uma equipe de assessores de alto perfil político (Lawrence Summers, Paul Volker) e mais experiência até do que os secretários (equivalentes a ministros no Brasil). É um bom argumento e me fez pensar um pouco sobre os desafios burocráticos do novo presidente.

O auge do funcionalismo público federal nos EUA coincide com as políticas de bem estar social no país, ou seja, o período que vai do New Deal na década de 1930 até às iniciativas da "Grande Sociedade" no governo Lyndon Johnson, trinta anos mais tarde. Foi a época em que se criaram a maior parte das agências executivas que implementam as principais políticas públicas americanas. De lá para cá, o modelo entrou em crise pelas pressões fiscais e pela insatisfação popular com a qualidade dos serviços estatais.

Clinton tentou uma reforma administrativa baseada nas ideias da chamada "reinvenção do governo", mas elas não foram tão longe quantos projetos semelhantes no Reino Unido. Sintomático desse fracasso foi a falha em remodelar e ampliar o sistema de saúde pública, um dos temas mais quentes da campanha eleitoral de 2008.

Bush criou vários órgãos no Estado, como o Departamento de Segurança Interna, mas não lançou programas de transformação na burocracia. Pelo contrário, o uso disseminado de nomeações clientelistas levou a muitas críticas, em particular na atuação vergonhosa da agência encarregada de emergências, a FEMA, na catástrofe do furacão Katina em Nova Orleãns.

Não vi Obama mencionar o tema da reforma administrativa durante a campanha, mas historicamente todos os presidentes americanos que tiveram forte agenda social também fortaleceram a burocracia de carreira. Com pressões urgentes na economia, saúde e nas Forças Armadas, o presidente eleito certamente terá que pensar a respeito de mudanças.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O Choque de Samuel Huntington



Em geral a morte de cientistas políticos costuma produzir apenas obituários respeitosos e alguns elogios rasgados por parte de ex-alunos. Contudo, o falecimento recente de Samuel Huntington deu origem a uma maré de controvérsias entre muitos dos meus colegas de profissão. A razão é que poucos acadêmicos americanos encarnaram de modo tão profundo o espírito destes tempos pós-11 de setembro. E isso não é um cumprimento.

Huntington foi um dos cientistas políticos mais influentes do pós-Segunda Guerra Mundial, participante importante de vários debates universitários, em particular aqueles que diziam respeito às relações entre autoridades civis/Forças Armadas e às turbulências políticas nos países em desenvolvimento. Pessoalmente, este segundo aspecto é o que mais admiro em sua obra, "Political Order in Changing Societies"continua a ser um livro que provoca inquietações interessantes.

Na década de 1970, Huntington incomodou muita gente no Brasil ao atuar como consultor para a ditadura militar. Ele propôs aos generais brasileiros que criassem um partido para institucionalizar a transição para a democracia, mais ou menos à semelhança do PRI mexicano, embora presuma-se que sem recorrer à fraude eleitoral. Não era exatamente uma proposta popular - à época, os principais professores universitários do Brasil estavam engajados em mais espaço para a sociedade, por meio da pressão de organizações profissionais como a Ordem dos Advogados e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Muitos acharam que Huntington se meteu onde não fora chamado, e do lado errado.

Foi no pós-Guerra Fria que Huntington se tornou um intelectual conhecido do grande público, ironicamente pela publicação do que talvez seja seu livro mais frágil: "O Choque de Civilizações". O argumento central é que os conflitos contemporâneos não serão mais motivados por disputas ideológicas, mas por questões culturais, por confrontos entre grandes grupos sociais que ele chamou de "civilizações", e definiu de modo precário e questionável. Por exemplo, por que existiria uma civilização islâmica, mas não uma budista? Por que a África subsaariana não está enquadrada em nenhum caso? A América Latina de fato seria um grupo à parte, ou integraria a civilização ocidental, junto com Portugal e Espanha?

Ao fim, o argumento de Huntington se resume a afirmar que as principais ameaças para os EUA e a civilização ocidental - que Deus a proteja - são os chineses e os muçulmanos, em especial caso se aliem. O livro é de 1994, e após o 11 de setembro muitos o viram como profeta. Talvez tenha sido.

O livro derradeiro de Huntington foi "The Hispanic Challenge". Li apenas o artigo que sintetiza a obra, e achei uma diatribe contra a imigração hispânica, sobretudo mexicana, para os Estados Unidos. Alguns dos ataques são de um racismo tão rasteiro que faz a gente pensar que um sujeito que vira professor em Harvard pode publicar qualquer coisa. Por exemplo, Huntington afirma que os hispânicos ameaçam os valores culturais americanos. Mesmo que aceitemos que o rebolado de Jennifer Lopez faz revirar na tumba os Pais Fundadores, é um pouco complicado acreditar que a assimilação dos latinos será mais difícil do que foi a dos irlandeses, italianos, japoneses, africanos de várias nações ou qualquer outro grupo étnico que forma o melting pot dos EUA. Penso mesmo que a bola do sonho americano passou para os imigrantes (de qualquer país), com seu trabalho árduo, capacidade de poupar e o desejo de ver os filhos chegarem à universidade. Aí esta Obama, filho de queniano, para ilustrar isso.

A sociedade americana se tornou muito polarizada ao longo dos últimos 20 anos, e Huntington expressa esse movimento de radicalização política, embora ele tenha sido, ironicamente, um fiel militante do Partido Democrata. Ignoro como ele será analisado no futuro, mas torço para que as universidades dos Estados Unidos recuperem a capacidade de distanciamento e reflexão crítica que fez o melhor da ciência política americana. Mas acho que ainda vai demorar.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O Homem Que Roubou Portugal



Um amigo me emprestou um dos livros mais interessantes da temporada: "O Homem Que Roubou Portugal - a história do maior golpe financeiro de todos os tempos", do jornalista americano Murray Teigh Bloom. Trata-se da saga de Artur Virgílio Alves Reis, comerciante lusitano semi-falido que na década de 1920 se lançou num esquema de falsificação da moeda portuguesa tão ambicioso e bem-sucedido que afetou a macroeconomia do país, e contribuiu para o caos político que sepultou a jovem democracia nas mãos de Salazar.

Alves Reis havia prosperado em Angola, onde se apresentou com um diploma falso de engenharia por Oxford. Inteligente e habilidoso, ganhou reputação e estima na África, trabalhando em ferrovias, projetos de exploração mineral e agrícola. De volta à Europa, negócios malsucedidos acabaram por levá-lo à prisão e às dificuldades financeiras. Foi então que pensou num plano mirabolante. As máquinas da casa de moeda de Portugal haviam quebrado durante a I Guerra Mundial e não foram substituídas. A impressão das notas de dinheiro passou a ser feita por uma empresa privada britânica. Alves Reis decidiu forjar documentos oficiais portugueses e solicitar à firma uma enorme quantidade de dinheiro, como se fosse o governo do país.

Para levar adiante a idéia mirabolante, ele montou um grupo de cúmplices que envolvia negociantes holandeses e alemães (incluindo ex-espiões), um diplomata português e seu irmão arruaceiro. Esse exército de Brancaleone conseguiu convencer a empresa britânica de que falava em nome do governo português, disfarçando falsificações grosseiras e erros de coerência sob o manto do sigilo e de um suposto plano emergencial para ajudar a colônia angolana, então em sérias dificuldades. A péssima reputação de Portugal nos círculos financeiros internacionais ajudou, na medida em que tais disparates eram encarados com naturalidade por envolverem o turbulento país ibérico. O mais incrível é que Alves Reis conseguiu convencer os próprios cúmplices que atuava apenas como intermediário do Estado, embora sequer conhecesse muitas das autoridades das quais afirmava ser o procurador.



Desse modo, o grupo se viu na posse de dinheiro que em valores atuais chegaria provavelmente à escala dos bilhões. Alves Reis tornou-se o homem mais rico de Portugal e estima-se que seus negócios alcançassem fantásticos 3% do PIB naquela época. O novo milionário se destacou pela generosidade e começou a investir fartamente em empresas, minas, fazendas, imóveis e a fornecer créditos a juros baixos, sobretudo para Angola. Seu golpe mais audacioso foi a fundação de um banco, com o qual passou a comprar ações do próprio banco central português, na esperança de controlá-lo e cometer o crime perfeito, pois aquela instituição era a responsável por fiscalizar as fraudes monetárias.

Explicação: o BC português chamava-se Banco de Portugal e era organizado em caráter semi-público, com muitos particulares sendo detentores de ações, a exemplo do que ocorria na Grã-Bretanha. Contudo, a situação das finanças lusitanas era caótica. Desde a proclamação da república, em 1910, os governos se sucediam em forte instabilidade, o padrão-ouro fora abandonado e a inflação e o déficit público aumentavam. Ironicamente, as ações de Alves Reis tiveram um efeito macroeconômico benéfico, estimulando a economia e o crescimento, fato que anos depois o levou a se autoproclamar um "keynesianista avant la lettre".

Uma série de pequenos erros cometidos por Alves Reis, além de sua súbita e surpreendente riqueza, começaram a provocar desconfianças crescentes. Pesou muito a presença de estrangeiros em seu grupo, pois havia fervor nacionalista em Portugal com relação à cobiça da Alemanha sobre as colônias africanas. Suspeitava-se que Alves Reis fosse o testa de ferro de um plano maquiavélico da República de Weimar para tomar Angola. Sua prisão foi um escândalo internacional que se espalhou pela Europa e afetou diversas pessoas de destaque, inclusive porque para confundir a polícia Alves Reis alegou que não passara de um mensageiro dos dirigentes do Banco de Portugal, que chegaram a ser presos em função de suas acusações.

Quase todos os envolvidos no grupo de Alves Reis terminaram na miséria, inclusive ele mesmo, que amargou 20 anos de cadeia e o ódio eterno de Salazar. O ditador ascendeu ao poder na sequência do escândalo e sua política econômica conservadora, de equilibrar o orçamento, era o contrário do que Alves Reis havia efetuado. Além disso, o ultra-católico Salazar deplorava o fervor evangélico de Alves Reis, que se converteu ao protestantismo na cadeia. O que impressiona em sua trajetória é o peso desmensurado das pequenas idiossincrassias pessoais e como podem levar a resultados globais inesperados e dramáticos.

Certamente, enquanto a crise atual se desenrola, farsas semelhantes estão em curso. Em alguns anos, teremos detalhes delas.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

As Contradições da Diplomacia de Israel



No post sobre a ofensiva na Faixa de Gaza, escrevi que o conflito é motivado sobretudo pelas disputas políticas internas na elite israelense e palestina, que empuram a coligação trabalhistas-Kadima e o Hamas para uma rota de confronto, uma vez que essa atitude belicista é essencial para que mantenham a dianteira diante de fortes oponentes domésticos. Contudo, a tragédia humanitária desfechada por Israel colocou o país numa séria contradição com seus objetivos diplomáticos mais amplos, em particular a possibilidade de um acordo de paz com a Síria, cada vez mais importante para contrabalancear um Irã que em breve terá armas nucleares. Curioso, pois a líder do Kadima, e ministra das Relações Exteriores, Tzipi Livni, (foto) é tida como moderada.

Rápida recapitulação: em 1993 foram assinados os Acordos de Oslo entre Israel e a Organização pela Libertação da Palestina (cujo grupo hegemônico era o Fatah, de Yasser Arafat), que criaram a Autoridade Palestina com uma jurisdição muito limitada em algumas áreas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Os acordos nunca foram totalmente implementados, pelas resistências nos dois lados: terroristas de extrema-direita em Israel assassinaram o primeiro-ministro Rabin, e terroristas islâmicos sabotaram as tentativas da OLP, atacando Israel. A situação piorou a partir de 2000, quando eclodiu uma nova Intifada, uma rebelião popular palestina contra a ocupação israelense.

A rigor, a Intifada não se encerrou até hoje, ainda que seus momentos de maior confrontação - como os trágicos tiroteios em Belém - tenham ficado para trás. Arafat morreu e foi substituído por Abbas, mais favorável aos ocidentais, e aos trancos e barrancos se costurou uma nova tentativa de acordo, o Mapa da Paz. Basicamente, era Oslo reeditado para incluir maior participação internacional.

O ápice da nova rodada de negociações foi a Conferência de Annapolis, ocorrida em 2007. Nela, pela primeira vez a Síria tomou parte do diálogo com Israel. O que está em jogo é a chance de um acordo, em troca da devolução das Colinas de Golã, que os isralenses ocupam desde 1967. Essa estratégica posição geográfica fica a poucos quilomêtros da capital síria, Damasco, e também domina o norte de Israel. Para o governo sírio, é uma reviravolta diplomática, pois se trata de um país que os Estados Unidos não raro classificam como "Eixo do Mal", em função de sua longa ocupação do Líbano e do refúgio dado a muitos figurões da cúpula da ditadura de Saddam Hussein.

Mas há limites para até onde Damasco pode caminhar, e um regime com baixa legitimidade política, como a ditadura Hassad (da minoria religiosa dos alauítas, uma seita islâmica com crenças muito particulares, como reencarnação) não pode se indispor com sua população fazendo um acordo com um Estado que lança uma campanha de agressão a outro povo árabe.

É díficl acreditar que a liderança de Israel creia na possibilidade de uma solução militar rápida aos ataques do Hamas. Afinal, os isralenses ocuparam Gaza durante 38 anos, e não conseguiram eliminar seus inimigos nacionais. A recente derrota sofrida no sul do Líbano, contra o Hezbolá, também reforça as reservas quanto a esse tipo de estratégia. E há o problema crucial de que a Faixa de Gaza é praticamente a maior favela do mundo, com elevadíssima concentração populacional. Impossível bombardear um lugar assim sem causar baixas abissais entre a população civil, gerando o tipo de tragédia humanitária como a destruição das duas escolas da ONU e imagens de crianças mortas e mutiladas que deixaram Israel isolado na opinião pública mundial.

Bem, as autoridades do governo Bush defenderam os isralenses. Mas George W. deixa a Casa Branca no dia 20. Barack Obama tem se mantido silencioso diante da crise em Gaza, e a imprensa tem cobrado posicionamento do presidente eleito e de sua secretária de Estado. Os últimos presidentes democratas dos Estados Unidos, Carter e Clinton, mediaram acordos de paz importantes no Oriente Médio - Israel e Egito e Oslo, respectivamente. De modo que acredito que Obama tentará negociar seu próprio tratado e procurará um certo distanciamento das posições mais belicistas do governo isralense, embora naturalmente continue a apoiar esse aliado fundamental dos EUA.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Conversas com Woody Allen


O jornalista Eric Lax entrevista o cineasta Woody Allen desde 1971 e reuniu um panorama desse material em seu livro "Conversas com Woody Allen", que já entrou para as listas dos mais vendidos no Brasil. Longe da figura neurótica e insegura de seus filmes, o livro retrata o diretor como um artista maduro, competente e auto-confiante. E o mostra com surpreendente ojeriza à comédia, que afirma considerar um gênero menor, revelando seu sonho de ser reconhecido como autor dramático.

Lax organizou o livro a partir de grandes eixos, como "escrever, "direção", "casting" etc. Em cada seção, há trechos de entrevistas realizadas em anos diferentes, de 1971 a 2006. Foi uma escolha feliz do jornalista: assim podemos acompanhar o desenvolvimento do pensamento de Allen sobre cada tema, e impressiona constatar o quanto ele evoluiu como artista ao longo do período, do diretor iniciante que não conseguia montar "Um Assaltante Bem Trapalhão" até o maestro completo dos dias atuais, capaz de dissertar sobre os detalhes técnicos de todo o processo de produção de um filme.

Se você espera novidades sobre os escândalos que abalaram a vida pessoal de Allen, esqueça. Lax é discreto quanto ao tema. Há algumas menções à amizade que o cineasta mantém com a ex-esposa Diane Keaton, de quem contina muito amigo - e, em minha opinião pessoal, a atriz com quem melhor contracena - e referências à tranqüilidade doméstica que desfruta com a companheira atual, Soon-Yi, filha adotiva de sua ex-mulher Mia Farrow. Que, aliás, só é citada em quesitos puramente profissionais, como seu desempenho nas telas.



Contudo, as entrevistas revelam muito sobre o temperamento de Allen, em particular a junção de duas grandes correntes de influências artísticas: a cultura popular americana da primeira metade do século XX (programas de rádio, jazz, comédias de Bob Hope, Charles Chaplin, Buster Keaton) e o cinema europeu dos anos 1950-60 (Bergman, Fellini, Antonioni).

Lax não faz juízos de valor e não analisa as contradições do repertório de Allen, minha avalião é que o cineasta se sai melhor quando joga em seu próprio campo, o das tradições do showbiz americano. Nunca me interessei muito quando ele embarcou na onda dos dramas supostamente suecos, para mim há muito mais poesia em seu trabalho quando ele coloca Manhattan ao som de Gershwin ou faz um coro grego cantar jazz.

No entanto, Allen se refere diversas vezes ao comediante como um "suplicante", uma criança sempre em busca da aprovação dos adultos e rejeita explicitamente o rótulo de "gênio da comédia", afirmando que é pejorativo. Diz com todas as letras que a tragédia é superior. Afirmação surpreendente, pois não faltam exemplos de comediantes clássicos cuja obra é uma profunda análise das contradições da natureza humana, de Aristófanes a Molière, passando evidentemente pelo próprio Allen. Quantos dramas narraram as desventuras do amor com tanta competência e leveza como sua obra-prima, "Annie Hall" (no Brasil, Deus perdoe os tradutores, "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa")?

Allen dirigiu cerca de 40 filmes e passou por diversos estilos, sempre experimentando e testando novidades. Há as comédias pastelão do início de sua carreira ("Um Assaltante bem Trapalhão", "Bananas, "Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo", "O Dorminhoco"); dramas influenciados por Bergman ("Interiores", "Setembro", "A Outra"); hinos de amor a Nova York ("Manhattan", "Édipo Arrasado" no filme "Contos de Nova York"); brincadeiras com a cultura popular e arte ("A Era do Rádio", "A Rosa Púrpura do Cairo", "Tiros sobre a Broadway", "Desconstruindo Harry", "Dirigindo no Escuro"), reflexões sobre a crueldade e a ausência de punição para os maus ("Crimes e Pecados", "Macht Point", "O Sonho de Cassandra") e, claro, inúmeras variações sobre os relacionamentos amorosos ("Annie Hall", "Hannah e suas Irmãs", "Todos Dizem Eu Te Amo", "Igual a Tudo na Vida", "Vicky Cristina Barcelona").

A maoiria de seus filmes nos últimos 10 anos não me agradou muito, ainda que em cada um deles houvesse pelo menos algumas cenas ou diálogos que ficam na memória. Evidentemente, minha opinião mudou ao ver "Vicky Cristina Barcelona", desde já um dos meus favoritos no diretor. Allen não é propriamente um sucesso de bilheteria, mas costuma render lucros suficientes para financiar suas produções, orçadas cada uma em cerca de US$15 milhões, ao passo que a média em Hollywood é de quase seis vezes esse valor. A delicada relação custo/benefício basta para que os estúdios continuem a lhe dar carta branca para dirigir. Ainda bem!

domingo, 4 de janeiro de 2009

A Ofensiva em Gaza



Os ataques de Israel à Faixa de Gaza começaram no fim de dezembro, mataram mais de 300 pessoas e são fruto das contradições das lutas políticas internas nas elites israelense e palestina. O o contexto é o das disputas eleitorais na Autoridade Palestina (o mandato do presidente Mahmoud Abbas acaba janeiro, ainda não está claro se haverá eleições imediatas) e em Israel (eleições legislativas em fevereiro). Como pano de fundo, a indefinição sobre como Obama irá lidar com as tensões no Oriente Médio.

Israel ocupou a Faixa de Gaza entre 1967 e 2005. A decisão de se retirar da região foi controversa, uma demonstração de força do então primeiro-ministro Ariel Sharon, que enfrentou a oposição de seu próprio partido, o Likud, e criou uma nova agremiação, o Kadima, para levar adiante o projeto. Sharon acreditava que os custos para manter a segurança militar dos colonos israelenses em Gaza eram altos demais e que o Estado precisava concentrar esforços na área ainda mais problemática da Cisjordânia.

Os críticos de Sharon afirmavam que sair de Gaza significaria entregar a estratégica faixa, na fronteira com o Egito, aos grupos mais hostis a Israel. De fato, foi o que aconteceu com a vitória do Hamas nas eleições de 2006. Esse movimento islâmico floresceu durante a ocupação israelense com base em dois pilares: a prestação de serviços sociais (educação, saúde, assistência religiosa) à população palestina e os ataques terroristas contra Israel. Na conjuntura extremamente fragmentada da politica palestina, o Hamas ganhou força como uma alternativa à corrupção e à ineficiência do Fatah, liderado por Yasser Arafat e agora por Mahmoud Abbas. A rivalidade se tornou uma pequena guerra civil, com as duas organizações se enfrentando em batalhas de rua que culminaram numa tensa divisão: a Fatah governa a Cisjordânia e o Hamas, a Faixa de Gaza.



Tanto Fatah quanto Hamas precisam convencer a população de que estão na vanguarda contra a ocupação israelense, obtendo resultados seja por meio da força militar, seja pela via das negociações. O Hamas havia acordado um cessar-fogo com Israel no segundo semestre de 2008. Quando o pacto expirou, lançou mais de 200 foguetes no território do inimigo. Já o Fatah está perdido em meio ao tiroteio, Abbas não consegue tomar uma posição clara.

No lado israelense, também houve uma sucessão de crises. A morte de Sharon, a derrota do país na guerra de 2006 - quando o Hezbolá rechaçou com sucesso os ataques de Israel ao Líbano - os escândalos de sexo e corrupção envolvendo a liderança nacional. O atual governo é uma coalizão frágil entre o Kadima (que saiu de Gaza em 2005) e os trabalhistas (que deixaram o sul do Líbano, ocupado desde 1982, em 2000), e as pesquisas mostram crescimento eleitoral da oposição de direita, o Likud. A conjugação de Forças Armadas desejosas de expurgar a vergonha da guerra contra o Hezbolá, e políticos que precisam de vitórias antes das eleições parlamentares de fevereiro é uma receita infalível para o ataque à Faixa de Gaza.


Dada a natureza clandestina de muitas atividades do Hamas, é difícil precisar seu tamanho. Contudo, as estimativas dos especialistas é que cerca de 90% de seus gastos são com a infra-estrutura social. A ala dedicada ao terrorismo talvez tenha apenas mil militantes, que mataram cerca de 500 pessoas desde 1987, quando o grupo foi criado. É sem dúvida uma história de violência, mas é facil fazer o contraste com a capacidade destrutiva muito maior de qualquer Estado nacional bem organizado, e de como as ameaças terroristas são manipuladas e exageradas para servir aos interesses de determinadas elites dirigentes.

A dinâmica interna do conflito empurra todos os lados envolvidos para o radicalismo e é claro que uma solução, mesmo que provisória, só será obtida com mediação internacional. Esta pode bem ser a primeira tarefa diplomática importante de Barack Obama.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Um Homem Bom



Belo filme na praça. Co-produção entre Alemanha e Inglaterra, dirigida pelo cineasta brasileiro Vicente Amorim, a partir da peça e roteiro do escritor britânico C.P. Taylor, "Um Homem Bom" é uma discussão fascinante sobre as pequenas covardias que levam pessoas que não são más a se tornarem cúmplices de mais terríveis atrocidades. No caso, a ascensão do nazismo e o genocídio cometido contra os judeus.

John Halder (interpretado por Viggo Mortensen) é um candidato improvável ao papel de líder nazista. Professor universitário de literatura, ele é um acadêmico competente, mas um poço de frustrações, preso a um casamento infeliz e à mãe doente e inválida. O sogro, nazista convicto, insiste para que ele se filie ao partido.

Mas educado nos valores tradicionais do humanismo europeu, Halder não tem qualquer simpatia pelo extremismo fascista, que bane alguns de seus autores favoritos, como Proust. Debocha de Hitler em conversas com seu melhor amigo, o psicanlista Maurice Gluckenstein (Jason Isaacs, o melhor ator em cena), um intelectual judeu sarcástico e inteligente com quem serviu no Exército alemão na I Guerra Mundial.

Contudo, uma série de fatores vai empurrando Halder para uma convivência cada vez mais pacífica com os novos donos do poder. Ele publica um romance sobre eutanásia que cai nas graças da cúpula nazista, que o convidam a exercer cargos de consultoria altamentes prestigiados para os programas médicos do III Reich. Simultaneamente, Halder se apaixona por uma jovem aluna, Anne, que embora não seja uma admiradora ideológica de Hitler é bastante simpática ao que enxerga como renovação e ímpeto da "nova Alemanha".

O filme cobre quase dez anos da vida de Halder, de 1933 a 1942, e mostra de maneira magistral a queda de suas barreiras éticas com relação ao nazismo, e as mentiras que vai contando para si mesmo à medida que aumenta seu envolvimento com o regime hitlerista, tais como "influenciar o movimento de dentro", "conter os extremistas e dar o rumo certo" ou "sou apenas um consultor". Aos poucos Halder se engaja em atos cada vez mais desprezíveis, de escrever artigos louvando os métodos nazistas a participar dos ataques a judeus na Noite dos Cristais, e finalmente no próprio Holocausto. Nesse processo, ele conhece figurões do III Reich como Joseph Goebbels e Adolph Eichmann.

Naturalmente, a ascensão de Halder no regime é contrabalanceada pelo seu afastamento do melhor amigo, Gluckenstein, cuja vida se torna cada vez mais díficil após a implementação das Leis de Nuremberg, a legislação racista que eliminou os direitos de cidadania dos judeus, culminando com seu extermínio durante a II Guerra Mundial. Halder também se distancia da família e descobre novas energias no relacionamento com Anne, que tem seu lado sombrio no entusiasmo que com que sua nova parceira romântica encara as benesses do regime: promoções, cargos, status.

Halder é o protótipo para tantos "bons alemães" que acabaram aderindo ao nazismo. Ele tem muitos dos elementos dos heróis tradiconais: é habilidoso em seu campo profissional, tem valores éticos razoavelmente sólidos. Mas é inseguro, enfrenta dificuldades sérias, sucumbe a pressões. Falhas talvez contornáveis em períodos políticos de maior estabilidade, mas que levam à tragédia na epoca demoníaca em que lhe coube viver. Sem dúvida, um excelente filme, roteiro inteligentíssimo e uma bela direção de Amorim - sua seqüência final é inesquecível, com um toque de gênio.