sexta-feira, 30 de abril de 2010

Azarão Colombiano



Nesta semana Antanas Mockus, ex-prefeito de Bogotá e candidato do Partido Verde à Presidência da Colômbia, passou para o primeiro lugar nas pesquisas à sucessão de Álvaro Uribe, desbancando o oficialista Juan Manuel Santos - ex-ministro da Defesa, primo do vice-presidente, sobrinho-neto de outro presidente e membro da família que é a maior empresária de mídia do país. Mockus é uma personalidade original e controversa que mostra que a alta popularidade de Uribe não significa a adesão da população à continuidade de seu projeto político.

Conheci Mockus há alguns anos, quando ele visitava o Brasil como consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Na ocasião, conversamos bastante. Entrevistei-o sobre suas experiências como prefeito de Bogotá e fui o mediador num debate entre ele e estudantes brasileiros e colombianos. Saí bem impressionado do encontro e intrigado com vários aspectos de sua personalidade.

Filho de imigrantes da Lituânia, ele é matemático, e havia feito carreira como professor e administrador universitário antes de entrar na política. É um forasteiro na elite colombiana, onde as famílias tradicionais - Vargas Lleras, Restreppo, Uribe, Santos - costumam ocupar os principais cargos do Estado por gerações a fio. Não se encaixa facilmente nas classificações fáceis de esquerda x direita que em geral dominam as disputas eleitorais na Colômbia.

Suas duas gestôes à frente de Bogotá foram inovadoras, com a implementação de medidas inusitadas para combater a violência cotidiana - uso de mímicos para ridicularizar motoristas infratores das leis de trânsito, dias de "vacinação contra a violência", toque de recolher para homens em algumas noites de sexta-feira. Suas iniciativas de marketing pessoal foram mais controversas, como se fantasiar de super-herói e casar num circo - nem sua mãe compareceu à cerimônia. Promoveu uma dura repressão contra vendedores de rua, que também foram bastante criticadas. Mas o resultado geral foi admirável: a taxa de homicídio caiu para menos da metade.



Mockus é um homem de grande habilidade no trato com a mídia e se saiu muito bem nos debates de TV (assim como outro azarão, Nick Clegg, do Partido Liberal-Democrata britânico) e usa com maestria novas tecnologias, como redes sociais - sua página no Facebook tem mais de 400 mil seguidores. Isso ajuda a explicar seu acelerado e surpreendemente crescimento, em poucas semanas. Sua mensagem - continuar a luta com as guerrilhas, mas respeitar os países vizinhos e focar a ação do Estado em educação e cultura - encontrou eco entre os eleitores. Aparentemente, os colombianos admiram a restauração da segurança e do crescimento econômico por Uribe, mas estão cansados da violência oficial, dos escândalos de corrupção, dos vínculos das autoridades com os grupos paramilitares.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Tempos Interessantes



Ontem abrimos os trabalhos da turma 2010 do MBA em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, onde leciono, e realizamos um encontro com as turmas dos dois anos anteriores. Cada professor fez uma pequena palestra sobre os temas de sua especialização e abordei os acontecimentos na América Latina na primeira década do século XXI, no que chamei de "Tempos Interessantes" para a região.

Comecei contando uma história. Dez anos atrás, eu era repórter de um grande jornal, quando houve a insurreição indígena no Equador. O acontecimento foi recebido com deboche na redação, com alguns colegas tratando o fato como uma espécie de comédia esdrúxula. Usei o caso como exemplo das atitudes de preconceito e incompreensão do Brasil com o resto do continente, e chamei a atenção para como isso dificulta as análises das transformações regionais.

Ao mesmo tempo, há no Brasil demanda crescente por informações especializadas sobre a região. Me pergunto se o tipo de carreira que tenho - com contribuições para a imprensa, universidades, movimentos sociais, órgãos governamentais - seria possível em outra época.

Do ponto de vista econômico, abordei o modo como as relações econômicas entre os países da América Latina se tornaram mais intensas. O comércio entre eles aumentou e o continente conquistou espaço como local para a ação internacional das empresas brasileiras. Simultaneamente, a dependência energética brasileira com respeito aos vizinhos ficou clara nas crises envolvendo o gás natural da Bolívia e a eletricidade do Paraguai.

Na política, entre tantas abordagens possíveis, frisei o caráter incompleto da transição democrática na América Latina. A democracia ainda não se tornou o "único jogo na cidade", com golpes ocorrendo na Venezuela e em Honduras, violência política na Colômbia. Citei também a ameaça do crime organizado em boa parte do continente, do México ao Brasil. Quando quadrilhas de bandidos controlam pedaços consideráveis do território, discussões sobre democracia se transformam em exercícios metafísicos.

Mas é claro que essa transição incompleta convive com um processo rico e dinâmico, repleto de acertos e de erros, de experiências democráticas no continente. As parcelas mais pobres da população vivem uma mobilização política expressiva, e o crescimento econômico acentuado da última década resultou em avanços significativos no combate à pobreza, com o surgimento de uma nova classe média. Porém, persistem desigualdades sociais muito sérias, mesmo em países que passam por grandes aumentos no PIB, como Argentina e Venezuela - o Brasil tem se saído melhor, apesar de crescimento mais moderado.

Por fim, tratei da nova "identidade BRIC" do Brasil, perguntando se o aspecto latino-americano da política externa brasileira não acabaria em segundo plano.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Curso de Colisão



No princípio era o Ford Modelo T. Para fabricá-lo, o velho Henry inventou a linha de produção em massa (inspirado nos processos de trabalho dos matadouros de Chicago) e o salário de US$5 por dia, muito alto para os padrões da época, que permitia aos operários se tornarem consumidores das mercadorias que eles mesmos fabricavam. Era o início de um sonho, e ele era tão americano quanto a torta de maçã.

Paul Ingrassia é um jornalista que ganhou o Pulitzer cobrindo a crise da indústria automobilística americana para o Wall Street Journal. Seu recém-lançado livro "Crash Course: the American automobile industry´s road from glory to disaster" é um belo presente para quem quer entender que as turbulências econômicas pelas quais passam os EUA têm raízes antigas.

Para Ingrassia, o modelo da indústria automobilística americana era baseado na combinação do oligopólio da produção, concentrado nas Três Grandes de Detroit (Ford, GM e Chrysler) e no monopólio da força de trabalho, controlado pelo poderoso sindicato United Auto Workers (UAW), consolidado após greves históricas durante o New Deal. Essa mistura foi altamente inovadora e eficiente entre as décadas de 1930-1960, mas não conseguiu competir a contento com o novo mundo pós-choques do petróleo e com rivais internacionais mais ágeis, como os japoneses.

Detroit já foi um centro de inovação tão fascinante quanto o Vale do Silício. Se a Ford inventou a produção em massa, a GM criou o modelo da moderna empresa: marketing amplo, operações descentralizadas com controle unificado das finanças. As linhas de montagem ofereceram oportunidades de ascensão social para gerações de trabalhadores. O automóvel se tornou parte essencial do estilo de vida dos EUA, mudando a estrutura das cidades e a cultura popular. Modelos como Cadillac e Mustang se transformaram em ícones de épocas inteiras.



O que é bom para a GM é bom para os Estados Unidos, dizia Charles Wilson, presidente da empresa, que serviu como Secretário da Defesa de Eisenhower. Robert McNamara, da Ford, o sucedeu no cargo, sob Kennedy. A indústria sofreu seus primeiros baques com movimentos sociais como a cruzada por segurança nos automóveis, lançada por Ralph Nader, e pressões de ambientalistas para regular emissão de poluição e consumo de combustível. Também houve escândalos financeiros envolvendo executivos das Três Grandes.

Foi por essas rachaduras que os japoneses entraram com força no mercado americano, oferecendo carros menores e mais eficientes, com processos produtivos muito mais modernos do que os modelos já ultrapassados usados em Detroit. Os generosos acordos trabalhistas com a UAW, símbolos da era da afluência, não ajudaram as empresas a competir.

O declínio americano era inevitável? Não, afirma Ingrassia. Ele cita a surpreendente guinada da Chrysler sob Lee Iaccoca, que durante alguns anos foi o executivo mais famoso do mundo. Ou como as Três Grandes prosperaram na década de 1990 produzindo grandes veículos utilitários esportivos (SUVs) que os japoneses demoraram para compreender. Os erros de Detroit foram arrogância, má administração, estruturas rígidas difíceis de mudar. Ele dedica vários capítulos para dissecar essas falhas, desde a tentativa de reestruturação da GM (lançamento do Saturn, com um modelo trabalhista e de produção diferente) até os acordos malsucedidos das Três Grandes com firmas européias, como a Daimler-Benz.

Ingrassia é bastante cético das perspectivas das Três Grandes em se reerguer, mesmo com a ajuda do governo americano, que agora, pasmem, é o acionista majoritário da GM! A Chrysler, depois do fracasso do acordo com os alemães, pediu falência e pasou ao controle da Fiat, que não é exatamente um marco de eficiência em gestão. Ingrassia aponta também a ascensão de novos competidores internacionais, como os indianos.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Os BRICs e o Câmbio Chinês



Dias atrás os BRICs fizeram sua segunda reunião de cúpula, em Brasília. O bom desempenho dos países do grupo (com exceção da Rússia) em meio à crise econômica global os tornaram estrelas em rápida ascensão também na política internacional. Contudo, muitos analistas mantém-se céticos quanto à capacidade de constituírem uma aliança coerente, devido à diversidade dos perfis comerciais, dos regimes de governo e do longo histórico de rivalidades entre os membros asiáticos da sigla. Os debates sobre o câmbio chinês são um teste importante para a possibilidade dos BRICs se tornarem uma coalizão coesa. Tema, aliás, de excelente artigo publicado nesta semana na Economist.

A China tem mantido sua moeda subvalorizada em relação ao dólar, o que a deixa ainda mais competitiva no comércio internacional. O lado ruim, para o governo chinês, é que isso cria pressões inflacionárias, que até aqui tem sido mantidas razoavelmente sob controle. O problema pode ficar mais sério: a inflação de grande porte ao fim do período nacionalista (décadas de 1910-1940) é um trauma nacional, e o surto de menor escala ocorrido nos anos 80 contribuiu bastante para a eclosão dos protestos da Praça da Paz Celestial.



Os Estados Unidos têm pressionado a China para que mudem sua taxa de câmbio e diminuam um pouco a pressão sobre os mercados americanos. Os chineses têm se recusado de maneira resoluta. O Brasil tem uma moeda sobrevalorizada com relação ao dólar, e portanto ainda mais no que diz respeito ao yuan chinês. Resultado: a política cambial de Pequim prejudica bastante o comércio exterior brasileiro com a China, principal destino das exportações do país. A novidade é que agora Brasil e Índia se uniram para solicitar ao governo chinês que valorize sua moeda. Será que os pedidos dos amigos em Brasília e Nova Délhi serão ouvidos com mais simpatia do que as demandas de Washington?




À primeira vista, a resposta seria "não", dada a rigidez com a qual a China defende seus interesses econômicos. Mas Pequim tem buscado, de modo muito consistente, apresentar uma face suave para os parceiros no mundo em desenvolvimento, participando de todas as principais coalizões desses países (acima). Não é impossível que as concessões pudessem abarcar também aspectos econômicos significativos, em especial pela mensagem que passaria à comunidade internacional: a de que os BRICs virariam interlocutores essenciais para as grandes questões globais, inclusive as que lidam com assuntos duros, como economia.

Ainda sobre os BRICs: não deixem de ler o perfil de Jim O´Neill, o executivo do banco de investimentos Goldman Sachs que criou a sigla num estudo sobre perspectivas da economia internacional. O texto foi publicado pelo Financial Times e é uma jóia do jornalismo de política e de negócios.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Brasília, 50 Anos



Brasília completa nesta quarta 50 anos e nas palavras do jornal Valor Econômico, "inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek em 1960 como símbolo do futuro, vai comemorar seu meio século envergonhada de sua elite política atrasada, que se especializou unicamente em dividir butins confiscados de todo o país." Sim, mas é preciso avaliar também os impactos econômicos - positivos e negativos - da construção da cidade.

Levar a capital para o interior de modo a impulsionar o desenvolvimento econômico do Centro-Oeste e do Norte era um velho projeto que estava presente na primeira Constituição republicana, de 1891. No entanto, não foi uma questão levantada pelos diversos governos desenvolvimentistas que se seguiram à Revolução de 1930, mais preocupados com a industrialização do Centro-Sul.

A idéia tampouco constava dos projetos iniciais de JK, que só a encampou quando foi perguntado num comício se cumpriria a determinação constitucional de transferir a capital para o interior. Em retrospecto, é fácil entender seu entusiasmo: ele havia sido prefeito de outra cidade planejada (Belo Horizonte), tinha um histórico com renovação urbana (o complexo da Pampulha) e as crises políticas de 1954-1956 o deixaram horrorizado com a estridência da imprensa carioca pró-golpe, contra Vargas e contra ele mesmo.

A construção da capital se encaixou mal no Plano de Metas com o qual JK pretendia fazer o país avançar "50 anos em 5" e a falta de planejamento financeiro adequado resultou num surto inflacionário que teve grande responsabilidade na crise econômica de 1961-1964, e na instabilidade que culminou na instalação da ditadura militar. Mas no médio prazo, a inauguração de Brasília e das rodovias que a ligaram aos extremos do país foram importantes para o desenvolvimento.

Do ponto de vista do urbanismo, Brasília é a concretização do ideário do movimento moderno, que queria racionalizar o que via como a situação caótica das grandes cidades, encaradas como focos de problemas sociais como más moradias, crime, dificuldades de circulação do trânsito e das pessoas. A nova capital queria ser outra coisa: setores separados para residências, comércio, trabalho, vias expressas para automóveis no lugar de ruas para pedestres.

Vivi em Brasília por um ano, e não gostei da cidade. Senti falta do calor humano e mesmo da confusão que se encontram nas ruas do Rio de Janeiro. A sociabilidade de condomínios fechados, shopping centers e clubes é muito diferente daquela a que estou acostumado. Compartilho as críticas a Brasília feitas por urbanistas como James Holston e Marshall Berman e acrescento os problemas cotidianos de morar numa cidade com planejamento rígido, pensada para ter 500 mil habitantes no anos 2000, e que tem quase seis vezes esse total. O mais impressionante é a segregação social, com os pobres empurrados para longe (cidades satélites, municípios do entorno) - o Distrito Federal tem a mais séria desigualdade social do país. Consequência lógica de um modelo urbano que sempre os excluiu, não obstante as ideologias progressistas de seus fundadores.

Capitais são importantes não só como sedes administrativas, mas pelas imagens e representações dos países. Torço para que Brasília seja capaz de se reinventar e concretizar a modernidade sonhada em sua utopia. Porque hoje, ela manifesta o que há de arcaico na política nacional.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Falcão e Pomba



Há alguns dias chegou meu pacote da Amazon com os lançamentos recentes sobre política internacional. O primeiro da lista foi “The Hawk and the Dove: Paul Nitze, George Kennan and the history of Cold War”, do jornalista Nicholas Thompson, neto de Nitze. É uma biografia dupla, que por meio da amizade entre dois pesos pesados da diplomacia americana conta os dilemas que os Estados Unidos enfrentaram na segunda metade do século XX, principalmente a escolha de instrumentos políticos e econômicos versus o uso do poder militar para alcançar os objetivos do país.

Kennan (foto acima) é o mais conhecido da dupla. Diplomata de carreira, ele serviu na Europa durante a ascensão do nazismo e o início da Segunda Guerra Mundial, sendo depois transferido para a União Soviética. Era o número 2 na embaixada em Moscou quando o conflito terminou e os Aliados começaram a se distanciar. Em seu famoso “Longo Telegrama”, Kennan delimitou a estratégia para lidar com a URSS: a “contenção” (containement). Isto é, os EUA não deveriam travar uma nova guerra, agora contra Stálin, mas usar sua influência para impedir o avanço do comunismo. Convocado de volta a Washington, Kennan foi decisivo em elaborar uma série de iniciativas de política externa: o Plano Marshall, a criação da OTAN, a guerra da Coréia.

Nitze (foto abaixo) era um banqueiro de investimentos de Wall Street, recrutado para o serviço público durante a Segunda Guerra Mundial. Exerceu diversos cargos importantes no Departamento de Estado e no Pentágono, em geral lidando com temas de economia internacional ou assuntos militares, no fim da vida se tornando o principal negociador dos acordos de controles de armas nucleares entre EUA e URSS. Se Kennan se tornou famoso pelo Longo Telegrama, Nitze se destacou por um documento secreto: o NSC-68, que transformou a “contenção” criada por seu amigo numa doutrina militar de expansão das Forças Armadas e do arsenal nuclear.



Essa foi a origem da divergência ideológica crescente entre ambos. Kenann se tornou cada vez mais crítico às decisões governamentais, virando um opositor ferrenho da guerra do Vietnã e um apóstolo do desarmamento nuclear. Nitze serviu a seis presidentes desde Roosevelt, mas como seu neto observa com humor, brigou com todos e terminava os mandatos sempre exonerado, apenas para ser reconvocado pelo sucessor, que não podia prescindir de seu conhecimento enciclopédico sobre armamentos. Kennan também não tinha temperamento fácil: depressivo, cheio de dúvidas e angústias. Serviu dois breves períodos como embaixador, na URSS e na Iugoslávia, e ambos acabaram mal: foi expulso de Moscou por ordem de Stálin, e deixou Belgrado após uma disputa inútil com o Congresso americano, devido às discordâncias sobre um embargo comercial contra o regime presidido pelo marechal Tito. Floresceu como intelectual, escrevendo 17 livros, muitos deles premiados, e sendo uma voz importante no debate político até sua morte, com 102 anos.

É relativamente fácil enquadrar Nitze como um falcão. Ao fim da vida, ele foi um elo importante entre a ala mais à direita do Partido Democrata e os Republicanos, sendo um dos mentores para o movimento neoconservador. Classificar Kennan como pomba é um tanto mais complexo: ele manteve sempre ligações com os serviços de inteligência e segurança, ajudou a criar a CIA, foi consultor de diversas de suas operações clandestinas e auxiliou o FBI a vigiar grupos de esquerda nos EUA. Sua oposição à guerra não implicou simpatia pelos dissidentes, e atacou duramente estudantes, hippies e os ativistas da contracultura.




Os dois amigos viveram o auge de sua influência nas décadas de 1940-60 e impressiona ver como o debate sobre política externa americana perdeu coerência desde então, sobretudo no pós-Guerra Fria. A proliferação de pequenos grupos de interesse, a falta de conhecimento especializado sobre países como Afeganistão e Iraque e talvez um certo declínio da ética de serviço público que tanto marcou a geração de Kennan e Nitze formam um contraste desfavorável entre o período atual e a época retratada no livro.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Segurança Nuclear



Desde o fim da Guerra Fria, três países desenvolveram armas atômicas: Índia, Paquistão e Coréia do Norte. Eles se juntaram às outras seis nações que já possuem bombas nucleares: EUA, Rússia, Reino Unido, França, China e Israel. O Irã caminha para ser o décimo da lista. A Cúpula sobre Segurança Nuclear realizada em Washington com 47 chefes de Estado foi um esforço de Obama para dar legitimidade multilateral aos objetivos americanos de promover o que um ex-chanceler brasileiro chamava de "congelamento do poder mundial". É duvidoso que tenha sucesso.

Os Estados Unidos atacaram duas vezes o Japão com armas atômicas em 1945, e depois disso nunca mais esse tipo de bomba foi utilizada em conflitos bélicos, embora tivesse havido o risco de que isso acontecesse em outras ocasiões, sobretudo na crise dos mísseis cubanos, em 1962. Tampouco a posse de armas nucleares serviu para impedir guerras e ataques terroristas aos países que as possuem. Índia e Paquistão continuam a se engalfinhar pela Caxemira, e o mesmo vale para Israel e seus vizinhos árabes. Do mesmo modo, o gigantesco arsenal atômico da União Soviética não conseguiu impedir o esfacelamento do Estado, e nem sequer a derrota no Afeganistão (como os EUA já haviam aprendido na Coréia e no Vietnã), ou na Rússia de Ieltsin, na primeira guerra na Chechênia.

De modo que os benefícios das armas nucleares têm se mostrado bem menos generosos do que se costuma imaginar, e talvez por isso a proliferação atômica no mundo pós-Guerra Fria tenha sido bastante limitada. Nem Alemanha nem Japão desenvolveram essas armas, assim como outras nações com histórico de fragilidade militar e invasões estrangeiras, como Polônia e Coréia do Sul. A exceção da Índia e do Paquistão pode ser explicada pela ascensão do nacionalismo hindu, com o BJP fazendo do programa nuclear uma importante plataforma para sua vitória eleitoral na década de 1990. Medo do fundamentalismo islâmico no eterno rival, mas também receio pela potência ascendente da China, que havia humilhado o exército indiano na guerra no Himalaia, em 1962.

O que mudou esse cenário foi a agressividade da política externa americana no pós-11 de setembro. Embora o Iraque tenha sido invadido a pretexto de eliminar armas de destruição em massa, o que a guerra estimulou foi o efeito inverso: incentivou regimes hostis aos EUA a desenvolver armas atômicas como garantia de que não seriam atacados. No caso da Coréia do Norte, foi mais um empurrão num processo que vinha desde a década de 1990, quando Kim Il-Sung apostou no programa nuclear como modo de extrair auxílio econômico do Ocidente, no contexto da desintegração de seu patrono na URSS e nas reformas pró-mercado na China. No Irã, com seus vizinhos Iraque e Afeganistão ocupados por exércitos estrangeiros, não é de estranhar a histeria nacionalista no país, ainda mais tendo em conta que os iranianos sofreram cinco ataques militares no século XX (dois britânicas, dois russos, um soviético e um iraquiano).

O argumento de Obama de que é necessário conter a proliferação nuclear para impedir que bombas atômicas caiam nas mãos de terroristas é útil como estratégia de marketing político, e também para aprovar medidas mais eficazes de controle dos arsenais que já existem. Mas é precário para impedir que mais países se armem, uma vez que persistem as razões para seus medos e inseguranças e as grandes potências mantém enormes quantidades dessas armas.

No entanto, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU concordam com a continuação das sanções ao Irã, e o regime em Teerã está numa situação bastante difícil. Não é uma questão de justiça internacional, mas do medo que um Irã com armas nucleares se torne a grande potência regional no Oriente Médio, em momento em que seu rival tradicional (Iraque) está em ruínas e Israel demonstra fragilidade política pela instabilidade de suas coalizões governantes, pela estagnação do diálogo com os palestinos e pelas feridas não-cicatrizadas das recentes guerras no Líbano e na Faixa de Gaza. Para EUA, Rússia, China e União Européia, é mais interessante que o Golfo Pérsico continue uma área com lideranças fragmentadas por razões religiosas, étnicas e políticas, sem um Estado que predomine e possa opor uma posição conjunta às grandes potências.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Política Externa e Direitos Humanos



Conversei com um amigo que tem me ajudado no livro sobre os ditadores e comentei que o governo brasileiro tem se aproximado de todos os regimes autoritários que abordarei. Meu amigo sugeriu que eu dedique um capítulo para examinar criticamente os porquês dessas alianças diplomáticas. Ainda não sei se conseguirei fazê-lo, em razão das limitações de tamanho de uma publicação de bolso. Mas o assunto merece reflexão.

O Na Prática a Teoria é Outra (NPTO) tem feito um apanhado fantástico dos principais debates políticos brasileiros, e há alguns dias o tema foi política externa e direitos humanos. Aquele blog, como este, discorda das atuais posições diplomáticas do Brasil e advoga ações em defesa dos direitos humanos.

A região primordial da ação internacional humanitária brasileira deve ser a América Latina, onde o país tem interesses políticos e econômicos significativos, além da capacidade de influenciar positivamente as crises locais. Não importa muito o que o governo do Brasil diga de Mianmar ou da Arábia Saudita, mas são relevantes suas declarações sobre Cuba ou Colômbia.

O NPTO chama a atenção para o artigo de meu querido Idelber Avelar, que defende as posições do governo brasileiro com base em dois pontos principais: 1) a hipocrisia dos críticos, que atacam as violações de direitos humanos cometidas por regimes de esquerda, mas se calam diante de atrocidades mais sérias perpretadas pela direita; 2) Estados devem se pautar pela não-intervenção em outros países, e cuidar da proteção dos interesses de seus cidadãos.

O artigo do Idelber me impressionou pela virulência e agressividade, tão contrárias ao espírito fraterno e bem humorado do próprio autor. O ponto 1 é uma generalização injusta. Claro que há pessoas que só lembram dos direitos humanos na hora de criticar ideologias contrárias a sua, e isso tanto na direita quanto na esquerda. Mas há indivíduos e organizações que são coerentes em suas posições e atacam tanto a prisão de um dissidente em Cuba quanto um massacre realizado por paramilitares na Colômbia. Ou o fechamento de uma emissora oposicionista na Venezuela e a ocupação ilegal dos territórios palestinos por Israel.

O ponto 2 rende uma conversa mais interessante. A Constituição brasileira afirma que a política externa deve se pautar pelo princípio da não-intervenção, e, simultaneamente, pela prevalência dos direitos humanos e pelo fortalecimento da integração regional na América Latina. Tais diretrizes com frequência são contraditórias e costumam ser interpretadas da seguinte maneira: persuadir outros países a proteger direitos humanos e democracia, mediando crises e negociando pacificamente solução de conflitos, sem contudo agir unilateralmente ou forçar governos estrangeiros a atuar desta ou daquela maneira.



Nos fóruns internacionais, tradicionalmente o Brasil vota contra impor sanções a países que violem direitos humanos. Alguns estão entre seus maiores parceiros comerciais (China, Rússia, Venezuela) ou estão em áreas em que o governo brasileiro busca expandir influência política – África e Oriente Médio. Também pesa certo receio de que esses temas sejam usados para justificar intervenções contra o próprio Brasil. Por exemplo: questão indígena na Amazônia.

Contudo, as tradições não-intervencionistas do Brasil têm sido colocadas em xeque, e ocasionalmente modificadas, em função de transformações estruturais nas relações internacionais e na sociedade brasileira. Desde a Segunda Guerra Mundial e os traumas do totalitarismo e do Holocausto, o princípio da soberania absoluta dos Estados foi substituído por diversas abordagens que valorizam a segurança humana. As pessoas se tornaram sujeitos do direito internacional. Criaram-se sistemas de proteção dos direitos humanos que transcendem fronteiras. O da Organização dos Estados Americanos, da qual Colômbia e Venezuela são signatárias, é um dos exemplos mais sofisticados. A tendência se intensificou após a Guerra Fria, com os debates sobre Estados Falidos, crises humanitárias catastróficas (Congo, Ruanda, Sudão) e doutrinas polêmicas como a “responsabilidade de proteger”.



Embora o governo brasileiro tenha se mantido afastado das interpretações mais radicais, também abandonou suas posturas clássicas. No Haiti, por exemplo, o chanceler Celso Amorim fala em substituir a “não-intervenção” pela “não-indiferença”. Em conjunto com outros países latino-americanos, o Brasil ajudou a prevenir um golpe militar no Paraguai e reverter outro na Venezuela, tentando fazer o mesmo em Honduras. Tanto a Organização dos Estados Americanos quanto o Mercosul exigem a democracia como pré-condição para adesão.

A democratização da sociedade brasileira modificou bastante a agenda diplomática, incorporando temas ou mudando posições internacionais do Brasil em questões como combate ao racismo, defesa do meio ambiente e cooperação em políticas sociais. Ao longo da década de 1990, o governo brasileiro aderiu a quase todos os tratados globais de proteção dos direitos humanos, que incluem a prestação de contas das autoridades locais às organizações multilaterais. Até ditaduras como o Chile de Pinochet e a Cuba dos Castro ratificaram tais acordos, provavelmente porque não os levavam muito a sério.

Contudo, essas novidades positivas ainda não se consolidaram na política externa, em grande medida porque a atual geração de líderes de esquerda no Brasil ainda é muito marcada pela radicalização da Guerra Fria e pelo ideário terceiro-mundista que colocam temas como democracia e direitos humanos em segundo ou terceiro plano diante de valores como autonomia internacional e oposição às elites tradicionais.

O interesse nacional brasileiro é uma América Latina democrática, próspera e estável. Uma ditadura na Venezuela ou o terrorismo na Colômbia contrariam esses objetivos e criam todo tipo de problema: refugiados, risco de guerra civil, enfraquecimento do Estado, oportunidades de ação ao crime organizado e um ambiente de polarização que favorece a intervenção de potências extra-regionais.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

A Tragédia do Rio



A idéia era escrever um post sobre as oportunidades de negócios no Rio de Janeiro, depois que o estado conquistou o grau de investimento, na semana passada. Mas as tempestades destes dias mudaram a abordagem. Em 24 horas, choveu 282mm no Rio, o dobro do que em geral cai em todo o mês de abril. Quase 200 pessoas morreram e pelo menos o mesmo número está desaparecida ou soterrada. A capital estadual e Niterói foram as cidades mais atingidas. A maioria das vítimas está nas favelas, mas também houve deslizamentos e enchentes em bairros de classe média e alta.

A tragédia no Rio foi fruto de uma tempestade particularmente forte, mas também das deficiências do poder público, tanto na prevenção da catástrofe quanto na reação à crise. Ao longo da última década os gastos com contenção de encostas diminuíram bastante e os pontos de alagamento frequente no Rio e nas cidades vizinhas são célebres há décadas. Ainda assim, os governos se sucedem sem que consigam solucionar o problema. Como sempre ocorre nestas situações de emergência, a polícia militar e a guarda municipal desaparecem. Motoristas presos em engarrafamentos e alagamentos são assaltados, ou passam a noite nos veículos porque não há orientação sobre como resolver os nós do trânsito.

Meu bairro foi bastante atingido. Muitos mortos, árvores caídas. Estou sem luz há três dias, mas diante das tragédias que ocorreram nesta semana, é uma dor de cabeça trivial. A operadora de energia só dá respostas genéricas, mas o boato na vizinhança é que houve queda de postes e/ou destruição de transformadores.

Como fica o caos dos últimos dias à luz dos grandes eventos esportivos que o Rio sediará entre 2011 e 2016? A meu ver, a questão crucial não é a segurança pública, como tantas vezes se afirma, e sim a infraestrutura. Estradas, ruas, energia elétrica, obstáculos no trânsito. A região metropolitana do estado do Rio caminha sempre na linha da navalha, e basta um pequeno empurrão - um acidente mais grave numa via expressa importante, chuvas fortes, maior movimento em função de feriado prolongado - e temos o colapso do sistema. Oxalá o grau de investimento possa trazer os recursos necessários para a modernização local.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Terreblanche



No fim de semana foi assassinado um dos líderes da extrema-direita da África do Sul, Eugene Terreblanche. Aparentemente, não foi um crime político: segundo a polícia, ele teria sido morto por dois trabalhadores de sua fazenda, em razão de uma disputa salarial. Terreblanche já fora preso em 2001 por ter assassinado um dos funcionários em sua propriedade. Sua história, claro, é extrema. Mas nem tanto: desde o fim do apartheid, 3 mil fazendeiros brancos foram mortos na África do Sul, e no vizinho Zimbábue fugiram em massa após o confisco de suas terras pela ditadura de Mugabe.

A questão agrária no cone sul da África é um barril de pólvora, em função de um padrão de colonização muito particular. Na maioria do continente, a presença de colonos europeus foi bastante reduzida. Alguns poucos milhares, em geral administradores públicos ou militares. Mas na porção austral da região, o clima mais ameno propiciou a instalação de centenas de milhares de fazendeiros e comerciantes, sobretudo na África do Sul, Angola, Moçambique, Rodésia do Sul (o atual Zimbábue) e Quênia.

A instalação dos europeus se deu, claro, às custas da expulsão dos africanos de suas terras. Em geral após longas e sangrentas guerras coloniais – mais de 10 só na África do Sul, mas depois também por decisões administrativas dos governos. Durante o apartheid, as autoridades removeram diversas comunidades negras das cidades e zonas rurais que foram reservadas aos brancos e as instalaram à força em favelas como Soweto ou nos chamados bantustões/homelands, áreas destinadas para membros de determindadas etnias.



A ficção é que os bantustões seriam territórios independentes, cujos cidadãos permaneceriam temporiariamente na África do Sul, em busca de trabalho, mas sem direitos de cidadania. Os governos-fantoches das homelands eram pagos pelas autoridades do apartheid e alguns criaram pequenos impérios particulares, baseados em cassinos e prostituição. Sexo entre brancos e negros era proibido na África do Sul, mas não nos bantustões, o que criava, digamos, um nicho de mercado para o turismo sexual étnico.

Eugene Terreblanche entrou nessa história na década de 1990, propondo a criação de um bantustão para os brancos, no contexto dos anos finais do apartheid. A idéia era surreal: as homelands acabariam junto com o apartheid e os brancos estão muito dispersos no território sul-africano, não são maioria em nenhuma região. Mas no clima tenso daqueles anos, parecia uma alternativa razoável para os africâners apavorados com a possibilidade de um massacre quando os negros chegassem ao poder, com a eleição de Nelson Mandela.

O próprio Terreblanche era uma caricatura do extremista político, com a suástica que era o símbolo de seu movimento, e seu hábito de fazer discursos montado a cavalo – mesmo que ele costumasse cair do animal, em função de problemas com a bebida. Mas seu grupo chegou a ter a adesão de um respeitado ex-comandante do Exército, invadir o centro de convenções onde o governo e a oposição negociavam a transição para a democracia e até tentar conquistar pelas armas uma homeland negra em revolta, num ato que terminou num fiasco tão grande que sepultou politicamente o movimento.

A reforma agrária na África do Sul pós-apartheid caminha a passos lentos, demasiadamente lentos. A situação explosiva no Zimbábue fica como uma sombra, um lembrete do que pode ocorrer. O presidente Zuma tem agido muito bem na reação ao assassinato de Terreblanche, pedindo calma e moderação. Certamente se lembra dos dias trágicos em que negociou o cessar-fogo nos conflitos étnicos, com africânders e zulus.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Os Homens Que Encaravam Cabras



Fazia tempo que não via um filme tão original quanto "Os Homens que Encaravam Cabras". Uma sátira aos novos modos de se travar a guerra, e um olhar afetuoso e nostálgo à contracultura das décadas de 1960 e 1970, mesmo no improvável ambiente das Forças Especiais do Exército. O mais bizarro é que boa parte das situações do enredo ocorreram realmente, sendo apenas levemente modificadas para o cinema. Um trabalho esperto e ágil do cineasta Grant Heslov, roteirista do também ótimo "Boa Noite e Boa Sorte."

O roteiro, excelente, mistura dois eixos narrativos. No primeiro, um jovem repórter, Bob Wilton, (Ewan McGregor) é abandonado pela esposa, e resolve provar seu valor indo cobrir a guerra do Iraque. Ele acaba esbarrando no soldado Lyn (George Clooney) que havia pertencido a uma unidade secreta do Exército, que visava à criação do que ele chamava de "guerrereiros jedis", com poderes paranormais. O jornalista se junta ao militar, que ruma para uma missão clandestina no interior iraquiano, e à medida que viajam, Lyn conta sua história.

Lyn havia sido recrutado pelo excêntrico coronel Django (Jeff Bridges, que rouba o filme numa atuação maravilhosa). Após ser ferido no Vietnã, Django entrou numa crise existencial e passou anos vagando pelos cultos e tendências mais radicais da contracultura. Mas decidiu voltar às Forças Armadas e criar uma unidade especial, o "Exército da Nova Terra", para aplicar suas técnicas recém-descobertas à prevenção de conflitos e à construção de uma cultura de paz.



Misturando esoterismo, cultura pop (há muitas e divertidíssimas citações de Star Wars, inclusive pela escalação de Ewan "Obi-Wan Kenobi" McGregor) e paranóia da Guerra Fria, a unidade atrai uma série de recrutas, dos quais Lyn é o mais brilhante, e começa a fazer um certo sucesso com seus métodos heterodoxos. Mas a inveja de um soldado menos talentoso, Larry (Kevin Spacey), leva o projeto à derrocada.

Quanto mais se infiltram no caos do Iraque, Bob e Lyn encontram mercenários, sequestradores, tortura, e os empreiteiros que lucram na onda de terceirizações e privatizações da guerra. Aos poucos, os dois fios do enredo se mesclam, com aplicações surpreendentes do que Lyn chama de "o lado negro" de suas antigas atividades no Exército da Nova Terra.