sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Para 2011



Embora este seja, basicamente, um blog de análises políticas e acadêmicas sobre relações internacionais, até agora a vida universitária tinha ocupado um espaço marginal na minha vida. Era aquilo que eu fazia fora do horário comercial, quando dava expediente em ONGs ou no serviço público. Isso agora vai mudar. Ontem foi meu último dia de trabalho no funcionalismo e a partir da próxima semana, me dedicarei profissionalmente somente à academia, na coordenação de uma série de projetos na Fundação Getúlio Vargas e no Curso Clio. Decisão óbvia: colocar no centro da minha vida aquilo que mais me faz feliz. A felicidade é uma arte marcial.

Já trabalho com as duas instituições há vários anos e nelas estão amigos queridíssimos e alunos fantásticos – confesso que a fronteira entre as duas categorias sempre foi muito tênue, e é assim que gosto que ela seja. De modo que conviver de modo ainda mais intenso com essa equipe é um dos fatores que mais tem me entusiasmado.

À medida que os projetos forem sendo implementados, comentarei mais sobre eles por aqui. Por agora, basta dizer que terei pela frente alguns excelentes cursos de pós-graduação, quase todos ligados à temática internacional, e uma série de publicações planejadas para 2011. Vai ser um ano de trabalho duro, mas espero que muito gratificante.

Feliz ano novo a todos vocês. Continuamos nossa conversa ao longo do próximo ano.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A Radicalização da Venezuela



Durante muito tempo, os defensores de Hugo Chávez alegavam que ele podia ter práticas questionáveis, mas representava a maioria da população da Venezuela, que o havia consagrado em diversas vitórias eleitorais expressivas. Contudo, o quadro político venezuelano tornou-se mais sombrio. Nas últimas legislações legislativas, a oposição obteve mais de 50% dos votos, mas ficou com pouco mais de 1/3 das vagas na Assembléia Nacional, em função da mudança na lei eleitoral, para beneficiar o governo. Ainda assim, seria o suficiente para dificultar a vida do presidente e bloquear indicações de juízes, por exemplo. A nova Assembléia toma posse em janeiro, mas antes disso Chávez reagiu conseguindo novas leis que o autorizam a governar por decreto, por um ano e meio.

O presidente alegou que precisa dos poderes extras para responder de maneira rápida e efetiva às chuvas catastróficas que deixaram cerca de 140 mil pessoas desabrigadas na Venezuela. Como não choveu por tanto tempo nem na Macondo de García Márquez, nem no Dilúvio bíblico, a oposição teme que seja simplesmente uma manobra para passar à margem da nova Assembléia – mesmo que o governo tenha quase 2/3 dos votos nela.

Além do poder de governar por decreto, Chávez conseguiu a aprovação de outra lei polêmica, criando as “comunas” – unidades administrativas que atravessam as divisões habituais entre cidades e províncias, e estão vinculadas diretamente à Presidência da República. O projeto já vem de algum tempo. Foi apresentado na reforma constitucional de 2007, derrotado no referendo e agora voltou na forma da nova lei. Já há mais de 200 comunas em implementação no país. Elas são descritas não só em termos de definição geográfica, mas também por terem um sistema político socialista. Ou seja: são um modo de adotar a agenda política chavista mesmo em áreas governadas pela oposição.

Pode sobrar até para o Country Club de Caracas, o último bastião da elite tradicional da Venezuela. A instituição está na mira do governo para ser desapropriada. Chávez quer transformar o campo de golfe do clube em área para abrigar os refugiados da chuva.

As novas medidas apontam para ainda mais concentração de poderes em Chávez, num momento político delicado, de crescimento da oposição, problemas na economia e já no início da movimentação para a próxima eleição presidencial, daqui a dois anos. Os bolivarianos não querem correr riscos e aumentam as ferramentas à sua disposição para manter o controle da Venezuela – mesmo que a maioria do eleitorado prefira outros candidatos.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Leituras sobre a Bolívia



Aproveitei o feriado para esvaziar a cabeceira de literatura acadêmica, em especial sobre a Bolívia, por conta de estar terminando um artigo a respeito do país. Há dois lançamentos recentes que ajudam a entender o longo processo de lutas e transformações sociais, das quais os anos recentes são uma etapa importante, mas de modo algum a única. O primeiro é “Revoluções de Independências e Nacionalismos nas Américas: Peru e Bolívia”, quarto volume de uma excelente coleção organizada pelos historiadores Marco Pamplona e Maria Elisa Mader. O segundo é “A Potência Plebéia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia”, coletânea de artigos do sociólogo e vice-presidente boliviano Álvaro Garcia Linera.

O livro de Pamplona e Mader traz dois excelentes artigos, de Herbert Klein e Antonio Mitre, sobre a formação e desenvolvimento do Estado boliviano no século XIX. A região que hoje conhecemos como Bolívia oscilou no império espanhol entre ser parte do Vice-Reinado do Peru (capital Lima) e do Vice-Reinado do Prata (capital Buenos Aires), e era conhecida como Alto Peru ou Audiência de Charcas. Quando estouraram as guerras de independência, os locais se viram presos num emaranhado de batalhas. Sofreram quatro invasões dos exércitos recrutados por Buenos Aires, e outras tantas das tropas realistas que atacavam desde Lima. O comportamento predatório desses soldados contribuiu para reforçar os sentimentos autonomistas das elites locais, vinculadas à mineração da Prata, que não queriam ser governadas por pessoas de fora da área.

Ao final, o Alto Peru foi subjugado pelas tropas de Bolívar, que a princípio queria que o território fizesse parte de uma grande confederação que reuniria os atuais países andinos. Quando isso não foi possível, o Libertador acabou consentindo (um tanto a contragosto) que a Bolívia se tornasse um país independente tanto do Peru quanto da Argentina. O nome lhe homenageava, para tentar adoçar a pílula. O poder ficou com um de seus mais hábeis generais, Andrés de Santa Cruz, mas que anos depois tentou reverter a situação e fundir Bolívia e Peru num só país, sob seu comando.

O preço pela independência da Bolívia foi alto. As guerras devastaram a indústria da mineração, que levou décadas para se recuperar. Além disso, a economia boliviana era muito dependente do comércio com os territórios vizinhos do império espanhol, que ao tornarem-se países autônomos impuseram tarifas elevadas. A guerra do Pacífico lhe custou o litoral, agravando ainda mais a situação.



O livro de García Linera concentra-se na análise das lutas sociais bolivianas no século XX. É uma história riquíssima, que inclui uma guerra (do Chaco, contra o Paraguai), a Revolução de 1952, o crescimento do movimento dos mineiros e a ascensão de uma série de correntes indigenistas nos últimos 30 anos – o katarismo, a guerrilha comandada por Felipe Quispe (da qual García Linera participou) e finalmente a articulação entre esses grupos e outros movimentos sociais de base, que levou à fundação do MAS e à vitória de Evo Morales para a presidência.

Linera ascendeu politicamente como um intérprete dos novos movimentos sociais, alguém que desde sua posição de acadêmico de classe média podia explicá-los a um público de massa, pela televisão. Tornou-se vice de Evo como segunda opção – a primeira seria um empresário, nos moldes do que Lula fez no Brasil, mas não foi possível encontrar alguém com esse perfil. Tem sido um ator importante nas mudanças aceleradas das duas últimas décadas na Bolívia, cuja história ainda está por ser escrita.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Villa Soldati, Cidade e Democracia



A imprensa brasileira pouco comentou, mas ao longo da última semana ocorre um dos mais graves conflitos sociais da Argentina pós-crise. Em Buenos Aires, no bairro de Villa Soldati, moradores atacaram imigrantes bolivianos e paraguaios que haviam ocupado um conjunto habitacional em construção. Três pessoas morreram e muitas outras ficaram feridas. Villa Soldati é uma zona de classe média baixa, netos e filhos de italianos pobres, agredindo a nova pobreza recém-chegada à Argentina. Versão portenha do ótimo filme de Scorsese sobre as gangues da Nova York do século XIX.

Os brasileiros estamos acostumados a níveis cotidianos de violência que chocariam os visigodos, e talvez por isso não tenhamos percebido a importância do que aconteceu em Buenos Aires (ademais, reflexos de problemas de segurança mais amplos). Trata-se de um embate que será crucial nos próximos anos: a luta pela democracia em cidades que são, cada vez mais, nós de conexão das grandes redes globais. Que incluem levas de imigrantes, em muitos casos com outras cores de pele ou religiões diferentes, e com menos direitos do que os moradores nativos. Os riscos de xenofobia e o aumento do racismo não estão restritos às metrópoles da América do Norte e da Europa, conflitos sociais desse tipo eclodiram também na África do Sul, no México e, agora, na Argentina. Podem estourar em São Paulo ou Santiago do Chile.

Esses temas ganham cada vez mais força também na minha agenda acadêmica. Na sexta-feira fiz parte de uma banca de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A ótima tese discutia a gestão democrática da cidade, a partir de uma crítica do Estatuto da Cidade, por meio de autores marxistas. O argumento era que os regimes democráticos não conseguem assegurar uma boa cidade, porque deixam intacta a estrutura econômica injusta.

Na minha arguição, ponderei que a tese era dura demais com a democracia e que os temas urbanos tinham sido uma questão central para os movimentos sociais desde meados do século XIX, com a luta por habitação, saneamento e boas condições de vida nas cidades. Destaquei o caso da "Viena Vermelha" do entreguerras, onde os sociais-democratas construíram o mais importante embrião do Estado de Bem-Estar Social. Ou de como campanhas que à primeira vista não estão ligadas à cidade, como a dos direitos civis nos EUA, manifestam-se no ambiente urbano, nos conflitos pelo fim da segregação racial no transporte coletivo, por exemplo.

No mundo contemporâneo, a demanda democrática mais radical a ser feita é a da cidadania global, afirmaram Toni Negri e Michael Hardt. Essa é a utopia, o sonho além do horizonte.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Uma Guerrilha sem Fins?



"As FARC - uma guerrilha sem fins?", do sociólogo francês Daniel Pecaut é uma pequena jóia que em 150 páginas, traça um panorama histórico competente do conflito colombiano e em seu terço final realiza uma estupenda análise de conjuntura dos anos de Uribe no poder, com um diagnóstico que desafia as concepções simplistas da Colômbia: a guerrilha está quase derrotada, mas o remédio amargo usado para isso, o concluio enfre Forças Armadas e paramilitares, pode ser um veneno ainda pior. E alerta que os efeitos trágicos do conflito armado resultaram em concentração de renda e aumento da pobreza, mesmo diante dos bons índices de crescimento econômico. É, em suma, a melhor obra em português sobre esse tema.

Embora o título do livro possa indicar um panfleto contra a guerrilha, a análise de Pecaut é matizada e bem embasada na história colombiana. Ele examina o surgimento das FARC a partir dos grupos de autodefesas camponeses durante La Violencia, a guerra civil entre conservadores e liberais nas décadas de 1940-50. Em 1958 os dois partidos fizeram um pacto de governabilidade, mas resolveram atacar os últimos bastiões de resistência rural, que haviam se radicalizado politicamente. Desse conflito nasceram as FARC.

Pecaut chama a atenção para o forte vínculo das FARC com o mundo camponês colombiano, e sua dificuldade para se articular politicamente nas cidades. Até a década de 1980 as FARC eram um pequeno grupo guerrilheiro operando na periferia do país, em disputa com diversos outros (ELN, EPL, M-19, Quintin Lame). Num dos processos de paz, tentaram criar um partido, a União Patriótica, que começou a despontar como opção de esquerda, e foi dizimado com o assassinato de cerca de três mil de seus militantes e dirigentes.



A partir daí a guerrilha adotou o caminho sem volta da militarização, que encontrou terreno fértil para crescer nos anos 90, em meio à crise econômica e política, que incluiu o envolvimento de um presidente com o tráfico de drogas. Que, aliás, também teve importância crescente para as FARCs, em conjunto com a renda obtida por sequestros e pela extorsão de empresas que operam em zonas controladas pela guerrilha. Curiosamente, as FARC nunca tiveram grandes patrocinadores externos, ao contrário do ELN, muito próximo do regime cubano.

Uribe foi eleito presidente no clima de medo do auge do poder da guerrilha, e executou uma competente reestruturação das Forças Armadas, que pela primeira vez têm os recursos (financeiros, humanos e tecnológicos) necessários para combater as FARC. Mas a ação do Estado quase sempre ocorreu em parceria com os paramilitares, que fazem o trabalho de sujo de atuar como esquadrões da morte e ocupam as terras abandonadas pelos guerrilheiros, explorando-as economicamente. Os resultados têm sido extremamente nocivos para a Colômbia: uma "reforma agrária às avessas", que transformou os paras nos maiores proprietários rurais do país, a criação de levas de "desplazados", refugiados internos que fogem para as cidades ou nações vizinhas, e um enorme nível de corrupção na chamada "parapolítica", que envolve esses grupos e a elite colombiana.

A ofensiva (para)militar bem-sucedida contra as FARC fizeram com que a guerrilha adotasse duas estratégias para tentar sobreviver: a "troca humanitária" e a busca de apoio internacional, sobretudo por meio do presidente da Venezuela, Hugo Chávez. A primeira diz respeito ao sequestro de reféns políticos (a senadora Ingrid Betancourt é a mais famosa, mas de modo algum a única) para uso nas barganhas com o governo. A segunda vem da estratégia "bolivariana" que a guerrilha adotou nos anos 90, apresentando um vago programa reformista na tentativa de obter ajuda externa que a ajudasse a legitimar-se como um ator no jogo político colombiano.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A Liberdade Segundo Jonathan Franzen



Os Berglunds eram a família modelo num pacato subúrbio residencial do estado de Minnesota, sempre dispostos a ajudar os vizinhos e com dois filhos inteligentes e saudáveis. É certo que havia alguns questionamentos – por que Patty, a esposa,nunca visitava seus pais em Nova York? – mas eram questões menores. De repente, não mais do que de repente, as coisas saíram de controle. Talvez o 11 de setembro possa ser o marco, mas os atentados dificilmente explicam a saída de casa do filho caçula, Joey, ou a freqüência com que Patty passou a beber. E o que diabos representa para a família o músico-alternativo-que-virou-superstar, Richard Katz, o grande amigo de juventude de Walter, o marido? A mudança dos Berglund para Washington, DC, foi o prelúdio do desastre, mas ainda assim ninguém entendeu o perfil que o New York Times publicou do gentil Walter, associando-o à devastação do carvão e chamando-o de “notório arrogante.”

Freedom”, de Jonathan Franzen, é um romance sobre excessos – de liberdade, de dinheiro, de opções e como todas essas possibilidades acabam fazendo com que as pessoas se percam em meio às dificuldades da vida contemporânea nos Estados Unidos. Como seu best seller anterior, “As Correções”, é também uma crônica das desventuras de um casal de classe média por sua crise de meia idade. A novidade é que Franzen está mais político, satirizando o clima de “o vencedor leva tudo” que tomou conta da sociedade americana, e elaborando tramas a partir das negociatas no Iraque. Eu havia gostado das “Correções”, e “Freedom” é ainda melhor.



A trama acompanha a trajetória de quatro personagens: Walter, Patty, Joey e Richard, com olhares momentâneos sobre seus vizinhos, amigos, amantes, parentes e fãs. O que os quatro têm em comum é o desejo de mudar de vida, mas a permanente insatisfação com as escolhas que realizam. Walter abandona a empresa na qual trabalhou por muitos anos para tocar uma fundação filantrópica ambiental, de credenciais questionáveis. Patty se sente frustrada com sua rotina de dona de casa e lamenta os erros que cometeu. Joey vive as ansiedades da adolescência e do início da vida adulta, principalmente as tentações do dinheiro, ao ser apresentado à milionária família de seu colega de quarto. O personagem mais interessante, sem dúvida, é Richard. Sua carreira boêmia e errática sofre um baque violento quando ele se torna um sucesso de público. Mas talvez ser bem-sucedido não seja o que ele procure.

O romance consegue ser engraçado e amargo ao mesmo tempo, com passagens inesquecíveis, como Richard criticando a pose dos roqueiros, Joey refletindo sobre a importância da música em sua vida ou a relação de amizade, carinho, rivalidade e ressentimento que une e separa Richard e Walter, desde os dias da faculdade. Há também problemas, em especial uma certa agressividade que com freqüência aparece nas descrições dos personagens femininos. Mas é muito bom encontrar um romance que me emocione e me faça pensar.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Holbrooke



Richard Holbrooke, talvez o melhor diplomata dos Estados Unidos, morreu nesta semana. Marcado pelo trauma do Vietnã, teve o ponto alto de sua carreira como o negociador da paz na Bósnia e falhou em seu último posto, ao lidar com Afeganistão e Paquistão. Além disso, foi importante na criação e consolidação da revista Foreign Policy (reação ao conservadorismo da mais tradicional Foreign Affairs durante a guerra do Vietnã) e teve lucrativa carreira como banqueiro de investimentos. Sua trajetória ilustra a oscilação do poder americano nos últimos 40 anos, com o declínio na década de 1970, a ressurgência nos anos 90 e a inquietação atual com as crises na Ásia Meridional e a ascensão de novas potências.

Holbrooke decidiu entrar para a carreira diplomática ainda no ensino médio, após ouvir um discurso inspirador de Dean Rusk, um político que tornou-se Secretário de Estado no governo Kennedy. Holbrooke era bem o homem da “Nova Fronteira” de JFK, servindo na África como diretor do Peace Corps no Marrocos, mas vivendo também o lado sombrio do idealismo, em longos anos de serviço no Vietnã, acompanhando o aprofundamento da tragédia no país.

De volta a Washington, trabalhou na equipe que preparou o longo estudo sobre o envolvimento americano na guerra. Anos depois os documentos seriam vazados para a imprensa por um de seus colegas, Daniel Ellsberg, e ficaram conhecidos como “Pentagon Papers” (pois é, essas coisas aconteciam mesmo antes do Wikileaks).
Holbrooke escolheu o caminho público em suas críticas ao Vietnã, lecionando em Princeton, escrevendo artigos para revistas e editando com sucesso a Foreign Policy. Foi sua guinada de burocrata para político, pois dali em diante ele virou um emissário de confiança de todos os presidentes democratas, servindo como embaixador e em altos postos no Departamento de Estado, embora nunca tenha obtido o status ministerial.

Ele era descrito com freqüência como um homem de temperamento difícil, muito vaidoso e ocasionalmente arrogante e agressivo. Os defeitos tiveram lá sua utilidade, em especial na década de 1990, quando ele intimidou diversos presidentes e políticos nos Bálcãs, trancou-se com os principais negociadores por três semanas e saiu com um importante acordo de paz de Dayton, que encerrou a guerra na Bósnia. Foi o auge dos Estados Unidos como o “honest broker”, a nação capaz de garantir a estabilidade mundial no turbulento mundo do pós-Guerra Fria.

As complexidades da situação no Afeganistão e no Paquistão estão provavelmente além da capacidade individual de qualquer um, e a sucessão de guerra, terrorismo, violência e instabilidade faz com que a região seja considerada como a mais perigosa do planeta. Um final inglório para uma carreira extraordinária.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O Haiti não é Aqui



A ocupação policial-militar dos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, começou bem mas rapidamente demonstrou os problemas da política de segurança, em especial as dificuldades quase insuperáveis de se realizar grandes operações sem que haja uma reforma na polícia. Os criminosos fugiram do cerco às favelas. Os moradores denunciam roubos e agressões por parte das autoridades que ocupam as comunidades. A resposta governamental foi colocar a ocupação sob controle do Exército, no que o general que chefia a missão classificou como uma "Força de Paz", semelhante àquela que ocorre no Haiti. É uma analogia perigosa: o país caribenho é um dos mais pobres do planeta, com apenas a sombra de um Estado. A cidade do Rio de Janeiro é uma das regiões mais ricas de uma nação emergente, de renda média.

O Rio tem serviços públicos (federais, estaduais, municipais) razoavelmente eficientes nos bairros de classe média e alta. A polícia não arromba casas em Ipanema, o lixo não está acumulado no Leblon, as milícias não ocupam as ruas do Jardim Botânico. A questão aqui não é construir um Estado, como no Haiti, mas sim expandi-lo e aperfeiçoá-lo para os significativos bolsões de pobreza que existem na cidade.




O Exército brasileiro foi bem-sucedido no Haiti em controlar as quadrilhas criminosas que dominavam as maiores favelas da capital Porto Príncipe, criando as condições de segurança para que as ONGs e fundações filantrópicas pudessem implementar seus projetos de cooperação social. Os militares estrangeiros tiveram que realizar essa tarefa pela fragilidade da polícia haitiana. É um tanto mais difícil aceitar essa necessidade no Rio de Janeiro, que tem quase 50 mil policiais, sem contar as forças federais.

A operação no Alemão demonstrou a necessidade da intervenção pontual e limitada das Forças Armadas, para dissuadir a ação dos bandidos e vencer, pela aplicação da força bélica, as barreiras físicas que os traficantes construíram para deter incursões policiais. Uma ocupação militar de longo ou médio prazo numa favela carioca é um risco grande para corrupção da tropa - os soldados são tão mal pagos quanto seus colegas na polícia.

Além disso é construída sobre um conjunto de paradoxos e contradições - os militares garantirão a segurança até a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora. Isso significa usar o Exército porque a polícia não é confiável, com o objetivo de instalar de modo definitivo na favela a mesma polícia não-confiável. A melhor iniciativa até agora foi o projeto lançado pelo jornal o Globo de usar as mídias sociais para dar voz à população das comunidades pobres, de modo a aumentar a fiscalização sobre as ações do Estado e poder denunciar também os grupos armados ilegais.

No Haiti, seis anos de missão de paz garantiram certo nível de estabilidade e segurança (pelo menos até o terremoto devastador do início deste ano), mas falharam em promover o desenvolvimento econômico e a (re)construção da infraestrutura. Tomara que a operação no Alemão siga um caminho diferente, senão o que teremos será mais do mesmo, com o Exército no lugar da polícia nas manchetes do noticiário criminal.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Até o Fim da Terra



Meu ritmo acadêmico neste fim de ano anda tranqüilo e tenho aproveitado para ler romances, em especial de autores do Oriente Médio. Já comentei aqui sobre Amós Oz e agora é a vez de David Grossman, cujo “A Mulher Foge” está em praticamente todas as listas dos melhores livros do ano, com sua mistura épica de guerra e amor.

O romance conta a história de Ora, uma mulher que resolve vagar pelo interior de Israel enquanto seu caçula, Ofer, serve o Exército na guerra do Líbano, em 2006. Ela acredita que se não puder ser contactada pelos militares, isso de algum modo protegerá o rapaz de morrer em combate. Ela é acompanhada em sua jornada por um ex-amante com quem pouco falava nas últimas décadas, mas que é o pai de seu filho, embora ela tenha se casado com outro homem.

A narrativa do triângulo amoroso é contada com grande sensibilidade, num prólogo inesquecível. Os três se conheceram adolescentes, isolados num hospital durante a Guerra dos Seis Dias (1967). Eles se tornam amigos inseparáveis, ainda que os dois rapazes disputem o amor de Ora. A história tem um desfecho trágico quando, no conflito do Yom Kippur (1973), Avram é capturado pelos egípcios e destruído psicologicamente pelas severas torturas que sofre na prisão. Apesar do apoio que o casal lhe dá, ele não consegue se recuperar e tem contatos apenas esporádicos com eles.



A jornada de Ora e Avram é, evidentemente, um acerto de contas com o passado, na medida em que a mulher recria com palavras a infância e juventude de Ofer, tentando compensar o pai pelos anos que perdeu da vida do filho. Difícil dizer o que é apenas ficção: Grossman escreveu o romance quando seu próprio caçula servia no Líbano, e ele morreu nas últimas horas da guerra, quando seu blindado foi destruído por um míssil disparado pelo Hezbolá. Os dois aparecem lado a lado na foto que abre este post.

Grossman despontou como escritor como um crítico da ocupação israelense da Cisjordânia e o modo como o conflito corrói as duas sociedades é belamente explorado neste romance. Na passagem que dá título à edição em inglês (To the End of the Land), Ora pede a um taxista árabe, velho amigo da família, que a conduza “até onde acaba o país”. Sua resposta: “Para mim, já acabou faz tempo”. Igualmente tocante é o despertar da identidade judaica de Ofer, ainda criança, quando decide que se chamará John e será inglês, povo que segundo ele “não tem inimigos”, ao passo que “todos querem matar os judeus, nossos feriados são todos sobre isso!”.

Há muita injustiça e violência na América Latina, mas somos amadores na arte de odiar. São necessários muitos séculos, talvez milênios, para aperfeiçoá-la ao ponto em que ela existe hoje no Oriente Médio. Não são dilemas políticos aptos a serem resolvidos de maneira racional, mas se há alguma esperança está na capacidade de empatia e compreensão, e a literatura é uma aposta tão boa quanto qualquer outra na aptidão humana por entender os sentimentos alheios.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A Alemanha e a Crise do Euro



A crise financeira que atingiu Grécia e Irlanda e ameaça derrubar Portugal e Espanha chegou a um ponto no qual se começa a discutir a sério a possibilidade de alguns desses países saírem do euro. Segunda maior exportadora do mundo, atrás apenas da China, a Alemanha não tem incentivos para desvalorizar o euro. Perderia muito com a depreciação da moeda. No entanto, isso é necessário para as economias mais frágeis, que precisam desse estímulo para melhorar sua competitividade diante de rivais como os chineses e os americanos, que se beneficiam do câmbio favorável.

A Alemanha Ocidental, depois da Segunda Guerra Mundial, foi liderada por uma série de estadistas que priorizaram o projeto de integração europeu, colocando freios institucionais à autonomia germânica. Entendiam claramente que era o preço a pagar pela história sombria do país, a garantia que precisavam dar aos parceiros de continente de que a nova Alemanha abandonara os projetos de expansão imperial e estava comprometida com a paz e a prosperidade da Europa. Como nos lembra Barry Eichengreen, para entender o euro é preciso compreender a história política da região. Talvez mais até do que a economia.

A expansão da integração européia, em particular a criação do euro, foi condição para que os outros países aceitassem a reunificação da Alemanha. A barganha funcionou bem durante 20 anos, com o novo Estado funcionando como uma locomotiva econômica para as nações do antigo bloco comunista, fomentando o desenvolvimento com seus investimentos. Mas esse acordo deixou de ser tão interessante no momento de crise. Não há mais adversários ideológicos externos, como o comunismo, para impulsionar os europeus a esquecerem suas divergências e focarem no bem comum.

A nova geração de políticos alemães – a premiê Angela Merkel é a primeira oriunda da antiga Alemanha Oriental a governar o país – tem mostrado pouca disposição para a causa européia, e uma perspectiva bastante voltada para os problemas domésticos. A proposta germânica tem sido a de um regime fiscal europeu que seja mais severo, e fiscalize com rigor as finanças públicas dos países da UE. “Teremos que pagar por toda a Europa?”, perguntou a manchete de um jornal popular.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Wikileaks



O início da divulgação pelo site Wikileaks de cerca de 250 mil documentos diplomáticos confidenciais dos Estados Unidos é uma fofoca deliciosa sobre os bastidores da política internacional, mas com poucas novidades. Alguém está surpreso em saber que Berlusconi promove festas selvagens, que há corrupção de larga escala no governo Karzai ou que Sarkozy é autoritário? É, no entanto, muito divertido ouvir os sisudos diplomatas americanos compararem a relação Putin-Medvedev a de Batman e Robin, ou a já clássica descrição de um casamento no Daguestão.

A reação das autoridades mundiais, em particular nos Estados Unidos, foi violenta e extrema, com o surgimento de uma acusação de estupro contra o fundador do site, acompanhada por um mandado de prisão emitido pela Interpol. Medo do quê mais o Wikileaks pode divulgar... O que há de pior nas mensagens é a constatação de como os diplomatas americanos têm cruzado a fronteira da espionagem com freqüência perturbadora. Com o agravante de que os documentos divulgados até agora não são top secret, em geral são despachos rotineiros de embaixadores para seus ministérios. Não houve, por exemplo, nenhum texto produzido exclusivamente para chefes de Estado ou escalões superiores restritos.

Houve boa quantidade de documentos relativos ao Brasil, o que mostra a importância crescente do país para os Estados Unidos. Os temas envolvem críticas ao combate brasileiro ao terrorismo (avaliações negativas do governo, mas elogiosas da Polícia Federal e das ações do Ministério da Fazenda na repressão a crimes financeiros), acompanhamento do papel de “potência emergente” (negociações com o Irã, aproximação com a França).



O que mais chamou a atenção da imprensa brasileira, sem dúvida, foram os despachos do então representante americano em Brasília, Clifford Sobel, relatando conversas nas quais o ministro da Defesa, Nelson Jobim, critica o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Jobim teria revelado ao diplomata estrangeiro o câncer de Evo Morales, dito a Sobel que Guimarães “odeia os Estados Unidos” e conquistado a admiração do interlocutor, que o classificou para seus superiores em Washington como um dos melhores e mais confiáveis líderes brasileiros.

No entanto, em outros documentos publicados pela Wikileaks, Sobel se mostra muito crítico à política nacional de defesa, pelo que ele avalia ser uma ênfase exagerada na “independência”. Entusiasmo com Jobim à parte, o embaixador percebe que as Forças Armadas brasileiras examinam com desconfiança os Estados Unidos, preocupam-se com influência estrangeira na Amazônia e buscam autonomia tecnológica por meio de parcerias com outras potências.

Em outras palavras, as rusgas Jobim-Guimarães são disputas burocráticas entre um Ministério da Defesa cada vez mais assertivo nas relações internacionais, que briga pelo espaço tradicional do Itamaraty. O ministro buscou relação mais próxima com o embaixador americano para ganhar vantagem sobre o rival, mas é falso procurar uma suposta oposição entre “Defesa pró-EUA” e “MRE anti-americano”.