sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Onde os Velhos Não Têm Vez



Atirador, quando compra vingança alheia
Tem que ter veneno na veia
Tem que saber andar num chão de navalha
Atirador tarda mas não falha
Atirador não tem dó quando atira
Atirador é o dublê da ira
Ele só sabe o nome, só viu o retrato
Alma sebosa é mais barato
.

Lenine, O Atirador

"No Country for Old Men", dos irmãos Coen, talvez tenha sido mesmo a melhor escolha para campeão do Oscar 2008, mas não estou entre aqueles que o consideram uma obra-prima. Em linhas gerais, acho que é um excelente faroeste-noir, mas que muitas vezes sucumbe à violência gratuita e niilista que supostamente critica.

Alfred Hitchcock cunhou a expressão “McGuffin” para definir o elemento misterioso que impulsiona a trama, mas que afora isso tem pouco valor em si mesmo. O McGuffin de No Country for Old Men é uma mala com US$2 milhões encontrada por um homem no cenário de uma chacina entre duas quadrilhas de criminosos, no meio do deserto do Texas. Ele passa o resto do filme sendo perseguido por um matador de aluguel (Javier Bardem, excelente) que quer reavê-la. Mas o bangue-bangue é mero pretexto para o que realmente importa: a reflexão sobre a violência sem sentido que tomou conta dos Estados Unidos.

Nesse sentido, o personagem-chave do filme não é o assassino interpretado por Bardem, mas o idoso e sábio xerife vivido por Tommy Lee Jones. Último de uma dinastia de homens da lei, ele se confessa impotente diante dos crimes cada vez mais brutais e despropositados que passou a testemunhar. Não consegue mais compreender o mundo em que vive. Por isso o título do filme em português deveria ser “Onde os velhos não têm vez”, como aliás foi o caso com o romance em que está baseado. Só Deus sabe porque os tradutores preferiram “Onde os fracos não têm vez”, e Ele não me explicou a razão.



O personagem de Bardem é uma espécie de Anjo da Morte, com um código de conduta bastante próprio, e critérios para matar ou deixar viver que às vezes dependem da virada aleatória de uma moeda. Contudo, acho que os irmãos Coen o trataram com fascinação respeitosa. Ele é o personagem mais esperto de todo o filme e não duvido que muitos espectadores tenham torcido para o sucesso de sua missão.

O filme dividiu opiniões entre meus amigos. Entre os que não gostaram, a principal razão foi dúvidas com relação ao modo como a trama termina. Não me pareceu que ela fosse confusa, mas de fato algumas cenas se prestam a várias interpretações. Ainda assim, o essencial não é o destino da mala de dinheiro, puro McGuffin. O destaque da história é a lamentação por um mundo desencantado e seco como a poeira do deserto.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A Polêmica sobre as Políticas Sociais de Chávez


A Foreign Affairs – a mais importante revista mundial de relações internacionais – traz em sua edição deste bimestre o artigo “An Empty Revolution: The Unfulfilled Promises of Hugo Chávez”, do economista venezuelano Francisco Rodríguez. O título dá o tom do texto, crítica feroz das políticas sociais de Chávez, no tom polarizado de sempre. Inusitado é o posto que o autor ocupou: chefiou o setor econômico do parlamento da Venezuela entre 2000 e 2004. Afirma que tinha opinião inicial positiva sobre o presidente, mas que mudou de idéia por suas experiências desagradáveis com o governo.

O centro do argumento de Rodríguez é que as políticas sociais de Chávez não teriam reduzido a pobreza na Venezuela, e que portanto o projeto de transformação do presidente seria vazio. Pena que o autor tenha optado por uma linha “tudo ou nada”, porque seu texto traz dados importantes para o debate, embora tenha optado por ignorar uma série de fatos fundamentais para entender porque tais políticas sociais (com todas as suas falhas) foram bem-sucedidas em construir ampla base de apoio para Chávez.

A agenda social do presidente venezuelano consiste numa série de ações que batizou de “missões” e que cobrem áreas como atendimento médico para comunidades pobres, bolsas de estudo para completar o ensino médio e a universidade, alimentos da cesta básica a preços subsidiados pelo governo e uma campanha para eliminar o analfabetismo. Reformas sociais moderadas, aplicadas por governos de diferentes matizes ideológicos. Em termos gerais, podem ser classificadas sob o rótulo de “políticas sociais focalizadas”, voltadas para a parcela mais pobre da população, que disseminaram-se na América Latina a partir das experiências mexicanas da década de 1980.

Embora pareça lógico priorizar a população mais pobre, muitos especialistas discordam da abordagem e preconizam o que se chama no jargão, de “políticas universais”. A crítica é centrada na percepção de que os serviços públicos dedicados exclusivamente aos pobres acabam tendo qualidade inferior aos que beneficiam também a classe média e a elite, pois o poder de pressão e fiscalização destes grupos é maior. No caso da Venezuela, há objeções ao modo clientelista e partidário através do qual Chávez canaliza esses benefícios. Os dados oficiais sobre o impacto das ações governamentais também são questionados e é quase certo de que estejam inflados.

Contudo, o que críticos como Rodríguez ignoram é o peso do contexto social da Venezuela, marcado por enorme desigualdade social e violência política contra os pobres, como na repressão policial e militar à rebelião das favelas de Caracas, o "Caracazo", de 1989. O presidente é hábil em explorar o sentimento de “nós contra eles” e se posicionar como um campeão da parcela mais pobre da população. Há inclusive forte componente racial na história e os opositores de Chávez com freqüência se referem a ele em termos pejorativos de sua ascendência indígena/negra, ainda que para os padrões brasileiros seja o típico moreno, tão comum em nosso país.

Quando estive na Venezuela, conversei com grupos de jovens locais que eram tão dedicados ao presidente que chegavam a chorar quando mencionavam seu nome. Colegas do Nós do Morro me contaram experiências semelhantes com a população das favelas de Caracas. Diziam-me que as casas de alvenaria que eu via nos morros haviam sido construídas ao longo do governo Chávez, porque antes as pessoas não queriam investir na melhora de suas moradias, pois tinham medo de ser despejadas pela polícia. Também falei com um rapaz que me narrou, emocionado, como sua mãe tinha sido operada de catarata em Cuba, graças aos acordos de cooperação assinados pelo presidente.

É evidente que para essas pessoas Chávez teve um impacto transformador, talvez não tanto em termos de aumento de renda, mas no sentimento de conquistas sociais, de novas possibilidades de vida, e mesmo de mobilização política e de valorização de sua identidade de classe. As massas que desceram dos morros e reverteram o golpe de 2002 não foram vistas em momentos parecidos da história latino-americana, como a derrubada de Vargas (1945), Perón (1955) ou João Goulart (1964).

Rodríguez defende a tese que a frustração com as políticas de Chávez foi a responsável pela derrota no referendo sobre a reforma constitucional. Não creio. Me parece que questões como a rejeição do autoritarismo crescente foram muito mais relevantes.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

China e América Latina



No congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos em setembro passado preenchi uma ficha de cadastro no estande do Woodrow Wilson Center for International Scholars. Já acompanhava o trabalho do centro desde que fui aluno do diretor de seu programa para a América Latina, e de lá para cá li material de excelente qualidade produzido pela instituição. Há poucos dias me chegou pelo correio sua mais recente publicação, o estudo “Enter the Dragon: China´s presence in Latin America”, coletânea de artigos coordenada por Cynthia Arnson, Mark Mohr, Riordan Roett e Jessica Varat.

A relevância do tema é grande. O comércio entre a China e o continente cresce em média 24% anuais desde 1990. A América Latina exporta para os chineses principalmente soja, minérios e petróleo. Importa componentes eletrônicos, máquinas e têxteis. A China já é o segundo ou terceiro maior parceiro comercial de vários países do continente, inclusive o Brasil (está atrás da União Européia e dos EUA, e em vias de ultrapassar a Argentina).

Pela pauta exportadora-importadora enunciada acima é fácil entender porque a China desperta diversos receios nos países mais industrializados do continente. A indústria têxtil, de calçados e de brinquedos da Argentina e do Brasil perde muito com a competição dos baratíssimos produtos asiáticos. O impacto mais forte é sentido no México, cujas maquiladoras enfrentam em desvantagem de condições as fábricas chinesas que exportam para os EUA.

Dito de outra maneira, o interesse da China na América Latina é que o continente forneça alimentos, combustível e matéria-prima para impulsionar seu processo de desenvolvimento econômico e industrialização. Não é um padrão tão diverso daquele que a região experimentou com a Inglaterra e os EUA nos dois séculos anteriores.

Há alguns anos a China anunciou de maneira bombástica que iria investir US$100 bilhões na América Latina, principalmente em infra-estrutura – portos e rodovias que diminuam os custos de transportar os produtos daqui até a Ásia. Tal promessa não se concretizou. A China tem cerca de 16% do total de seus investimentos externos na América Latina, mas 90% estão em paraísos fiscais do caribe, como as Ilhas Caimã. Talvez isso mude no futuro, mas por enquanto é um assunto que provoca mais desapontamento do que entusiasmo.

Um ponto curioso é a importância da disputa entre a República Popular da China e Taiwan para as relações com a América Latina. Metade dos Estados que reconhecem Taiwan como a China legítima estão na América Central e Pequim tem conduzido uma ofensiva para fazer com que o quadro mude. De fato, no congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos me impressionou a quantidade de acadêmicos de Taiwan presentes ao encontro. Creio que seu futuro é sombrio, porque à medida que se intensficam os laços comerciais do continente com Pequim, a balança política pende inexoravelmente para esse lado.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Energia, o gás da integração


“No mundo contemporâneo, só as regiões se desenvolvem. Continentes integram-se através de processos político-econômicos como na Europa. Conjuntos de países articulam-se em redes de cadeias produtivas, como o Japão e os “gansos” do leste da Ásia. Estados de porte colossal, com milhões de quilômetros quadrados, como EUA, China e Índia, valem-se desses recursos para levar adiante seus projetos de crescimento. A América do Sul precisa seguir a mesma direção para superar o impasse que seu modelo de desenvolvimento enfrenta desde os anos 80.”

Esse é o primeiro parágrafo do meu ensaio “Desenvolvimento como Integração”, premiado pelo Itamaraty em 2005. O tema da energia ilustra de maneira clara o ponto que quero destacar: no atual estágio da economia mundial, para prosperar os países precisam pensar numa escala mais ampla do que a dos mercados e recursos naturais nacionais. Nos últimos dias, a questão esteve nas manchetes por conta das negociações da Argentina, da Bolívia e do Brasil com relação ao abastecimento energético – por gás, energia nuclear e hidrelétrica.

A Bolívia exporta muito gás para o Brasil e algo para a Argentina. O país dos Kirchner enfrenta séria crise de abastecimento, e vários problemas no relacionamento entre o governo e as empresas do setor energético, que se recusam a rever contratos para lá de vantajosos assinados na era Menem. Na queda de braço, os investimentos escassearam e a Argentina, apesar de rica em gás, teve que tomar medidas controversas, como violar tratados internacionais e praticamente cortar o fornecimento ao Chile, que não gostou nada da história.

Os bolivianos propuseram ao Brasil romper o contrato e desviar para a Argentina parte do gás exportado para cá. A Casa Rosada acrescentou que uma negativa por parte do governo brasileiro implicaria na necessidade de medidas de racionamento contra o maior consumidor de energia argentina – as instalações da Petrobras no país. O Brasil temia que a quebra contratual estabelecesse um precedente perigoso, e fincou pé nessa recusa, embora tenha oferecido cooperar com a Argentina em outras áreas.

O acordo mais interessante é a criação de empresa binacional dedicada ao enriquecimento de urânio, que será fundamental na construção do submarino nuclear brasileiro. É excelente decisão que retoma o espírito dos célebres tratados atômicos dos anos 1980. A perícia técnica dos cientistas argentinos é muito conhecida e certamente ajudará muito o projeto militar. Na realidade, um ex-dirigente diplomático do governo Menem certa vez se queixou comigo de que havia proposto algo semelhante a Fernando Henrique Cardoso, mas sua oferta fora rechaçada. Pudera: o Brasil era muito cauteloso diante das “relações carnais” existentes entre Argentina e EUA naquela época.

Além da retomada nuclear, o Brasil também anunciou projetos para a construção de quatro hidrelétricas binacionais: duas com a Bolívia, duas com a Argentina.

Como diz mestra Maria Regina e o amigo fraterno Marcelo Coutinho, entramos em novo período da integração sul-americana. Ficou para trás o “regionalismo aberto” dos anos 1990, baseado na abertura comercial, e começou a se concretizar um paradigma diferente, calcado na valorização da cooperação em infra-estrutura (energia, transportes, comunicação). A geografia, o local, ganharam importância.

De fato, a distribuição dos recursos energéticos na América do Sul é muito propensa à integração. As maiores reservas de gás e petróleo (Venezuela, Bolívia) complementam as necessidades das maiores economias (Brasil, Argentina, Chile) e há possibilidades interessantes também no Peru, com o gás de Camisea. A América Central já criou organismo regional para lidar com o tema da energia, talvez seja esse o caso num futuro nem tão distante para este continente.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Persepolis




Persepolis” é a adaptação para o cinema de uma história em quadrinhos autobiográfica escrita pela iraniana Marjane Satrapi, que conta sua infância e adolescência no contexto turbulento da queda da monarquia, dos anos iniciais da Revolução Islâmica e da guerra Irã-Iraque. É um excelente trabalho, que mistura humor, drama, tragédia, esperança e, acima de tudo, um forte senso de liberdade e de busca pessoal pelo que é correto.

A menina Marjane é a inquieta filha única de um casal de classe média cuja família possui muitos membros que são ativistas de esquerda e lutam contra a monarquia do xá Reza Pahlevi. Nos anos finais do reinado, a situação social no Irã se deteriora rapidamente, e a política entra com tudo na vida da pequena Marjane, que precisa aprender a lidar com a prisão de parentes e amigos, ou com a volta inesperada de personagens como o tio Arouche, um líder comunista que planeja substituir a monarquia por um regime semelhante ao que viu quando esteve exilado na URSS.

A renúncia do xá cria um breve clima de euforia, que logo é substituído pelo triunfo dos xiitas e uma mudança brusca no cotidiano, com a adoção da sharia, a lei islâmica, e perseguição ainda mais implacável aos opositores do regime e as privações e riscos causadas pela longa e sangrenta guerra contra o Iraque.



Marjane se torna uma adolescente rebelde, que tenta driblar a censura dos aiatolás contrabandeando discos do Abba ou do Iron Maiden. Mas a barra fica pesada e a família a despacha para um colégio em Viena. Na Europa, Marjane oscila entre o deslumbramento com o consumismo e a solidão, sentindo-se deslocada e sem lugar naquela sociedade, encontrando refúgio apenas entre outros outsiders, como anarquistas e punks. Após alguns casos amorosos mal-sucedidos, ela resolve retornar ao Irã. E descobre que também tornou-se estrangeira em seu próprio país, incapaz de adaptar-se à falta de liberdade.

O que torna Persepolis tão bom é a mistura dos dramas comuns à adolescência com o pano de fundo político da ascensão da revolução islâmica no Irã. O texto de Marjane é excelente, profundamente humano e sensível. Há personagens inesquecíveis na história, como os pais amorosos, o tio idealista e, sobretudo, a avó sábia e independente, que incentiva a neta a questionar sempre o que é correto e viver de maneira íntegra.

Marjane, a autora, deixou o Irã e foi morar na França, onde se tornou conhecida como artista plástica e ilustradora.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Bush na África


Ao longo desta semana George W. Bush visitou cinco países africanos (Benin, Tanzânia, Gana , Ruanda e Libéria) numa viagem para divulgar o programa anti-AIDS na África e no Caribe que é provavelmente sua mais bem-sucedida iniciativa de política externa.

O programa lançado por Bush reuniu cerca de US$19 bilhões para combater AIDS e malária (as duas doenças aparecem bastante associadas na África, com a tuberculose completando a trindade do mal). A estimativa é que cerca de um milhão e meio de pessoas tenham passado a receber remédios contra a AIDS e foram obtidos avanços muito significativos em áreas-chave como transmissão de mãe para filhos.

Um dos objetivos da viagem africana de Bush é conseguir do Congresso americano apoio para ampliar o programa para incríveis US$50 bilhões ao longo dos próximos cinco anos. Essa é uma tendência forte na política externa americana: a ajuda para os países africanos dobrou desde 2000.

As razões para o aumento dizem respeito à segurança e à economia. Uma série de líderes políticos e de acadêmicos têm chamado a atenção para os riscos que a epidemia de AIDS na África coloca para a estabilidade política do continente. Há temores generalizados de que esses problemas acabem afetando os países ricos, pelo terrorismo ou pela migração. O Conselho de Segurança da ONU realizou até uma sessão especial sobre a AIDS, para demonstrar internacionalmente o impacto da doença. A África também se tornou mais importante para os Estados Unidos em função da corrida contra a China pelo controle de seus recursos naturais, como petróleo e minérios.

O programa anti-AIDS de Bush foi construído como consenso bi-partidário, mas pagou um alto preço ao credo ideológico dos setores mais extremados do Partido Republicano. Os problemas se concentram em duas exigências para que os países africanos recebam a ajuda:

- Promoção de programas de abstinência sexual e de fidelidade conjugal
- Proibição de repasse de verbas a instituições que trabalhem com prostitutas

O primeiro item não é propriamente o comportamento sexual mais comum da humanidade. O segundo exclui um dos principais grupos de risco afetados pela doença. É um forte contraste com o excelente programa brasileiro de prevenção à DST/AIDS, exemplo de política pública formulada com participação social. Especialistas também apontam que a iniciativa de Bush pode ter efeitos contraproducentes perversos, como impulsionar a rejeição ao uso de preservativos.

Nesta jornada africana, Bush visitou países relativamente estáveis, com um bom histórico de democratização e de afastamento de tragédias passadas. O presidente americano foi criticado por não ir aos locais de crises humanitárias, como o Sudão, a República Democrática do Congo e o Quênia. Talvez por isso Bush tenha parecido tão pouco à vontade nas entrevistas de TV (sua performance na foto acima fica a cargo de cada leitor). Ou, quem sabe, esteja pensando no que acontecerá se o próximo presidente dos EUA for filho de um africano...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Passado Imperfeito



Toda idéia falsa termina em sangue, mas é sempre o sangue alheio.
Albert Camus

Tony Judt é um historiador inglês que leciona na Universidade de Nova York, e de quem tinha lido o bom Postwar, abrangente análise da Europa contemporânea. Seu novo livro é ainda melhor: “Passado Imperfeito: um olhar crítico sobre a intelectualidade francesa no pós-guerra” . Judt examina a batalha de idéias na França entre a libertação do jugo nazista (1944) e um momento chave da Guerra Fria, a invasão da Hungria pela União Soviética (1956).

O tema central do livro é a relação dos intelectuais franceses com o comunismo e seu duplo padrão de julgamento, ou mesmo o silêncio, diante dos crimes da URSS e de seus governos-satélites. O período examinado por Judt foi o auge da esquerda na política da França. A direita estava desacreditada por seu apoio a malfadada República de Vichy, o regime colaboracionista do marechal Pétain, que mostrou um notável entusiasmo em ajudar os nazistas em suas atrocidades, em particular quando elas envolviam a morte de judeus. Embora houvesse diversas correntes ideológicas na esquerda, o comunismo prevalecia em função de seu papel central na Resistência, e também na admiração pelos triunfos da URSS na guerra contra a Alemanha.



O paradoxo é que os mais importantes intelectuais franceses da época não eram membros do Partido Comunista, apenas simpatizantes como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Judt parece sentir um tipo de prazer perverso em apontar as (muitas) bobagens laudatórias que Sarte escreveu sobre Stálin, mas o mais interessante são as posições ambíguas adotadas por Albert Camus ou pelo pensador católico Emmanuel Mounier.

Camus, aliás, é retratado no livro como o mais lúcido entre todos os grandes pensadores franceses. Ele demonstra a rara capacidade de mudar de idéia e admitir seus erros. Não foi o único, claro. Para Judt, muitos ex-admiradores da URSS trocaram de posições quando houve o golpe comunista em Praga (1948), seguido do tipo de julgamento-espetáculo que era comum na época, mas que chocou os franceses por se abater sobre pessoas com quem tinham laços de amizade ou mesmo de luta comum na Resistência e na Guerra Civil Espanhola.

Judt é bastante crítico dos erros cometidos pelos intelectuais franceses, mas seu livro tem também uma certa nostalgia daqueles tempos de maîtres-à-penser e quando ele comenta a vida cultural da atualidade, é nítido seu desencanto com a falta de debates profundos. Enfim, como ele mesmo escreve, intelectuais são cronicamente descontentes com si mesmos.

No site da Editora Nova Fronteira, é possível baixar o primeiro capítulo, gratuitamente.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Elizabeth – A Era de Ouro



Dez anos atrás o filme “Elizabeth” contou os anos iniciais do reinado da monarca inglesa, numa excelente atuação da australiana Cate Blanchett. Vimos como a soberana superava sua timidez e fraqueza inicial para consolidar seu poder, mas também como sua ascensão ao trono cobrou um terrível preço pessoal, no afastamento de seu grande amor, o conde de Leicester. Minha seqüência favorita era a última: a rainha entrando na Corte com uma pesada maquiagem e um visual impressionante, causando devoção aos súditos. Como trilha sonora, o Réquiem de Mozart: a pessoa íntima havia morrido, a pessoa pública nascia. Na ocasião, fiquei desapontado com a falta dos grandes temas de seu reinado, como a guerra contra a Espanha. Agora meu desejo foi atendido, com o lançamento de “Elizabeth – a Era de Ouro”, que narra o apogeu de seu domínio.

Quando o filme começa, Elizabeth já tem mais de 50 anos e é uma soberana solidamente estabelecida, embora governe numa Europa convulsionada pela guerra religiosa que o rei espanhol, Felipe II, trava contra os protestantes. Nas ilhas britânicas, Elizabeth tem que se proteger do risco de um golpe católico e manter um olho sobre sua prima, a rainha da Escócia, Mary Stuart, que ela aprisionou.

Em meio às tensões crescentes com a Espanha, Elizabeth conhece o aventureiro Walter Raleigh, um misto de pirata, explorado e colonizador do Novo Mundo, que impressiona a rainha com as novidades que traz das Américas, onde fundou uma colônia em sua homenagem – a Vírgina. Ela flerta com Raleigh e lhe concede favores, mas sabe que a distância social entre os dois é um fosso intransponível. Clive Owen faz o de sempre: o tipo meio cafajeste e canastrão, mas no fundo com um coração nobre e leal.




A paixão pelo pirata lhe desperta a consciência do envelhecimento e de suas inseguranças, e isso no momento terrível em que Felipe II constrói uma gigantesca frota para invadir a Inglaterra, e surgem indícios que Mary Stuart planeja assassinar sua prima e sublevar os católicos ingleses.

Como no primeiro filme da série, o centro da narrativa é o crescimento de Elizabeth como líder política, superando aos poucos seus defeitos e suas fragilidades. Novamente, o poder cobra um preço – a ascensão da Inglaterra como grande potência também significará o isolamento de sua rainha diante dos prazeres simples da vida, que ela confessa invejar em seus súditos.

Como costuma acontecer nos filmes de época britânicos, a produção é esmerosa e bem-cuidada e Cate Blanchett merece plenamente a segunda indicação ao Oscar – a primeira foi justamente por seu papel como Elizabeth, na produção anterior. A ação talvez seja um pouco lenta, mas o visual é deslumbrante e algumas cenas realmente impressionam, como a rainha contemplando de um penhasco a Armada espanhola.

Para quem se interessa pelo tema, há um excelente seriado de TV sobre o mesmo período, chamado “Elizabeth I”. A monarca é interpretada por Helen Mirren, que foi vista recentemente como Elizabeth II no filme “A Rainha”. O seriado foca em sua relação amorosa com outro de seus favoritos, o conde de Leicester, interpretado com a verve habitual por Jeremy Irons.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

A União Européia e Kosovo



Hoje a província de Kosovo decretou sua independência da Sérvia, no último capítulo da história de 17 anos de fragmentação da ex-Iugoslávia. O novo país é pequeno e pobre, mas politicamente relevante pois se trata de peça importante na estratégia da União Européia de estabilizar a zona dos Bálcãs, e de quebra enfraquecer a posição da Rússia (tradicional defensora dos sérvios) na região.

Na década de 1990 as ex-repúblicas iugoslavas – Eslovênia, Croácia, Bósnia e Sérvia e Montenegro – se enfrentaram numa série de guerras civis sangrentas, para determinar o território que cada uma obteria e o que fazer com as minorias étnicas. Só a Macedônia foi poupada. O resultado foram os piores massacres ocorridos na Europa desde a Segunda Guerra Mundial e repetidas humilhações para a União Européia, a OTAN e a ONU.



Todas as ex-repúblicas iugoslavas cometeram atrocidades nesses conflitos, mas para as potências ocidentais a Sérvia apareceu como a maior preocupação, e o ex-presidente Slobodan Milosevic adquiriu reputação comparável a de Saddam Hussein. Ao fim dos anos 90 havia um consenso entre americanos e europeus de que ele não era um negociador confiável e que seri a melhor se livrar dele e partir para uma liderança mais dócil. Quando a Sérvia começou a ameaçar a minoria de origem albanesa da província do Kosovo, o resultado foi a guerra do Kosovo, em 1999. Uma longa campanha de ataques aéreos acabou com os riscos de genocídio e contribuiu para a queda de Milosevic, um ano depois.

Na ocasião, eu estudava na Itália – cuja costa adriática fica a poucas dezenas de quilômetros da ex-Iugoslávia – e me lembro de um jantar interrompido pelo gerente de um restaurante que entrou agitado no salão, anunciando que o Parlamento de Belgrado estava em chamas. Dias depois, conversei com militares italianos que partiam em missão de paz para a Bósnia. A viagem terminou com o discurso do papa João Paulo II no Vaticano, cumprimentando os sérvios pela queda da ditadura. Eu e os demais presentes à praça de São Pedro aplaudimos entusiasmados. Foram lições importantes para mim: na Velha Europa, o espectro da guerra está sempre presente, e tem dimensão inimaginável para nós, latino-americanos.



Nestes primeiros anos do século XXI, os Bálcãs foram pacificados pela força, com 16 mil tropas internacionais mantendo a ordem pública na região. Kosovo é administrada pela ONU desde 1999, um dos governadores da província é o atual chanceler francês. A Eslovênia se incorporou à União Européia, em ampla história de sucesso econômico, e a Croácia negocia para fazer o mesmo. Bruxelas oferece acordos de cooperação e recursos financeiros à Bósnia, à Macedônia e à Sérvia. O desejo de fazer “parte da Europa” (ou do Ocidente, ou da modernidade) tem muito apelo entre a população local, em particular entre os jovens. No início de fevereiro, o candidato pró-UE venceu as eleições presidenciais na Sérvia, mas seu primeiro-ministro é pró-Russia, num instável governo de coalizão.

O tom na imprensa internacional tem sido arrogante com a Sérvia, dizendo ao país que a independência de Kosovo é o preço a ser pago pela entrada no mundo civilizado. Mas a província é o centro da cultura sérvia e, pior ainda, o local onde o país foi conquistado pelo Império Otomano, após perder uma grande batalha no século XIV. Às vezes penso que o nacionalismo é como a visão da História definida por James Joyce: um pesadelo do qual tentamos despertar.

E para uma visão da Sérvia e da Eslovênia recente, chequem o blog que meu irmão manteve durante sua viagem à região, em outubro de 2007.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Demandas dos Jovens na América do Sul



Na próxima segunda-feira faremos a apresentação da pesquisa “Juventude e Integração Sul-Americana” em Brasília, no Palácio do Planalto, durante a cerimônia de posse dos novos integrantes Conselho Nacional de Juventude – incluindo eu mesmo. Ficarei na capital até o meio da semana, volto ao Rio de Janeiro a tempo de participar de um congresso estadual de jovens, no sábado, e em seguida (25 e 26 de fevereiro) haverá na cidade um colóquio internacional com a equipe da pesquisa.

Por conta do trabalho divulgação, dei um bom número de entrevistas para jornais, sites e emissoras de TV. Este post é uma tentativa de sintetizar o que tenho dito aos jornalistas.

O principal objetivo da pesquisa é contribuir para o debate sobre políticas públicas de juventude na América do Sul. Para isso, foram estudados grupos e movimentos juvenis em seis países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Utilizamos métodos qualitativos como entrevistas, grupos de discussão e observação participante e ouvimos cerca de 960 pessoas para entender as demandas e formas de organização e atuação dos jovens. As reivindicações mais fortes no continente são educação e trabalho, que aparecem muito interligadas. Outras demandas que surgiram com força foram cultura, meio ambiente, circulação (movimentos do tipo “passe livre”) e questões ligadas à segurança.

O que mais me surpreendeu na pesquisa foi a grande semelhança entre as reivindicações dos jovens da América do Sul, mesmo quando vivem em países tão diferentes como Brasil e Bolívia. O itinerário do sonho é parecido: as pessoas querem educação de boa qualidade, que as impulsione para um emprego estável, desejam usufruir de oportunidades de lazer e acesso à cultura e querem ter respeitadas sua identidade e modo de ser, em vez de forçadas a se enquadrar nos cânones dos adultos.

É evidente que há variações nacionais e elas iluminam o quanto os diversos povos deste continente podemos aprender uns com os outros: a experiência de defesa dos direitos humanos na Argentina, a valorização da cultura indígena na Bolívia, a criatividade institucional do Acampamento da Juventude no Fórum Social Mundial no Brasil, as mobilizações educacionais no Chile (foto), a articulação camponesa no Paraguai, a solidez das juventudes partidárias no Uruguai... A lista é enorme.

Também me fascinou o uso que os movimentos juvenis fazem das novas tecnologias de informação, tais como blogs, fotologs, mensagens por celular, debates em sites de relacionamento. Há grande dinamismo e inovação nessa área.

Os próximos dias serão de muito trabalho e diversas reuniões com autoridades do governo brasileiro, acadêmicos e representantes da sociedade civil. Estou muito satisfeito com o interesse e a empolgação com que a pesquisa está sendo recebida. Para mim, foi um projeto emocionante e enriquecedor, de descobertas.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

O Momento de Obama



De domingo para cá, Barack Obama venceu mais cinco primárias e passou à frente de Hilary Clinton em número de delegados para a Convenção Nacional Democrata. Ainda mais importante: conseguiu romper a barreira demográfica e nos estados banhados pelo rio Potomac conquistou a maioria dos votos dos latino-americanos e das mulheres. Obama agora desponta como o favorito à indicação de seu partido. Sua rival demitiu a coordenadora de campanha.

As primárias realizadas de janeiro até a Super Terça (5 de fevereiro) mostraram uma clivagem demográfica muito acentuada entre Obama e Hilary. O primeiro candidato teve entre 75% e 90% dos votos dos negros, dependendo dos estados. Jovens e eleitores de maior instrução o favoreceram. A segunda conquistou em torno de 2/3 do eleitorado das outras minorias: latino-americanos, judeus, asiáticos. Hilary teve 20% a mais do voto feminino e se saiu melhor entre eleitores de menor instrução. Esse padrão estava incomumente rígido, revelando grande dificuldade dos candidatos para persuadir para além de seu público cativo, apesar das tentativas de seus marketeiros.

Nas primárias desta semana, Obama conseguiu criar o que parece ser uma fissura na coalizão de eleitores que vinha apoiando Hilary. A pergunta é se ele será capaz de manter o bom resultado no Texas e em Ohio, dois grandes estados cruciais na disputa democrata. São regiões com muitos eleitores latino-americanos e de baixa renda, duas categorias que são a base do apoio à senadora. A CBS News é cética quanto à possibilidade de mudança e afirma que a clivagem demográfica continua a se aplicar.

Há um velho ditado que afirma que nada é tão bem-sucedido quanto a vitória e os repetidos triunfos de Obama estão criando um clima de euforia que têm levado muitos eleitores a se decidir por ele, inclusive aqueles que tradicionalmente votam no Partido Republicano e que estão interessados em seu discurso centrista, oposto às divisões ideológicas que Hilary personificou nos anos 90



A pesquisa acima, do USA Today, ilumina outra dimensão importante da disputa. Os democratas estão entusiasmados com a eleição, enquanto os republicanos a consideram menos empolgante do que a de 2004. Impressiona no nível de ódio a McCain por parte da ala mais à direita do partido. O senador foi vaiado numa convenção nacional conservadora e é alvo de ataques virulentos dos apresentadores de rádio e outros formadores de opinião.

Na enquete deste blog, que passou dos cem votos, Hilary e Obama disputam acirradamente, enquanto McCain está lá atrás na avaliação dos leitores.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

O Brasil e o Conselho de DH da ONU


Como sempre acontece após o carnaval, minha vida profissional fica muito movimentada, na medida em que começa a temporada de seminários acadêmicos, reuniões políticas e orientações às monografias dos meus alunos da pós-graduação. Uma das atividades dos últimos dias foi participar dos debates sobre o novo relatório a respeito dos direitos humanos no Brasil, que o governo federal precisa apresentar à ONU.

Até 2005 as Nações Unidas tinham uma Comissão de DH que se tornou muito desacreditada pela seletividade política com que tratava seus casos. Embora ela tenha sancionado bastante a África do Sul (durante o apartheid) e Israel, pouco fez diante das violações de direitos cometidas por países poderosos. Pior do que isso, a eleição para a Comissão não dependia em nada da situação político-social de cada país. O resultado eram Estados criminosos, como o Sudão, ocupando postos de onde pretendiam impor padrões de DH à comunidade internacional.

Na década de 1990 houve mudanças importantes na estrutura de DH da ONU. A Conferência de Viena criou o cargo de Alto Comissário para Direitos Humanos – que já foi inclusive exercido por um brasileiro, Sergio Vieira de Mello – os Relatores Especiais, que viajam aos países e realizam audiências públicas e estudos sobre temas como direito à habitação, tortura, execuções sumárias. No processo de reforma das Nações Unidas conduzido por Kofi Annan, o documento In Larger Freedom sintetizou as propostas para a área.

A principal delas foi a transformação da Comissão em Conselho. No jargão burocrático tantas vezes exasperante da ONU, isso significa posição hierárquica mais sólida. Além disso, o novo Conselho (foto) incorpora lições importantes das falhas anteriores. Uma delas é que os países que fazem parte da instituição precisam se submeter a avaliações da situação de seus direitos humanos. Aos poucos, essa prática ocorrerá com todos os integrantes das Nações Unidas, no que foi chamado de Mecanismo de Revisão Periódica e Universal (UPR, na sigla em inglês).

O Brasil foi eleito para o Conselho e agora passa pelo UPR. A proposta da ONU é que a sociedade civil de cada país tenha papel de destaque na formulação do relatório. Infelizmente tais idéias ainda estão muito vagas e pouco definidas, mas já representam avanços significativos. O governo brasileiro enviou a algumas ONGs e movimentos sociais uma versão inicial do relatório que apresentará às Nações Unidas e fiz parte da equipe que contestou esse documento.

Basicamente, nos queixamos de que ele está muito concentrado no que chamamos de “best pratices”, isto é, as políticas públicas que são exemplos do que deu certo na área. Queremos algo que reflita os problemas concretos experimentados por nosso país. Também consideramos fundamental a vinculação desse relatório ao trabalho feito no Brasil pelos relatores especiais da ONU, que não foram citados pelo governo brasileiro.

A maior importância desse tipo de processo é que os documentos e ações da ONU servem para dar visibilidade a demandas e denúncias por parte da sociedade civil. A imprensa dá muito mais atenção a esses problemas e a reação das instituições oficiais também costuma ser mais forte. O próprio Congresso realizou audiências pública sobre o UPR, o que demonstra o potencial do novo mecanismo para fortalecer o debate democrático.

Para quem se interessa pelo assunto, recomendo a leitura do artigo da minha amiga Lucia, que trata do papel das ONGs no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Ela explica direitinho como funciona o novo órgão e mostra suas diferenças com relação à antiga Comissão.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

1491



O livro “1491 – novas revelações das Américas antes de Colombo”, do jornalista americano Charles Mann, é uma viagem fascinante pelos debates científicos que estão mudando a maneira pela qual pensamos a história deste pedaço do mundo. Em meio às controvérsias dos pesquisadores, há tendências claras: os povos que aqui viviam eram mais complexos, numerosos e desenvolvidos do que se acreditava até recentemente.

Em parte porque haviam migrado para as Américas bem antes do que se supunha. Aprendi na escola que os primeiros habitantes da região vieram da Ásia, chegando aqui cruzando o estreito de Bering, há cerca de 10 mil anos. No entanto, descobertas arqueológicas (no México, no Chile, no Brasil) indicam que a presença humana é muito mais antiga, talvez tenha 20, 30 ou mesmo 40 mil anos, o que seria colonização anterior àquela da Grã-Bretanha, por exemplo. Mann afirma que a derrubada das velhas certezas abriu temporada de dúvidas e questionamentos e todo o tipo de teoria tem pipocado. Entre as mais difundidas, a que de teriam ocorrido diversas correntes migratórias por Bering, em milênios diferentes, ou que os primeiros habitantes das Américas vieram por mar, a partir das ilhas do Pacífico Sul.

Mann descreve as pesquisas que iluminam novos aspectos das maiores civilizações pré-colombianas, como incas, maias e a tríplice aliança (segundo ele, o termo “asteca” é incorreto). A foto que abre o post é da cidade maia de Tikal, a principal daquele povo. Durante séculos, disputou o poder com Kaan, a cidade da Serpente, num padrão semelhante ao de Atenas e Esparta na Grécia Clássica, ou de Florença e Veneza na Itália do Renascimento. Contudo, Kaan só foi descoberta há cerca de 70 anos, e só foi totalmente escavada na década de 1990! Ainda hoje a súbita destruição da cultura maia, por volta de 830 dC, intriga os cientistas. Eles mal começaram a compreender o que aparentemente foi um desastre ecológico, uma civilização que ruiu porque explorou além da conta seu meio ambiente.

A história do império inca tampouco é totalmente conhecida. Os arqueólogos agora acreditam que aquela civilização possuía linguagem escrita – mas no formato de nós rituais, dados em cordas especiais. Algo tão diferente de qualquer idioma ocidental que sequer foi considerado como linguagem. Escavações contemporâneas também apontam para indícios de uma grande muralha nos Andes, mais um tributo à capacidade arquitetônica dos incas.



As civilizações da Mesoamérica e dos Andes tinham em comum o papel central ocupado pelo milho e pelo algodão. Não me refiro ao milho que em geral consumimos no Brasil, mas às suas variantes da foto acima, extremamente coloridas, que são a base da culinária de países como Peru, Guatemala e México. A importância dessa comida é tão grande que muitos dos povos pré-colombianos se definiam como “homens do milho” e no mito de criação maia, o Popul Vuh, a humanidade é criada desse alimento. Curioso, pois os biológos afirmam que o oposto é verdadeiro: o milho teria sido criado a partir de cruzamentos realizados pela mão humana.

Mann dá muita atenção às contribuições das Américas para a alimentação mundial. Ele estima que 60% das safras cultivadas no planeta se originaram aqui: milho, mandioca, batata, amendoim. Não é para menos. As pesquisas indicam que os vales do litoral peruano abrigaram algumas das primeiras cidades do planeta, ao lado daquelas em torno dos rios Nilo, Amarelo, Tigre/Eufrates e Indo.

O povo mais desenvolvido que habitava o território que hoje é o Brasil estava na ilha de Marajó, que abrigou cultura sofisticada. Mann narra estudos interessantíssimos na região, que indicam que parte da Amazônia (talvez 25% dela) é, na realidade, paisagem criada pela ação humana. Pomares e campos agrícolas, a partir de processos de fertilização por carvão vegetal. A chamada “terra preta” hoje é pesquisada pela Embrapa e segundo Mann apresenta enorme potencial para o desenvolvimento agrícola da região.



Embora o título do livro fale das Américas antes da colonização européia, na realidade a narrativa abarca até o século XVIII e fala do impacto das guerras, da disseminação das doenças, da destruição das antigas culturas e das mudanças ambientais provocadas por esses fatos e pela introdução de animais e plantas de outras regiões. A editora disponibiliza no site as primeiras 40 páginas de “1491”. Boa leitura!

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

A Crise da OTAN no Afeganistão



A foto que ilustra o post foi tirada pelo britânico Tim Hetherington e lhe rendeu o prêmio World Press Photo de 2007. Ela mostra um soldado exausto numa trincheira no Afeganistão. Não por acaso, a honra foi concedida num momento em que a OTAN enfrenta sérias disputas internas sobre como conduzir a guerra naquele país. Os Estados Unidos pressionam seus aliados europeus, em particular Alemanha, França, Itália, Espanha e Grécia para reforçar suas tropas nas reigões leste e sul do Afeganistão, para o combater os Talibãs, que se fortaleceu na área.

Há cerca de 42 mil soldados da OTAN no Afeganistão. Os europeus (com exceção dos britânicos) têm privilegiado um enfoque mais voltado para temas como reconstrução nacional, ao passo que os anglo-americanos valorizam a perspectiva de que o mais importante é derrotar militarmente os Talibãs. A distância entre as duas posições têm diminuído, porque as novas doutrinas bélicas dos Estados Unidos estão mais próximas dos europeus.

O presidente afegão, Hamid Karzai, tem tido conflitos com a OTAN. Ele recusou a nomeação de um lord britânico como enviado especial ao país, alegando que era uma interferência indevida sobre a soberania. Na foto abaixo, ele está com os ministros das relações exteriores dos EUA e do Reino Unido, tentando consertar as coisas.



A OTAN foi criada em 1949 como uma aliança contra a União Soviética. Após o fim desta, muitos previram que a organização também terminaria. Na realidade, ela se expandiu, incorporando os países da Europa Oriental e do Báltico. Em 1999, a OTAN travou sua primeira guerra – contra os sérvios, para impedir que eles cometessem genocídio contra a minoria étnica de origem albanesa, na província do Kosovo. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, a aliança se juntou aos esforços americanos para varrer os Talibãs do Afeganistão. É a estréia da organização fora da Europa.

Essa guerra já dura mais de seis anos – já ultrapassou em duração a Segunda Guerra Mundial. Há grandes polêmicas sobre os resultados obtidos. Certo, os Talibãs foram expulsos de Cabul e perderam o controle do país, mas continuam a perpetrar diversos ataques terroristas no Afeganistão, que segue sendo um dos lugares mais pobres do planeta. O tráfico de ópio também tem aumentado.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

A Economia dos Conflitos Armados


Navegando pela Internet, encontrei o excelente programa de Harvard sobre Política Humanitária e Pesquisa sobre Conflito, do qual baixei o estudo “Economics and Violent Conflitct”, do cientista político Macartan Humphreys. Ele examina dados recentes e procura identificar os padrões econômicos que levam à eclosão de guerras, e do que acontece com a economia quando um confronto bélico está em andamento. O primeiro ponto é o mais desafiador.

A análise de Humphreys se concentra na África contemporânea, seu tema de especialização, o que significa que a maioria dos conflitos abordados por ele ocorrem na forma de guerras civis em países muito pobres, com profundas divisões étnicas e/ou religiosas. Portanto, conclui que a pobreza é um fator crucial na explicação da violência política, porque a escassez dos recursos leva a disputas mais intensas e pode gerar tensões como migrações, que exacerbam os ódios raciais.

A afirmativa me parece correta para o caso africano, mas é curioso observar como na América do Sul o padrão é diferente. A Colômbia é um país bem mais rico do que o Paraguai ou a Bolívia, e nenhuma dessas duas nações enfrentou guerras civis desde os anos 1940, ao passo que os colombianos vivem em estado de violência há 60 anos.

As observações de Humphreys sobre desigualdades são bem mais interessantes. Ele critica estudo do Banco Mundial que concluiu que elas não influíam em conflitos, afirmando que a instituição não entendeu os dados. Desigualdades gerais, entre indivíduos, não seriam relevantes, mas elas se tornariam um fator explosivo quando se tornam desequilíbrios de riqueza entre grupos étnicos ou regiões. Percepção instigante, vale a pena refletir sobre ela. No contexto sul-americano, podemos pensar em áreas assim, que se tornaram focos de violência – como o “trapézio andino” no Peru, em especial Ayacucho , berço do Sendero Luminoso e habitada por população de origem indígena, desprezada pela elite mestiça ou com pretensões à branquitude de Lima.

Outro bom ponto de seu estudo é examinar o papel que os recursos naturais desempenham no financiamento a grupos rebeldes ou mesmo na motivação para os conflitos. Basta lembrar dos “diamantes de sangue” de Serra Leoa e Angola, ou no petróleo na África e no Oriente Médio. Humphreys afirma que quando essas riquezas são muito concentradas geograficamente, a chance é que haverá um golpe de Estado, e não uma guerra civil. A tragédia é que em geral essas fontes estão muito dispersas, tornando difícil o Poder Central evitar que bandos armados se apoderem delas. A Colômbia é um exemplo: plantações de coca, terras férteis, minas e rebanhos de gado estão muito espalhados pelo país.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Super Terça



Ontem foi a "Super Terça-Feira", que não se refere ao carnaval, mas à realização de eleições primárias em 22 estados americanos. Os resultados, resumidamente:

- Republicanos: McCain se confirma como o favorito para a indicação do partido, vencendo nos principais estados (Califórnia, Nova York, Illinois). Mitt Romney está praticamente fora do jogo. A surpresa é o bom desempenho de Mike Huckabee no sul. O pastor batista e ex-governador do Arkansas pode acabar como vice na chapa de McCain, pois seria um trunfo importante para aproximar o senador do eleitorado religioso e mais conservador, que tem devotado a McCain ataques de ódio visceral.

Por que os conservadores detestam McCain? Porque o senador tem perfil político mais centrista. Votou contra o corte de impostos de Bush, alegando que era mais importante combater a divida pública americana. Trabalhou em parceria com os democratas numa lei de imigração moderada. Não apoiou os projetos de proibição do casamento gay.



- Democratas: Hilary está com a vantagem, pois levou Califórnia e Nova York. Contudo, Obama venceu na maioria dos estados (veja os resultados em cada um). A imprensa tem privilegiado a interpretação que as votações de ontem detiveram a ascensão de Obama, favorecendo sua rival, mas para mim isso não está claro.

O que a boca de urna mostrou e que Hilary saiu-se melhor entre mulheres, trabalhadores de baixa renda e minorias étnicas como latino-americanos e asiáticos. Obama conquistou mais votos entre jovens, negros e eleitores com alto nível de instrução.



Trocando em miúdos, acredito que a situação está definida entre os republicanos, mas ainda confusa para os democratas. Os dois gráficos acima mostram as pesquisas de opinião do Gallup, e ilustram meu ponto.