segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Mar de Papoulas

O escritor indiano Amitav Ghosh tem sido comparado a mestres do romance histórico como Walter Scott e Alexandre Dumas por conta de sua triologia épica sobre as guerras do ópio, centradas na tripulação do navio Ibis. “Mar de Papoulas” é o primeiro volume, e até agora o único publicado no Brasil, e fez pensar em outro clássico: o Melville de “Moby Dick”, ao reunir um elenco multicultural de personagens para narrar os conflitos entre os impérios britânico e chinês da perspectiva da Índia, então colônia da Grã-Bretanha.

“Mar de Papoulas” não tem um protagonista, a narrativa se reveza por um grupo de pessoas que de origens muito diversas formará a tripulação do Ibis e se manterá unida ao longo da triologia: um marinheiro americano, mulato, que descobre que os mares do Oriente lhe dão a oportunidade de passar por branco, abrindo inesperados caminhos de ascensão social; um casal de camponeses indianos em fuga por conta de um amor adúltero impossível por razões de casta e honra familiar; um aristocrata indiano falido e injustamente condenado por fraude, com um insperável amigo chinês que conheceu na cadeia; uma jovem órfã francesa que herdou do pai cientista um temperamento questionador e rebelde e um elenco fascinante de personagens secundários vindos de todas as partes do globo. Eles falam uma língua mágica, um amálgama de vários idiomas, incrivelmente rico e poético. Aviso – li o original em inglês e ignoro como ficou a tradução para o português, é uma tarefa dificílima adaptar a inventividade do autor.

O navio também é parte do elenco. O Ibis transportava escravos da África para as Américas, mas quando a Grã-Bretanha começou a combater esse comércio, ele foi adaptado para outros negócios, como levar ópio da Índia à China e carregar prisoneiros e trabalhadores que assinaram contratos de “servidão por dívidas” para colônias européias.

O romance começa com a chegada do Ibis à cidade indiana de Calcutá, depois de uma jornada tumultuada que começou na América do Norte e passou pelo Cabo da Boa Esperança e pelas Ilhas Maurício. O contexto histórico é o da década de 1830. Os britânicos dominam a Índia, sobretudo por meio da Companhia das índias Orientais, e estão em sérias tensões com a China. Importam de lá seda, porcelana e outros artigos caros, mas não conseguem fazer com que os chineses se interessem por suas manufaturas. Até que o ópio desponta como solução para o déficit comercial.

O ópio é uma droga poderosa fabricada a partir da papoula, cultivada na Ásia meridional. No tempo do império britânico, a Índia era o principal centro produtor (hoje em dia, é o Afeganistão, as receitas financiam os Talibãs). Os lucros eram tão fabulosos que as melhores terras viraram plantações monocultoras dedicadas às exportações para a China, com os grandes comerciantes tomando terras de camponeses e rivais mais fracos. Naturalmente, as autoridades chinesas se preocuparam com a situação e tentaram proibir o ópio, levando a uma série de guerras pelas quais os britânicos impuseram não só o produto, mas também sua dominação territorial sobre vários dos portos do país.

Os personagens de Ghosh são arrastados pelos acontecimentos e têm posições ambíguas com relação ao ópio, de fascínio, medo ou desprezo. Alguns são viciados na droga. Seu épico é uma visão pós-colonial da globalização, o que significa que ele é muito crítico dos britânicos e dos valores de seu império: todos os personagens cristãos e ingleses são maus e trapaceiros, bem como a maioria dos indianos associados a eles. Ghosh é mais simpático aos franceses e americanos, bem como a hindus e muçulmanos. Seus perfis psicológicos são simples, por vezes maniqueístas (não chega nem perto de um Joseph Conrad, por exemplo) seu ponto forte é a compreensão de várias culturas e o modo como narra de forma divertida e inteligente os desencontros entre elas, bem como as sínteses inesperadas.

“Mar de Papoulas” é apenas o primeiro volume da triologia, e basicamente conta a história de como a tripulação do Ibis se conheceu. O segundo livro da série, “River of Smoke”, já foi publicado, com muitos elogios. Há um quê de “Senhor dos Anéis” ou “Guerra nas Estrelas” no estilo e escala do trabalho de Ghosh, em seu entretenimento de alta qualidade.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Brasil, Cuba e a Longa Marcha dos Direitos Humanos na América Latina

Brasil e Cuba tem comércio bilateral significativo e diversos projetos de cooperação em áreas como saúde pública e energia. A presidente Dilma estará na ilha na próxima semana e a visita será dominadas pelos debates sobre direitos humanos. É inescapável, pelo enorme simbolismo da Revolução Cubana para a política na América Latina como uma referência em autonomia diante dos Estados Unidos e em reforma social. Mas a região é muito diferente hoje e o imaginário ocupado por Cuba é por vezes bastante incômodo. O país nunca será avaliado pelos mesmos critérios pelos quais se julgam ditaduras na China, Rússia ou Irã, e sim pelo descompasso com os padrões de seus vizinhos latino-americanos.

No auge da Guerra Fria, em meados da década de 1970, havia apenas duas democracias plenas na América Latina: Venezuela e Costa Rica - o México do PRI como um caso híbrido e ambíguo. A maioria dos habitantes da região eram pobres. Naquele contexto, Cuba não se destacava pelo autoritarismo – era a regra, à direita e à esquerda – e seus indicadores sociais eram muito expressivos.

Na América Latina de hoje, o único país no qual os governantes não são eleitos pelo voto é Cuba. É certo que as democracias da região continuam frágeis e repletas de práticas autoritárias: fraudes em larga escala no México, censuras e perseguições à imprensa na Venezuela, Argentina e Equador, grandes pedaços de território controlados pelo crime organizado na América Central, Colômbia, Brasil e México. Mas os avanços são notáveis e destacam-se na comparação com os outros continentes formados por nações em desenvolvimento, Ásia e África. Prisoneiros políticos praticamente desapareceram da América Latina, a não ser em Cuba e ocasionalmente na Venezuela – além, claro daqueles que os Estados Unidos encarceraram na base naval de Guantanamo. A pobreza caiu para um terço da população e houve ampla melhora dos padrões de vida e do consumo.

A Revolução Cubana perdeu seu apelo prático para a política da região. No Peru, México e Venezuela, os candidatos fazem campanha prometendo ser o próximo Lula – e não o futuro Fidel. As novas classes médias da região já têm dinheiro para passar férias no exterior, mas optam por conhecer os Estados Unidos ou nações vizinhas, e não a experiência socialista cubana.

Contudo, os países da região não criticam Cuba, fora uma ou outra exceção como a Argentina de Carlos Menem e o México de Vicente Fox - em ambos os casos, atitudes explicáveis mais pelo desejo dos dois presidentes em manter uma relação especial com os Estados Unidos. O regime cubano é tratado pelos governos latino-americanos como uma espécie de tio excêntrico e querido, de quem não se comenta os defeitos em respeito ao período em que foi importante na família, principalmente porque enfrentou o vizinho grandalhão e rico do qual todos tinham medo.

O mundo mudou e o velho parente irá falecer em breve. Igreja Católica, governos e organizações européias e canadenses estabeleceram bons diálogos com a oposição democrática na ilha, que em algum momento irá governar Cuba. Talvez ainda nesta década. Não é praxe das autoridades brasileiras buscar esse tipo de entendimento, em lugar nenhum do planeta, mas partidos políticos e movimentos sociais poderiam desenvolver uma agenda assim. Lançando, por exemplo, uma campanha “América Latina sem presos políticos.”

Algumas pessoas já tem essa mobilização, como o cineasta Cláudio Galvão da Silva e sua parceria com a escritora cubana Yoani Sánchez. Ele a convidou a vir ao Brasil para o lançamento de um documentário sobre censura em Cuba e em Honduras. O governo brasileiro concedeu o visto, mas as autoridades cubanas desde 2004 proibem Sánchez de sair do país. Ela já foi presa e espancada por suas opiniões. A presidente do Brasil também o foi. Isso não mudará a diplomacia brasileira, digamos, com respeito às Damas de Branco. Havana não é Teerã. Mas Dilma não fará como Lula, que comparou os presos políticos cubanos a criminosos comuns.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Egito, Ano 1

Nesta quarta completa-se um ano da queda da ditadura de Mubarak no Egito, o mais importante país árabe. O balanço: as Forças Armadas continuam no governo e no poder, reprimindo de modo violento os manifestantes pró-democracia. Houve eleições parlamentares, com muito atraso, que resultaram na vitória de diversos partidos islâmicos, que controlam 72% do Legislativo. Com curiosas negociações com liberais e com o Exército, visando à criação de uma coalizão sólida. Os próximos passos são a elaboração da Constitução e a eleição de um novo presidente, um longo processo que só deve estar completado em 2013.

Transições de ditaduras para democracias são sempre complexas e o caso egípcio tem fatores que o tornam ainda mais difícil: uma delicadíssima posição na geopolítica do Oriente Médio e na segurança de Israel, a enorme força dos militares na economia, uma substancial minoria cristã e uma longa tradição de movimentos fundamentalistas, que remonta à década de 1920. Levando tudo isso em conta, pode-se fazer uma apreciação razoavelmente favorável dos desdobramentos do último ano. Os problemas eram esperados e o país segue no atribulado curso de sua transformação. É uma realização expressiva.

A Primavera Árabe mudou os governos da Tunísia, Egito e Líbia, com um acordo iminente no Iêmen. Levou a reformas expressivas na Argélia, Marrocos e Jordãnia, e deu novo alento ao movimento palestino por um Estado. As monarquias têm se mostrado mais estáveis e mais resistentes à mudança do que as repúblicas, e os reis e emires dos ricos Estados do Golfo conseguiram em grande medida passar imunes aos ventos revolucionários – com exceção dos soberanos do Bahrein, que se mantiveram no trono somente pela intervenção militar da vizinha Arábia Saudita.

A situação na Síria continua num impasse político entre Assad e a oposição, com crescente pressão internacional contra a ditadura do partido B´aath. Uma combinação significativa da Liga Árabe, da Turquia e da França tem dado apoio aos rebeldes (inclusive no campo militar, segundo as notícias) e tenta convencer a Rússia a abandonar seu principal aliado no Oriente Médio e aceitar sanções na ONU contra Assad. Difícil. Há risco de guerra civil na Síria.

Do ponto de vista da influência no Oriente Médio, está claro que a balança deste ano pende em favor da Turquia, cuja diplomacia tem mostrado extradorinário dinamismo, ousadia e coragem diante de um mundo em mudança turbulenta. Clique no link para ler estudo da Brookings sobre como ela e outras democracias emergentes (Brasil, Índia, África do Sul, Indonésia) lidam com Primavera Árabe. O grande perdedor, sem dúvida, é o Irã. Sob pressão, acuado, enfrentando um embargo de 20% de seu mercado de exportações e correndo o risco de sofrer ataques militares de Israel e dos Estados Unidos.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O Congresso por Ele Mesmo

Esta coletânea de artigos organizada por Timothy Power (Oxford) e Cesar Zucco Jr (Rutgers) é baseada na Pesquisa Legislativa Brasileira, amplo questionário elaborado por Power e respondido por cerca de mil deputados e senadores de 1990 a 2009 - a base de dados está disponível na Internet, no site de Harvard. É rico panorama das transformações do país e mostra parlamentares pouco dados à radicalização ideológica ou à discussão de políticas públicas, e mais voltados para a concessão de benefícios às suas regiões eleitorais e para a intermediação das demandas destas junto ao governo federal. Afirmam ser favoráveis ao parlamentarismo, mas quase nunca valorizam os partidos, e relutam em mudanças significativas no sistema eleitoral (como lista fechada). Surpreendemente, declaram apoio à fidelidade partidária, o que me fez pensar no célebre pedido de Santo Agostinho (“Senhor, me dê a castidade, mas não agora”). Os dados motram forte continuidade institucional no parlamento, apesar das mudanças – a esquerda em 2009 ocupava 34% do Congresso, contra 12% em 1990.

As contradições são bastante presentes também nas avaliações do presidencialismo de coalizão, o modo como a política brasileira se estrutura desde a redemocratização. Os parlamentares são um tanto ambíguos quanto ao sistema, reconhecendo nele elementos importantes de estabilidade política e governabilidade, mas também avaliam que estimula o fisiologismo e a corrupção e também que torna mais difícil para os eleitores preverem o perfil dos futuros governos, por conta do grande número de negociações e barganhas necessárias para formar a base aliada.

Os dados mais polêmicos dizem respeito aos partidos políticos e à ideologia – os diversos autores presentes na coletânea discordam em suas interpretações. Uma vertente (Zucco) considera que as siglas brasileiras distribuem-se de modo coerente num espectro de esquerda (PC do B, PSOL, PT) à direita (DEM, PP, PR), com PSDB e PMDB ao centro. Outros pesquisadores (Kevin Lucas, David Samuels) avaliam que é o quadro é confuso, com os partidos funcionando mais como organizadores de recursos eleitorais (como espaço na TV) do que em torno de programas e posições estáveis. Saber se um parlamentar é da base governista ou da oposição é melhor preditor de como irá votar do que a ideologia professada pelo partido.

Contudo, todos destacam que o PT tem resultados bastante diversos, bem mais sólidos e que desde sua chegada ao governo adotou posições mais moderadas. Os casos mais complexos são as posturas do PMDB e PSDB, muitas vezes de difícil classificação – e isso antes mesmo da criação do PSD, ainda não contemplada na pesquisa que deu origem ao livro. Os dados reforçam análises anteriores que indicam que os políticos brasileiros quase sempre se autodefinem como de “esquerda” ou “centro-esquerda”, mesmo quando são conservadores.

Dois dos artigos mais interessantes do livro são aqueles que contrastam as percepções dos parlamentares com trabalho de campo junto às suas bases eleitorais. O artigo de Barry Ames, Carlos Pereira e Lúcio Rennó examina as cidades de Caxias do Sul (RS) e Juiz de Fora (MG) para mostrar que a demanda por serviços dos parlamentares (emendas ao orçamento para projetos locais) é altíssima, sobretudo entre os mais pobres. Isso vale tanto para direita quanto para a esquerda, embora eleitores do PT tendam a ter postura diferenciada, mais voltada para políticas públicas.

O excelente artigo de Natasha Borges Sugiyama discute as reações dos parlamentares e dos eleitores ao Bolsa Família – que atinge cerca de 25% da população brasileira. Seus dados mostram que deputados e senadores subestimam a sofisticação política dos beneficiários do programa. Eles tendem a usar os recursos para comprar material escolar e roupas para seus filhos, e a recompensar com seu apoio o presidente Lula e os prefeitos que os implementaram, sem contudo considerar que a continuidade do Bolsa Família dependa de suas reeleições. Também percebem a continuidade com os programas implementados por FHC, como Bolsa Escola, Alvorada, Vale Gás etc.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

SOPA, PIPA e a Política da - e na - Internet

Ao longo desta semana está sendo travada uma batalha sobre a Internet, envolvendo dois controversos projetos de lei no Congresso dos Estados Unidos, mas que impactariam sobre a web global. De um lado estão empresas de cinema e música, de outro portais de busca, redes sociais e movimentos de protesto ativos na rede (charge acima). O conflito é sobre diferentes modelos de negócios e as transformações em direitos autorais provocadas pela Internet, mas também a respeito da liberdade de expressão e dos novos modos pelos quais cidadãos e associações estão aprendendo a usar os recursos da web.

Os dois projetos de lei são Stop Online Piracy Act (SOPA) e Protect IP Act (PIPA). O primeiro ainda está em discussão, o segundo seria votado na próxima semana, mas talvez seja adiado pela força dos protestos. Ambos são voltados para o combate à pirataria e para a proteção da propriedade intelectual. No contexto da Internet, isso significa sobretudo restrições à possibilidade de baixar filmes, músicas, textos etc. Os métodos propostos vão do bloqueio de sites à suspensão de anúncio, podendo incluir até prisão de usuários.

O vídeo abaixo foi feito por opositores do PIPA. Embora se possa criticar algumas interpretações dos efeitos do projeto, ele sintetiza bem os principais temas em discussão:

As duas leis foram redigidas pelo deputado Lamar Smith (Republicano do Texas), presidente do Comitê Judiciário da Camâra. Foram apoiadas por outros parlamentares, incluindo muitos democratas, e surgiram de pressões de gravadoras e estúdios de Hollywood, o tipo de empresa que mais tem perdido com as chances que as pessoas têm de baixar seus produtos de graça na Internet. Naturalmente, elas querem restringir esse tipo de prática. O problema é que há outras firmas para quem os lucros estão exatamente nesse potencial de compartilhamento gratuito de conteúdo da rede, em geral pela venda de anúncios para quem usa seus serviços, que nada custam. São sites de busca como o Google, de referência como a Wikipedia, de vídeos como o You Tube e redes sociais como Facebook e Twitter.

Um tema particularmente explosivo é que os distintos modelos de negócios para a Web se interpolam com liberdade de expressão e direitos civis e políticos. Os projetos de lei exigem que os provedores monitorem a atividade dos usuários, como os sites que eles visitam, e ninguém sabe qual seria o limite desse tipo de vigilância, em particular nas redes sociais – só o Facebook tem mais de 500 milhões de participantes, o que cria enormes problemas sobre como controlar e censurar todo o material que postam diariamente. São questões que haviam sido levantadas pelo caso Wikileaks e que continuam no ar. O deputado Smith tem um histórico sombrio com respeito aos meios de comunicação, tendo proposto multas para “transimissões indecentes” e advogando controle dos sites que as pessoas visitam e do que fazem na rede.

Como era de se esperar, a própria Internet se mostrou um excelente meio de protesto e mobilização, principalmente pelo chamado “blecaute” – cerca de 10 mil sites, incluindo gigantes como a Wikipedia, colocaram-se parcialmente fora do ar, com sinais de luto e mensagens de protesto, solicitando aos usuários que entrem em contato com seus deputados e senadores. A pressão se fez sentir e vários parlamentares estão retirando apoio aos dois projetos.

Ontem, o FBI tirou do ar o Megaupload, um dos principais portais de compartilhamento. Seu fundador foi preso. Manifestantes reagiram derrubando a página do Departamento de Justiça, e da gravadora Universal.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O Protecionismo na Argentina

O governo da Argentina anunciou uma nova rodada de medidas protecionistas e o início de uma investigação contra a Petrobras por formação de cartel na venda de óleo diesel. Tudo indica que a relação bilateral com o principal parceiro econômico – o Brasil - vá piorar bastante nos próximos meses. O protecionismo argentino é uma tentativa de responder à deterioração das contas públicas do país e ao ambiente mais difícil da crise global, mas é também a marca da incapacidade de enfrentar o longo declínio da indústria na Argentina, acentuado desde a década de 1970.

Como mostra o gráfico acima, até a crise de 1998-2002 a Argentina era superavitária em seu comércio com o Brasil. Isso mudou desde aquele cataclisma econômico, e em 2011 o déficit do país com os brasileiros foi de US$5,6 bilhões. O comércio é só parte da história, e o fluxo de investimentos e turistas do Brasil para a Argentina ajuda bastante o país a ter um balanço de pagamentos positivo.

O problema é que a presidente Cristina Kirchner enfrenta um período difícil na economia, com inflação alta, situação fiscal complicada e reservas em queda por conta da fuga de dólares. Tentar controlar as importações é uma maneira de equilibrar esse jogo no curto prazo, por meio de decisões políticas. O homem que tem implementado essas medidas é o secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno (foto), figura odiada nos meios empresariais nas duas margens do Prata, por seus métodos truculentos e ameaças. Ele foi o principal negociador do governo nos conflitos com a Papel Prensa, a parceria entre Estado e os grupos de mídia na empresa de fabricação de papel-jornal. O último embate foi a decisão do Congresso em declará-la “de interesse nacional”, provável primeiro passo para sua nacionalização.

Neste contexto – e também de muitas denúncias de corrupção – foi anunciado que Cristina Kirchner tinha câncer. Ela se internou para ser operada e os médicos rapidamente disseram que ela não estava doente. Há três possibilidades na história: a) Erro médico coletivo por parte de alguns dos melhores profissionais do país; b) Milagre – as orações dos admiradores da presidente a curaram antes da cirurgia; c) Manipulação política, exagerando o diagnóstico para distrair atenções dos problemas do país. Medicina e milagres estão fora da minha jurisdição como cientista político.

O protecionismo argentino visa não só a remediar a crise de balanço de pagamentos, mas é um esforço para atrair empresas para o país, para supostamente se beneficiar das barreiras contra produtores estrangeiros. Um pouco como o Brasil tenta fazer com a indústria automobilística. As medidas são controversas em ambos os países, e ainda mais na Argentina, que ao contrário do caso brasileiro, não tem grau de investimento e não é bem considerada pelos investidores – tem recebido menos recursos externos do que economias menores, como Chile e Colômbia.

O gráfico acima mostra o tamanho do declínio argentino. Até a década de 1950 o PIB do país era maior do que o Brasil. Hoje não só ficou bem abaixo do antigo rival, como perdeu também a proeminência para vários outros países da América do Sul, cujas economias têm crescido rapidamente e cujas políticas têm sido mais pragmáticas, pois não levam a carga de ter que lidar com a grandeza história perdida, como é o caso da Argentina. Escapar das tentações impossíveis de recriar o passado de glórias é um dos desafios para o país. Nada fácil.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Terras Sangrentas

Bloodlands – Europe between Hitler and Stalin”, do historiador Timothy Snyder (Yale) é um dos livros mais assustadores que já li. Nas terras sangrentas do título – Polônia, Países Bálticos, Ucrânia, Bielo-Rússia e a porção ocidental da Rússia - a Alemanha nazista e a URSS stalinista assassinaram cerca de 14 milhões de civis entre 1933 e 1945, e pelo menos dez milhões de soldados morreram no enfrentamento militar entre ambas. Snyder conta essa história com base em excepcional pesquisa em arquivos das nações engolfadas pelo terror.

O que tornou a região tão turbulenta é que ela foi o local onde os projetos de poder de Hitler e Stalin se chocaram. Foram o legado dos impérios alemão e russo que se esfacelaram na I Guerra Mundial. Mas como Snyder observa, os alemães venceram o conflito na frente leste e tiveram um breve gosto de governar boa parte da área em 1917-8. Hitler desejava restaurar essa zona de influência como o “espaço vital” que faria o papel de colônias agrícolas para o III Reich. Para os bolcheviques, tais terras eram o cordão de segurança que precisavam para proteger seu nascente regime dos inimigos externos e internos.

De 1933 a 1939, Stalin matou mais do que Hitler. Foram os anos da grande fome na Ucrânia, o celeiro da URSS, provocadas pela coletivização forçada da economia e pelos massacres do governo contra os camponeses que se opuseram a ela. Também foi a década do “Grande Terror”, com as condenações dos líderes comunistas que resistiam a Stalin nos processos de Moscou. O ditador matou metade dos generais do Exército Vermelho e também a cúpula da polícia secreta (que então se chamava NKVD). Os poloneses e ucranianos foram particularmente perseguidos – presos, deportados para a Ásia Central ou mortos – porque o ditador temia que eles pudessem se aliar à República da Polônia ou ao Japão, os dois inimigos externos que a URSS mais temia na década de 1930.

A Alemanha e a URSS gozaram de relações cordiais nas décadas de 1920 e 1930, não obstante a polarização ideológica nos dois países. Ambos tinham o objetivo comum de revisar a ordem mundial surgida com o Tratado de Versalhes, pilhando a Europa Oriental e os Países Bálticos. O Pacto de Não-Agressão entre Hitler e Stalin, e a partilha da Polônia em 1939 foi o capítulo final dessa colaboração, até o choque titânico entre ambas, entre 1941-1945.

Hitler também matou oponentes políticos antes de 1939, como nos expurgos contra a SA, a ala anti-capitalista do Partido Nazista. Seus assassinatos em massa se intensificaram com a Segunda Guerra Mundial. Ele e Stalin compartilhavam a meta de exterminar a elite polonesa e mataram deliberadamente líderes políticos, militares e intelectuais. O massacre mais célebre, o de Katyn, foi obra dos soviéticos, mas os nazistas organizaram extermínos comparáveis – 20% da população polonesa foi morta na guerra, o percentual mais alto entre todos os países envolvidos no conflito. Os países bálticos enfrentaram destino semelhante, ainda que em menor escala.

A Alemanha nazista esperava derrotar a URSS numa guerra-relâmpago de poucas semanas, o que não ocorreu. A ofensiva germânica foi detida diante de Leningrado, Moscou e Stalingrado e o resultado foi que o gigantesco exército invasor não tinha planos e organização logística para se manter, recorrendo à pilhagem para sobreviver. As ordens de Hitler eram para assassinar líderes comunistas e guerrilheiros, logo se expandiram para várias categorias – inclusive, evidentemente, os judeus.

Ao invadir a URSS, a Alemanha passou a controlar a maior população judaica da Europa. Até então a “solução final” era aprisioná-los em campos de trabalho no leste, com vagos planos de deportação para a África. Os milhões de judeus em território soviético exasperaram os nazistas, que temiam que eles se rebelassem e decidiram assassiná-los – a princípio em chacinas em fossas comuns, por comandos especiais da SS, depois em campos de extermínio ou de trabalhos forçados.

Snyder fecha o livro com excelente análise do cenário do pós-guerra, com as negociações de Stalin para remodelar as fronteiras da Europa Oriental, aumentando as da URSS às expensas da Polônia, e compensando esta com territórios que haviam pertencido à Alemanha (acima). O autor aborda a deportação forçada dos alemães e de outros povos nesse período, bem como as idas e vindas do anti-semitismo de Stalin – ele apoiou a criação de Israel achando que seria um golpe nos impérios colonias do Ocidente, mas mudou de idéia quando viu o tremendo impacto do sionismo nos judeus soviéticos. Morreu acusando-os de um complô para assassiná-lo.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Haiti e Brasil: imigração e desenvolvimento

Tudo que os migrantes haitianos me dizem que querem fazer é: trabalhar. O Brasil tem sorte em ter pessoas assim”.

Gabriel Elizondo, correspondente da Al-Jazeera no Brasil, em seu perfil no Twitter

Somos todos filhos dos barcos

Jorge Luís Borges, escritor argentino

Quando leio sobre os haitianos querendo trabalhar no Brasil, penso na história da minha própria família - meus (bis)avós chegaram aqui em condições quase tão ruins, e encontraram acolhida e oportunidades para melhorar de vida. O país que é a sexta maior economia do mundo, tem baixa taxa de desemprego e é presidido pela filha de um imigrante da Bulgária(e cujo principal rival na disputa pelo cargo foi o filho de um imigrante italiano) pode e deve ser mais generoso. Até porque o caso do Haiti ilustra tendência que ficará mais forte: com economia crescendo e taxa de fertilidade em declínio, o Brasil precisa de políticas públicas para atrair mão-de-obra do exterior.

Comecemos pelo Haiti. Ontem fez dois anos do terremoto que devastou o país e matou talvez 100 mil pessoas (os dados são controversos). Há oito anos há uma missão de paz da ONU nessa nação, e o Brasil lidera seu componente militar. Os esforços internacionais foram bem-sucedidos em assegurar certo nível de ordem pública, mas não conseguiram promover taxas expressivas de crescimento econômico e redução da pobreza. Em torno de metade das ruínas e destroços dos prédios destruídos na tragédia não foram removidos, e ainda houve uma epidemia de cólera (levada pelos soldados estrangeiros) que matou 7 mil pessoas.

Os doadores internacionais enviaram cerca de US$3,6 bilhões para a reconstrução do Haiti após o terremoto, mas boa parte do dinheiro ficou presa na lentidão burocrática para desembolso e aplicação. Outro problema é o do gráfico abaixo: mais de 90% da ajuda externa foi para ONGs ou organizações internacionais. Quase nada ficou com o governo haitiano ou com empresas locais. Um diplomata brasileiro que trabalhou no país me disse que o foco das instituições estrangeiras é em projetos pontuais, por vezes meritórios, mas que não subsitutuem o Estado - este termina enfraquecido, até porque os profissionais mais capazes preferem trabalhar para as ONGs, que pagam melhores salários.

O melhor redutor de pobreza no Haiti tem sido a emigração. Há cerca de meio milhão de haitianos nos Estados Unidos, e suas remessas para os parentes em casa ajudam bastante a economia. No Canadá, lar de outra diáspora significativa, a governadora-geral do país é uma imigrante do Haiti. Pesquisadores tem sugerido que a melhor maneira de auxiliar o desenvolvimento haitiano é criar programas de vistos de trabalho, mesmo que temporários. Tais indicações foram feitas pensando nos EUA, mas aplicam-se também ao Brasil.

O governo brasileiro estima que 4 mil haitianos estejam no país atualmente. A maioria entra pela Amazônia e às vezes usa o território do Brasil apenas como passagem para chegar a outras nações sul-americanas, como Colõmbia e Peru. A região tem crescido muito, o desemprego está em baixa histórica. No Brasil, aproxima-se das taxas de pleno emprego e já há carência de mão-de-obra em vários setores da economia. Além disso, com fertilidade de 1,9 filho por mulher, a população brasileira em breve começará a diminuir. Em 2030, segundo projeção do IBGE.

O Brasil precisa de imigrantes, como nota meu amigo e colega de FGV, Oliver Stuenkel – ele mesmo nascido na Alemanha, educado em Harvard e um exemplo do imenso potencial da atração de estrangeiros para a sociedade brasileira. Alguns virão de países latino-americanos e caribenhos: Bolívia, Paraguai, Peru, Haiti. Outros, da Europa em crise, retomando os antigos fluxos de Portugal, Espanha e Itália.

O governo brasileiro se assustou com o aumento da migração haitiana para o país e reagiu limitando os vistos a 100 por mês. As autoridades temem que a situação saia de controle, mas o Brasil não tem sequer 1% de estrangeiros na população, pode absorver muito mais. Não apenas em regiões tradicionais de atração econômica, como São Paulo, mas no Nordeste e no Centro-Oeste, que crescem há anos acima da média nacional.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O Tour Latino de Ahmadinejad

O presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, está em meio a uma visita por quatro países da América Latina (Venezuela, Equador, Nicarágua e Cuba), lançada como um contraponto às pressões crescentes que sofre dos Estados Unidos, União Européia e Israel, e da perda de influência no Oriente Médio para a Turquia, em consequência da Primavera Árabe. Mas o tour mostra os problemas da diplomacia iraniana, pela exclusão das maiores economias do continente (Brasil, México e Argentina). É uma demonstração de fragilidade, não de força.

Irã e Argentina tem péssimas relações desde a década de 1990, quando houve dois atentados terroristas de grandes proporções em Buenos Aires, que detruíram a embaixada de Israel e a sede da AMIA, principal associação judaica do país – a Argentina tem a maior comunidade de judeus da América Latina. Investigações apontaram para o grupo libanês Hezbolá, com participação de autoridades iranianas – há mandados de prisão expedidos pela Interpol contra um ex-presidente e ex-ministros da República Islâmica, e contra o atual titular da pasta da Defesa, general Ahmed Vahidi.

As relações entre Irã e Brasil cresceram em importância no governo Lula, quando o mercado iraniano despontou como o 2º maior para as carnes brasileiras, atrás somente da Rússia. Brasil e Turquia tentaram mediar um acordo para maior supervisão internacional do programa nuclear iraniano. A iniciativa tinha falhas, mas era promissora. Foi, contudo, rejeitada pelos Estados Unidos, que lideraram a imposição de novas rodadas de sanções. Como argumenta o acadêmico iraniano Tita Parsi, exilado nos EUA: a diplomacia de Obama, que prometeu um “novo começo” com o Irã, falhou e os dois países continuam presos em impasses sem fim.

A presidente Dilma Rousseff tem se afastado do Irã. O Brasil passou a votar contra o país no Conselho de Direitos Humanos da ONU. As importações brasileiras do Irã caíram, embora as exportações tenham crescido 10%. Os bancos brasileiros têm se recusado a financiar operações no Irã, por temores de expansão das sanções contra o país, e pelo medo generalizado de nova guerra na região. Ahmadinejad entendeu o recado e desta vez excluiu o Brasil de seu itinerário latino-americano.

Há pouco que o Irã possa ganhar com os países visitados por seu presidente. Há parcerias significativas somente com a Venezuela (onde prevalecem indefinições quanto à saúde e o futuro de Hugo Chávez, que disputa reeleição em 2012) e projetos pontuais com as outras nações da viagem, em especial com o Equador.

A boa notícia para o Irã é que apesar das dificuldades, sua economia continua a crescer. Como se vê pelo gráfico acima, a chave são as exportações de petróleo para China, União Européia, Índia e Japão. Os chineses, seus maiores compradores, opõem-se à expansão das sanções para o setor petrolífero, de modo que esses instrumentos de pressão continuam a ser muito limitados no caso iraniano, voltados mais para instituições como a Guarda Revolucionária, do que para o país como um todo.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

História do PT

"História do PT", de Lincoln Secco (USP) traça um panorama muito bom do surgimento em 1980 e do crescimento do Partido dos Trabalhadores, com sua trajetória rumo a uma agenda reformista social-democrata e um processo de profissionalização - e burocratização - que o afastou de sua base nos movimentos sociais. O livro supre a lacuna da falta de estudos sobre o mundo partidário da redemocratização brasileira, em contraste com as análises já clássicas sobre as siglas do período 1946-1964 (PSD, PTB, UDN).

Secco é integrante do PT e seu ponto de vista é de alguém da ala esquerda do partido, incomodado com os escândalos de corrupção mas também com as guinadas ideológicas. Boa parte das 300 páginas do livro é dedicada aos embates entre os grupos socialistas do PT e correntes que defendem posições mais moderadas e falta uma discussão semelhante sobre as idas e vindas da sigla com a Igreja Católica, fundamental em sua fundação e ocasionalmente uma adversária em conflitos relacionados a temas como aborto, casamento gay e até projetos de infraestrutura como a transposição do rio São Francisco.

O historiador ressalta que o PT foi criado a partir de grupos heterogêneos: sindicalistas, organizações marxistas, intelectuais e católicos de esquerda, políticos oriundos do MDB. Ele frisa que "a diversidade regional e social brasileira criou inúmeros PT diferentes". No Rio de Janeiro, por exemplo, o partido tinha um perfil bem mais ligado à classe média. Boa parte dos anos iniciais é dedicada à organização do PT, e Secco mostra como a idéia inicial de uma gestão interna mais democrática, centrada nos núcleos de base, e se concentrou num modelo mais hierárquico, dependente das contribuições financeiras dos políticos e ocupantes de cargo, e não das doações dos militantes. Nesse ponto, falta um debate com teóricos políticos, como Robert Michels, já que esse fenômeno acontece muito, em diversos países

O autor destaca os vínculos iniciais do PT com o marxismo e sua relação conturbada com a herança política do Partido Comunista Brasileiro e sua conversão na prática - mas não na teoria - à social-democracia: "sua transformação se deu de maneira molecular especialmente durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso". José Dirceu foi essencial como dirigente para comandar essa transição, afirmando após a queda do muro de Berlim que "era preciso abandonar a identidade com o socialismo real, aquele ´cadáver insepulto´". O ponto nunca foi fácil no PT e levou a dissidências das tendências internas de extrema-esquerda, levando à formação do PSTU. Em parte isso também seria importante na criação do PSOL, mas nesse aspecto a corrupção foi igualmente um fator-chave.

Secco faz boa análise das campanhas presidenciais de Lula, culminando com a vitória em 2002 em meio às polêmicas internas pela Carta ao Povo Brasileiro, que setores mais à esquerda chamavam de Carta aos Banqueiros: "O que o PT tinha era um conjunto de políticas sociais e o compromisso cada vez maior de evitar rupturas que afastassem a lucratividade do setor financeiro e uma vaga defesa do mercado interno de massas."

O autor compartilha a visão da esquerda do PT de hostilidade com relação à grande imprensa (às vezes com razão, como nas vergonhosas manipulações da mídia em 1989), mas também tem uma hipótese interessante que explica parte dessa postura: "O PT pareceu muitas vezes ter herdado a técnica do leninismo sem os seus valores, o que deriva do fato de muitos dirigentes da máquina partidária terem sido revolucionários na juventude."

O livro não é uma história do governo Lula, mas naturalmente há a análise do que significou para o PT virar o partido que liderava a coalizão de governo. Secco examina o lulismo como uma aliança na qual a primazia estava no capital financeiro e na população mais pobre, em detrimento da classe média: "Muitas políticas públicas democratizaram as relações com a sociedade civil, o que catapultou lideranças setoriais do partido...Mas como as mudanças não eram velozes nem radicais, o PT tinha o ônus de defender o Governo sem o bônus de ditar-lhes os rumos."

O escândalo do mensalão é bem estudado no livro, com passagens muito boas sobre as reações de vergonha e desilusão entre os militantes, alguns dos quais agredidos nas ruas porque usavam estrela ou camisa do partido. Segundo Secco, os dirigentes pouco fizeram e a ação de Lula foi essencial: "A defesa de um projeto de poder dependia da figura pessoal dele, e não mais do partido, acossado por denúncias." Para o autor, além do prestígio individual do presidente, o que salvou o governo foi o medo da oposição conservadora de um confronto aberto, e sua expectativa de que o PT estaria enfraquecido para as próximas eleições - não de todo inviável, pois a popularidade de Lula chegou a cair a 45%.

Ele deixaria o cargo com mais de 80%, mas o mensalão teve forte impacto, ainda não totalmente compreendido - o mais óbvio foi afastar os dirigentes tradicionais do coração do poder e abrir caminho para Dilma Rousseff, que se filou ao PT somente em 2001. Não há uma discussão no livro sobre o futuro do partido, mas a meu ver ele passa pela reafirmação da tradição da esquerda trabalhista brasileira - inicialmente rejeitada pelo PT, mas cada vez mais aceita. Ao fim e ao cabo, a trajetória petista está ligada menos ao marxismo e mais à herança de Getúlio Vargas, que para o bem e para o mal continua a ditar as referências ideológicas da política do Brasil.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Panorama das RIs nos Estados Unidos

Nesta semana foram divulgados os resultados de uma ampla pesquisa sobre os professores e pesquisadores de Relações Internacionais nos Estados Unidos, que nos dão excelente panorama do país que lidera a disciplina. Os dados mostram acadêmicos bem sintonizados com as prioridades diplomáticas americanos, mas com posições políticas divergentes dos últimos governos.

O gráfico que abre o post ilustra a convergência de pesquisadores e líderes políticos quanto aos principais temas da agenda global para os Estados Unidos: a ascensão da China, as turbulências no Oriente Médio (não por acaso, ênfase da nova estratégia de segurança nacional anunciada na 5ª feira) e a crise econômica internacional. Os acadêmicos olham com mais atenção para assuntos sócio-ambientais como pobreza e mudança climática, as pessoas em postos-chave no Estado preocupam-se mais com questões de segurança, como terrorismo, armas de destruição em massa e ciber-ameaças.

Os pesquisadores de RI são sobretudo homens (no Brasil, é bem mais equilibrado, e a maior parte das minhas turmas é formada por mulheres) e cerca de dois terços identificam-se politicamente como “liberais” – o que classificaríamos por aqui como “progressistas” ou “centro-esquerda”. É um contraste forte com a sociedade americana como um todo, bem mais conservadora, onde os liberais estão em geral na faixa dos 25%-30%.

Isso explica também porque a maior parte dos acadêmicos avalia negativamente os últimos presidentes americanos (se bem que isso vale para multidões, do Tea Party ao Occupy Wall Street) e se mostram bastante céticas das doutrinas de intervenção militar humanitária, tão em voga ultimamente nos Estados Unidos. Como se vê pelo gráfico abaixo, somente as ações contra Kadafi foram bem aceitas e a possibilidade do uso da força contra Irã e Paquistão encontra resistências muito maiores.

Do ponto de vista teórico, a corrente mais seguida pelos acadêmicos é o construtivismo, seguida do liberalismo institucional. Os realistas – que eu diria que ainda dominam a cena de RI no Brasil, embora o quadro mude rapidamente – são apenas 16%. Para quem não participa dos debates universitários, o resumo da ópera é que a maior parte dos pesquisadores acredita que identidades, culturas e instituições são temas essenciais nas RIs, em contraste com as abordagens clássicas da Guerra Fria que priorizavam discussões sobre poder, em especial capacidades militares.

Contudo, a lista dos acadêmicos mais influentes da área – conforme indicados por seus colegas – ainda cita em destaque muitos expoentes do realismo, como John Mearsheimer, Kenneth Waltz, Henry Kissinger. Natural, visto que praticamente todos que trabalham com Ris foram formados lendo seus trabalhos, mesmo que para elaborar seus próprios estudos em críticas às abordagens tradicionais.

Infelizmente, não temos no Brasil um panorama tão amplo e detalhado do campo acadêmico de RIs, que cresceu muito a partir da década de 1990. O mais próximo que dispomos é o estudo realizado por Amaury de Souza há alguns anos sobre as opiniões da comunidade de política externa brasileira, que inclui meio universitário, empresários, diplomatas e jornalistas.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

As Disputas pela Liderança na China

Em entrevista recente ao Valor Econômico, Matias Spektor ressaltou a necessidade do Brasil compreender a China e ir além da fobia protecionista em suas relações com a nova potência global que já é o principal parceiro econômico brasileiro. O ano de 2012 é importante para esses esforços, porque no segundo semestre haverá a renovação da liderança política chinesa, um processo complexo de negociações e acordos comparável somente à escolha de um novo papa.

Desde a década de 1990 a China deixou de ser um país no qual o poder político é exercido de forma hiper-centralizada por um só homem, como fora no tempo de Mao Tsé-Tung ou mesmo no de Deng Xiaoping. O modelo atual é o de um sistema colegiado, cuja base são cerca de 200-400 pessoas que constituem o Comitê Central do Partido Comunista. Destas, 25 formam o Poliburo. O coração do Estado é o Comitê Permanente do Poltiburo, composto por um número variável entre 5 e 9 integrantes (foto). Todos civis – marca da notável subordinação das Forças Armadas ao Partido, ao contrário do que ocorre em outros regimes comunistas, como Coréia do Norte ou Cuba.

No outono deste ano o Comitê Permanente será renovado e um novo presidente será escolhido. Duas facções disputam o poder: a do atual mandatário, Hu Jintao e do premiê Wen Jiabao, é classificada como “esquerda” ou “populista”. É formada majoritariamente por tecnocratas que ascenderam de famílas pobres ou de postos políticos no interior do país. sua principal preocupação é com as desigualdades e problemas sociais trazidos pelo crescimento econômico acelerado e pelas reformas pró-mercado dos últimos 30 anos, com atenção para segmentos como camponeses e operários.

O outro grupo é chamado de “direita” ou “elitista” e se apóia sobretudo na nova classe empresarial e na nova classe média, com a manutenção do processo de modernização econômica. Dentro do Partido, seus expoentes são os “príncipes”, pessoas que ascenderam no aparato político a partir de postos ministeriais ou na cúpula militar ocupados por seus pais, como foi o caso do ex-presidente Jiang Zemin. Em geral são pessoas cujas carreiras estão ligadas ao próspero sul chinês, em cidades como Xangai e Cantão.

Hu e Wen terão que se aposentar em 2012 por conta de limites de idade e há, evidentemente, enorme especulação sobre quem poderia sucedê-los – Bo Xilai e Xi Jinping pela direita, Li Keqiang pela esquerda. As disputas entre as duas facções não são um jogo no qual o vencedor leve tudo: há inúmeros acordos, barganhas, distribuição de cargos etc. O grupo da esquerda tem prevalecido mas ambas as linhas compartilham objetivos essenciais, como a manutenção da alta taxa de crescimento econômico, a preservação da estabilidade e o desejo de restaurar o status chinês como uma grande potência. Os métodos desejados variam muito e pode-se esperar um acirramento de tensões nas circunstâncias da crise global, da redução do aumento do PIB, do agravamento de problemas ambientais e das pressões para que a China assuma maiores responsabilidades na política internacional.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Segurança Pública na América Latina: tem solução

A América Latina é uma das regiões mais violentas do mundo (vide gráfico do Índice da Paz Global) e 2011 foi um ano no qual os homícidios bateram recordes na Venezuela e em alguns países da América Central, como Honduras e El Salvador. Mas em meio a essas más notícias, houve avanços significativos no Brasil e no México. Há muito em comum nas iniciativas bem-sucedidas em ambas as nações, assim como no que deu certo na Colômbia.

No Brasil, 1 milhão de pessoas morreram em crimes violentos desde 1980, e não à toa a violência foi apontada em dezembro pela população como sua principal preocupação, pouco à frente da sáude. O destaque mais famoso são as Unidades de Polícia Pacificadora instaladas em 18 das cerca de 600 favelas do Rio de Janeiro. Embora elas sozinhas não expliquem os ótimos resultados, as taxas de homicídio no estado caíram de mais de 70 por 100 mil habitantes, em fins da década de 1990, para menos de 30. Ainda é um número muito alto para os padrões internacionais, mas marca um avanço notável.

No México, cerca de 50 mil pessoas foram mortas nos conflitos com o tráfico desque que o presidente Felipe Calderón decretou “guerra às drogas” em 2006. O cenário mais violento reflete as mudanças mexicanas para o crime global: o país deixou de ser apenas uma rota para acessar os Estados Unidos e virou importante por seu próprio mercado interno, com as quadrilhas passando a disputar o controle do território com a polícia. Os indicadores do México estão longe de serem os piores da América Latina, mas a deterioração acelerada das condições de segurança e o impacto para os EUA deram ao tema visibilidade bem maior do que a situação pior que existe em muitos de seus vizinhos.

Há um padrão claro nas respostas bem-sucedidas ao crime na região: em todas elas há um esforço consciente e consistente do Estado em (re)tomar áreas de onde havia sido expulso, ou nas quais nunca tivera presença forte. Essas ações envolvem parcerias amplas do poder público com a sociedade e não se limitam ao aspecto policial e militar, abrangendo políticas sociais e de infraestrutura, e novas abordagens de policiamento comunitário, resolução pacífica de conflitos e uso de armamento não-letal. Isso vale para as favelas brasileiras e colombianas, ou para regiões-problema como Ciudad Juaréz no México, na fronteira com os Estados Unidos, ou parcelas mais isoladas da zona rural da Colômbia.

O ponto mais importante é que desde a bem-sucedida ofensiva colombiana contra o narcotráfico e as guerrilhas, abandonou-se certo fatalismo na América Latina de que os problemas de segurança pública só seriam resolvidos quando a pobreza fosse eliminada. A reconquista da ordem pública caminha junto com melhoras na situação econômica, mas o importante é que ela tem avançado mesmo em países nos quais os efeitos da crise global chegaram com certa força, como Brasil e México. Na Venezuela, a alta de 10% no preço do petróleo em 2011 disponibilizou mais recursos para o Estado, mas ainda assim a violência piorou.