segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Brasil e Irã



O Irã é uma potência regional no Oriente Médio e um ator de destaque em vários conflitos locais, no Líbano, Palestina e Afeganistão. É um mercado promissor para o agronegócio. As duas características, somadas, o tornam um interlocutor importante para o Brasil, nesta conjuntura em que o país almeja maior presença no Oriente Médio e que, numa impressionante demonstração de prestígio internacional, recebe em poucos dias três chefes de Estado da região. Contudo, a visita do mandatário iraniano ao Brasil ocorre em péssimo momento: em meio à crescente pressão diplomática contra seu programa nuclear, e logo depois de uma violenta onda repressiva contra seu movimento democrático.

Ao longo do século XX, o Irã sofreu diversas invasões: da Gra-Bretanha, da União Soviética, do Iraque. Os Estados Unidos intervieram de forma brutal em sua política, em particular no golpe de Estado da década de 1950 contra o regime nacionalista que asssumiu o controle da indústria do petróleo. Desde a Revolução Islâmica de 1979, os dois países vivem em conflito. Nos primeiros anos do século XXI, o Irã viu seu vizinho mais importante ser ocupado por exércitos estrangeiros, liderados pelos EUA e pelo Reino Unido. Além disso, o país se envolveu em guerras religiosas, apoiando grupos xiitas no Líbano e na Palestina, e enfrentando Israel em batalhas clandestinas que chegaram até a Argentina. Nesse contexto, não causa espanto que Teerã busque armas nucleares.

Tampouco provoca surpresa que as grandes potências – inclusive Rússia e China - rejeitem esse pleito. O Irã é uma força desestabilizadora numa região turbulenta, seu xiismo militante apavora os Estados sunitas, numa mistura de milenares rivalidades religiosas, culturais e étnicas (árabes contra persas). Seu virulento antissemitismo é recente, em parte fruto da rejeição da Revolução Islâmica aos entendimentos entre Israel e o xá Reza Pahlevi contra inimigos comuns, como o nacionalismo árabe.

O presidente Lula foi cauteloso ao afirmar que o apoio brasileiro ao programa nuclear iraniano está condicionado ao caráter pacífico dessa iniciativa, e ao respeito às normas internacionais. Contudo, nas condições atuais, receber Ahamadinejad significa ajudá-lo a romper o cordão de isolamento que os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU tentam construir a seu redor. Indispor-se com os integrantes desse clube seleto não é a melhor maneira de candidatar-se a fazer parte do grupo.



Além do programa nuclear, há a questão das violações de direitos humanos perpretadas pelo governo iraniano, em particular a repressão aos protestos contra a reeleição de Ahamadinejad em 2009. Mesmo que aceitemos as alegações de Teerã de que não houve fraudes na votação, nada justifica as prisões arbitrárias e torturas cometidas pelo regime. A violência foi tão grande que provocou uma cisão na elite do país, com os clérigos da cidade sagrada de Qom lançando uma inédita manifestação contra o governo.

Naturalmente, o Irã não está sozinho em seu autoritarismo. Podemos fazer uma analogia, por exemplo, com o massacre da praça da Paz Celestial na China, em 1989. A diferença é que no caso chinês se trata de uma grande potência, cujo enorme poder dá pouco espaço para questionamentos e negociações. Mas uma relação política intensa com o Irã é uma opção, não uma necessidade. Uma escolha que precisa levar em conta os impactos para um momento em que a política externa brasileira frisa a importância da preservação da democracia em Honduras, onde há o risco de criar um precedente para o retorno do golpismo na América Latina.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Duque de Caxias: por trás do monumento



Li por estes dias a excelente biografia “Duque de Caxias: o homem por trás do monumento”, da historiadora Adriana Barreto de Souza. Ela se soma ao ótimo perfil do general Osorio, de autoria de Francisco Doratioto, para compor um panorama contemporâneo dos dois principais líderes militares brasileiros do século XIX. Para quem se acostumou com a imagem de um Brasil pacífico, impressiona observar o quanto os conflitos bélicos foram essenciais para a política do país nas primeiras décadas de vida independente.

O maior mérito do livro de Adriana de Souza é mostrar como a excepcional trajetória de Caxias se inseriu no contexto de ampla teia de relações pessoais e familiares, que se iniciou com a aposta de seu tio-avô, ainda no século XVIII, de emigrar de Portugal ao Brasil, em busca de oportunidades de acensão social que inexistiam na Europa. Foi o início de uma dinastia militar que galgou passo a passo as principais hierarquias na Colônia e no jovem império, aproveitando as oportunidades criadas pelas guerras no Prata, pela vinda da família real, pela Independência e mais tarde pela necessidade de debelar as rebeliões provinciais durante a Regência.

Embora Caxias tenha se tornado célebre como líder conservador do Segundo Reinado, a história de sua família está ligada aos liberais. Seu pai e tios serviram com distinção a dom Pedro I, ajudando a combater os vestígios do domínio colonial na Bahia, e a reprimir as manifestações populares contrárias ao monarca. Contudo, o imperador privilegiava os oficiais nascidos na Europa e vivia às turras com os parentes de Caxias. O pai do futuro duque foi decisivo nas mobilizações cívico-militares que culminaram na Abdicação de dom Pedro, e chegou mesmo a ser Regente do Império.

As turbulentas décadas de 1830 e 1840 foram fundamentais para Caxias. Já tinha impressionante experiência militar, nas guerras no Nordeste e na Cisplatina. Jovem major, tornou-se o chefe de polícia do Rio de Janeiro e se mostrou muito eficiente no ofício, que à época era muito delicado politicamente porque significava arbitrar conflitos entre liberais moderados e radicais, conservadores, militares e civis, negros libertos, escravos e brancos. É um período pouco estudado pelos biógrafos de Caxias, mas Adriana de Souza argumenta que foi essencial porque nele Caxias conquistou a confiança de diversos líderes políticos que impulsionaram sua carreira, do regente liberal padre Diogo Feijó (uma figura fascinante que merece ser mais pesquisada) aos expoentes do Regresso conservador que seriam os responsáveis pela maioridade precoce de d. Pedro II.



Tal credibilidade é que permitiu ao então coronel ser enviado ao Maranhão para enfrentar a rebelião dos Balaios. Ele se mostrou extremamente habilidoso na guerra e nas negociações políticas, e a autora nos explica como a perícia diplomática era vital para coordenar um Exército pouco profissionalizado, com baixa disciplina, muito semelhante às Forças Armadas do Antigo Regime. Caxias voltou do Nordeste general e nobre – barão. Daí em diante foi uma sucessão de vitórias: contra as rebeliões liberais em Minas Gerais e São Paulo (nesta, ele prendeu seu antigo chefe, padre Feijó) e a luta épica contra a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, onde encerrou um conflito de dez anos, numa vitória que lhe rendeu o título de conde e o cargo, vitalício, de senador do Império.

Um dos tios de Caxias havia sido líder farroupilha, e morreu no conflito. Lembrete do custo que as guerras civis do século XIX trouxeram para tantas famílias brasileiras. Outro ponto importante da experiência no Sul é como os embates dos gaúchos contra o Império estavam vinculados ao cenário internacional, das disputas com o Uruguai e a Argentina, no que foi, de fato, algo muito próximo a uma guerra civil sem fronteiras no Cone Sul. Que está a pedir uma abordagem histórica igualmente cosmopolita, e não as perspectivas nacionais tradicionais.

Adriana de Souza toca de leve nas vinculações entre os líderes militares e os partidos políticos, que era extremamente forte no século XIX. Os interessados podem ler o perfil que Doratioto escreveu de Osorio, que dá grande destaque à atuação do general entre os liberais. Caxias destacou-se como símbolo de um Estado forte e centralizado. Características que o tornaram incômodo para a Primeira República, mas que o fizeram ser redescoberto pelo Estado Novo.

Sua biografia se encerra com a vitória de Caxias sobre os farrapos. Resta torcer para que siga adiante em seu trabalho e conte também seu período na alta política Imperial e na guerra do Paraguai.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Cesare Battisti e a Itália de Chumbo



Depois de confuso e controverso processo no Supremo Tribunal Federal, é improvável que o presidente Lula decida extraditar Cesare Battisti à Itália, país no qual ele foi condenado por diversos crimes, em sentenças posteriormente confirmadas por tribunais da França e pela Corte Européia de Direitos Humanos. Manter Battisti no país viola o tratado de extradição entre Brasil e Itália e por isso o Ministério das Relações Exteriores e o Comitê Nacional para os Refugiados se opuseram à concessão do refúgio.

Os debates sobre o caso Battisti no Brasil dedicaram pouco espaço à análise da conjuntura da Itália nos anos de chumbo e é isso que pretendo fazer neste post – como possuo dupla cidadania, brasileira e italiana, a crise entre os dois países me diz respeito de perto.

Nas décadas de 1960 e 1970 a Itália enfrentou problemas sérios de violência política. Era uma jovem e frágil democracia, e muitos de seus líderes tiveram papéis de relevo no regime fascista. Isso levou a nova geração do pós-guerra a desprezá-los, e questionar a legimitidade de instituições representativas vistas como anêmicas e pouco mais do que uma cortina de fumaça para o domínio da elite tradicional. Os ativistas de extrema-esquerda formaram grupos armados, dos quais o mais conhecido foram as Brigadas Vermelhas. Houve equivalentes da extrema-direita, a ação de esquadrões neofascistas se tornou notória, em particular no norte do país.

O Partido Comunista Italiano (PCI), em seus anos de glória, era conhecido pelo brilhantismo intelectual de seus dirigentes, do naipe de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti. Embora sem conquistar o poder no nível nacional, o PCI se estabeleceu como bom administrador regional no centro-norte, em particular em Bolonha, a “cidade vermelha”.

Na década de 1970, o PCI criou o “eurocomunismo”, rompendo com o autoritarismo soviético e se firmando como alternativa plausível ao poder. Foi então que o primeiro-ministro Aldo Moro, da democracia-cristã optou pela política do “compromisso histórico”, de aliança com os comunistas. Isso foi demais para os radicais e nesse contexto as Brigadas Vermelhas sequestraram e mataram Moro. Apesar da esquerda moderada sempre ter condenado esse tipo de ação, muitos analistas acreditam que o terrorismo dos pequenos grupos comunistas a atingiu, eliminando suas chances de ascender à chefia de governo. Isso só aconteceu no pós-Guerra Fria, com o sucessor bem mais conservador do PCI, o Partido Democrático de Esquerda.



Cesare Battisti havia sido por roubo, na prisão conheceu radicais políticos e se juntou ao grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), uma dissidência das Brigadas Vermelhas que rompeu com a organização principal por achar suas estruturas decisórias muito centralizadoras. A segunda foto deste post os mostra em ação e se tornou uma das imagens mais conhecidas dos anos de chumbo da Itália. Battisti foi condenado por envolvimento em quatro homicídios cometidos pelo PAC, alguns contra policiais e militantes fascistas, outros contra comerciantes que reagiram a assaltos. Ele nega ter participado desses crimes, mas os tribunais de dois países e da União Européia concluíram de forma contrária.

Battisti foi preso na Itália, mas fugiu e rumou para a França, onde ficou alguns anos sob a proteção da Doutrina Mitterand. O presidente francês, ansioso por agradar a seus aliados comunistas, críticos de sua política econômica, havia decidido abrigar os ativistas políticos de esquerda condenados em outros países. A Doutrina foi abolida na década de 2000, pela pressão dupla de governos conservadores e dos tribunais europeus, que a julgaram incompatível com as leis anti-terrorismo do continente. Battisti passou à clandestinade na França e veio para o Brasil.

O Ministro da Justiça, Tarso Genro, baseia sua decisão de conceder refúgio a Battisti em dois argumentos principais: seus crimes teriam sido de natureza política e os tribunais italianos não teriam legitimidade para agir de forma independente do Executivo – em sua declaração mais recente, o governo Berlusconi seria um exemplo de “fascismo galopante”.

A Justiça brasileira entende “crime político” como aquele em que a vítima é condenada em função de sua opinião. Essa definição exclui, por exemplo, assassinatos cometidos por motivação política. Se não fosse assim, Bin Laden teria que ser acolhido no Brasil, segundo a classificação de Genro.

Quanto à avaliação que o ministro faz do regime político italiano, ela pouco importa. Afinal, Battisti também foi condenado na França e na Corte de Direitos Humanos da União Européia.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

São José dos Campos: desenvolvimento à brasileira



Na semana passada estive em São José dos Campos, para dar aulas em um Seminário de Altos Estudos promovido no Parque Tecnológico local. Foi uma experiência enriquecedora: lecionar relações internacionais para um público não-acadêmico e, simultaneamente, conhecer de perto a fantástica experiência do pólo aeronáutico da cidade.

A coordenação do Seminário me havia pedido um programa que abordasse as transformações contemporâneas na política internacional, com ênfase na América Latina. Estruturei as aulas a partir de reflexões sobre o que aconteceu após a queda do Muro de Berlim e expus aos alunos um pouco dos debates sobre a nova ordem internacional: os avanços e impasses da União Européia, a ascensão dos BRICs etc. Um dos temas que mais mobilizou a turma foi em que medida a globalalização econômica cria oportunidades para países em desenvolvimento e usei a fórmula do professor de Harvard Dani Rodrik - “uma economia, muitas receitas”. Dito de outro, modo, os mercados estão cada vez mais interdependentes, mas cada país tem que procurar a melhor maneira de se integrar a esses fluxos internacionais. Tais escolhas são fruto de muitos conflitos sociais e visões de mundo de suas elites e populações, mas também se explicam em função da história local e de decisões tomadas às vezes em décadas anteriores.

Ilustrei o ponto com o próprio exemplo de São José dos Campos. A cidade foi modificada para sempre com a decisão da Aeronáutica, nos anos 1940, em instalar ali um Centro Tecnológico e um estupendo instituto de engenharia, de padrão internacional. A concentração de mão-de-obra qualificada acabou propiciando o que hoje se conhece como um “cluster de desenvolvimento”, a concentração de empresas de tecnologia avançada, centros de pesquisa e universidades num mesmo espaço geográfico, com significativos ganhos em inovação e economias de escala – Paul Krugman recebeu um Nobel por estudar tais fenômenos. O Vale do Silício, na Califórnia, é um exemplo de cluster na área de informática.

A Embraer é a filha mais famosa de São José dos Campos e pedi aos alunos que imaginassem o presidente de um país pobre que quisesse replicar o modelo para competir no mercado global de aviões. Precisaria de anos, embora pudesse economizar erros aprendendo com a experiência alheia e recorrendo à universidades estrangeiras para formar profissionais. Em seu período inicial, o próprio Instituto Tecnológico de Aeronáutica do Brasil se valeu bastante de docentes oriundos dos Estados Unidos, ainda no contexo de cooperação intensa entre os dois países, no início da Guerra Fria. Hoje, ironias da História, um belo avião Super Tucano fabricado pela Embraer está em frente à sede do complexo da Força Áerea na cidade – o mesmo modelo de avião que o Brasil tentou vender à Venezuela de Chávez, numa operação vetada pelo governo americano. A proibição foi possível pela presença de componentes dos EUA na aeronave.

Naturalmente, um dos temas nas conversas sobre América Latina foi o redespertar do interesse por Defesa nos países da região e expus brevemente o cenário para os principais países. A presença de tantos profissionais da indústria aeronáutica enriqueceu muito os debates e aprendi bastante sobre as diversas possibilidades e limitações da transferência de tecnologia nos três concorrentes do pacote de caças que a Força Áerea Brasileira quer adquirir. Enquanto o automóvel da organização me conduzia a 120 Km/h na moderna rodovia rumo ao aeroporto de São Paulo, tentei arrumar a cabeça para entender este admirável Brasil novo e seu imenso potencial. Receio que vou precisar de muitos anos para isso.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A Guerra da Sucessão Hondurenha



A decisão do governo golpista de Honduras de desrespeitar o acordo de votar pela volta de Zelaya aponta para um cenário bastante ruim, que pode colocar em risco a legitimidade das eleições presidenciais que serão realizadas em 29 de novembro. Segundo as notícias mais recentes, o Congresso decidiria sobre o destino de Zelaya apenas no dia 2 de dezembro. É muito questionável que a votação ocorra em boas condições e há a possibilidade de que a oposição ao golpe não aceite os resultados. A questão divide a OEA: os Estados Unidos apoiam a realização das eleições, mesmo com Zelaya fora do poder, os países da América Latina são contrários.

Como a economia de Honduras é extremamente dependente dos mercados dos EUA, mas têm relativamente poucos vínculos com os vizinhos do continente, a divisão da OEA indica uma situação de instabilidade, em que Washington reconheceria o presidente eleito, e as nações latino-americanas, não. Segundo noticiou o Valor, as autoridades brasileiras estudam limitar as relações diplomáticas com Honduras a um patamar mínimo, inclusive retirando o embaixador.

A ambiguidade da OEA criaria um precedente perigoso, em particular para países que passaram por riscos recentes de golpes, na América Central e na região Andina. Grupos que queiram derrubar governantes controversos, mas eleitos democraticamente, podem muito bem concluir que ações violentas compensam, contanto que consigam resistir por alguns meses e evitem determinados erros. Por exemplo, permitir que o presidente deposto busque refúgio no exterior.

Zelaya escreveu uma carta a Barack Obama acusando os Estados Unidos de terem-no abandonado em seus esforços para voltar à presidência, e anunciou que não aceitará um acordo com o governo golpista. A Venezuela, seu principal patrono político, passa por muitas dificuldades. Além da tensão com a Colômbia (que abordei no post anterior), nesta semana o país entrou recessão e ainda foi declarado o mais corrupto da América Latina. Com aliados como esses, Zelaya dificilmente precisa de inimigos.

A crise de Honduras conseguiu deixar em situação contrangedora quase todos os países envolvidos com seus turbulentos acontecimentos e o mesmo acontece com os Estados Unidos, numa demonstração de indecisões e vacilações que ilustram a falta de diretrizes claras do governo Obama com relação à América Latina. Na excelente definição de um amigo com quem conversei sobre o tema, a região “hoje oferece para os EUA mais custos do que benefícios”. Ir contra as nações do continente em um assunto tão delicado quanto a preservação da democracia confirma os piores esteriótipos sobre a política externa americana, e se afasta das promessas de Obama em deixar para trás os fantasmas desse relacionamento.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Nação, Território e Conflitos



Nunca antes na história democrática deste continente houve tantos conflitos em torno de recursos naturais e controle de território. Na mesma semana tivemos a eclosão de mais um ciclo de rusgas entre Colômbia e Venezuela, e outra rodada de embates entre Chile e Peru. Além disso, persiste a disputa entre Argentina e Uruguai em torno do uso das águas do rio que divide os dois países. Todas estas questões extrapolaram os canais convencionais de diálogo e negociação bilaterais e com frequencia resultaram na mediação de instituições internacionais ou terceiros países.

É um comportamento político discrepante das expectativas das teorias de relações internacionais. Elas nos dizem que a conjugação de processos de integração regional com a democratização dos países da América Latina deveriam ter levado a um cenário mais calmo e estável. De fato, isso foi o que aconteceu nos anos iniciais do retorno da democracia. Por exemplo, a ditadura militar da Argentina quase foi à guerra contra o regime autoritário do Chile, e manteve um tenso conflito com o do Brasil, tentando impedir a construção da usina de Itaipu. As mudanças políticas no Cone Sul provocaram a resolução dessas questões e um grau bastante elevado de entendimento entre os três países, inclusive em áreas extremamente sensíveis como a energia nuclear, e na aprovação pelo povo argentino, em plebiscito, de um acordo com o governo chileno de Pinochet que resultou em perda territorial para o país.

Os raros conflitos territoriais da década de 1990 pareciam confirmar a regra da “paz democrática”, como foi o caso da Guerra do Cenepa entre Peru e Equador, que envolveu o regime autoritário do peruano Alberto Fujimori. Democracias não fazem guerras entre si, prega a teoria, e o bom senso e a liberdade de expressão terminam por levar a compromissos nos quais cada lado cede uma parte.

O que houve na década de 2000 para reverter essa tendência progressista e trazer novamente à agenda pública ataques de nacionalismo grosseiro e estridente, que pareciam enterrados com as ditaduras militares do continente? A meu ver, é uma mistura de causas que envolvem transformações na economia internacional e no jogo de conflitos doméstico.



Do ponto de vista global, a ascensão de uma China faminta pelas commodities latino-americanas deu novo valor aos recursos naturais do continente, aumentando também a atratividade do prêmio para quem os controla. Passou a ser interessante, por exemplo, que Chile e Peru disputem os limites marítimos de uma área rica em minérios e pesca, e que o Uruguai invista pesadamente na produção de celulose, mesmo diante da preocupação da Argentina com o impacto ambiental e a perda do turismo.

Na perspectiva do conflito doméstico, os anos recentes foram marcados por polarização política, sobretudo nos países andinos e pela ascensão de novos movimentos de esquerda que não usam mais a linguagem tradicional da luta entre classes sociais, recorrendo a estratégias de retórica e mobilização que se valem de categorias mais abrangentes como “nação” e “povo”, construídas em oposição a inimigos externos (sobretudo os Estados Unidos, mas também Colômbia ou Chile), ideologias (“neoliberalismo”, “imperialismo”) ou às elites nacionais. Em grande medida essas mudanças refletem transformações na estrutura econômica: não faz mais sentido falar na organização do proletariado em países onde a maioria dos trabalhadores pobres migrou para o setor informal, em quadro de extrema precarização do emprego.

Nada mobiliza mais uma nação ou povo do que a identificação comum contra um inimigo externo e a causa da defesa do território nacional tem sido bastante adotada por Hugo Chávez em suas diatribes contra a Colômbia, os Estados Unidos e no uso da antiga disputa territorial com a Guiana. Se essa estridência nacionalista é compatível com a preservação da paz e da democracia na região, só o tempo dirá, mas os exemplos históricos não nos autorizam otimismo.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Mundo se Despedaça



Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.


W.B. Yeats


O romance Things Fall Apart, do nigeriano Chinua Achebe, foi publicado em 1958 e é o marco do nascimento da moderna literatura africana. Contemporâneo às primeiras lutas de independência do continente, narra de maneira magistral o esfacelamento da sociedade tradicional da região diante da chegada dos colonizadores britânicos. Em boa hora a Companhia das Letras lança nova tradução brasileira, “O Mundo se Despedaça”, pois o livro há muito estava esgotado no país. O livro vem com breve mas esclarecedora introdução do diplomata Alberto da Costa e Silva, que foi embaixador do Brasil na Nigéria e é um dos mais importantes estudiosos nacionais sobre a África.

O romance é ambientado em duas aldeias do povo Ibo, no território que atualmente é o Sudeste da Nigéria. O protagonista é Okonkwo, um homem corajoso e trabalhador que conquistou o respeito de sua comunidade por sua bravura na guerra e dedicação na agricultura. Mas é um herói trágico: pois suas muitas qualidades convivem com o desprezo que sente pelo pai, já falecido, que era preguiçoso e incompetente, motivo de piada para parentes e vizinhos. Na ânsia de sempre provar que é diferente, Okonkwo se torna duro e amargo mesmo com relação àqueles que ama. Essas características o levarão a uma série de conflitos familiares, de sérias conseqüências para os Ibo.

O que torna Okonkwo explosivo é o momento delicado em que vive, quando os britânicos começam a se instalar em definitivo no interior da Nigéria. Até então, os Ibo tinham acesso às mercadorias trazidas pelos europeus, mas não haviam entrado em contato direto com os brancos, e até duvidavam de sua existência. Aos poucos, os britânicos chegam. Os missionários aparecem, e a mensagem igualitária do cristianismo atrai os humilhados e ofendidos da sociedade Ibo, todos aqueles desprezados pelo rigoroso código de honra local. O novo Deus entra em conflito com a antiga religião, e logo chegam juízes e soldados para mediar as disputas. Okonkwo tenta organizar uma revolta, apenas para descobrir que os britânicos haviam cortado as fibras que mantinham a sociedade Ibo unida, explorando habilmente suas divisões.

Achebe é um filho dos dois mundos, seus pais eram professores numa escola missionária e ele recebeu a melhor educação disponível na África colonial, inclusive estudando na universidade que os britânicos criaram para educar a futura elite nigeriana. Ele escreve em inglês, a língua do colonizador, e retira o título de seu livro de um poeta irlandês. Ao mesmo tempo, narra com maestria os costumes Ibo, que aos brasileiros soam familiares – muitos deles foram trazidos como escravos ao país, e com eles vieram o azeite de dendê e o som do agogô, muito mencionados no romance.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A Decolagem do Brasil



A capa da Economist desta semana é a “decolagem brasileira”. Para a prestigiada revista inglesa, o Brasil se destacou como o mais dinâmico dos BRICs, por conjugar democracia, estabilidade política e crescimento econômico, sobretudo pelo modo como se recuperou rapidamente da crise internacionais. A reportagem cita ainda a ascensão das multinacionais brasileiras e a conquista da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Alerta, no entanto, para alguns problemas, como a violência. É uma matéria extremamente elogiosa, mas que, curiosamente, deixa de lado o que a meu ver são os principais obstáculos para o desenvolvimento brasileiro: a péssima qualidade da educação, a infraestrutura deficiente e as falhas em serviços públicos essenciais, como saneamento e saúde.

Na primeira metade da década de 2000, o Brasil teve um crescimento econômico apenas mediano, e além disso muito volátil. Entre 2006 e 2008 o país acelerou essa taxa, graças a uma série de fatores positivos: a demanda chinesa por commodities (as exportações brasileiras mais do que triplicaram nestes anos), a ascensão de uma nova classe média, as políticas públicas de valorização do salário mínimo e de transferência de renda etc. Tudo isso é muito bom, e rompeu-se o ciclo de marasmo que paralisava expectativas desde a crise da dívida externa, em 1982.

Mas não é suficiente para promover o desenvolvimento, isto é, a transformação estrutural da economia brasileira para tornar o país competitivo nos serviços avançados que são o setor mundial mais dinâmico. Áreas como tecnologia da informação, biotecnologia, pesquisa científica avançada etc. Para dar esse salto, o país precisa de uma população extremamente qualificada do ponto de vista educacional. Ora, nas avaliações mais respeitadas, como a PISA, o Brasil ocupa os últimos lugares entre as nações examinadas. E isso apesar de investir relativamente bem no tema – 5% do PIB. Poucos brasileiros têm acesso à educação nos níveis mais elevados. Menos de 10% cursam universidade, e em torno de 30% completam o ensino médio.

O resultado é que o Brasil já sofre do déficit de profissionais qualificados, pois a economia cresce acima das possibilidades do sistema educacional em fornecer mão-de-obra bem preparada. Em 2008, o IPEA calculou que o país precisa de 90 mil desses profissionais, em áreas como engenharia civil, agronegócio, tecnologia da informação e mercado financeiro. A Confederação Nacional da Indústria estima que mais da metade das empresas enfrentam esse problema. E isso com cerca de 9 milhões de brasileiros desempregados...

Os problemas na saúde pública e na infraestrutura brasileira são tão conhecidos que dispensam explicações demoradas, mas vale destacar a questão do saneamento básico. Recentemente examinei os dados do IBGE para o tema. São assustadores. Mais da metade da população não conta com sistema de esgoto, e apenas 20% dos resíduos são tratados antes de serem lançados nos rios ou no mar. Isso traz enormes problemas de saúde, é claro.

Em suma, o Brasil melhorou, que ótimo. Mas vamos vestir as sandálias da humildade e manter sob controle nossas ambições de grande potência: crianças que saiam da escola sabendo ler e escrever, e que tenham vaso sanitário em casa, são muito mais importantes do que.... Bem, do que qualquer outra coisa.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A Queda do Muro de Berlim



Nesta semana se comemoram os 20 anos da queda do Muro de Berlim - acima, a foto da celebração na cidade. Na narrativa mais difundida, é o evento que marca o colapso do comunismo (ou do socialismo real, para quem prefere o termo) e a consolidação da democracia como principal regime político do mundo. Minha avaliação é mais sombria – o fim do Muro foi um passo importantíssimo nesse sentido, mas sistemas e ideologias autoritários continuam fortes em diversas partes do planeta.

Na segunda tive um exemplo concreto disso. Fui a um debate sobre a queda do Muro, entre meu amigo Matias Spektor e o jornalista Pedro Bial. A ótima troca de idéias foi bruscamente interrompida por um velho comunista, que agrediu Bial e a platéia com xingamentos e gritos, lamentando o fim da União Soviética, acusando Gorbatchev de traidor subornado pelo Prêmio Nobel e por aí vai. Vários dos meus alunos estavam presentes e disse a eles que o espetáculo valia como uma aula de história do presente: para muitas pessoas, o Muro ainda não caiu.

Os palestrantes mencionaram a importância da imprensa nos acontecimentos e de como a comunicação mais veloz exige outro tipo de resposta dos líderes políticos. Comentou-se, claro, a recente mobilização pró-democracia no Irã. Tudo isso é verdadeiro e importante, mas enquanto conversávamos, Yoani Sanchéz era presa e espancada pela polícia cubana, em represália ao sucesso de seu blog que denuncia os desmandos do regime, e os golpistas em Honduras descumpriam o acordo com Zelaya em mais um gesto truculento.

Na Alemanha, os resultados da unificação foram bastante satisfatórios, levando em conta o tamanho dos desafios enfrentados pelo país. As condições de vida e a renda per capita no Leste continuam inferiores aos do Ocidente, mas esse foi sempre o padrão histórico, mesmo antes da divisão ao fim da Segunda Guerra Mundial. Berlim se tornou novamente uma capital cosmopolita e uma das cidades mais dinâmicas e interessantes da Europa. A Alemanha unificada não virou uma potência nacionalista ressurgente – como temiam franceses, britânicos e muitos alemães – e aprofundou seus vínculos com os vizinhos, por meio da criação da União Européia e da adoção do euro, a moeda comum do continente.



Cerca de 15% dos alemães desejam a volta do Muro, percentual curiosamente próximo à votação recebida pelos antigos políticos comunistas. O país é governado de forma habilidosa por uma chanceler conservadora oriunda do Leste e embora persistam problemas com movimentos racistas e xenófobos, eles são menos graves do que aqueles enfrentados por outras nações européias, como Áustria, França e Itália. A vida cultural alemã vive um momento de grande dinamismo, com realizações notáveis no cinema, literatura e teatro, em geral obras artísticas voltadas para o acerto de contas com o passado nacional.

Os 20 anos da queda do Muro e dos extraordinários acontecimentos de 1989 renderam a publicação de diversos livros. Se você quiser conhecer um pouco do debate, recomendo a excelente resenha sobre o tema, escrita pelo historiador Timothy Garton Ash. Seu livro “Nós, o Povo”, continua a ser o melhor sobre as revoluções na Europa Oriental. Para os eventos na URSS, minha dica é “A Queda do Império Soviético” (Down with Big Brother, no original), do jornalista Michael Dobbs. Mas se você quiser ler apenas uma obra, sugiro: “O Muro de Berlim: um mundo dividido, 1961-1989”, do historiador Frederick Taylor, que consegue fazer uma excelente ponte entre os debates sobre a Grande História e as trajetórias cotidianas cortadas dramaticamente pela Guerra Fria.

É com um episódio narrado no livro que encerro este texto. Todos conhecem a imagem do soldado alemão oriental pulando o Muro (quando a barreira era, na realidade, apenas uma cerca de arame farpado) para o Ocidente - foto que reproduzo acima. O rapaz se chamava Conrad Schumann e reconstruiu sua vida na indústria automobilística, casando-se e formando família. Após a queda do Muro, retornou em visitas ao Leste e descobriu que os amigos de juventude o consideravam um traidor, e recusavam seu desejo de reconciliação. A carga foi demais para Conrad, que cometeu suicídio. Que seu destino trágico nos leve a refletir sobre o muito que precisamos avançar para concretizar as promessas de liberdade e realização contidas no fim do Muro.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Um Casaco de General



Reli por estes dias o excelente “Meu Casaco de General: 500 dias no front da segurança pública no Rio de Janeiro”, do cientista político Luiz Eduardo Soares. O livro é um relato de sua experiência como subsecretário de segurança no governo de Anthony Garotinho. Quando a obra foi lançada, em 2000, eu era um repórter recém-formado. Quase uma década depois, cursei mestrado e doutorado no Iuperj (onde Soares lecionava) e trabalhei em ONGs ligadas a seu trabalho. Estive com ele diversas vezes e gostei ainda mais do livro nesta segunda leitura.

Soares era um professor universitário que havia militado no Partido Comunista Brasileiro durante a ditadura militar e que na redemocratização passou a pesquisar o tema da segurança pública. Garotinho, um radialista carismático que foi eleito prefeito de Campos quando a cidade começou a receber uma enxurrada de royalties do petróleo. Isso o catapultou para o governo estadual, à frente de uma coalizão de partidos de esquerda. Ainda candidato, convidou Soares para elaborar o programa sobre segurança e os dois até assinaram juntos um livro a respeito do tema.

Os problemas começaram antes da posse. Garotinho era obcecado em ser visto como forte diante do crime, e nomeou um general do Exército para o cargo de secretário de segurança, que se cercou de oficiais militares como auxiliares. Soares ficou como o subsecretário encarregado dos projetos de cidadania e de diálogo com a comunidade. Um estranho no ninho, como ele deixa claro pelos relatos sobre o tenso convívio no órgão.



O governo queria usar Soares como um verniz social, de respeitabilidade intelectual, enquanto continuava tudo como antes na área de segurança. Mas os projetos de Soares começaram a conquistar simpatia da opinião pública, enquanto seus superiores se envolviam em uma trapalhada após a outra. As principais iniciativas lançadas por Soares foram a “Delegacia Legal”, remodelamento e modernização dessas instituições, e a criação do Instituto de Segurança Pública, que deveria ser o embrião para a formação do que seria na práticas uma nova polícia. Também desenvolveu projetos sociais nas favelas e estabeleceu uma excelente relação com a imprensa.

As reformas de Soares despertaram ojeriza e ele recebeu ameaças de morte. No livro, os crimes cometidos por policiais ganham mais destaque do aqueles perpetrados pelos bandidos comuns, sem farda ou distintivo. Os relatos de assassinatos, torturas, corrupção e estupros cometidos pelos homens de farda ou de distintivo são de arrepiar, mesmo para quem se acostumou à barbárie cotidiana do Rio de Janeiro.

Afinal, Soares acabou exonerado pelo governador, numa entrevista ao vivo para a TV Globo. De lá para cá, foi candidato derrotado a vice-governador do Rio e exerceu cargos de secretário em governos do PT – por alguns meses com o presidente Lula, por alguns anos na cidade fluminense de Nova Iguaçu. Talvez o mais importante tenha sido uma série de livros que escreveu com parceiros de fora da academia, como “Elite da Tropa”, com os policiais militares Rodrigo Pimentel e André Batista, e “Cabeça de Porco”, com o rapper MV Bill e o produtor musical Celso Athayde. Sua antiga equipe no governo estadual foi para a Universidade Candido Mendes, para o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.

Vejo algumas de suas idéias influenciarem as atuais políticas públicas de segurança, mas de forma bastante diluída. Ele merece mais espaço.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Mercosul Hoje



O Valor publicou uma série de pequenas reportagens nesta semana sobre as negociações entre o Mercosul e a União Européia. Os textos, do excelente repórter Assis Moreira, chamam a atenção para propostas de alterar as regras do bloco, para torná-lo mais flexível e permitir ao Brasil mais espaço para fechar acordos comerciais internacionais.

O Mercosul é uma união aduaneira, isto é, os países que são membros plenos do bloco (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) liberalizam o comércio entre si e têm uma Tarifa Externa Comum (TEC), aplicada a produtos importados de outras nações. A TEC varia entre 0% e 20%, com valor médio de 11,52%. É alta para os padrões internacionais. Ela foi negociada na primeira metade da década de 1990, quando havia no Brasil uma série de receios tanto dos empresários quanto da burocracia em abrir demais a economia. A ênfase é nos negociadores brasileiros, porque à época os parceiros do bloco queriam uma TEC mais baixa. Eles não tinham, por exemplo, um setor de bens de capital pouco competitivo para proteger. Mas aceitaram a barganha em troca do acesso facilitado ao imenso mercado consumidor do Brasil.

Contudo, o Mercosul nunca conseguiu se consolidar inteiramente. Diversos setores importantes permanecem fora da liberalização comercial, como automóveis e açúcar, e a união aduaneira tampouco foi implementada de forma completa, em função da persistência do problema da dupla cobrança da TEC, para produtos que precisam atravessar fronteiras dentro do bloco. Outro obstáculo sério é a ausência de coordenação macroeconômica. Cada país faz o que quer, por exemplo, em sua política cambial, o que com freqüência acarreta desequilíbrios no comércio.

Nos momentos de decepção com o Mercosul, volta e meia surgem propostas de transformá-lo simplesmente numa área de livre-comércio, à semelhança do Nafta. Esse é um modelo mais simples de integração, que em grande medida diminui a relevância política do regionalismo. O projeto atual é reduzir a abrangência da TEC para cobrir somente o núcleo de produtos mais importantes, desse modo permitindo maior flexibilidade nas negociações, pois cada membro do Mercosul teria liberdade para definir suas tarifas para uma ampla gama de mercadorias. Ao mesmo tempo, se manteria um certo caráter estratégico do bloco, ainda que em grau bem menor do que pensaram seus formuladores em 1991.

A proposta reflete os novos rumos do comércio exterior brasileiro. O Mercosul chegou a representar o destino de cerca de 20% das exportações do país, às vésperas da crise de fins da década de 1990. Hoje, não é nem a metade disso. Em números absolutos, o volume de mercadorias aumentou, mas houve decréscimos em termos relativos porque o intercâmbio com o resto do mundo, em particular com a China, cresceu muito mais rápido. Em quase 20 anos de existência, o Mercosul conseguiu assinar apenas um acordo de livre comércio com um país de fora da América do Sul (com Israel, ainda não entrou em vigor).

O pilar do Mercosul sempre foi o relacionamento entre Argentina e Brasil. Desde a crise de 1998-2002, o governo argentino tem recorrido a uma série de barreiras ao comércio dentro do bloco, como tarifas mais altas do que a TEC, licenças não-automáticas de importação e até a negociação de um mecanismo bilateral de salvaguardas que enfureceu os outros membros do Mercosul. As autoridades brasileiras com freqüência falam na necessidade de “paciência estratégica”, isto é, aceitar custos econômicos em nome da estabilidade política com o importante vizinho. Os últimos meses foram bastante difíceis nesse aspecto e me parece que os negociadores já começam a se preocupar com as adaptações exigidas pela iminente entrada da Venezuela no bloco.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Graciliano Ramos, gestor público



Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejavam administrar. Cada pedaço do Município tinha um administrador particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.

Tinha ouvido falar bastante do célebre relatório que Graciliano Ramos enviou ao governador de Alagoas, mas só há poucos dias li o texto completo. Ele foi escrito no fim da década de 1920, quando Graciliano era prefeito da pequena cidade de Palmeira dos Índios e ainda não havia publicado nenhum trabalho de ficção. Contudo, o relatório chamou a atenção para seu nome e logo ele despontou como um dos principais nomes do modernismo brasileiro.

Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensava uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administrava melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.

Os debates sobre administração pública no Brasil são muito sofisticados do ponto de vista teórico e mostram atualização sobre as correntes mais atualizadas no exterior. O problema é que com frequencia essas discussões estão muito descoladas da realidade brasileira. Em diversos casos, a situação não é tão diferente da que Graciliano enfrentou: a tentativa de construir uma administração profissional num quadro dominado por patrimonialismo e recursos escassos.

Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restaram poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem com suas obrigações e, sobretudo, não se enganam nas contas. Devo muito a eles.

Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.


Graciliano escreveu um pouco antes do início de uma série de iniciativas implementadas pelo presidente Getúlio Vargas para modernizar o serviço público. Ao longo da década de 1930, foram feitas reformas importantes, em particular pela criação do DASP, uma espécie de super-ministério encarregado da reorganização do Estado. Durante o período ditatorial, o DASP teve braços nos governos estaduais (então chamados de interventorias). A redemocratização ocorrida em 1946 não soube bem o que fazer com essa herança, que acabou minguando. Mas os técnicos formados nessa época foram fundamentais para os esforços do nacional desenvolvimentismo das décadas de 1950 a 1970.

Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca.

Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome.

Não me fizeram falta.

Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebescito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade.


Graciliano cansou rápido da gestão pública e foi ser escritor e jornalista para o resto de sua existência. Se vivo fosse, provavelmente se espantaria em como os viventes desta terra ainda precisam avançar tanto no sentido de concretizar uma administração governamental profissional.

A biblioteca da Escola Nacional de Administração Pública se chama Graciliano Ramos. É uma bela biblioteca. Passei momentos muito agradáveis nela, quando lá estudei.

Talvez o Velho Graça gostasse da homenagem. Ou talvez matutasse se não haveria outro gestor, quiçá com mais anos de experiência, para receber a honraria.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Acordo em Honduras



Sob pressão dos Estados Unidos, o governo golpista de Honduras fechou um acordo com o presidente deposto, Manuel Zelaya, pelo qual a Suprema Corte e o Congresso votarão nesta semana para decidir seu retorno ao poder. Se isso acontecer, será formado um governo de coalizão para cumprir os três meses que restam do mandato de Zelaya, e montada uma comissão para investigar os crimes políticos cometidos desde o golpe de junho. É bom desfecho para a crise, pois reestabelece a democracia e veta as pretensões ilegais de alterar a Constituição.

Os Estados Unidos condenaram o golpe desde o início, mas demoraram a se envolver ativamente na mediação da crise. A meu ver, as indefinições se deram pelos fortes vínculos entre Washington e a elite hondurenha, visto que esse país foi a principal base americana contra as revoluções e guerrilhas da América Central na década de 1980. Sem a firme pressão internacional, em particular a dos países latino-americanos, os EUA possivelmente teriam assistido passivamente à deposição de Zelaya.

Contudo, a ação diplomática dos países da América Latina não foi suficiente para resolver a crise hondurenha, foi preciso o engajamento dos Estados Unidos para que isso ocorresse. Não é surpresa, visto que Honduras é extremamente dependente do mercado americano para seu comércio exterior. Logo depois da assinatura do acordo, Washington suspendeu as sanções contra Honduras.

É a primeira negociação diplomática bem-sucedida do governo Obama com relação à América Latina. Hoje, o continente representa para o presidente americano muito mais riscos do que oportunidades. A agenda se limita basicamente a problemas como combate ao tráfico de drogas e os debates sobre imigração ilegal.

Que lição a política externa brasileira pode tirar da crise hondurenha? A demonstração dos limites da projeção de poder do país. Nas crises que envolvem nações vizinhas, como Bolívia, Paraguai, Venezuela ou Colômbia, o Brasil tem ampla capacidade de influir no resultado, e os Estados Unidos têm deixado os brasileiros no primeiro plano de exercer o papel de estabilizar uma região turbulenta.

Contudo, não é o mesmo na América Central. Na ausência de vínculos econômicos e políticos com as elites locais, faltam à diplomacia brasileira os instrumentos de pressão sobre essas nações. A decisão de transformar a embaixada em Tegucigalpa num quartel partidário para Zelaya contrariou as melhores tradições da política externa e constituiu uma aposta extremamente arriscada. O desfecho da crise foi muito bom diante das circunstâncias, mas o que as autoridades brasileiras fariam se um grupo de homens armados tivesse invadido a representação diplomática do país e assassinado Zelaya?

A temeridade da diplomacia brasileira foi ainda mais grave, porque era desnecessária. A posição inicial do país foi corretíssima: condenar o golpe e negociar o retorno de Zelaya por meio do fórum adequado: a OEA e sua Carta Democrática.