quarta-feira, 30 de junho de 2010

A Economia da África



No próximo mês darei uma série de aulas sobre África e estou revendo os dados mais atualizados sobre o continente, como o relatório da McKinsey sobre as perspectivas econômicas africanas. A última década foi excepcional para a região: sua economia cresceu a 4,9% ao ano, o dobro dos últimos 20 anos, e o PIB chegou a cerca de US$1,6 trilhão – comparável ao do Brasil e da Rússia.

Em grande medida o crescimento foi impulsionado pelo boom nas commodities, que respondem por cerca de 24% desse aumento. Mas setores de serviços, como comércio (13%) e transportes/comunicações (10%) também foram importantes para o novo patamar econômico da África e refletem as tendências da expansão da infra-estrutura e das necessidades de uma população urbana mais numerosa.

O relatório divide as economias africanas em quatro grandes blocos, mostrados na figura que abre o post. O mais interessante é o que agrupa os países de maior diversificação e sofisticação: África do Sul, Egito, Tunísia e Marrocos e o caso bastante particular das Ilhas Maurício, uma zona de exportação muito bem-sucedida. Os seja, os extremos geográficos (sul e norte) do continente. Mas há uma parcela significativa de nações intermediárias, em progresso, como Quênia, Gana, Senegal, Uganda.

A McKinsey cita com admiração a urbanização acelerada do continente, que já alcançou 40% da população, taxa semelhante àquela observada na Índia. Interpreto esses dados de modo mais sombrio. As cidades africanas incharam na maior taxa mundial (52 têm mais de um milhão de habitantes), crescendo de maneira desordenada, abrigando refugiados de guerras ou simplesmente pessoas que fugiam da miséria rural e procuravam se inserir na rede de clientela e de serviços dos centros urbanos. As maiores cidades do continente, como Cairo e Lagos, são profundamente deficientes em termos de qualidade de habitação e saneamento.

Contudo, o acesso à escola melhorou muito. As taxas médias para a região são de 75% de crianças matriculadas no ensino básico, e 35% dos adolescentes no ensino médio. Naturalmente, a qualidade da educação é toda uma outra questão, mas ao menos o primeiro passo está dado.

Um gargalo que permanece é do infraestrutura. Os indicadores de energia e transporte para a África são apenas a metade daqueles registrados nos países dos BRICs. Mas esse quadro tem mudado com uma enxurrada de investimentos estrangeiros, em especial da China - o setor cresce a taxas de dois dígitos por ano.

A importância dos vínculos econômicos sul-sul também é ilustrada pelo comércio exterior da África – metade dele se faz entre nações do continente e outros países em desenvolvimento, sobretudo na Ásia. Mais uma vez, o impacto da locomotiva chinesa.

A África também tem sido importante como destino de negócios para as empresas do Brasil. O agronegócio é particularmente interessante. Segundo a McKinsey, a região dispõe de 60% das terras aráveis ainda não-exploradas do planeta. E a Embrapa brasileira abriu escritório em Gana para coordenar seus projetos no continente. A expectativa é grandiosa: que a empresa possa fazer pela savana algo semelhante ao que realizou pelo cerrado, transformando esse bioma numa fronteira agrícola em expansão.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Romantismo: uma questão alemã



“Foi um tempo perigoso para jovens inteligentes... extremamente excitante e tensa, a vida se movimentava entre diversos extremos.”

O principal argumento deste excelente livro do filósofo e jornalista Rudiger Safranski é que o romantismo alemão foi uma reação ao racionalismo do Século das Luzes com profundas implicações para a arte e a política da Alemanha não só no início do século XIX, mas com ecos na ascensão do III Reich e até nas revoltas sociais de 1968. As distintas manifestações românticas têm em comum a valorização das emoções, a ânsia pelo segredo e pelo mistério, a vontade de tornar especial o cotidiano. Como escreveu Eichendorff, “E o mundo começa a cantar, se apenas achas a palavra mágica.” As correntes libertárias priorizavam a autonomia do indivíduo diante das convenções sociais, outras abordagens preconizavam a comunidade e as tradições acima dos desejos pessoais.

Safranski identifica o auge do romantismo alemão entre a Revolução Francesa e a década de 1830. O ímpeto inicial veio do movimento “Sturm und Drang”, de Goethe e Schiller, que contrapunha aos acontecimentos políticos franceses a necessidade de uma profunda transformação no espírito alemão, uma nação dividida em múltiplos reinos, principados, ducados nos quais “tudo estava fragmentado, estreito e pequeno”.

A filosofia cumpriu papel importante nesse processo, com os escritos de Herder e Fichte, defensores de que cada nação tem sua tarefa no curso da história mundial, e à Alemanha estava reservado um grande destino. Mas se os primeiros românticos estavam mais preocupados com poemas de amor, contos de fada e lendas medievais, as guerras napoleônicas tornaram o movimento uma questão política, intensamente nacionalista e um tanto agressiva. Por ironia, muito desse espírito foi transferido para os socialistas e outros grupos de esquerda, que criticavam os românticos por seu desinteresse pelos assuntos públicos: “Os sonhos gerais de libertação continuavam românticos, mas o comportamento pessoal não deve sê-lo”.



Para Safranski, existe uma tensão não-resolvida no romantismo entre a reação ao desencantamento do mundo moderno, com a busca pelo exótico e pelo diferente, e uma certa nostalgia da paz burguesa, da vida simples do campo ou do período medieval. Essa inquietação é bem sintetizada nos versos de Holderlin: “Por que nunca dorme, pois / o ferrão no meu peito?”.

Tais contradições experimentam diversos retornos na vida alemã, diante das crises sociais trazidas pela rápida industrialização do país, e pelas rivalidades internacionais crescentes. O III Reich é apenas a versão mais catastrófica de uma tendência perigosa que está presente em Wagner, Nietzsche e outros: “Procura-se na política algo que jamais se encontrará ali: a salvação, o verdadeiro ser, a resposta às últimas perguntas, a realização dos sonhos, a utopia da vida que deu certo, o Deus da história, o apocalipse...”

sexta-feira, 25 de junho de 2010

O Profeta



Este excelente filme de Jacques Audiard é uma versão contemporânea, e francesa, para a tradição dos dramas prisionais caros ao cinema dos Estados Unidos. O contexto social é o da busca pela identidade numa Europa fraturada por conflitos culturais e religiosos – dentro e fora dos muros da cadeia.

O protagonista é Malik, um rapaz de origem árabe preso por agredir um policial. Com apenas 19 anos, semi-analfabeto e sem família ou amigos para ajudá-lo, é presa fácil para as gangues rivais que disputam o controle da prisão. Até que recebe – como diria dom Corleone – uma oferta que não pode recusar. César, um velho corso que praticamente manda na cadeia, o recruta para assassinar um preso árabe que irá depor num processo importante.

Malik ascende na hierarquia da prisão como um faz-tudo para os corsos, que parecem uma mistura de mafiosos com criminosos políticos – há um movimento separatista na ilha na qual nasceu Napoleão. Os corsos operam numa rede étnica bastante fechada, mas o rapaz aos poucos conquista a confiança e mesmo um certo afeto por parte de César. Os demais corsos estão sendo transferidos ou libertados e César se vê cada vez mais sozinho e isolado diante dos árabes, cuja explosão demográfica está mudando o equilíbrio de forças dentro da cadeia.

Aos poucos Malik começa a ser designado para missões políticas para César, que lhe arranja liberdade condicional de modo que ele possa passar alguns dias fora da prisão. Malik começa a intermediar negociações complexas entre os corsos e outros grupos, e inicia suas próprias e lucrativas iniciativas comerciais.

Contudo, Malik segue um criminoso de segunda categoria para os corsos, com freqüência sendo ofendido com xingamentos étnicos e religiosos. À medida que inicia uma amizade com outro preso árabe, o rapaz desenvolve uma autoconsciência crescente de sua identidade e começa a manobrar sua posição de intermediário para deflagrar uma guerra étnica que mudará o jogo dentro da cadeia.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Instantâneos do Século XXI



Em julho lecionarei na Casa do Saber o curso “Instantâneos do Século XXI – Grandes mudanças no cinema, na literatura e na sociedade”. A idéia é discutir em quatro aulas o que a arte produzida nos últimos 10 anos tem a nos dizer sobre o mundo contemporâneo.
Estruturei o curso em quatro aulas: terrorismo/guerra; celebridades/líderes, economia global e uma sessão dedicada ao olhar atual sobre as utopias do século passado. É muito comum que eu cite filmes e romances nos meus debates a respeito de Ciência Política, de modo que a idéia de um curso inteiro para abordagens artísticas é um desdobramento lógico.

Eis alguns dos autores que pretendo utilizar:

Na literatura e no teatro: Ian McEwan, Mohsin Amid, Eduardo Mariani, Aravind Adiga, Tom Stoppard, Michael Frayn, J.M. Coetzee, Mia Couto.

No cinema: Robert Redford, Clint Eastwood, Walther Moreira Salles Jr., Costa-Gavras, Neill Blomkamp, Ari Folman, Fernando León de Aranoa, Juan José Campanella, Roman Polanski.

Meu objetivo é fazer um apanhado geográfico bastante abrangente, com artistas da Europa, EUA, América Latina, Ásia e África. Afinal, este século se inicia sob o signo das potências emergentes, fora do mundo ocidental.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Ditadura e Repressão



Quando comecei a trabalhar no meu livro sobre “Ditaduras Contemporâneas”, um amigo me chamou a atenção para a lacuna existente na Ciência Política sobre a comparação de regimes autoritários. De modo que é excelente o lançamento brasileiro de “Ditadura e Repressão”, do cientista político Anthony Pereira, que dirige o Instituto do Brasil na King´s College, em Londres.

Seu livro é uma comparação de como três ditaduras militares latino-americanas – Argentina (1976-1983), Brasil (1964-1985) e Chile (1973-1990) – lidaram com os processos judiciais contra os adversários políticos. Os caminhos diferentes influenciaram não só o modo como a oposição enfrentou o regime, mas tiveram conseqüências para o tipo de democracia que se instalou em cada país.

No Brasil, a ditadura manteve a maior parte da estrutura jurídica dos governos democráticos. Os adversários eram julgados por tribunais militares, mas com a participação de juízes e advogados civis. Havia relativo espaço para a ação da defesa, que aproveitou essas brechas para conseguir reduções de pena e absolvições. A pena de morte foi reestabelecida, mas não chegou a ser implementada. Apesar disso, a tortura era uma prática comum e quase sempre ignorada pelos tribunais. E no caso da guerrilha do Araguaia, a repressão governamental se deu à margem do sistema judicial, com muitas execuções sumárias.




No Chile, a ditadura de Augusto Pinochet seguiu uma trajetória diversa. Os inimigos do regime eram julgados por tribunais militares especiais – Conselhos de Guerra – que não existiam nas administrações democráticas. Havia pouquíssima atuação dos advogados e juízes civis. Execuções ilegais foram comuns, em especial nos dois primeiros anos da ditadura, como na infame Caravana da Morte. A pena de morte foi legalmente reestabelecida e executada em diversos casos.

A Argentina constitui o caso mais extremo. A maior parte da repressão ocorreu totalmente à margem do sistema judicial, com prisões e execuções ilegais nos campos de concentração do regime, como a Escola de Mecânica da Marinha. Isso refletiu a desconfiança dos militares argentinos com juízes e advogados, que em ditaduras anteriores, como a do general Juan Carlos Onganía (1966-70) libertaram vários presos políticos.

Pereira analisou também como as democracias ressurretas das décadas de 1980/90 lidaram com o legado autoritário. A Argentina foi o país que mais empreendeu esforços para punir os crimes cometidos pelas ditaduras, encarcerando ex-chefes de Estado e prendendo centenas de pessoas. No Chile, esses processos também ocorreram, mas de modo mais limitado. E no Brasil, houve uma lei de anistia que impediu esse tipo de ação judicial – o que Estado fez foi indenizar em dinheiro as pessoas perseguidas pela ditadura.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A Política da Copa



O desempenho da seleção brasileira na Copa rende um bom texto sobre catástrofes humanitárias, mas hoje vou abordar o evento da perspectiva da política. É a primeira Copa realizada na África e um teste importante para a capacidade de um país do continente sediar uma competição internacional de grande porte. Se tudo correr bem, abre-se a porta para a realização de outros eventos semelhantes, como Olimpíadas.

As apostas são mais altas, claro, na África do Sul, com a expectativa de receber cerca de 370 mil turistas, e investimentos em torno de US$12,5 bilhões. Abaixo do que era esperado inicialmente. As preparações para a Copa foram complexas, com atrasos no cronograma das obras e greves de operários e de seguranças, inclusive agora, com os jogos já iniciados. Outra decepção foi a pequena quantidade de turistas vindos de países africanos: apenas 3% do total.

Os custos e receitas das últimas Copas não seguiram padrão linear. A disputa na Coréia do Sul e no Japão, em 2002, foi de longe a mais rentável. A da África do Sul, evidentemente, significa grandes despesas com a construção da infraestrutura.
A Copa também uma oportunidade rara para países muito isolados internacionalmente tentarem alcançar audiência mais ampla. As lágrimas do camisa 9 da Coréia da Norte, durante a execução do hino no jogo contra o Brasil, fizeram mais por humanizar o país de Kim Jong-Il do que todas as bombas nucleares daquela ditadura. O Zimbábue não está na competição, mas conseguiu que a seleção brasileira jogasse um amistoso contra seu time nacional – bela propaganda para Robert Mugabe.



Países da Europa e da América Latina são, como sempre, os favoritos para vencer a Copa. Curiosamente, as potências emergentes estão quase excluídas da competição. O mau desempenho da China no futebol é um caso conhecido, e também chama a atenção a ausência de times do Oriente Médio, região que adora o esporte, e na qual as partidas por vezes servem de estopim para conflitos políticos.

Ainda sobre o tema: Henry Kissinger comenta como os estilos de jogar futebol refletem a política externa de cada país.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O Declínio do Egito



Vai ser preciso tempo até ficar definido com clareza quem ganhou com as recentes crises no Oriente Médio, mas já está bastante evidente que o Egito é um dos principais derrotados. Impressiona o contraste entre a liderança regional que o país exerceu nas décadas de 1950/1970 e o papel secundário que tem desempenhado diante da ascensão de nações não-árabes, como Turquia e Irã.

O Egito foi um dos primeiros territórios árabes a se separar do império otomano, mas a busca por autonomia (por exemplo, sob o governo de Mohmamed Ali na primeira metade do século XIX) esteve permeada pelas intervenções estrangeiras: a invasão de Napoleão, o colonialismo britânico. Em 1952, um grupo de jovens oficiais do Exército derrubou o rei Farouk e proclamou uma república, baseada nos ideais do nacionalismo árabe e de vago socialismo econômico. Seu líder, o coronel Gamal Nasser, tornou-se a principal figura política do mundo muçulmano, e um jogador importante na política internacional.

Nasser (foto abaixo) nacionalizou o Canal de Suez, mas envolveu o Egito em três guerras desastrosas: contra Grã-Bretanha, França, Israel, no conflito interno do Iêmen e terminou por se aliar à União Soviética. Morreu desiludido, mas com ampla gama de admiradores nos países árabes. Foi sucedido por outro militar, Anwar Sadat, que após a derrota na guerra do Yom Kippur reorientou sua política externa, foi a Israel pedir paz e firmou acordos com os Estados Unidos. Foi morto em 1981 por um jovem tenente que o considerava traidor do Islã e do Egito.



O vice-presidente Hosni Mubarak, um general da Força Aérea, assumiu o poder com o assassinato de Sadat. Em quase trinta anos de governo ele alinhou o Egito firmemente com os Estados Unidos e Israel. Se Nasser foi o principal defensor da causa palestina, Mubarak colaborou com os israelenses na guerra de Gaza. Pesa sua dependência da ajuda econômica estrangeira, e também sua percepção de que depende dessas alianças externas para fazer do filho seu sucessor, numa disputa que pode se tornar acirrada com a entrada em cena de rivais como Mohamed El-Baradei, o ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atômica. O declínio econômico do país é impressionante, com a favelização do Cairo e a deterioração generalizada dos serviços públicos.

Mubarak conquistou apoio do Ocidente colocando-se como a opção mais segura contra o fundamentalismo islâmico – a Irmandade Muçulmana tem sido uma força importante no Egito desde os tempos de Nasser. Com as perseguições que sofreram, muitos militantes religiosos fugiram para a Arábia Saudita e, entre outros pupilos, formaram Osama Bin Laden. Embora seja oficialmente proibida, influencia de maneira decisiva a sociedade egípcia, com ativistas liderando associações profissionais, organizações cívicas e com presença no parlamento.

As tímidas pressões dos Estados Unidos pela democracia no Egito foram abandonadas com medo de que a Irmandade Muçulmana fosse a principal beneficiada. Ainda assim, houve avanços importantes no equilíbrio de forças no país. O Egito hoje é um regime híbrido, onde a autocracia enfrenta restrições constitucionais crescentes.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Ventos do Mundo



No início do ano eu lecionava na Academia Militar sobre os conflitos envolvendo a comunidade de brasileiros no Suriname e comentei a respeito da grave crise que houve no país no início da década de 1980, quando um golpe colocou no poder uma ditadura pró-Cuba, e os Estados Unidos ameaçaram invadir o Suriname, e pediram a colaboração do Brasil. Quem desarmou a situação foi um jovem embaixador, Luiz Felipe Lampreia, que negociou um programa de ajuda e cooperação que esvaziou a influência dos cubanos. Os bastidores desta história – e de outras crises diplomáticas, sobretudo na América do Sul – são narrados em “O Brasil e os Ventos do Mundo”, as memórias de Lampreia.

Diplomata de carreira desde a década de 1960, Lampreia se destacou como colaborador próximo do chanceler do presidente Ernesto Geisel, Antônio Azeredo da Silveira, e foi ele mesmo ministro das Relações Exteriores no governo de Fernando Henrique Cardoso. Exerceu diversos postos no Itamaraty, com ênfase em temas ligados à economia internacional e ao comércio exterior. Exerceu funções de liderança em situações delicadas, como a rivalidade nuclear com a Argentina, as negociações para a exploração do gás na Bolívia e os conflitos envolvendo dentistas brasileiros em Portugal. A negociação no Suriname foi seu primeiro posto como embaixador, quando tinha pouco mais de 40 anos – extremamente jovem para os padrões de promoções lentas do serviço diplomático brasileiro.

Embora a maior parte da carreira de Lampreia tenha transcorrido na Europa e nos Estados Unidos, sua atuação como chanceler (1995-2001) foi marcada por uma grande atenção aos assuntos da América do Sul. Ele narra em detalhes a bem-sucedida mediação brasileira que encerrou o longo conflito entre Peru e Equador, os esforços para evitar golpes militares no Paraguai, as expectativas e decepções da formação do Mercosul, os desentendimentos com a Argentina de Carlos Menem (abaixo, Lampreia com Menem e Fernando Henrique) e sua perplexidade diante da ascensão de Hugo Chávez na Venezuela.



A análise acadêmica sobre a política externa de Fernando Henrique costuma destacar a estratégia da “autonomia pela integração”, baseada na adesão a regimes internacionais e acordos da ONU como um modo de amenizar os efeitos mais nocivos da ordem global no pós-Guerra Fria. Contudo, o enfoque das memórias de Lampreia é outro. O ex-chanceler mostra ceticismo diante da inoperância das Nações Unidas e reitera sua admiração pela doutrina do “pragmatismo ecumênico e responsável” de Azeredo da Silveira, que tradicionalmente é associada a um maior ativismo no Terceiro Mundo.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Quarto Round



O Conselho de Segurança da ONU aprovou com 12 votos favoráveis a quarta rodada de sanções contra o Irã. Pela primeira vez houve países contrários: Brasil e Turquia. O Líbano se absteve. Há muitas divergências entre os vencedores, em particular pela oposição da China a medidas que atinjam duramente a República Islâmica. A Rússia também expressou sérias reservas. O resultado foi um pacote de sanções muito frágeis, sem condições para forçar mudanças de atitudes no governo iraniano.

O cerne da nova iniciativa é a Guarda Revolucionária, o corpo militar de elite que tem ganhado importância política como instrumento da repressão ao movimento democrático no Irã. A Guarda tem ampla rede de atividades econômicas e seu banco foi um dos alvos deste pacote.

O ponto com maior potencial de conflito é a inspeção de navios que sejam suspeitos de carregar material nuclear. Isso cria o risco de um enfrentamento com mortes, como o que ocorreu em Gaza na semana passada.

As sanções da ONU são consideradas o prelúdio para a imposição de novas medidas contrárias ao Irã por parte dos Estados Unidos e da União Européia. De 1979 em diante, Washington acumula longa lista de sanções contra Teerã.

O argumento dos países que apoiaram as sanções é que sua implementação mostraria a determinação da comunidade internacional em fazer com que o Irã cumpra o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, e que isso forçaria Teerã a negociar.

Dificilmente isso irá acontecer, uma vez que a economia iraniana não será muito atingida pelas novas medidas acordadas pelo Conselho de Segurança. O mais provável é que o Irã procure se apresentar como vítima da intransigência das grandes potências, talvez tentando algum gesto contra Israel (como enviar navios para tentar furar o bloqueio de Gaza) e levando adiante sua política de diversificação de alianças.

Afinal, em meio à pressão sobre seu programa nuclear, em maio o governo iraniano conseguiu ser eleito para a Comissão da ONU sobre o Status das Mulheres. Nada mal para um país onde elas desfrutam de tão poucos direitos. Em junho se completa um ano da “Revolução Verde”, pró-democracia, e de sua repressão pelas autoridades.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O Escritor Fantasma



O cineasta polonês Roman Polanski está preso por ter estuprado uma adolescente na década de 1970. Sua história de vida trágica incluiu a perda de sua ex-esposa (então grávida do primeiro filho do casal), a atriz Sharon Tate, que foi assassinada por um psicopata. É incrível que Polanski tenha o mínimo de equilíbrio emocional necessário para dirigir um filme e quase inacreditável que ele o faça com extraordinária competência. Seu último lançamento, “O Escritor Fantasma”, mistura política, espionagem, direitos humanos e política internacional.

O protagonista é um homem cujo nome nunca é dito, interpretado por Ewan McGregor. Ele trabalha como ghost writer para celebridades – seu último caso foi a autobiografia de um mágico – e acaba sendo designado para escrever as memórias de Adam Lang (Pierce Brosnan), um carismático ex-primeiro-ministro britânico. O redator anterior apareceu morto em circunstâncias misteriosas e a conjuntura é dramática: Lang está sob investigação do Tribunal Penal Internacional, por crimes de guerra. Ele é acusado de ter cedido suspeitos de terrorismo para o programa secreto da CIA que os torturava em ditaduras aliadas.

O escritor é confinado numa ilha na Costa Leste dos EUA, onde Lang se refugiou com a esposa, Ruth (Olivia Williams) e alguns assessores. À medida que começa o trabalho, surgem dúvidas, peças que não se encaixam. Lang é um mulherengo boa-vida, e sua decisão de entrar para a carreira política não faz sentido. Sua esposa parece muito mais inteligente e dedicada, mas a relação dos dois é péssima. Diversos dados biográficos do ex-primeiro-ministro são confusos e de algum modo essa indefinição parece relacionada ao desaparecimento do outro ghost writer. Simultaneamente, o crescimento dos protestos sociais contra Lang colocam o personagem de McGregor numa situação ética bastante incômoda.

Num clima de paranóia que vai se tornando cada vez mais asfixiante, o escritor fantasma se envolve numa trama de espionagem que aborda as guerras no Oriente Médio, os conflitos em torno do terrorismo e a responsabilidade moral dos governantes. Tudo isso com uma interpretação muito, muito interessante do atual estágio das “relações especiais” entre EUA e Reino Unido.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Uma Mulher no Comando



Li por estes dias “A Woman in Charge – the life of Hilary Rodham Clinton”, biografia escrita pelo veterano jornalista Carl Bernstein. Suas quase 600 páginas de texto se concentram excessivamente nos escândalos do governo de Bill Clinton e pouco tratam de política pública, mas ao fim do livro o autor realmente consegue dar um perfil detalhado de Hilary: uma mulher inteligente, determinada e ambiciosa, mas se tornou uma pessoa muito diferente dos seus ideais de juventude.

Hilary e Bill se conheceram na década de 1970, quando cursavam Direito em Yale. Foi um grande amor, mas cuja intensidade é contrabalançada por brigas terríveis, motivadas sobretudo pelos incontroláveis impulsos do ex-presidente com relação a sexo extraconjugal. Tudo isso vem dos dias de estudante de Bill Clinton, e só piorou com o fascino que ele despertou como governador e presidente.

Curiosamente, Hilary era considerada a mais promissora do jovem casal. Ao chegar a Yale, ela já havia aparecido na revista Newsweek como um exemplo da nova geração política, em função de seu discurso de formatura. Era respeitada como líder estudantil e ativista em defesa dos direitos das crianças. Vinha de uma sólida família da classe média de Chicago. Bill também não era brincadeira: havia superado uma infância na pobreza do Arkansas, num lar completamente desestruturado, para estudar em Georgetown e Oxford. Sua inteligência, charme e carisma eram tão grandes que muitos dos que o conheceram à época já lhe diziam que um dia ele seria presidente dos EUA.

Bill queria ser político e convenceu Hilary a largar um futuro promissor em Washington (ela trabalhou no comitê do Congresso que preparou o processo de impeachment contra Richard Nixon) para ir morar com ele em seu estado natal, o Arkansas, um dos mais pobres dos EUA. Sua carreira foi meteórica: procurador-geral ao sair da faculdade, governador aos 31. Mais do que primeira-dama tradicional, Hilary foi sua parceria (e mesmo mentora) política, ajudando-o a formular a reforma da educação que foi seu principal trunfo nos vários mandatos à frente do Arkansas. Mas sua atuação como advogada para grandes empresas que tinham negócios com o estado se deu numa zona sombria de conflitos de interesses e informações privilegiadas que voltaram para assombrá-la em Washington.

O casal Clinton chegou à capital em 1993, quando ele tomou posse como presidente após 12 anos de governos republicanos. A vitória foi apertada – 60% dos eleitores votaram nos outros candidatos, George H. W. Bush e Ross Perot – e o severo déficit no orçamento dificultava muito a margem de manobra da Casa Branca. O país também se encontrava muito radicalizado politicamente, com os democratas sendo tratados como perigosos radicais por boa parte da população.

Hilary quis ser uma primeira-dama fora do molde tradicional, e exercer papel de destaque na formulação de políticas públicas. Ela se encarregou da reforma do sistema de saúde, mas o projeto se tornou um dos piores fracassos do governo Clinton. Mas Hilary ganhou popularidade exercendo a função da “mulher paciente e solidária”, apoiando o marido em seus numerosos processos por infidelidade.

No fim do governo, ela decidiu ter uma carreira política própria – em parte, uma reação ao caso Monica Lewinski – e foi eleita para o Senado, por Nova York. Bernstein pouco aborda esse período, mas comenta que Hilary se destacou como parlamentar, embora tenha adotado decisões controversas como apoiar a guerra no Iraque.

O livro termina com as expectativas para as primárias democratas de 2008. Como sabemos, Hilary perdeu para Barack Obama, mas o novo presidente a nomeou Secretária de Estado. Não é uma tarefa fácil.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

De Ataturk a Erdogan



A aproximação entre Brasil e Turquia tem me inspirado a ler sobre a política e história contemporânea do país, em especial os últimos 20 anos. Estou impressionado com o alto nível de formulação diplomática turca, como se pode ver no artigo assinado pelo primeiro-ministro Recep Erdogan.

O Império Otomano foi um dos principais poderes globais entre os séculos XV e XVII, entrando depois num prolongado declínio. Ele foi destruído na I Guerra Mundial, perdendo seus domínios árabes e sendo ocupado militarmente pelas potências ocidentais. Mustafá Kemal, (foto) o mais competente de seus generais, liderou uma revolta contra a invasão e tomou o poder. Depôs o sultão, aboliu o califado islâmico e proclamou uma república secular, centrada no povo turco.

O general passou a ser conhecido como Kemal Ataturk (“pai dos turcos”) e as Forças Armadas se tornaram as guardiãs do caráter laico do Estado. Em diversos momentos intervieram na política, promovendo golpes militares para afastar governantes que o Exército julgava estarem se inclinando demais para o islamismo. A Turquia é membro fundador da OTAN e foi aliada constante dos EUA e da Europa na Guerra Fria.

O mundo pós-11 de setembro abalou várias destas certezas. A opinião pública turca tem se mostrado cada vez mais dividida diante das duas linhas mestras da política nacional – Estado laico e aliança com o Ocidente. O parlamento turco negou aos Estados Unidos o direito de usar seu território para atacar o Iraque. O partido Justiça e Desenvolvimento (AK), fundado em 2001, governou a Turquia nos últimos 10 anos, com agenda de reformas econômicas que renderam crescimento acelerado mesmo diante da crise européia. Mas o AK é considerado por muitos de seus adversários como uma sigla “islâmica”, ameaça ao secularismo turco. Erdogan (foto abaixo) ficou preso durante meses por conta dessa acusação, mesmo depois de ter exercido cargos-chave, como prefeito de Istambul.



No poder, o AK contra-atacou com uma série de processos contra o grupo Ergenekon, que reúne principalmente oficiais de alta patente do Exército, acusando-os de tramar um golpe de Estado e planejar atentados terroristas, como assassinar o escritor Ohran Pamuk, Nobel de Literatura e crítico do militarismo turco. Os acusados afirmam ser inocentes e dizem que o AK tem forjado provas, utilizado escutas clandestinas e outros métodos ilegais. O mais conhecido economista turco, Dani Rodrik, professor em Harvard, é um dos que condenam o AK – seu sogro, um general, foi preso sob acusação de conspiração.

Para além das disputas pelo poder, uma das novidades mais interessantes da política turca é o movimento Fetullah Gulen, uma rede de ativistas sociais organizada em torno de um escritor e líder religioso moderado. Gulen vive há mais de uma década nos Estados Unidos, temendo ser atacado na Turquia, e tem coordenado iniciativas de destaque como a Plataforma Abant, um fórum internacional pelo aprofundamento da democratização turca, mudanças nas relações com a minoria curda e diálogo entre culturas.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Guerrilha no Paraguai?



Em abril e maio o Paraguai esteve em “estado de emergência” em cinco departamentos do norte do país, onde operaria o “Exército do Povo Paraguaio (EPP)”, uma guerrilha de extrema-esquerda. Contudo, há razões para desconfiar da existência do grupo nos termos em que tem sido descrito. Certos indícios apontam para outra história – pode muito bem ser uma quadrilha a serviço de facções de extrema-direita.

O EPP tornou-se conhecido em 2009, quando o jornal ABC Color publicou um documento atribuído à guerrilha. Segundo o texto, o EPP foi criado em 2008, como dissidência do Partido Patria Libre, de orientação comunista. Membros dessa sigla foram presos nos últimos anos em função do envolvimento com crime organizado, como o seqüestro e assassinato da filha do ex-presidente Raul Cubas.

Em 2009 e 2010, o EPP foi acusado de diversos crimes, sobretudo ataques a policiais e seqüestros de fazendeiros. As estimativas são de que o grupo seria pequeno, talvez 20 ou 30 pessoas. Em contraste, o estado de emergência decretado pelo presidente Fernando Lugo mobilizou cerca de três mil policiais e militares. Sua vigência resultou em algumas prisões e várias denúncias de corrupção e abuso de poder por parte das autoridades paraguaias.

Há dúvidas com relação à existência do EPP, e de suas vinculações políticas concretas.

Até este momento, o único documento atribuído ao grupo é o texto publicado pelo ABC Color. Trata-se de um jornal ligado ao general Lino Oviedo, que tentou dar um golpe militar na década de 1990 e foi derrotado por Lugo nas eleições presidenciais. Imprensa e autoridades têm declarado indícios que ligariam o EPP às FARCs e ao Sendero Luminoso, mas não apresentaram provas. É o tipo de acusação que parece ser feito sob medida para criar comoção na opinião pública.

Os crimes atribuídos ao EPP ocorrem num momento difícil para Lugo. O presidente enfrenta fragilidades na sua heterogênea coalizão de apoio, problemas com sua base eleitoral devido aos escândalos sexuais em que se envolveu e até ameaças de impeachment pelo Congresso. Seu vice pertence ao Partido Liberal e é visto com muito mais simpatia pelos conservadores do que o ex-bispo católico. Meus amigos paraguaios com freqüência comentam sobre os riscos de algum tipo de golpe ou ação de força contra Lugo.

A maior parte da esquerda paraguaia apóia o presidente, embora muitos movimentos sociais estejam descontentes com sua política econômica e com o espaço que os liberais desfrutam em seu governo.

Naturalmente, é possível que o EPP seja mesmo como foi descrito: um pequeno grupo de extrema-esquerda, atuando de maneira violenta e fora do jogo político tradicional. Há precedentes na América Latina. O ataque do MTP argentino ao quartel de La Tablada, em pleno governo democrático de Raúl Alfonsín, parece ter sido exatamente isso.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Ataque em Gaza



O ataque israelense à flotilha que levava ajuda humanitária à Faixa de Gaza resultou em nove mortos e 679 ativistas presos, num desastre de relações públicas para o governo de Israel, com a eclosão de protestos pelo mundo, em especial nos países muçulmanos, e a retirada dos embaixadores do Brasil e da Turquia. O contexto do conflito: a luta pelo poder em Gaza, desde que o Hamas ganhou as eleições em 2006.

Os israelenses ocuparam a Faixa de Gaza em 1967, na Guerra dos Seis Dias, e se retiraram dela em 2005. O Hamas surgiu como um movimento de resistência à invasão estrangeira, com laços com a Irmandade Muçulmana no Egito e na Arábia Saudita. Após a saída dos israelenses, o grupo logo se tornou a principal força política em Gaza e conquistou a maioria no parlamento da Autoridade Nacional Palestina. O resultado foi uma guerra civil entre Hamas e Fatah, no qual esta manteve o controle sobre a Cisjordânia.

Ao passo que a Fatah se aproximou de Israel no processo de paz de Oslo, na década de 1990, o Hamas mantém a oposição ao país. EUA, União Européia, Japão e Canadá o consideram um grupo terrorista e sanções internacionais foram impostas ao Hamas após sua vitória eleitoral. Israel iniciou também um bloqueio terrestre e marítimo ao território, que continua até hoje. Às vezes os comboios humanitários são autorizados a passar, às vezes são retidos. Mas nunca com a violência brutal demonstrada nesta semana.



Contudo, o bloqueio não resultou no isolamento do Hamas, mas na redefinição de suas alianças internacionais. O vácuo político deixado pelo Ocidente foi preenchido pelo Irã e pela Turquia. Os iranianos passaram a auxiliar o Hamas, expandindo sua influência na questão palestina. Os turcos, como parte de sua nova estratégia de afastamento de Israel e reforço do engajamento com os povos muçulmanos no Oriente Médio e Ásia Central (a foto que abre o post é de um porto em Gaza, observem a bandeira turca ao lado da palestina).

O movimento de solidariedade internacional à Gaza foi bem-sucedido em construir uma ampla rede de apoio global, envolvendo ativistas, artistas e parlamentares de vários países. Essas alianças tornaram o ataque à flotilha uma questão que repercutiu imediatamente nos principais jornais do mundo, e que acentuou as tensões nas relações entre Israel e Estados Unidos.

Mesmo o Egito, que nos últimos 30 anos tem sido um aliado importante dos israelenses, decidiu abrir sua fronteira com Gaza, desse modo rompendo na prática o bloqueio, pelo menos temporiamente. A situação deve se agravar nos próximos dias, na medida em que novos navios seguem para o litoral de Gaza, para provocar reações israelenses.