quinta-feira, 31 de maio de 2012

O Massacre de Houla e a Virada do Jogo na Síria

Ontem gravei entrevista para o programa Sem Fronteiras, da Globo News, que irá ao ar na noite desta quinta-feira – reprisa ao longo da semana. Falei a respeito do massacre de Houla e de como ele representa uma virada do jogo político no conflito da Síria.

Há 14 meses a ditadura de Bashar al-Assad enfrenta uma rebelião, incluindo grupos armados como os do Exército Livre da Síria. Cerca de 13 mil pessoas já foram mortas, a maioria pelo governo. Rússia e China vetaram no Conselho de Segurança da ONU resoluções que exigiriam a renúncia de Assad, mas há embargos internacionais contra seu governo e uma missão de observadores das Nações Unidas para monitorar um cessar-fogo e um acordo de paz mediado pelo ex-secretário-geral da instituição, Kofi Annan.

Essa negociação nunca foi respeitada e a presença da ONU não conseguiu deter ou mesmo diminuir a violência. O massacre de Houla foi a gota d´água na aposta que as Nações Unidas poderiam ter feito a diferença. A cidade foi cercada pelas Forças Armadas da Síria e a mílicia dos Fantasmas (Shabiha) executou cerca de 120 pessoas – a maioria crianças e idosos.

O massacre foi o pior do conflito até este momento, e já resultou em protestos contra Assad até entre grupos que estavam relutantes em se juntar à rebelião, como os comerciantes sunitas de Damasco. Governos dos Estados Unidos, na União Européia, Turquia, Canadá e Austrália expulsaram diplomatas sírios em represália e mesmo a Rússia apoiou uma condenação da carnificina no Conselho de Segurança.

A Síria ocupa uma posição geográfica muito delicada, entre Líbano, Israel, Turquia, Iraque e Irã, e numa vizinhança tão turbulenta ninguém quer arriscar uma intervenção como a que a OTAN realizou na Libia. Os riscos são muito elevados, inclusive de um vazio de poder que tornasse o país um campo fértil para terroristas ou grupos islâmicos radicais.

Contudo, há muitos relatos de que a oposição armada já vem sendo suprida apoio dos Estados Unidos, França e Turquia e o cenário para os próximos meses é de que esses grupos aumentem o controle territorial que já exercem em cidades como Homs e Hama.

O regime autoritário da Síria está baseado em vários pilares: o Partido Baath, as Forças Armadas e o grupo de famílias alauítas reunidos em torno dos Assad. É bastante plausível uma solução na qual os demais elementos que dão apoio à ditadura aceitem um acordo que signifique a renúncia do ditador em troca de sua permanência no poder. Algo assim foi feito no Egito e no Iêmen.

Pós Escrito: minha entrevista ao Sem Fronteiras, da Globo News

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O Haiti Após o Terremoto

Este excelente livro de Paul Farmer faz um balanço da sequência de catástrofes humanitárias que assolaram o Haiti nos últimos 5 anos – furacões, tempestades tropicais, epidemia de cólera e um grande terromoto que talvez tenham matado 200 mil pessoas – e discute as falhas nas políticas de saúde pública, (re)construção da infraestrutura e geração de emprego, em meio a desdobramentos positivos na segurança e na estabilização política. É um debate que interessa muito ao Brasil, pela liderança que o país exerce desde 2004 na missão de paz da ONU no país.

Farmer é médico, professor de Harvard, e engajado em organizações de ajuda internacional, co-fundador da iniciativa Partners for Health, que tem exercido tarefas importantes em saúde pública em países como Haiti, Ruanda e Rússia. Seu parceiro na empreitada foi outro médico, Jim Kim, nomeado há poucas semanas presidente do Banco Mundial. Farmer também ocupou cargos em instituições globais, servindo como vice de Bill Clinton quando este foi representante especial da ONU para o Haiti. Conhecer suas perspectivas é importante para entender esse novo enfoque que liga medicina e políticas para o desenvolvimento.

A presença de Farmer no Haiti tem várias décadas e vem de uma razão familiar – ele é casado com uma haitiana. Juntos com profissionais de vários países eles criaram hospitais e clínicas no país, apoiaram instituições haitianas e fizeram parcerias com outras, no exterior. Em seu livro, ele narra a melhora da situação após a instalação da missão de paz e elogia a atuação dos militares e diplomatas brasileiros, cumprimentando-os por sua dedicação, capacidade de diálogo, e de improvisação diante das dificuldades burocráticas. Também há muitas referências positivas aos esforços de profissionais dos Estados Unidos, Canadá, Cuba e, claro, dos próprios haitianos.

O terremoto de janeiro de 2010 encerrou esse período de melhora. O Haiti é um dos países mais densamente povoados do mundo e a maioria das habitações é muito precária. O impacto do tremor foi devastador. A capital, Porto Príncipe, ficou destruída, assim como a maioria dos prédios públicos, incluindo o Palácio Presidencial – o governo passou a funcionar numa delegacia. Farmer relata os desafios assustadores das equipes de saúde: lidar com centenas de milhares de feridos em condições muito, muito precárias de infraestrutura, segurança e em meio a traumas emocionais. Muitos haviam perdido amigos e parentes, outros estavam machucados.

Devido à falta de moradia, os desabrigados tiveram que ser instalados em tendas, em campos improvisados que deveriam ser temporários. A maioria continua até hoje. Condições de saúde e higiene são ruins, e a insegurança é enorme, em particular com relação a mulheres, vítimas de violência sexual. As promessas de ajuda internacional para reconstruir o país não foram cumpridas, a maior parte do dinheiro nunca chegou e grandes parcelas foram para pagar os salários da burocracia humanitária. Contudo, o apoio externo foi crucial: a chegada de profissionais estrangeiros, de um navio-hospital da Marinha dos EUA, e a ida de pacientes haitianos para a América do Norte, para serem tratados por lá.

Farmer defende posições que já ouvi de diplomatas brasileiros – a de que um estratégia de desenvolvimento bem-sucedida parao Haiti deveria priorizar o fortalecimento do Estado, a única instituição capaz de executar projetos em todo o país. Ele chama a atenção para a necessidade de reflorestar o país, de modo a permitir a retomada de uma agricultura produtiva, e frisa o tamanho da precariedade da infraestrutura, em particular das habitações e das estradas. Há um excelente capítulo no qual Farmer compara o Haiti com Ruanda, cuja liderança política pós-genocídio foi muito bem-sucedida nas tarefas de reconstrução e crescimento.

O médico elogia bastante a capacidade da população haitiana em sobreviver às múltiplas catástrofes – naturais e políticas que abalaram o país. Dá o que pensar diante da política migratória brasileira, de restringir vistos para haitianos que queiram vir para cá.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Um Voto pelo Egito

Na quarta e na quinta o Egito realizou a 1ª eleição presidencial livre de sua história de muitos milênios. Com cerca de 25% de toda a população árabe, é uma votação com grandes consequências para o Norte da África e para o Oriente Médio. Os resultados, porém, são preocupantes e apontam para um instável sistema político tripolar entre um presidente relativamente fraco, um parlamento dominado por uma coalizão de partidos islâmicos e as influentes Forças Armadas como o poder por trás do trono, fiadoras da estabilidade do país para as potências ocidentais.

A junta militar que governa o Egito desde a queda do regime autoritário vetou as candidaturas dos líderes mais expressivos, como o dirigente da Irmandade Muçulmana, Khayrat El-Shater, e o ex-chefe do serviço de inteligência, Omar Suleiman. As pesquisas eleitorais egípcias foram realizadas em condições precárias, sob censura e não são confiáveis, mas apontam para quatro favoritos entre os 11 candidatos: dois representam os remanescentes da ditadura Mubarak (“felools”) e os outros, as principais correntes da Irmandade Muçulmana. Provavelmente haverá 2º turno em junho.

Pelo lado do antigo regime, concorrem o general da Força Aérea Ahmed Shafiq, ex-primeiro-ministro de Mubarak, e Amr Moussa, ex-chanceler do ditador e posteriormente secretário-geral da Liga Árabe – cargo que exercia quando começaram as revoltas democráticas. O único episódio mais tenso da eleição foi uma agressão contra Shafiq – manifestantes anti-ditadura jogaram sapatos nele.

A Irmandade Muçulmana havia prometido que não iria disputar a presidência, mas rompeu com esse compromisso. Como a junta vetou seu líder, o grupo lançou Mohamed Morsi. Ele não é considerado um homem carismático ou inspirador, mas sua campanha foi conduzida de modo eficiente e profissional – talvez a melhor executada das eleições. O azarão da Irmandade é Abdel Fotouh, um ex-dirigente da organização que acabou expulso dela após anos de divergências com os colegas. Era bem mais crítico à ditadura do que a maioria deles, que firmaram uma série de pactos políticos com Mubarak. F tem sido criticado por ter montado uma coalizão entre islâmicos e liberais considerada insustentável no médio prazo.

Mubarak havia governado longas décadas sob uma Lei de Emergência revogada após a queda do regime e as funções do futuro presidente só serão definidas com a elaboração da nova Constituição. A Irmandade tem cerca de 50% do parlamento, e outros grupos islâmicos, mais 25%. Seja quem for o vencedor da eleição presidencial, terá que negociar com essa aliança. E, claro, independemente dos votos, as Forças Armadas continuarão a ser a instituição mais poderosa, rica e influente do país.

O Egito não é um país rico em petróleo ou minérios, mas continua a ser chave na política global por muitas razões: sua localização geográfica, a influência sobre a Faixa de Gaza e o Hamas, o tratado de paz com Israel, a presença do Canal de Suez e sua gigantesca capacidade de ter impacto sobre os acontecimentos nos demais países árabes. E tudo isso em meio a muitos, muitos problemas econômicos.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Rio+20 na Política (Externa) Brasileira

When environmental issues entered the United Nations´ agenda, with Stockholm conference (1972), Brazil lived under a military dictatorship that considered ecological themes as rich countries´ hypocrisy, supposedly afraid of fast Brazilian economic growth or interested in the exploitation of the natural resources of the Amazon. These views changed with the return of democracy and the beginning of dynamic social movements dedicated to the environment and big transformations in public policy. However, Rio+20 will be held among serious controversy in Brazil over development and sustainability.

The new environmental conscience was symbolized with the mobilization around the tragedy of Cubatão, the city in São Paulo´s industrial belt that was for many years the most polluted in the world, with severe consequences to the health of its inhabitants. The admiration achieved by the labor leader of Amazon´s rubber extractors, Chico Mendes, was also representative of the new mood, even if it was not enough to prevent his murder by powerful landowners.

(...)

Brazilian foreign policy has ambitious goals to promote the image of the country as a rising power. Since the 1990s, this idea includes an active role in environmental debates and Brazil see itself as a honest broker between rich and poor nations, solving conflicts and framing complex deals such as the agreements of Rio 92 and the Durban conference on climate change. Nevertheless, we may argue that Brazilian environmental policy is more progressive in its foreign face than in its domestic one.

O resto, no artigo que escrevi para o site "La Parole des Jeunes à Rio+20".

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Monarquias na Primavera Árabe

Na semana passada estive em Minas Gerais para participar da XXIX Semana de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Dei uma palestra a respeito das monarquias na Primavera Árabe, discutindo por que essa forma de regime político tem se mostrado tão resistente às rebeliões no Norte da África e no Oriente Médio. Os países que enfrentam maiores turbulências são quase todos repúblicas (Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Iêmen) com a exceção do Bahrein.

É um quadro surpreendente. Farouk, o último rei do Egito, dizia na década de 1940 que no futuro só haveria cinco monarcas: os do baralho e o do Reino Unido. De fato, em poucos anos Farouk perdeu o trono, assim como seus colegas na Líbia e Iraque. Sua irmã, a imperatriz do Irã, também foi destronada. As teorias que procuram explicar a democratização se concentram em fatores como renda e educação e pouco ou nada dizem sobre repúblicas e democracias. Como entender o que ocorre com os reis na Primavera Árabe?

Em seus componentes essenciais, as rebeliões atuais pleiteiam maior participação política para a população e a melhoria da condição econômica, sobretudo dos empregos para os jovens. Presidentes-ditadores correm muitos riscos com eleições livres: se seus oponentes tiverem mais votos do que eles, acabou seu período à frente do país. Os monarcas têm maior espaço de manobra. Irão permancer como chefes de Estado qualquer que seja o resultado das eleições e podem negociar que poderes serão entregues para os líderes do governo (primeiro-ministro, parlamento etc).

Os reis árabes não são como a rainha Elizabeth II. Eles governam, e não apenas reinam. É uma situação mais parecida com a dos imperadores brasileiros do século XIX, e sua gradação entre momentos mais autoritários sobre Pedro I até a postura bem mais liberal do Segundo Reinado. Os monarcas árabes oscilam entre o despotismo da Arábia Saudita e do Bahrein ao reformismo do Marrocos e do Catar. A Jordânia é um caso intermediário, com idas e vindas de um complexo processo de abertura, e o Kuweit tem características semelhantes.

Mas em todos casos, os reis árabes concentram o que no Brasil do século XIX seria chamado o Poder Moderador com outras atribuições-chave do Estado nas esferas do Executivo, Legislativo, Judiciário e vida religiosa. Alguns monarcas são defensores das minorias religiosas, como o rei do Marrocos (um de seus principais assessores é judeu), vendo nelas aliados fiéis, que só podem contar com o trono para sua proteção. Outros são defensores da ortodoxia religiosa, como os monarcas sunitas da Arábia e do Bahrein – nesse último caso, em fortíssimo conflito contra a maioria xiita da ilha.

As rainhas também desempenham papel importante, como exemplos de comportamento feminino que representam uma abertura controlada das tradições. As soberanas do Marrocos e da Jordânia são modernas, elegantes. Não usam véus, são altamente instruídas – a rainha marroquina (acima) é engenheira de telecomunicações e trabalhou numa multinacional antes de desposar o rei.

Historicamente, muitas potências ocidentais (sobretudo EUA e Reino Unido) consideraram monarcas e aristocratas como aliados preferenciais no Oriente Médio, por enxergarem neles a possibilidade de sistemas mais estáveis e conservadores, na comparação com líderes republicanos que usavam seu carisma para prometer amplas reformas sociais, no Egito, Iraque, Síria e Líbia. Assim, os britânicos criaram coroas para a família Hashemita na Arábia, na Jordânia e no Iraque. Os americanos apoiaram a Casa de Saud e a dinastia Al-Khalifa, Contudo, muitos reis eram tão refratários às mudanças que acabaram sendo depostos por populações sedentas por transformações. Os monarcas atuais parecem ter aprendido ao menos algo com os erros dos antecessores.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Crise na Europa: Fase 2

Com as recentes eleições na Alemanha, França e Grécia a crise européia entrou em sua segunda – e mais turbulenta fase. Os eleitores rejeitam as medidas de austeridade e os pacotes de socorro internacionais, os extremos ideológicos crescem em força política. Meu palpite é que o resultado será a adoção de medidas de nacionalismo econômico e a saída grega do euro, seguida eventualmente de outros países na periferia européia.

Me baseio no excelente modelo criado pelo economista turco Dani Rodrik, segundo a qual na época atual os países vivem um trilema segundo o qual não podem ter ao mesmo tempo: a) Economia aberta; b) Estado-Nação autônomo; c) Democracia.

Apesar do crescimento do extremismo ideológico na Europa, golpes de Estado autoritários (ainda) não estão no radar. Talvez entrem no futuro. A alternativa B – um governo de tecnocratas indicados pela Comissão Européia em Bruxelas – não funcionou na Grécia, embora pareça ir melhor na Itália. Resta a opção A – fechar a economia e tentar blindar a sociedade das turbulências globais ou da competição externa, em particular da China. Qualquer um familiarizado com a história do século XX sabe que isso aconteceu em larga escala nos períodos que antecederam as guerras mundiais, com consequências trágicas, em particular na década de 1930: queda no comércio global, aprofundamento da Depressão etc.

O cenário eleitoral da Europa aponta, ao menos no curto prazo, para essa escolha. Mais protecionismo, um relaxamento das regras conjuntas da União e mais autonomia para cada país buscar sua própria saída da crise. Na França e Grécia, os resultados eleitorais foram claramente condenatórios das políticas de austeridade, ainda que um tanto ambíguos sobre a agenda que desejam que seja colocada no lugar (aqui minha entrevista sobre o tema, para a revista Carta Capital). Na Alemanha, mais uma derrota do partido da chanceler Angela Merkel, agora no maior estado alemão, mostram a rejeição da população a seu discurso de austeridade e aos custos de auxiliar as economias mais frágeis da UE.

Não há soluções à vista para a crise européia. No caso da Grécia, uma provável saída do euro acarretaria desvalorização brutal, queda no poder aquisitivo da população e seria acompanhada de moratória de parte considerável da dívida. Algo semelhante ao que houve na Argentina em 2001-2, mas sem a saída de um boom de commodities para reerguer a economia.

Talvez o apocalipse grego aponte medidas que sejam tomadas em maior ou menor grau por outras economias européias. Quaisquer sugestões, encaminhem para Bruxelas.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O Brasil e a Criação da ONU

Eugênio Vargas Garcia é um diplomata que tem escrito importantes livros sobre a história da política externa brasileira, como “O Brasil e a Liga das Nações”. Seu recém-lançado “O Sexto Membro Permanente – o Brasil e a criação da ONU” preenche uma lacuna nos estudos sobre as relações internacionais do país e mostra como muitas das questões levantadas na década de 1940 continuam a orientar os debates sobre a participação brasileira nos fóruns multilaterais, sobretudo no contraste entre grandes expectativas e suas frustrações.

O Brasil foi o único país da América Latina a enviar tropas para combater na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, e na época tinha uma política externa de alinhamento com os Estados Unidos nas grandes questões de política internacional, em troca do apoio de Washington nos objetivos regionais sul-americanos. Durante o conflito militar o Brasil teve importância estratégica, com a instalação de bases militares dos EUA no Nordeste, fundamentais para a invasão do Norte da África, apoio logístico às cadeias de suprimento dos Aliados e fornecimento de matérias-primas inclusive na área nuclear. A expectativa da liderança política brasileira era exercer um papel de destaque na ordem pós-bélica e desde o início o país esteve muito engajado na formação da ONU e sua principal ambição tornou-se uma vaga como membro permanente no Conselho de Segurança.

Havia um descompasso entre esse objetivo e a frágil condição sócio-econômica de um país subdesenvolvido, rural, com metade das exportações dependendo de café e algodão. Havia também a contradição com os ideiais democráticos dos Aliados e a permanência do regime autoritário que Getúlio Vargas havia implementado em 1937, e que começava a ruir com as tensões oriundas da guerra. E os conflitos regonais, em particular com um Argentina mais rica e poderosa, que insistia na neutralidade e chocava-se constantemente com os Estados Unidos. Um diplomata britânico observou: “O Brasil não é de maneira alguma o representante da América Latina, mas sua vaidade e enfado são certamente de uma grande escala.”

Garcia mostra com clareza as disputas pelo poder dentro do Brasil. Vargas afastou seu habilidoso chanceler Osvaldo Aranha, que exerceu o cargo entre 1938-1944, mas que era visto como muito pró-democracia, e nomeia como interino um diplomata de carreira, Pedro Leão Velloso, mais conhecido por dar nome a um tipoo de sopa do que por sua perícia como negociador. Mas Vargas queria um chanceler fraco, que não lhe fizesse sombra, embora até amigos do presidente lhe chamassem a atenção para os defeitos de Velloso nas conferências que criaram a ONU (Dumbarton Oaks e São Francisco), notando sua falta de experiência em fóruns parlamentares. O New York Times ironizava sua pouca disposição a se pronunciar, afirmando que seu discurso mais longo teve 25 palavras.

O Brasil falhou, claro, em obter o assento permanente no Conselho de Segurança e também foi contra a introdução do poder de veto às grandes potências, mas aceitou-o como necessário para fechar o acordo. Contudo, os diplomatas brasileiros – em conjunto com os colegas latino-americanos – forma bem-sucedidos em introduzir na Carta da ONU princípios importantes de Direito Internacional, que estavam ausentes dos esboços originais. A revista Time considerou o documento “uma Carta escrita para um mundo de poder, temperada por um pouco de razão.”

A delegação brasileira também inovou em temas sociais e humanitários, sobretudo pela ação da cientista e pioneira do feminismo Bertha Lutz, que era parte do grupo. Chama a atenção, no entanto, a desconexão entre política externa e política de Defesa. Apesar das menções elogiosas à Força Expedicionária, os militares brasileiros estiveram pouco envolvidos nos debates internos sobre as posições do país da ONU.

“Convém que a nossa atitude de solidariedade com os Estados Unidos não desatenda à circunstância de sermos vizinhos imediatos e amigos da República Argentina”, observou Leão Velloso. De fato, o Brasil agiu com tato para evitar o isolamento de Buenos Aires e procurou mediar as divergências do que era então uma ditatura militar com o governo americano.

Vargas foi derrubado por um golpe pouco após a criação da ONU e achou que o Brasil perdeu com o resultado: “Fomos inteiramente esquecidos e recusados na partilha dos despojos”. Voltaria à presidência na década de 1950 com uma agenda mais nacionalista e crítica dos Estados Unidos, mas alguns dos problemas foram consequências de suas próprias decisões, como o afastamento de Aranha, que voltaria às Nações Unidas no governo Dutra e seria o 1º presidente de sua Assembléia Geral, dando ao Brasil o direito de abrir anualmente a reunião (conto um pouco dessa história em entrevista à Rádio da Câmara dos Deputados).

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Obama e os Direitos dos Homossexuais nos Estados Unidos

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser”, já trovava Luís de Camões. Barack Obama tornou-se o primeiro presidente dos Estados Unidos a apoiar publicamente o casamento gay. A declaração foi feita em reação a uma decisão do estado da Carolina do Norte de proibir esse tipo de enlace. Atualmente, ele só é permitido em seis dos 50 estados americanos, e no Distrito de Columbia (na capital, Washington, e arredores). Em fevereiro um tribunal federal decretou inconstitucional a proibição na Califórnia e agora se especula se a Suprema Corte tomará posição a respeito. Os direitos dos homossexuais entraram com força no debate políticos dos EUA a partir de 1969 e na década passada o casamento entre pessoas do mesmo sexo começou a ser legalizado.

A Suprema Corte tem legado ambivalente com relação aos direitos dos gays. Só de meados da década de 1990 em diante suas sentenças passaram a proibir que a homossexualidade fosse tratada como crime e passasse a ser encarada como parte do direito à privacidade. O entendimento do tribunal é que não cabe ao Estado se pronunciar sobre relações sexuais consentidas entre adultos e também houve várias decisões proibindo discriminação contra gays. Contudo, elas convivem com casos nos quais a Suprema Corte acatou a exclusão de homosseuxais de organizações como os escoteiros, sob alegação de que sua presença iria contra os objetivos da instituição.

Os próprios conservadores entre os ministros da Suprema Corte estão divididos com relação ao casamento gay. A corrente majoritária defende que é uma decisão que cabe aos governos estaduais, mas há uma tendência dos libertários em afirmar o direito individual à escolha de um parceiro sexual, e ao reconhecimento pelo poder público dessa decisão.

Políticos e tribunais seguem as transformações na opinião pública e desde 2011 a maioria (53%) dos americanos é favorável ao casamento gay. É uma guinada notável com relação a apenas 27% em 1996. Contudo, há fortes divisões segundo identificação partidária e idade. Os democratas apoiam o tema bem mais do que os republicanos (69% contra 28%) e os jovens bem mais do que os idosos (70% e 39%).

Não por acaso, são os políticos democratas os que mais têm se empenhado pela aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo e Obama segue os passos bem-sucedidos do governador de Nova York, Andrew Cuomo, que o legalizou em junho de 2011. Três meses depois, o presidente tomou outra decisão importante, autorizando gays assumidos a servir nas Forças Armadas – desde 1993, vigorava a política “Não pergunte, não conte”, pela qual os militares não eram obrigados a declarar sua orientação sexual, mas não podiam manifestá-la caso fosse homossexual.

Os efeitos do apoio de Obama devem ser benéficos para sua campanha à reeleição, (re)mobilizando os jovens que foram importantes para sua vitória em 2008, e estão desapontados com os parcos resultados econômicos de seu governo.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Estados Unidos e América Latina: novos (des)equilíbrios

Na quinta-feira passada fui palestrante na VI Rodada Latino-Americana do Laboratório de Estudos da América Latina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Falei a respeito das relações entre a região e os Estados Unidos nestes tempos em que os equíbrios de poder mudam em detrimento dos países desenvolvidos e favorecem os emergentes.

A América Latina representa cerca de 20% do comércio exterior dos Estados Unidos e esse número cresceu pouco mais de 3% entre 1996 e 2009 (gráficos abaixo). É menos do que se poderia esperar, visto que nesse período houve a assinatura de diversos acordos de livre comércio com a região. Além disso, 60% do total está concentrado no intercâmbio com o México, e metade do restante fica com Brasil, Colômbia e Venezuela.

Ainda assim, podemos argumentar que a América Latina está se tornando mais importante para os Estados Unidos, porque o país está vendo dimunuírem suas fatias dos mercados na Europa, Ásia e até no vizinho Canadá.

Da perspectiva latino-americana, o cenário é oposto. A região depende cada vez menos do comércio com os Estados Unidos. Ao longo da década de 2000 as exportações para lá caíram de 57% para 40%, e as importações, de 50% para 30%. A grande responsável por esse declínio percentual é a China, que chegou até mesmo a se tornar o principal parceiro econômico de países latino-americanos como Brasil e Chile. Ela também já é o 3º maior investidor, atrás apenas dos Estados Unidos e da Holanda. Os gráficos abaixo contam essa história:

As assimetrias entre Estados Unidos e América Latina continuam enormes, mas diminuíram. A região está mais próspera, virou uma área de renda média, com bolsões de pobreza na América Central, Bolívia e Paraguai. Há problemas sociais sérios, como desigualdades (as maiores do mundo), violência e Estados ineficazes e corruptos.

Embora se possa questionar a sustentabilidade do crescimento – ainda muito dependente dos ciclos das commodities – ele possibilita uma inserção internacional mais assertiva, como se manifesta no ressurgimento do nacionalismo, em particular quando aplicado ao controle dos recursos naturais pelo Estado. É uma visão política bastante diferente do liberalismo que esteve em voga na década de 1990.

A agenda externa dos Estados Unidos pós-11 de setembro foi pouco significativa para a maioria dos países latino-americanos, com exceção da Colômbia, que tem seu próprio problema interno de terrorismo. As nações da região se queixam do desinteresse de Washington por suas dificuldades e têm se posicionado contrariamente às principais abordagens americanas para o continente, como a guerra contra as drogas e a tentativa de manter Cuba isolada dos organizações hemisféricas.

Os Estados Unidos tratam o Brasil cada vez mais como um interlocutor para temas globais, acima de ser uma nação-chave na América Latina. Mas ambos os países parecem não saber o que querem um ou do outro, para além de constantes queixas pelas suas divergências internacionais, sobretudo no Oriente Médio. A política externa brasileira também tem o desafio de conviver com um desequilíbrio de poder crescente a favor do Brasil na região. A identidade internacional do país têm pendido para o lado da potência emergente ou BRICS, esforçando-se para se afastar da imagem de instabilidade e turbulência de muitos dos vizinhos.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Da Ditadura à Democracia

No dia 11 de maio começa meu próximo curso na Casa da Saber do Rio de Janeiro: “Da Ditadura à Democracia”. Irei discutir com os alunos três tipos de transição política: aqueles que são frutos de longas negociações e barganhas; os que acontecem de maneira súbita, com a eclosão de rebeliões majoritariamente pacíficas; os que resultam de guerras civis e intervenções estrangeiras. A idéia é usar os acontecimentos contemporâneos, da Primavera Árabe, como um estopim para examinar exemplos históricos, na Europa, América Latina e África.

Há uma considerável literatura acadêmica a respeito de transições democráticas, a maior parte dela formulada a partir dos acontecimentos na América Latina e na Europa Oriental nas décadas de 1980-90, com um ou outro caso importantes em continentes diversos, como na experiência da África do Sul, muito bem estudada. Pesquisas mais recentes, como os excelentes trabalhos de Daron Acemoglu e James Robinson, têm utilizado essas reflexões para atualizar o debate sobre a teoria da modernização e a economia institucional.

Há, por exemplo, uma forte correlação entre pressões por democracia e as expectativas crescentes de uma classe média ampliada, mais instruída, mas que não consegue encontrar empregos na quantidade suficiente para satisfazer suas novas ambições. Não é que ela tenha piorado de vida – muitos regimes autoritários foram bem sucedidos economicamente, sobretudo nas fases iniciais da industrialização. A questão é a dificuldade desses sistemas em continuar a suprir o desejo das pessoas por mais oportunidades, e a natureza de uma economia aberta, voltada para serviços e tecnologias de informação, torna essa tarefa ainda mais complicada para uma ditadura.

Democracia e desigualdade têm uma relação difícil, em geral os países com grandes abismos entre ricos e pobres ou são autoritários ou são muito instáveis, com frequentes golpes e quedas de governo. Neles, é comum que o jogo político vire questão de “tudo ou nada” e seja difícil o tipo de compromisso e barganha que caracteriza regimes democráticos. Sociedades muito desiguais que conseguiram se democratizar, como África do Sul, Brasil e Chile, o fizeram às custas de acordos políticos que deram privilégios e garantias para amplos setores de suas elites.

Outro tema do curso é se as intervenções militares estrangeiras podem ser bem-sucedidas em implementar a democracia. O assunto é controverso. Há, claro, exemplos bem-sucedidos, como a Alemanha e o Japão após a Segunda Guerra Mundial, ou a ex-Iugoslávia depois das ações da OTAN. Mas muitas outras tentativas falharam, em países como o Vietnã ou as Filipinas. Regimes democráticos bem ordenados dependem não só de boas leis e instituições, mas de uma série de consensos e arranjos informais – em última medida, de valores culturais – difíceis de serem impostos de fora.

Em suma, penso que teremos excelentes debates, com muitos exemplos contemporâneos – Tunísia, Egito, Líbia – para esquentar a conversa.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Políticas de imigração no Brasil: por uma postura coerente e cosmopolita

Blogueira Convidada: Patrícia Rangel

Doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), mestre pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Autora do livro “Barrados: um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global”, disponível para download gratuito.

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Há quatro anos, eu e um companheiro de mestrado fomos arbitrariamente detidos em Barajas (aeroporto de Madri) e impedidos de seguir viagem para Lisboa, onde participaríamos de um congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política. Foram 50 horas de detenção injustificada e maus-tratos.

Não se tratou de um caso isolado. Só no primeiro trimestre daquele ano de 2008, a polícia espanhola barrou 18 mil pessoas (entre elas, mil brasileiros). Além de se engajar no processo de aprovação da Diretiva de Retorno (um novo acordo para dificultar a permanência de estrangeiros na União Européia), o país anunciou a idéia de pagar para os imigrantes desempregados retornarem a seus países. De lá para cá, pouca coisa mudou. Muitos outros brasileiros foram submetidos a inexplicáveis maus-tratos, como as religiosas que seguiam para a Alemanha em missão evangelizadora; o músico Guinga, que perdeu dois dentes após ser agredido por um policial do posto da Polícia Nacional Espanhola no aeroporto Barajas; o padre Jeferson Flávio Mengali, que, além de ficar detido, suportou chacotas dos policiais sobre suas roupas religiosas; a física Patrícia Camargo Guimarães, que me antecedeu nesta infeliz aventura e também denunciou o abuso das autoridades que a mantiveram presa por três dias sem qualquer justificativa; entre inúmeros outros brasileiros injustiçados.

Apesar de o Ministério do Interior espanhol argumentar que aplica objetivamente as normas do espaço Schengen, relatos de pessoas rejeitadas e repatriadas apontam discriminação na aplicação de regras. As denúncias giram em torno dos mesmos temas: arbitrariedade nos critérios de ingresso, agressividade dos agentes policiais, acomodações precárias, falta de comida e tratamento humilhante. Em poucas palavra, total ausência de direitos. Zero em hospitalidade.

Recentemente, o debate foi resgatado por conta da adoção de políticas de reciprocidade, que acarretaram a negação de cidadãos espanhóis por autoridades brasileiras. O governo da presidenta Dilma Rousseff oficialmente tomou a decisão de endurecer a entrada de turistas espanhóis e oferecer a eles um tratamento nos mesmo moldes do que nos é oferecido por aquele país. Se antes não lhes era exigido praticamente nada, agora os supostos turistas deverão comprovar a posse de pelo menos 75 euros por dia de permanência em território brasileiro e reserva de hotel ou carta de convite de um residente da cidade de destino registrada em cartório.

Com a aplicação objetiva destas novas regras, estão sendo rejeitados os indivíduos que não atendam aos requisitos para entrar em nosso país, ao contrário do que costuma acontecer na outra mão desta estrada. Tudo muito bom, tudo muito bem. Louvável a postura do Itamaraty. Ao menos quando somos nós, brasileiros, as vítimas do comportamento arbitrário das autoridades de imigração e da xenofobia em países centrais. Mas e quando as posições do jogo se invertem?

No começo deste ano, o governo agiu para controlar o fluxo de imigrantes do Haiti que têm entrado no Brasil pela Amazônia, ao estabelecer um limite de cem vistos de trabalho a haitianos por mês. Paradoxalmente, o país tem atraído cada vez mais imigrantes europeus e americanos que fogem da crise econômica. Sem muito interesse em refugiados de países da Ásia Meridional e da África, bem como em imigrantes de outros países latino-americanos, o Ministério do Trabalho esboça planos para facilitar a vinda de europeus.

Voltando aos haitianos, dados do governo mostram que, até agora, entraram no país 4 mil cidadãos desta nacionalidade, número que vem sendo apontado como um intenso fluxo migratório. Chega a ser cômico argumentar que os haitianos estão “invadindo” o território brasileiro quando nem sequem se destaca o fato de que a maioria dos 51.353 estrangeiros que entraram no Brasil em 2011 são portugueses.

Não se trata, entretanto, de argumentar que não devemos permitir a entrada de europeus no país. Pelo contrário! Sou partidária da adoção de uma postura cosmopolita e hospitaleira por parte do governo brasileiro, mas que seja para todos os cidadãos do mundo. Não podemos adotar uma lógica de dois pesos e duas medidas, dificultando a entrada de nacionais de certos países e incentivando a vinda de europeus. Fazendo assim, somente estaremos reproduzindo a política de imigração racista da Espanha, tão criticada por nós, brasileiros.

Neste caminho, estaríamos reproduzindo também a recorrente migração seletiva que iniciamos logo após a abolição da escravatura com o objetivo de “embranquecer” nossa população, política evidentemente racista. Este ponto se torna especialmente problemático se observarmos a nada recente existência de grupos de características fascistas que se manifestam contra a presença de migrantes econômicos, sobretudo bolivianos, principalmente na cidade de São Paulo.

Em vez de aceitarmos nossa “natureza” e nosso destino enquanto cidadãos do mundo (como argumentava Kant), preocupamo-nos em controlar os movimentos de pessoas como prerrogativa do poder do Estado, levantando barreiras à entrada dos que desejamos manter longe e colocando nessas barreiras guardas bem treinados, armados e disciplinados para desempenhar bem seu papel. Eis um grande erro, como argumenta Seyla Benhabib, pois o sistema internacional de Estados e povos é caracterizado pela interdependência. Esse movimento deveria nos levar a transcender a perspectiva de territorialidade, não a fechar fronteiras, favorecendo disposições de um regime de soberania vestifaliano.

O que me preocupa, ademais, é a lógica “gente versus mercadoria”. A ideologia do capitalismo globalizado e dos mercados livres, adotada pela maioria dos Estados, fracassou em estabelecer a livre movimentação de pessoas e da força de trabalho, ao contrário do que aconteceu com as mercadorias. Seria coincidência o fato de a política de reciprocidade e endurecimento das regras de imigração somente agora que o Brasil é reconhecido como sexta maior economia mundial e que a Espanha se encontra em um quadro de depressão econômica?

O governo brasileiro não pode ser incoerente. Não pode defender uma postura humanitária nas questões de emigração e outra conservadora quando trata de fluxos imigratórios. Como cientista social e vítima da xenofobia européia, orgulho-me muito das progressistas manifestações brasileiras acerca da questão. Não gostaria e não suportaria ver meu país adotar em relação aos bolivianos, haitianos e paraguaios a mesma postura que Espanha e Itália adotam perante nós, latino-americanos.

Foi observando e analisando este fenômeno que terminei por escrever um livro acerca dos fluxos migratórios, com foco especial nas políticas de imigração da União Européia. O livro, intitulado “Barrados: um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global”, também traz um par de depoimentos meus sobre tão peculiar etnografia. O nome que escolhi para a obra demonstra meu descontentamento em relação às assimétricas relações travadas entre o Norte global e os povos do Sul.

Acredito que políticas destinadas ao controle da imigração ilegal e das fronteiras, não são efetivas. Além disso, alimentam a crescente xenofobia nos Estados, legitimando a culpa atribuída aos estrangeiros por todos os males sociais que emergem nesses territórios. Por fim, jogam uma pá de cal no projeto de cidadania cosmopolita idealizado por Kant há 200 anos e que, em determinados momentos da história, começou a ser colocado em prática. Barajas se tornou, para mim e para muitos outros, sinônimo de prisão. Espero que em breve, para todos e todas, Barajas volte a ser o nome de um aeroporto, porta de entrada para um mundo de experiências e oportunidades.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

As FARCs e os Sequestros

No domingo fui entrevistado na Globo News sobre o uso dos sequestros pelas FARCs, por conta do jornalista francês capturado pela guerrilha. Este texto desenvolve alguns dos pontos que abordei na televisão.

As FARCs usam fartamente o sequestro. Às vezes, por razões puramente econômicas, para extorquir dinheiro de suas vítimas. Outras vezes, por motivos políticos, prendendo deputados, policiais, militares, a ex-candidata à presidência Ingrid Betancourt. Em fevereiro, a guerrilha prometeu não mais sequestrar para cobrar resgates, e pouco depois libertou 10 prisioneiros, inclusive com mediação brasileira. Mas as FARCs mantiveram o silêncio com respeito aos sequestros políticos.

O governo colombiano estima que a guerrilha ainda tenha cerca de 100 prisioneiros, organizações da sociedade civil acreditam que o número possa ser bem maior, 450-600. As FARCs sequestraram jornalistas colombianos em algumas ocasiões, mas esta é a primeira vez que capturam um repórter estrangeiro. Rómeo Langlois é um correspondente veterano que está na Colômbia há mais de uma década e trabalha para empresas de prestígio como Le Figaro e France 24.

Langlois acompanhava o Exército colombiano numa incursão para combater o tráfico de drogas, quando a unidade em que estava foi atacada pelas FARCs, e ele foi ferido com um tiro no braço. Fez o procedimento padrão para jornalistas nesses casos: tirou capacete e colete para ser confundido com combatentes. Aparentemente, ele se entregou à gueriilha com medo de ser morto. Porta-vozes das FARCs confirmaram que estão com o jornalista, que classificaram como “prisioneiro de guerra”.

A guerrilha tem baixa credibilidade na Colômbia por uma longa história de promessas não-cumpridas e atitudes dúbias, de engajamentos em negociações ao mesmo tempo em que persistem em ataques e atentados. Sucessivas manifestações e protestos da população têm pressionado as FARCs a libertarem seus prisioneiros. Um jornalista que foi sequestrado pela guerrilha criou uma ONG, Voces del Secuestro, que organizou um mutirão de rádio – o único meio de comunicação acessível aos reféns na selva – com mensagems e palavras de apoio das famílias e amigos.

Há um alto custo político das FARCs em manter em seu poder Langlois, sobretudo por ele ser um jornalista francês, país que teve papel importante nas pressões para a libertação de Ingrid Betancourt. Difícil acreditar que possam aguentar serem colocadas na berlinda por muito tempo, em especial diante do enfraquecimento de seu poder militar.