sábado, 29 de setembro de 2007

Em São Paulo

Passei os últimos dias em São Paulo, num seminário de trabalho com a equipe brasileira da pesquisa sobre juventude sul-americana. Foi um encontro puxado, mas extremamente produtivo. Apresentei ao grupo os resultados preliminares dos países hispano-americanos e fiz as comparações com os casos que observamos no Brasil.

Há grandes eixos que são comuns a todas as situações que pesquisamos. A primeira é a demanda juvenil por educação. Embora a maioria esteja na escola, pelo menos no nível do ensino fundamental, são muitas queixas sobre a qualidade dos serviços que recebem, desde os comportamentos autoritários ou desinteressados dos professores até problemas de compatibilizar horários escolares com as necessidades do trabalho. Na bela expressão de uma colega, os jovens querem “uma educação que caiba na vida e faça sentido”.

O segundo eixo é a questão do trabalho. Os jovens vivem uma situação contraditória. Em diversos setores são mão-de-obra preferencial, mas em geral por razões complicadas: têm mais vigor físico e, ao mesmo tempo, vida mais precária, que os leva a aceitar empregos que adultos rejeitariam. Isso fica muito claro em alguns casos que estudamos, como a das empregadas domésticas na Bolívia ou os cortadores de cana no Brasil. Esta última situação, aliás, acaba de ser examinada pela revista Carta Capital, que fez um belo artigo com os colegas da pesquisa que tratam da questão.

Fiz vários comentários no seminário a respeito do recente relatório da Organização Internacional do Trabalho sobre juventude na América Latina. Discutimos inclusive a possibilidade de realizarmos um evento em parceria com a OIT, pois há vários pontos comuns no nosso trabalho e no daquela instituição.

O terceiro ponto que observei é um tanto mais complexo e ainda preciso refletir melhor sobre ele. Trata-se, na falta de melhor expressão, de como os jovens pensam a identidade juvenil. Alguns dos grupos que analisamos rejeitam esse tipo de categoria, vendo a si mesmos de outro modo: como trabalhadores de um setor específico, ou como militantes de um certo partido ou movimento social. Outros afirmaram que se forem classificados como jovens, perdem força política, porque os adultos acham que eles só podem discutir assuntos supostamente típicos da juventude, como drogas e sexualidade, ficando fora dos debates de “gente grande”, como os relativos à economia.

Os temas são comuns aos seis países da América do Sul que analisamos, mas observei duas diferenças básicas do Brasil com relação aos vizinhos do continente. Primeiro, por aqui há mais liberalidade no debate sobre questões sexuais, com uma tolerância muito impressionante diante da homossexualidade (em contraste com os hermanos). Segundo, que a questão da integração sul-americana se colocou com mais força nos países de lingua espanhola, embora também surja nos casos brasileiros, em especial nos assuntos culturais.

Entramos agora na fase final da pesquisa: estamos recebendo os últimos relatórios locais e em breve começaremos a escrever o informe internacional do projeto. Já pensamos também nas estratégias de divulgação e um dos pontos é que fiquei encarregado de um artigo sobre a pesquisa para a edição brasileira do Le Monde Diplomatique, que pretendo estruturar a partir dos eixos que mencionei aqui.

Por fim, estes dias em São Paulo também foram excelentes para rever amigas do meio das ONGs e das instituições da sociedade civil que não via há muito tempo, em alguns casos mais de dois anos. Além do prazer dos reencontros, foi também uma maneira clara de perceber o quanto mudei nos últimos tempos, todas foram muito simpáticas e queriam ouvir as histórias da temporada argentina e das descobertas que tenho feito nas viagens pela nossa América.

Fico o fim de semana no Rio, aproveitando o festival de cinema, e segunda faço uma rapidíssima viagem a Brasília, para outra reunião de trabalho.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Conversas com Sociólogos Brasileiros



OK, não sou sociólogo, apenas um primo-irmão da Ciência Política. Feita a ressalva, gostei muitíssimo da leitura de “Conversas com Sociólogos Brasileiros”, coletânea de 21 entrevistas com os mestres da profissão, realizadas por Elide Bastos, Fernando Abrucio, Maria Rita Loureiro e José Márcio Rego. Algumas idéias centrais ficam dessa discussão: a importância crucial da USP para o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil, o impulso para a América Latina nos anos 60 e as guinadas nas trajetórias pessoais provocadas pela ditadura.

Comecemos pela Universidade de São Paulo, fundada pela elite paulista como uma espécie de resposta ao isolamento político resultante da Revolução de 1930 e pela derrota na guerra civil de 1932. Mas a USP transcendeu esses objetivos conservadores e se tornou um importante centro de reflexão sobre o país, contanto com a presença de acadêmicos francês de primeiríssimo time, como Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide. E entre seus discípulos, aqueles que se tornaram os mais influentes sociólogos brasileiros, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.

Florestan foi essencial no estabelecimento de linhas de pesquisa que passaram a ser clássicas no Brasil, como os estudos sobre desigualdades raciais e suas reflexões sobre a transição do escravismo ao trabalho assalariado. FHC, pelos debates sobre empresários e desenvolvimento econômico, que iriam resultar, já em seu exílio, na formulação da célebre teoria da dependência. Os dois formaram gerações de pesquisadores, ajudaram muita gente e mergulharam na política: Florestan foi deputado constituinte pelo PT e Fernando Henrique, claro, presidiu a República.



Os dois fizeram sua formação acadêmica nas décadas de 1940 e 1950. A geração posterior chegou à universidade num ambiente muito mais polarizado politicamente, e num grande entusiasmo pelas transformações que ocorriam na América Latina. Geração de craques como Luís Werneck Vianna e Elisa Reis. Impressionante a importância do Chile – ainda não era o país governado pela Unidade Popular e por Salvador Allende, mas o governo da Democracia Cristã de Eduardo Frei destacou a integração regional, a reflexão sobre o desenvolvimento e tornou o pequeno país andino um dínamo do pensamento. Pinochet, evidentemente, acabou com a festa.

Os anos da ditadura no Brasil foram marcados pela repressão ao trabalho dos sociólogos, mas também, paradoxalmente, pelo grande avanço em política educacional que dotou o país do melhor sistema público de pós-graduação da América Latina. Também foi o momento em que muitos sociólogos foram se doutorar no exterior, nos EUA ou na França – Bourdieu é muito citado. Os campos de estudos se ampliam, entram em cena importantes pesquisas sobre cultura, comunicação, intelectuais, como as de Renato Ortiz, Sérgio Miceli, Ricardo Berzaquen. Outro foco é a análise dos problemas rurais, como em José Souza Martins, nos quais é forte a influência da ação social da Igreja, como a Pastoral da Terra.

O livro se limita aos medalhões, os profissionais que hoje são titulares das cátedras e autores consagrados. Qual a situação da minha própria geração? No limite, temos a opinião de Héctor Leis, que fala sobre a “tristeza de ser sociólogo no século XXI” e afirma que a disciplina se tornou muito moralista, e não atrai mais a elite dos estudantes como nos anos 60 e 70. Mas também há ventos novos e positivos, como o maior acesso à informação, um desejo maior de dialogar com outras formas de pensamento ou mesmo com as artes. E com outras perspectivas profissionais, pois as universidades públicas não são mais a garantia de empregos do passado. Hoje há outros campos: consultorias, ONGs, empresas. Num país tão maluco, não faltará inspiração para jovens sociólogos.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Cidade dos Homens


Os atores Douglas Silva e Darlan Cunha, mais conhecidos por seus personagens Acerola e Laranjinha, cresceram sob o olhar do público. Os dois se destacaram desde crianças por pequenas participações em “Cidade de Deus” e por estrelar o curta “Palace II”, produzido pela mesma equipe do filme. Daí foram para o seriado de TV “Cidade dos Homens”, que por quatro anos os mostrou na pele de dois adolescentes moradores de uma favela do Rio de Janeiro. O olhar bem-humorado sobre o cotidiano carioca rendeu vários prêmios internacionais ao programa e transformou Douglas e Darlan em astros. O filme “Cidade dos Homens” é um fecho digno para o seriado e faz pensar sobre o Brasil.

No enredo, os dois amigos inseparáveis estão completando 18 anos e precisam se defrontar com as responsabilidades da vida adulta. Acerola tem que aprender a ser pai, e enfrenta a perspectiva de passar um ano separado da mulher, que quer ir a São Paulo e economizar dinheiro num emprego que lhe oferecem por lá. Laranjinha pensa cada vez mais no pai que nunca conheceu e pede a ajuda do amigo para descobrir quem ele é.

O filme seria excelente caso se concentrasse nessa trama, mas o roteiro envolve uma guerra de traficantes pelo controle da favela onde vivem os dois jovens, num conflito que os coloca em lados opostos pela intricada rede de lealdades familiares e pessoais. Embora a narrativa desse enfrentamento seja muito boa, acaba por desviar o foco do filme daquilo que é mais importante, o forte laço de afeto que mantém os dois amigos unidos apesar de todas as circunstâncias adversas.

Penso também que é um problema típico dos filmes brasileiros, nos quais bem-intencionados e progressistas cineastas de classe média são incapazes de retratar os pobres, sobretudo se moradores de favelas, sem falar de violência. Como observa meu irmão: “Se você vir um pobre num filme brasileiro, pode olhar no relógio: em menos de cinco minutos vai acontecer um crime!”.

Ao fim, o que redime “Cidade dos Homens” é a bela homenagem à amizade, mãe da esperança. Acerola e Laranjinha são um pouco amigos de todos nós, nestes anos tão difíceis para o Rio de Janeiro. Eles conquistaram nossa simpatia com sua maneira atrapalhada, mas sempre simpática e de bom coração, de lidar com os problemas da vida. Há muito neles de personagens picarescos clássicos da literatura brasileira, como o Leonardo de Memórias de um Sargento de Milícias, ou mesmo do Macunaíma de Mário de Andrade. O belo final do filme me lembrou bastante os desfechos das aventuras de Carlitos, com a emoção de quem não tem escolha senão seguir adiante apostando que o dia de amanhã será melhor.

domingo, 23 de setembro de 2007

Negociando com as FARCs



Está em curso uma iniciativa colombiana para negociar um acordo humanitário com as FARCs e fazer a guerrilha libertar cerca de 45 reféns, em troca da liberdade de seus membros que estão na prisão. Quem comanda o processo é a senadora colombiana Piedad Córdoba (foto), do Partido Liberal, de oposição ao presidente Álvaro Uribe. Ainda assim ele a autorizou a dialogar com as FARCs. É muito respeitada por seu trabalho junto às mulheres e por sua luta contra o racismo. Também tem uma história trágica com o conflito armado do país: foi seqüestrada por paramilitares, sofreu dois atentados e teve que se exilar no Canadá –seus filhos ainda vivem por lá.

O mandato de Córdoba é simplesmente por um acordo de libertação de reféns, e não por um processo de paz com as FARCs. Mas é claro que se sua iniciativa for bem-sucedida pode ser o ponto de partida para um diálogo mais amplo. A senadora tem recebido apoio na América Latina e na Europa, mas a atitude dos EUA é ambígua. Enquanto o Partido Democrata a trata como estadista, muitas autoridades do governo Bush acreditam que negociar com as FARCs é mostrar fraqueza diante do terrorismo. A senadora está em visita aos Estados Unidos e provavelmente não receberá permissão para conversar com os guerrilheiros presos no país.

Hugo Chávez quer aproveitar a oportunidade. A Venezuela tem auxiliado bastante nas visitas de Córdoba, mas a proposta do presidente em se encontrar com os líderes das FARCs causou polêmica e reações desencontradas das autoridades colombianas, inclusive colisões entre o chanceler e o presidente Uribe. Desde os anos 80, os governos da Venezuela fazem acordos com a guerrilha no país vizinho: concessões e apoio discreto em troca de isenção de ataques, no que ficou conhecido como “política da mão esquerda”. Com Chávez, essa relação tornou-se mais forte e aberta e implicou na prática o reconhecimento da guerrilha como ator político legítimo. Há inclusive acusações de que ele auxilia as FARCs com dinheiro e armas. Evidentemente, isso não o torna o medidador dos sonhos em Bogotá.

Chávez quer se reunir com os líderes da guerrilha no próprio território colombiano. O pedido foi rejeitado pelas autoridades do país. Brasil e Equador ofereceram-se como possíveis sedes para esse diálogo. A meu ver, todo o processo está excessivamente personalizado. Concordo com o cientista político argentino Juan Gabriel Tokatlian, que viveu muitos anos na Colômbia: é preciso uma negociação regional para o conflito, nos moldes do que o Grupo de Contadora fez para a América Central. A questão é demasiado importante e sensível para depender dos caprichos, humores ou arroubos retóricos de Caracas, Brasília ou Quito.

Apesar do discurso intransigente, o governo Uribe tem conseguido avanços importantes nos diálogos de paz na Colômbia. Está em curso uma negociação longa e difícil com os paramilitares – marcada pelas relações estreitas existentes entre esses grupos e militares, policiais e políticos – e até conversas em Cuba com representantes da guerrilha do ELN.

Faltam as FARCs para fechar a equação. A tarefa é árdua. As duas tentativas principais feitas anteriormente terminaram em catástrofe. Nos anos 80 a União Patriótica, braço partidário da guerrilha, foi chacinada pelos paramilitares, inviabilizando sua transição de grupo armado a partido político (como ocorreu com outra guerrilha, a do M-19). Nos anos 90, as tentativas do governo Andrés Pastrana de chegar a um entendimento com as FARCs resultaram numa onda de violência, porque o grupo utilizou a zona desmilitarizada sob seu comando como um santuário para praticar crimes e atos terroristas.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Em Busca do México



Quando eu morava na Argentina minha turma de pós-graduação recebeu a visita do embaixador do Chile em Buenos Aires, um político socialista que havia morado muitos anos no México, exilado da ditadura de Pinochet. Durante a conversa, fez críticas duríssimas à política externa brasileira com relação à nação azteca, afirmando que o Itamaraty a considerava erroneamente como marionete dos Estados Unidos e ignorava suas tradições: “Sem o México, não existiria América Latina. Se a fronteira dos EUA fosse com um Estado mais frágil, a influência estadunidense impediria o desenvolvimento de uma identidade cultural própria.”

Como eu era o único aluno brasileiro na universidade, me coube a réplica ao diplomata chileno, e basicamente disse que concordava com ele: “Nunca tomaria a pátria de Octavio Paz e Carlos Fuentes como submissa culturalmente a ninguém”. Comentei que o aumento no comércio entre Brasil e México certamente traria mudanças nas estratégias do Itamaraty. Mas a velocidade das transformações me espantaram, já escrevi neste blog sobre a aproximação diplomática entre os dois países e novas leituras reforçaram essa visão.

Primeiro, interessante artigo do internacionalista espanhol Juan Pablo Soriano avalia a guinada latino-americana da política externa do presidente Felipe Calderón e afirma que “Para diversos analistas mexicanos, o Brasil é visto cada vez mais como um exemplo para seu país. Não necesariamente como um modelo a imitar, mas como uma referência do que o México está fazendo e deixando de fazer em política externa, e do que poderia fazer segundo seu projeto nacional e suas capacidades.“

Segundo, comprei no Canadá um excelente estudo publicado pelo Centro de Investigación y Docencia Economica, “En Busca de una Nación Soberana: relaciones internacionales de México, siglos XIX y XX”. É uma coletânea de ensaios sobre a política externa mexicana da independência aos dias atuais, centrada em três eixos: a agenda bilateral com os Estados Unidos, as estratégias para a América Latina e as questões migratórias, que têm sido muito importantes nos últimos 100 anos.



O que me interessa é sobretudo as relações do México com os outros países latino-americanos, história cheia de contradições. A diplomacia mexicana tem como pilar a Doutrina Carranza, de repúdio a qualquer forma de intervenção – o princípio foi formulado quando os EUA atacavam a região de Vera Cruz e o general Pershing caçava Pancho Villa no norte. A postura permanece: até o hoje o México não participa em missões de paz da ONU por considerar que violam a Doutrina Carranza.

Essa também foi a orientação para a curiosa relação do México com Cuba, que o historiador cubano Rafael Rojas chama de “amizade desleal” e é baseada no seguinte acordo: “Durante quase 40 anos, México e Cuba mantiveram um vínculo singular, em que dois regimes não-democráticos compartilhavam valores similares, provenientes de duas revoluções e dois nacionalismos, articulados frente à mesma potência hegemônica: os Estados Unidos. O pacto diplomático entre esses dois autoritarismos consistia em que o México se oporia ao isolamento internacional de Cuba, promovido pelos Estados Unidos, e em troca Cuba não estimularia movimentos da esquerda radical no México.”

Rojas ressalta que o pacto foi rompido a partir dos anos 90: a entrada mexicana no Nafta e o fim do governo do PRI levaram a críticas duras ao regime cubano, com diversas crises entre os dois países.

Contudo, houve diversos momentos na história mexicana em que o princípio da não-intervenção foi abandonado em prol de uma ativa diplomacia na América Latina, em particular no apoio dado aos rebeldes sandinistas na Nicarágua e a liderança do México no Grupo de Contadora, que buscou uma solução negociada para os conflitos da América Central.

Todos os autores que estudam a política externa do México ressaltam que as guinadas pró-América Latina ou pró-Terceiro Mundo também respondem às lutas políticas internas, na medida em que presidentes fazem gestos que tentam seduzir a esquerda. Foi assim quando Luis Echeverría (1970-1976) tentou uma abertura diplomática após os massacres de estudantes nas Olímpiadas de 1968, e em meio à guerra suja que travava contra a extrema-esquerda. Em certa medida Felipe Calderón agora procura legitimar sua conturbada ascensão à presidência aproximando-se da Argentina e do Brasil.

A primeira imagem do post é "O Carregador de Flores", do pintor mexicano Diego Rivera.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Filhos da Meia-Noite



Há cerca de um mês dei aulas sobre a ascensão da Índia na política internacional e falei um pouco sobre as transformações no país desde sua independência em 1947. Dias depois uma aluna (obrigado, Débora!) me mostrou reportagem do Le Monde Diplomatique sobre a (re)descoberta da literatura indiana, mencionando os diversos movimentos artísticos que afloraram naquela imensa nação no período pós-colonial. Os deuses benevolentes fizeram que eu encontrasse dois dos principais romances citados no texto à venda na feira do livro do Largo da Carioca, num esquema R$10 por três livros.

Comecei por Midnight´s Children, de Salman Rushdie, considerado o maior clássico contemporâneo da Índia. Eu o conhecia somente pelas ameaças de morte que sofreu por parte dos aiatolás iranianos e da Al-Qaeda, e fiquei maravilhado pelo livro: é um épico irônico e trágico sobre os destinos do subcontinente indiano após a independência.

O narrador-protagonista do romance é Saleem Sinai, o filho de uma família muçulmana de alta classe média. Os avós são originários da Cachemira e nunca se sentiram muito à vontade nem na Índia, nem no Paquistão – sua região natal era administrada como um principado semi-autônomo durante a colonização britânica e tem sido brutalmente disputada pelos dois países desde 1947. A ação do romance acompanha a família Sinai e atravessa Índia, Paquistão e Bangladesh durante seis décadas.

Saleem nasceu junto com a independência da Índia, à meia-noite do dia 15 de agosto de 1947, e desde cedo viu sua vida como interligada ao destino do seu país. Egocêntrico, mentiroso, trapaceiro e incrivelmente irônico, ele vai manipulando todos à sua volta, mas também sendo vítima de atos irracionais e loucos que abarcam das excentricidades de seus parentes às guerras fratricidas entre Índia e Paquistão.

O estilo de Rushdie é um fantástico amálgama de praticamente todas as formas de ficção que se possa imaginar, de paródias de relatos religiosos aos cinemas de Hollywood e de Bollywood (o coração da indústria de filmes indiana, a maior do planeta, onde trabalham os tios do protagonista), passando por homenagens às lendas das mil e uma noites e até ensaios de ficção científica. É preciso um mestre da arte de contar histórias para lidar com tantos estilos, e Rushdie tece essa trama de narrativas com um talento que encontra poucas comparações. Entre os latino-americanos, se parece mais a Gabriel García Márquez, embora Cem Anos de Solidão tenha sido publicado depois de Midnight´s Children.

O subcontinente indiano tem mais povos do que todos os episódios de Jornada nas Estrelas e estão todos no romance de Rushdie: os dilemas dos muçulmanos em permanecer na Índia ou migrar para o Paquistão, as perseguições religiosas, os conflitos entre as diversas línguas, o cotidiano nos vales da Cachemira e nas cidades de Agra, Mumbai, Karachi, a morte de Gandhi, as maquinações de Nehru e sua dinastia, as guerras da Índia contra Paquistão e China, a ocupação de Goa... Ufa! Está tudo lá! Um liquidificador em alta velocidade de uma época extraordinária.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Conversa com Antanas Mockus



Uma das contradições mais fortes que experimento na América do Sul é o contraste entre a violência que atinge a Colômbia há 60 anos e o caráter absolutamente bem-humorado e afável dos colombianos que conheço, para não mencionar a alta qualificação técnica de seus acadêmicos e a beleza estonteante das mulheres. Na última sexta-feira, recebemos no instituto a visita do ex-prefeito de Bogotá, Antanas Mockus, um dos principais formuladores de políticas públicas de segurança naquele país. Foi uma excelente conversa que reforçou a alta consideração que tenho dos colombianos.

O nome de Mockus soa estranho aos ouvidos latinos, porque ele é filho de imigrantes lituanos. Formou-se em matemática e filosofia e antes de se dedicar à política foi reitor da Universidade Nacional e se destacou em seus dois mandatos em Bogotá (1995-1997 e 2001-2003) como um inovador excêntrico e controverso, que mudou a maneira de se pensar segurança na Colômbia. O cerne da polêmica foram as ações de seu programa de “cultura cidadã”. A idéia principal é que a violência tem um forte componente cultural e que para combatê-la é necessário não somente melhorar a polícia, mas atuar nas relações cotidianas das pessoas.

Mockus fala na necessidade de romper o “divórcio entre lei, moral e cultura”, isto é, a percepção de determinadas transgressões são aceitáveis para a sociedade. Por conta disso, seu governo investiu na criação de instituições de resoluções pacíficas dos conflitos. Por exemplo, realizando “campanhas de vacinação contra a violência”, na qual as pessoas expressavam publicamente seus ódios mais intensos. Ou distribuindo cartões com polegares para cima e para baixo, que eram entregues aos motoristas e usados para manifestar descontentamento em incidentes de trânsito. Outra medida foi contratar mímicos para ridicularizar pessoas que violavam as leis de tráfego.



O prefeito também tomou medidas bastante controversas, como a chamada Lei Cenoura, um toque de recolher em bares e restaurantes. Decretou noites exclusivas para as mulheres da cidade, deixando os homens em casa. Casou-se num circo e fantasiou-se de super-herói para divulgar suas idéias. É incrivelmente engraçado e com uma retórica muito habilidosa para defender seus projetos.

Os êxitos de Mockus foram notáveis: reduziu a taxa de homicídios em Bogotá de 82 para 35 por cem mil habitantes e em grande medida foi o responsável pela cidade ser considerada hoje como “uma ilha de legitimidade dentro da Colômbia”, na expressão de um amigo daquele país. Concorreu à presidência em 2006, mas teve votação pífia, ficando em quarto lugar numa disputa vencida com facilidade por Álvaro Uribe. Alguns avaliam que suas políticas de difícil classificação no esquema clássico direita/esquerda acabaram por confundir os eleitores.

Havia diversas colombianas presentes ao debate e muitas eram opositoras de Mockus e eleitoras do atual prefeito de Bogotá, Lucho Garzón, do Pólo Democrático, o novo partido de esquerda da Colômbia, que tem crescido rapidamente. Elas criticaram Mockus sobretudo por sua repressão aos camelôs e vendedores de rua, alegando que era preciso olhar o aspecto social do problema, já que muitos deles são migrantes rurais que foram para a cidade fugindo da guerrilha e dos paramilitares.

Após o último mandato como prefeito, Mockus lecionou em Harvard e trabalha como consultor para o Banco Interamericano de Desenvolvimento e para diversos governos e instituições. Ele toca projetos no Brasil em parceria com as administrações de São Paulo e Belo Horizonte. Também lidera um pequeno partido, o movimento Visionários pela Colômbia.

domingo, 16 de setembro de 2007

Jovens Trabalhadores



Qual a imagem que você tem dos jovens trabalhadores da América Latina? Dados divulgados há poucos dias pela Organização Internacional do Trabalho dão um panorama sombrio: dois terços da juventude estão no setor informal, com mais ou menos 60% da renda dos adultos. A ocupação mais comum para as mulheres é a de empregada doméstica. O desemprego entre os 106 milhões de jovens da região é de 16%, três vezes mais do que a média para toda a população. Cerca de 22 milhões não estudam nem trabalham, estão à toa à espera do que a sorte ou o azar lhes ofereça.

O relatório “Trabalho Decente e Juventude na América Latina” me forneceu análises e informações concretas para interpretar o que vi nas minhas viagens de campo pelo continente, em julho/agosto. Os jovens se viram como podem. Ganham um dinheiro fazendo biscate na loja do tio, descolam uns trocados acompanhando o primo em algum serviço temporário ou jogam malabarismos no sinal da esquina. Mas a situação é sempre precária, é difícil ter uma “carreira”, no sentido que as pessoas de classe média dão ao termo, de desenvolvimento numa profissão ao longo do tempo. É preciso pouco para fazer o copo transbordar: uma gravidez inesperada, doença na família, uma chuva mais forte ou uma seca que acerte a casa ou a plantação.

A OIT chama a atenção para o desemprego muito menor na zona rural, mas também ressalta que isso se deve ao fato de que os jovens trabalham na agricultura familiar, com freqüência sem receber salário e sem ter voz nas decisões que afetam sua vida. Foi o exatamente o que observei no Paraguai, conversando com os camponeses de lá. Pedimos que eles realizassem pequenos esquetes teatrais com cenas do cotidiano e foi impressionante o quanto os problemas de família apareceram com força nessas representações. Em geral isso se manifestava na figura do pai autoritário, que se impunha à mulher e aos filhos, e com freqüência bebia em excesso e batia nas pessoas a sua volta.

No entanto, os jovens de hoje têm muito mais escolaridade do que a geração anterior. Também têm mais acesso à informação. Essas vantagens não se traduziram em melhor inserção no mercado de trabalho, o que gerou uma combinação instável, que produz inquietação e em muitos casos raiva e baixa auto-estima. É curioso que o relatório da OIT não mencione migrações internacionais, pois essa tem sido uma opção muito freqüente da juventude latino-americana. No Uruguai, o problema demográfico tornou-se séria preocupação: “Precisamos de políticas públicas para os jovens, ou eles sairão daqui”, era algo que escutei muitas vezes em Montevidéu.

O estudo da OIT também menciona a necessidade de pensar soluções específica para negros e índios. Os jovens indígenas na América Latina são estimados entre 30 e 50 milhões, quase metade do total. A organização não fornece dados para os negros, mas podemos imaginar que a soma dos dois grupos basta para concluir que a maioria da juventude da região sofre discriminação racial. Dos países que visitei, foi na Bolívia que notei maior determinação em enfrentar o problema.

O Brasil é citado positivamente no relatório da OIT por causa do Pró-Uni, o programa do governo federal que dá bolsas em universidades privadas a jovens pobres, e já beneficiou cerca de 410 mil pessoas. Sou crítico da concepção: para mim elas deveriam estar em instituições públicas, como a que freqüentei, ao lado dos filhos da classe média e da elite. Mas tenho visto de perto o impacto extraordinário do Pró-Uni. Conheci muitos adolescentes para quem a universidade tornou-se, pela primeira vez, um horizonte concreto.

No aspecto propositivo, o relatório da OIT cita algumas iniciativas bem-sucedidas que podem ser aplicadas em outros países, mas o tom geral é de que elas apenas amenizam as situações mais graves. Como resolver o problema de maneira eficaz?

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Cuba Depois de Fidel



Um dos principais temas no congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos foi a situação política em Cuba, e as perspectivas para o país após a morte de Fidel Castro. Houve bons debates e estavam à venda muitos livros sobre o tema. O que mais gostei foi “After Fidel: Raul Castro and the future of Cuba´s Revolution”, de Brian Latell. Estava baratinho, US$5 no último dia do evento. Fiquei curioso pela descrição profissional do autor: analista sênior da CIA e do Conselho de Segurança Nacional, acompanha os irmãos Castro desde 1965.

Quis saber como ele avalia o regime cubano e fiquei surpreso com a altíssima qualidade do livro. É uma espécie de perfil comparado de Fidel e Raul, com ênfase nos anos iniciais da Revolução e no chamado “período especial”, a recessão econômica da ilha após a queda da URSS. Latell escreve muito bem e tem análises brilhantes – por exemplo, sobre como Fidel foi influenciado pela rebelião colombiana do Bogotazo, que testemunhou como jovem líder estudantil. Raul é um personagem menos conhecido, sempre à sombra do irmão mais velho, e Latell chama a atenção para seus talentos de organizador e administrador. Em todo o mundo, é o ministro da Defesa que há mais tempo está no cargo (“e um dos mais competentes”, frisa o analista da CIA).

O livro é pontuado por histórias do trabalho de Latell na CIA, como a descoberta de uma espiã cubana no topo da organização, ou as dificuldades em fazer com o que o trabalho de inteligência se tornasse base para políticas sólidas. Com muita freqüência seus relatórios eram simplesmente ignorados quando divergiam das visões e opiniões de quem estava no poder.

À medida que Latell ascendeu na CIA, tornou-se um alvo para os serviços cubanos de inteligência (que ele afirma estarem entre os melhores do mundo) e as pequenas provocações entre um e outro são impagáveis, uma espécie de relação de amor/ódio/rivalidade entre profissionais que se respeitam, ainda que infernizem a vida um do outro.

Latell analisa em detalhes os problemas políticos em Cuba e aborda de maneira esplêndida os conflitos entre Fidel e as Forças Armadas, que o levou a executar o mais condecorado general cubano, Arnaldo Ochoa, herói das guerras africanas. Ochoa se tornara um perigoso dissidente e Fidel temia que a oposição o transformasse no líder por reformas. Os irmãos Castro inventaram uma história nebulosa para incriminá-lo como traficante de drogas. Detalhe: ele era um dos melhores, senão o melhor, amigo de Raul.

Outro bom livro é “Changes in Cuban Society Since the Nineties”, organizado pelo Woodrow Wilson Center for International Scholars, instituição vinculada ao Congresso dos EUA. Trata-se de uma coletânea de ensaios sobre diversos aspectos de Cuba em especial as transformações na sociedade civil, como o movimento por abertura democrática conhecido como Projeto Varela e as posições da Igreja Católica diante do regime. Os melhores textos abordam as mudanças na comunidade cubano-americana na Florida, que passa por uma renovação geracional – os novos líderes já nasceram nos Estados Unidos, não viveram a Revolução e tem posturas mais moderadas. Clique neste link para baixar o livro em .PDF.

O marxismo sempre colocou sua ênfase analítica nos grandes processos estruturais que conduziriam o rumo da história. É uma tremenda ironia do destino que o futuro de Cuba dependa da saúde de dois homens. Latell afirma que o cenário mais turbulento seria Raul morrer antes de Fidel, porque nesse caso a transição de poder se faria sem um líder claro e em meio a uma tremenda luta política dentro das Forças Armadas.

Quem viver, verá.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Amigos, projetos e uma bela cidade



A foto acima mostra a rua da Universidade, em Montréal, um dos lugares que mais freqüentei durante minha permanência no Canadá. A rua fica em frente ao hotel onde aconteceu a maioria dos eventos do congresso e está repleta de cafés, restaurantes e livrarias, estabelecimentos onde passo de bom grado uma longa parte da vida. Era um programa comum me reunir com amigos para papos entre um debate e outro.

A universidade que dá nome à rua é a McGill, uma das mais importantes do Canadá. Ela está localizada numa linda colina e todo o complexo é muito bonito, com prédios e parques espalhados num ambiente acolhedor. Melhor de tudo: a McGill anunciou no congresso bolsas para seu programa de pós-doutorado em Estudos do Desenvolvimento. O tema me interessa muito e desde já é uma forte possibilidade para o futuro. Outra coincidência: o curso é financiado pelo mesmo instituto governamental que banca a pesquisa sobre juventude sul-americana, na qual trabalho atualmente.





Num dos debates, conheci um acadêmico brasileiro que fez o pós-doc no Canadá, mas na Universidade do Québec. Ele me falou maravilhas do ambiente intelectual, da hospitalidade e da excelência acadêmica do país. Me estimulou muito para que eu prosseguisse meus estudos por lá e com certeza suas palavras estão sendo consideradas com muita atenção por mim!

Meu desejo de estudar técnicas do desenvolvimento foi reforçado pelos ótimos amigos que fiz no congresso. Um dos grupos com quem mais andei foram de profissionais europeus e latino-americanos que trabalham nesse campo. Além da afinidade de interesse, foram colegas de mestrado na Holanda de uma amiga minha. Os laços comuns nos aproximaram e passamos ótimos momentos conversando e trocando idéias. Muitos deles viveram no Peru e aprendi bastante sobre a situação atual desse país, em particular o modo como os efeitos terríveis do terremoto foram agravados pelas desastradas decisões do presidente Alan García.

Outro bom grupo de amigos que fiz em Montréal foi de jovens doutorandos de Berkeley, nos EUA. Já conhecia uma das moças, a quem ajudei quando ela esteve no Brasil pesquisando para sua tese. Ela me apresentou a vários colegas e nos divertimos muito contando piadas sobre os absurdos de nossos países. Me impressionou o número de estudantes dessa prestigiada universidade que estão se dedicando aos assuntos brasileiros. Todos falam excelente português (melhor do que o de muitos depoentes em nossas CPIs...) e têm um grande carinho pelo Brasil. "Agora em Berkeley somos todos brasileiros", brincou um deles.

Meus amigos brasileiros no congresso eram principalmente os colegas do IUPERJ, mas também fiz amizade por lá com muitos estudantes e professores das universidades paulistas, da UnB e de uma ou outra instituição nordestina. Fizemos belos passeios por Montréal. Um deles foi pelo Quartier Chinois, bastante grande. Apesar do nome, ele abriga não só chineses, mas uma expressiva comunidade de imigrantes asiáticos que inclui muitos vietnamitas e tailandeses. Gostei principalmente de jantar nesses restaurantes típicos: ótima comida e um preço bastante razóavel para os altos padrões do Canadá. Também comemos no Quartier Latin, que concentra vários dos restaurantes da moda, uma arquitetura fantástica e uma agitada vida noturna.



O centro histórico de Montréal se concentra junto ao porto e contém preciosidades como a Praça de Armas e a Praça Jacques Cartier. Toda a área está muito conservada e é um prazer caminhar por ela. Do porto, tomamos um cruzeiro pelo rio São Lourenço (a cidade, vale lembrar, é uma ilha) e fizemos um passeio interessante pelos arredores. Na foto abaixo, o Biodome, uma estrutura que abriga exposições com os principais ecosistemas das Américas.



Montréal é uma cidade especial, de categoria internacional como seus habitantes gostam de dizer. A programação cultural anual é deslumbrante e inclui eventos extraordinários na música, literatura e cinema. Me despeço dela como quem diz até logo, e desde já está marcada na minha vida como um lugar de amizade e pensamento.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Salvador Allende



Voltei ao Brasil ontem à noite. À medida que organizo minhas anotações, escreverei mais sobre a experiência no Canadá, que foi excelente, e postarei fotos de Montréal. Hoje aproveito o aniversário do golpe de Estado no Chile para escrever sobre o documentário “Salvador Allende”, dirigido por Patricio Guzmán, que assisti no Festival de Cinema que fez parte do congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos.

Guzmán é um cineasta chileno conhecido sobretudo por seu domentário “A Batalha do Chile”, sobre o governo da Unidade Popular, a coalizão de partidos de esquerda liderada por Allende. Seu filme sobre o ex-presidente não é uma biografia tradicional, trata-se antes de uma dissertação a respeito do impacto que as ações de Allende tiveram numa série de pessoas comuns e de como o país não conseguiu ainda recuperar a memória do que foi seu governo e os anos de confronto anteriores ao golpe de Pinochet.

A cena emblemática é o próprio Guzmán raspando um muro branco, próximo ao aeroporto de Santiago. Por baixo da pintura, descobre vestígios dos murais que foram parte importante do governo da Unidade Popular. Diante da hostilidade dos meios de comunicação, os partidários de Allende usaram os muros para transmitir mensagens políticas, protestar ou simplesmente expor sua arte. Não teve o mesmo impacto internacional do muralismo da Revolução Mexicana, mas vale conhecer a experiência.

A história de Allende é bem conhecida, o barato do filme de Guzmán é destacar seu lado mais humano e menos cerimonial, como suas tendências mulherengas. Uma das melhores entrevistas do documentário é com a secretária do ex-presidente, que também foi sua amante, e fala desse caso de amor com uma ternura na qual os silêncios contam mais do que as palavras cautelosas e hesitantes. Outro silêncio eloqüente é dos vizinhos de Allende, nas aristocráticas mansões do bairro alto de Santiago, que até hoje se recusam a falar do saque e da destruição da casa do presidente, que ocorreu logo após o bombardeio ao Palácio de La Moneda.

O Chile sempre foi um país marcado por grandes desigualdades sociais – que hoje, após quase 20 anos de ditadura, são em alguns aspectos piores do que as brasileiras. Politicamente, essas diferenças se expressaram numa enorme polarização partidária e os ódios nunca foram tão fortes quanto durante o governo Allende. Guzmán dá pouca, pouquíssima voz aos adversários do ex-presidente. O mais interessante é a entrevista com o ex-embaixador dos EUA no Chile, que faz um notável mea culpa, ainda que acuse o mandatário chileno de vários erros graves. Mas eu gostaria de saber mais a respeito daquelas respeitáveis senhoras de classe média que foram às ruas de panela na mão pedir a deposição de Allende.

Por coincidência, antes de viajar ao Canadá eu havia lido “Canção Inacabada – a vida e a obra de Victor Jara”, biografia escrita por sua viúva Joan. Admirava Jara por suas belíssimas canções (minha favorita é Te Recuerdo Amanda) mas desconhecia totalmente sua importância como diretor de teatro. O livro de Joan é uma tocante história da vida cultural chilena nos anos 60 e 70 e chama a atenção o quanto havia de comum com o que ocorria no Brasil e na Argentina.



Jara foi um fiel defensor de Allende e compôs até o hino da Unidade Popular, Venceremos. Os militares odiavam Jara, que ao lado de Neruda era a principal figura da cultura chilena naqueles tempos. Seus algozes o prenderam no dia do golpe e o levaram ao Estádio Nacional, onde lhe quebraram os pulsos e o mataram sob tortura.

Convivo com muitas pessoas (brasileiras e chilenas) que participaram com entusiasmo do governo da Unidade Popular e sempre me impressiono com o carinho e a emoção com que elas descrevem a época. Para esses amigos e mestres, ficam estas breves palavras, num dia de lembranças por uma América que também é nossa.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Entre a lideranca e o isolamento

O Brasil ocupa uma posicao curiosa no congresso da Associacao de Estudos Latino-Americanos. Como o maior e mais populoso pais do continente, esta no centro das atencoes. Ao mesmo tempo, a lingua portuguesa e os academicos brasileiros ocupam um espaco nitidamente secundario nas discussoes por aqui.

Comecemos pela lideranca. A abertura oficial do congresso contou com a participacao de varias autoridades canadenses, como a chefe de Estado, os reitores das universidades do Quebec e a ex-chanceler e ex-sub-secretaria-geral da ONU. Todos ressaltaram a importancia da America Latina para o Canada, como convinha para as circunstancias. Contudo, a chefe do Estado, discursando em portugues, cobriu o Brasil de elogios e apontou o pais como exemplo da papel de destaque na politica internacional. Foi a unica nacao latino-americana que ela cumprimentou e imagino que deve ter sido um pouco constrangedor para os cidadaos dos outros paises.

Eu diria que a lideranca brasileira e uma forte tendencia, mas ainda nao e uma realidade. A Associacao de Estudos Latino-Americanos e muito concentrada nos EUA, apenas 25% dos seus membros estao na America Latina. A principal lingua de trabalho por aqui, sem sombra de duvida, e o ingles. O espanhol desempenha papel importante. So se fala portugues em mesas sobre o Brasil e na qual os estrangeiros demonstrem pouco interesse.

Por exemplo, ontem assisti a um debate sobre "Machado de Assis, escritor latino-americano". O nome foi propaganda enganosa, porque se falou muito mais da relacao do autor com a literatura europeia, mas me chamou a atencao da total ausencia de hispano-americanos ou pessoas dos EUA e do Canada na plateia.

Tambem ontem aconteceram as "reunioes de negocios" como sao chamados os encontros das principais sessoes em que se organiza a Associacao. Fui para a do Cone Sul, ja que escrevo sobretudo sobre os paises da regiao. Eu era o unico brasileiro na reuniao, o que me tornou bastante requisitado. Nao pelo meus belos olhos, e sim por uma questao pratica - o proximo congresso da Associacao sera no Rio de Janeiro, em 2009, e todos queriam ouvir o que eu tinha a dizer sobre as condicoes de infra-estrutura para o encontro. Acabei me comprometendo a ajudar na organizacao de uma serie de eventos.

Eis meu ponto - para exercer a lideranca internacional que comeca a se desenhar no horizonte, o Brasil tera que romper seu isolamento. O pais vai precisar de uma grande quantidade de profissionais - no governo, nas empresas, na academia, no jornalismo - capazes de construir pontes com colegas em outros paises, aprender linguas estrangeiras e pensar alem dos preconceitos nacionalistas e de visoes de mundo restritas.

Neste dia que celebramos a festa patria, desejo ao Brasil menos independencia e mais o que os teoricos de relacoes internacionais chamam de inter-dependencia, mas que um poeta e diplomata que escreveu sobre a "patria minha, tao pobrinha" talvez preferisse batizar de arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Montreal



Cheguei ontem a Montreal, mas o pouco tempo em que estou aqui ja bastou para que eu me encantasse com a cidade, com a cordialidade de seus habitantes e com a beleza e a organizacao de tudo por aqui. Tambem ajuda o fato de que o congresso da LASA comecou de maneira excelente. A semana promete.

A cidade eh uma ilha no rio Sao Lourenco e foi um dos centros mais importantes da colonizacao francesa nas Americas. Os britanicos tomaram o Quebec na guerra dos Sete Anos, em meados do seculo XVIII, mas nunca conseguiram apagar os rastros da cultura francesa. O Canada, evidentemente, eh um pais bilingue e as pretensoes autonomistas do Quebec sao muito fortes - o ultimo plebiscito pela independencia da provincia perdeu por menos de 1%. Quase todas as pesssoas por aqui falam os dois idiomas muito bem, mas isso nao significa que deem a eles a mesma importancia sentimental. O rapaz do albergue onde estou hospedado dizia num ingles impecavel que le somente a imprensa em lingua francesa.

As placas de ruas e sinais oficiais estao nas duas linguas, assim como os livros a venda nas excelentes livrarias da cidade. Mas nesse campo, predominam os lancamentos em ingles, por causa da influencia da poderosa industria editorial dos EUA. Que alias, invadiram duas vezes o Canada (na Revolucao de 1776 e na guerra de 1812) mas foram expulsos em ambas as ocasioes, sem conseguir anexar o pais.



Tambem me rendi a lingua dos Estados Unidos e fiz minha apresentacao no congresso em ingles. Meu trabalho eh sobre direitos humanos e participacao cidada no Mercosul e meus colegas de mesa eram argentinos e peruanos. Ainda assim, decidimos fazer todas as palestras em ingles, porque a maioria do nosso publico era dos EUA. Pegamos um horario ingrato - 8h, no primeiro dia do evento - mas o debate foi excelente, cheio de ideias e muito divertido. Como disse um dos participantes, o tema do Estado e da sociedade civil sempre rende boas historias e anedotas!

Hoje assisti a otimos debates sobre movimentos sociais na Argentina, politicas de integracao regional e daqui a pouco sigo para a cerimonia oficial de abertura. O programa do congresso promete a presenca de muitos lideres politicos e escritores. Aguardemos!

As fotos - Praca Jacques Cartier e Basilica de Notre Dame.

domingo, 2 de setembro de 2007

Canadá, Québec e América Latina


Na próxima segunda-feira embarco para o Canadá, onde passarei uma semana. Apresentarei um ensaio sobre direitos humanos e participação social no Mercosul no congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos (LASA). Não é coincidência que o evento seja em Montréal, na região francófona do Québec. Nos últimos anos o Canadá tem desempenhado um papel cada vez mais relevante nos assuntos da América Latina e sua região de fala francesa é especialmente proeminente nessas relações.

Até a década de 1990 o Canadá sequer fazia parte da Organização dos Estados Americanos. Quem levou o país para a instituição foi um de seus secretários-gerais, o embaixador brasileiro Baena Soares. Numa palestra, pediram-lhe três motivos para o país se juntar à entidade: “Primeira razão: o Canadá é um país das Américas. Segunda razão: a OEA é a organização regional deste hemisfério. Terceira razão: não é necessária.”

De lá para cá, o Canadá assinou acordos comerciais importantes com países da América Latina, como o Nafta. Sua chefe de Estado atual é do continente: a governadora-geral Michäelle Jean, nascida no Haiti. Ela esteve no Brasil em julho (na foto, cumprimenta o presidente Lula) e impressionou favoravelmente as pessoas com quem se reuniu, por sua dedicação e interesse aos temas latino-americanos. Em seus discursos, menciona com muita freqüência os jovens brasileiros e as ações do Centro para a Pesquisa e o Desenvolvimento Internacional, vinculado ao parlamento canadense – o Centro financia a pesquisa sobre juventude na América do Sul, na qual trabalho.

O congresso da LASA tradicionalmente ocorria nos Estados Unidos, país no qual estão localizadas a maioria das instituições que se dedicam a estudar a América Latina. Neste ano, será em Montréal por conta dos inúmeros problemas para entrar nos EUA. O Canadá também exige visto, mas o processo foi rápido: apresentei os documentos que me pediram e em uma semana estava tudo pronto.

Ao saber da minha viagem, muitos amigos têm me perguntado se penso em emigrar para o Canadá. Isso porque o governo do país – em particular o da província de Québec – lançou um programa especial para os cidadãos brasileiros. Eles realmente estão de olho em nós. A ministra das relações internacionais do Québec (sim, a província tem sua própria diplomacia!) está em visita ao Brasil e assinou acordos de cooperação com a CAPES, além de ter aberto um escritório de representação econômica em São Paulo.

As oportunidades estão aí. Vamos ver se minhas impressões de Montréal confirmam as boas expectativas!