sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Os Jogos de Honduras



O sociólogo Juan Linz escreveu que a democracia só se consolida quando se torna “o único jogo na cidade”, isto é, a única opção legítima de acesso ao poder. Na quarta-feira tomou posse o novo presidente de Honduras, Porifirio Lobo, eleito após o golpe que derrubou Manuel Zelaya, em meio a uma disputa marcada por violência e irregularidades. O desfecho da crise hondurenha é má notícia para a democracia na América Latina, pois mostra que golpes ainda são estratégias viáveis na região, mesmo que em formato mais restrito do que no passado.

Durante a Guerra Fria, uma situação como a de Honduras teria um roteiro simples: o presidente seria deposto pelos militares que em seu lugar instalariam um general, que governaria por vários anos em nome do combate ao comunismo. No cenário contemporâneo, o que se desenhou foi um enredo mais confuso, mas que em síntese significa que ainda é possível usar a força para afastar um presidente, e reprimir seus apoiadores, contanto que depois sejam restituídos alguns (não todos) procedimentos democráticos.

Honduras foi um caso extremo, pois a pouca relevância política e econômica do país o tornou um alvo particularmente sensível às pressões internacionais, sobretudo dos países da América Latina e da União Européia. Uma nação que passasse por uma crise semelhante, mas tivesse mais recursos de poder – por exemplo, reservas de petróleo ou minérios importantes – com certeza teria mais capacidade para resistir ao isolamento diplomático e manter o novo governo resultante do golpe.

São precedentes sombrios para outros países latino-americanos que enfrentam crises institucionais: Venezuela, Bolívia, Paraguai, Guatemala.

A crise hondurenha mostrou as ambiguidades da política externa dos Estados Unidos para a América Latina. Obama não conseguiu contruir uma agenda alternativa aos governos anteriores e se mostrou reticiente em ações duras contra os golpistas. Em grande medida, pelas divisões existentes na burocracia e no mundo político americano, com os militares e os republicanos bastante satisfeitos em se verem livres de Zelaya e em diminuir a influência de Chávez na América Central.

A política externa venezuelana também saiu perdendo. No momento da crise, Zelaya teve que recorrer à embaixada do Brasil, pois abrigar-se sob a bandeira do bolivarianismo seria fatal para suas ambições. Ele precisava do apoio de um país moderado para afirmar a legitimidade de seu retorno à presidência.

E o Brasil tem aprendido de maneira dura – em Honduras e no Haiti – os limites da projeção de seu poder fora da América do Sul. Os esforços de estabilização e conciliação do país são sempre bem-vindos, mas faltam às autoridades brasileiras os recursos econômicos e militares para concretizaram seus ambiciosos objetivos, em especial quando os Estados Unidos decidem intervir.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Chávez de Olho na Imprensa



Nesta semana o governo de Hugo Chávez tirou do ar a emissora de TV a cabo RCTV Internacional, afirmando que ela não cumpria com uma série de exigências jurídicas. Trata-se do mesmo canal cuja versão de sinal aberto o presidente da Venezuela havia fechado em 2007. Manifestações de oposição à ação oficial foram dispersadas com violência pela polícia. Um estudante foi morto. Na segunda-feira, o vice-presidente (que era também ministro da Defesa) renunciou ao cargo, alegando razões pessoais. O que está acontecendo na República Bolivariana?

A Venezuela está no meio de uma crise econômica complexa, com recessão, inflação em alta e problemas de abastecimento elétrico. No segundo semestre, haverá eleições legislativas, o que é sempre a possibilidade de maior articulação por parte da oposição. O regime chavista está assustando e apertando o cerco aos que o contrariam – usando o Exército para fechar lojas que aumentam os preços, e cerceando os meios de comunicação, em especial as televisões.

O caso da RCTV Internacional é exemplar. A emissora foi relançada no formato a cabo visando a escapar das perseguições do governo, mas as autoridades chavistas argumentaram que o canal deveria se enquadrar nas leis de produção de TV nacional, o que significaria, entre outras coisas, a obrigação de exibir mensagens de cadeia do presidente. Elas não são apenas discursos oficiais, como em outros países, mas incluem propaganda partidária. Nesta semana, por exemplo, as emissoras tiveram que mostrar manifestações de apoio a Chávez.

A RCTV Internacional contestou a ordem na Justiça e teve ganho de causa na Suprema Corte, que considerou a legislação ambígua. O governo promulgou então novas leis para enquadrar a emissora, pois exigem que seus programas não sejam interrompidos por comerciais, que só podem ser exibidos antes ou depois da cada atração. Naturalmente, isso significa queda na receita publicitária. O canal se negou a cumprir as diretrizes e o resultado foi que as autoridades venezuelanas cortaram seu sinal.

A imprensa latino-americana é extremamente concentrada em grandes grupos empresariais de comunicação, com frequencia de propriedade de políticos. É um oligopólio que não reflete a diversidade social da região e que limita a expansão da democracia, dos direitos de cidadania e dos debates da agenda pública. O continente sempre se sai mal nas avaliações de organizações como a Repórteres sem Fronteiras.

A solução para esses problemas passa por mais pluralismo de vozes, mais liberdade. Não menos. Controle governamental sobre a imprensa sempre resulta no aumento do autoritarismo, da corrupção e do arbítrio, mesmo em regimes cujas autoridades sejam menos prepotentes e maniqueístas do que no chavismo.

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E esta semana, na América Latina, ainda temos a posse do novo presidente em Honduras e o conflito entre a presidente da Argentina e o Banco Central. O blog andará movimentado pelos próximos dias.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O Petróleo do Rio



Quanto mais pesquiso sobre a importância do petróleo para a economia do estado do Rio de Janeiro, mais me impressiono com seu peso para a região, e me preocupo com as distorções que essa dependência pode criar. Atualmente, o Rio produz 80% do petróleo extraído no Brasil e o setor irá se concentrar ainda mais no estado com a exploração da camada de pré-sal e a construção do pólo petroquímico em Itaboraí.

O petróleo fluminense é pesado, portanto seu valor é inferior ao do tipo Brent, usado como referência internacional. Mesmo assim, as riquezas geradas pelo setor são consideráveis e salvaram o estado da bancarrota. Do fim da década de 1990 até hoje os royalties petrolíferos aumentaram em 5000%, chegando a cerca de R$15 bilhões por ano em todo o Brasil. O Rio fica com 85% do total destinado aos estados, e 75% do que vai para os municípios. A nova lei do petróleo (9478/97) estabelece os critérios para a distribuição dos royalties. Os mais importantes para o Rio são as chamadas “Participações Especiais”, que incidem sobre os maiores campos e são responsáveis por 2/3 do total recebido pelo estado. Esses recursos é que são alvo das disputas no Congresso, com as bancadas nordestinas se mobilizando para aumentar a fatia da União e de sua região, já visando aos lucros do pré-sal.

Quando o Rio de Janeiro renegociou sua enorme dívida com a União, foi acordado que os royalties servirão a duas funções básicas: pagar esse débito e capitalizar o sistema previdenciário estadual. Parte dos recursos vai para um fundo especial dedicado a projetos de preservação do Meio Ambiente e realização de obras de saneamento. Alguns municípios (Campos, Macaé, Rio das Ostras, Duque de Caxias, Quissamã) recebem quantias consideráveis, e seus prefeitos podem gastá-las como quiserem. Um deles, Anthony Garotinho, surfou tanto na onda do petróleo que acabou no Palácio Guanabara, controlando o governo estadual por quase uma década. Os desperdícios são notórios, como uma cidade que pavimentou uma praça com piso de shopping center. Aqui e ali surgem boas idéias, como um programa municipal que paga a universidade para os moradores locais.

No Brasil de hoje, o imposto de maior valor é o ICMS, arrecadado pelos governos estaduais. A Constituição de 1988 estabeleceu que o ICMS oriundo da energia é cobrado nos estados consumidores, e não nos produtores. Essa decisão foi fruto da pressão da bancada de São Paulo, liderada pelo então deputado José Serra, que queria tributar para os cofres paulistas a eletricidade gerada em Itaipu, no Paraná. Acabou prejudicando também o Rio com a questão do petróleo embora o complexo petroquímico possa diminuir essas perdas.

O pré-sal tem mobilizado grandes expectativas – já ouvi estimativas que só a Petrobras contrataria até 200 mil pessoas. O problema é que se trata de um setor que recruta mão-de-obra muito especializada, e a má situação da educação no Rio significa que boa parte desses profissionais terá que vir de outros estados, possivelmente até de outros países. Há iniciativas de se qualificar mão-de-obra para outros projetos econômicos de grande porte, como na área de siderurgia, mas é preciso encarar a dificuldade: a educação pública fluminense é a pior do Sudeste. Os indicadores sociais reforçam esse obstáculo: 22% da população na pobreza, e a maioria dos trabalhadores na economia informal.

Além da Petrobras, a Eletrobras está sediada no Rio de Janeiro, o que torna a cidade um centro importante no mercado de energia. Os impactos chegam inclusive ao desenvolvimento urbano: as torres de escritórios que as duas empresas constróem no centro e na Lapa prometem revitalizar áreas importantes. Contudo, há um paradoxo: o abastecimento elétrico da cidade é feito pela Light, cuja maior acionista é a estatal Cemig, do governo de Minas Gerais. As constantes quedas de luz e apagões que o Rio tem experimentado nesse verão geram uma situação semelhante àquela outra terra rica em petróleo, a Venezuela. Aliás, o PIB do estado é mais ou menos o mesmo da República Bolivariana.

Oxalá seu destino seja diferente.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

As Duas Coréias



Na semana passada comecei o curso sobre Ditadores Contemporâneos na Casa do Saber. Me surpreendi com a turma lotada, estava cético quanto ao interesse do público por um tema tão barra pesada em pleno ardor do verão carioca. A próxima aula será sobre China e Coréia da Norte. Eu estava baseando a exposição em uma série de artigos de revistas especializadas como Foreign Affairs e International Security, até encontrar um livro que me serviu às maravilhas, “The Two Koreas”, do jornalista americano Don Oberdorfer, um veterano da guerra da Coréia que depois retornou ao país como correspondente do Washington Post. Ele faz uma síntese abrangente e objetiva dos conflitos entre o Norte e o Sul da península, em particular da década de 1970 em diante, e dá ênfase às intervenções das grandes potências – EUA, China e União Soviética – nos assuntos coreanos.

Resenho apenas os trechos sobre a Coréia do Norte, por ser o que me interessa neste momento, em função do curso. O país foi governado de 1948 a 1994 por Kim Il Sung, um ex-guerrilheiro instalado no poder pelos soviéticos, que liderou sua terra com mão-de-ferro e conseguiu um espaço de relativa autonomia, jogando com as rivalidades entre seus dois patronos, URSS e China. Também desenvolveu alianças com outros países do bloco comunista, em particular com a Alemanha Oriental, com a qual compartilhava a sina da divisão ideológica da Guerra Fria. O princípio guia era a juche: autarquia, autonomia.




Até a década de 1960 as duas metades da Coréia eram igualmente pobres e autoritárias, mas o Sul prosperou a partir dessa época e logo começou uma escalada espetacular que o tornou uma das grandes histórias de sucesso do pós-guerra. A reação de Kim foi tentar tornar a Coréia do Norte uma potência militar. Ele foi bem-sucedido no plano convencional, mas seus primeiros esforços de desenvolver tecnologia nuclear, nos anos 80, fracassaram pela pressão da URSS para que abandonassem o projeto.

O declínio do comunismo na URSS e na Europa Oriental foi simultâneo à ascensão da Coréia do Sul – as Olimpíadas de Seul foram em 1988, e esse evento esportivo marcou o reconhecimento diplomático da porção capitalista da pensínsula até pelos aliados ideológicos do Norte. A URSS chegou à humilhação de implorar por um pacote de ajuda econômica ao Sul, em meio ao seu próprio processo de bancarrota.

Kim morreu poucos anos depois, mas teve tempo suficiente para relançar seu programa nuclear, e de mísseis balísticos, agora com sucesso. Ele o tem utilizado para extrair concessões econômicas dos EUA, da Coréia do Sul e do Japão, num ciclo tenso no qual o Norte frequentemente viola os tratados e compromissos para uma nova rodada de barganhas.




Kim foi sucedido por seu filho primogênito, Kim Jong-Il, que segundo os relatos não é especialmente interessado em política, sua principal paixão é o cinema – ele chegou a sequestrar diretores e atores sul-coreanos para montarem produções no país! Em todo caso, continuou com a tradição autocrática da Coréia do Norte, entregando mais e mais poder na mãos dos militares, em detrimento do Partido Comunista.

O país tem vivido numa crise constante – o quadro acima o mostra à noite, praticamente sem iluminação, em meio aos seus prósperos vizinhos. Há indícios de fome em massa, semelhantes àquela que ocorreu na China na década de 1950. Apesar dos conselhos chineses para reformar a economia, Kim Jong-Il não a modernizou. As principais fontes de divisa são a ajuda internacional e as remessas dos coreanos que vivem no exterior.

A fronteira entre as duas Coréias é uma das zonas mais tensas do planeta e são frequentes confrontos armados com mortos e feridos. Apesar disso, houve negociações de reaproximação que permitiram avanços humanitários, como visitas de famílias separadas pela guerra e até ajuda econômicas de cidadãos privados do Sul, como o dono da Hyundai. Infelizmente, uma Coréia reunificada com a pujança do Sul e o poder militar do Norte não interessa a seus vizinhos. Mas o Vietnã e a Alemanha também enfrentaram esse problema e o superaram por meio da resolução militar ou da força econômica. Será que os coreanos conseguirão o mesmo?

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A Década na América Latina



Atividades acadêmicas planejadas para breve me fizeram pensar um pouco na retrospectiva da década de 2000, em quais foram os fatos mais significativos para a América Latina. Abaixo seguem os que considerei os mais importantes, comentários e sugestões de acréscimos são bem-vindos:

Política

- As vitórias eleitorais da esquerda: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, El Salvador, Equador, Honduras, Uruguai e Venezuela.

- Os golpes na Venezuela e em Honduras, a democratização do Peru após a queda de Fujimori.

- O (re)estabelecimento de processos judiciais por crimes cometidos durante as ditaduras militares da região.

- O fim de longos domínios partidários no México e no Paraguai, e a saída de Fidel Castro da chefia do Estado em Cuba.

- Enfraquecimento da guerrilha na Colômbia.

- Eclosão de conflitos de fronteira e/ou por recursos naturais na região, revertendo a tendência da década de 1990.

- O aumento nos gastos militares nas nações sul-americanas.

- Missão de paz da ONU no Haiti.

- A criação da Unasul e o papel mais ativo da OEA nas crises do continente.

Economia

- O crescimento bastante expressivo das principais economias da região, acompanhado em alguns países por considerável redução da pobreza, mas a persistência dos altos índices de desigualdade social.

- A crise de 2001 na Argentina.

- Assinaturas de tratados de livre comércio dos EUA com Chile, Colômbia e América Central/República Dominicana.

- China se torna parceiro comercial importante para a região.

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A edição brasileira destê mês do Le Monde Diplomatique traz reportagem de Paula Daibert sobre direitos humanos e política externa do Brasil, na qual minha amiga Lucia Nader e eu somos entrevistados e analisamos criticamente as decisões do governo Lula na ONU em relação a temas como o Irã.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Haiti: a tragédia política



Muitas observações tratam o terromoto que devastou o Haiti como uma maldição da natureza. Isso é um erro: a calamidade no país é política. O tremor de 7 pontos na escala Richter que matou talvez 50 mil (na estimativa mais recente da Cruz Vermelha) é de igual magnitude ao que atingiu a Califórnia em 1989 – e tirou a vida de 63 pessoas, quase um milésimo da mortandade registrado no Caribe.

Não é difícil entender por que o terremoto haitiano foi tão devastador. Péssima qualidade da infraestrutura existente, muitas casas frágeis, de madeira, e mesmo o alto percentual de crianças na população (50% dos habitantes da capital) que são, evidentemente, mais fracas fisicamente. Os quartéis do corpo de bombeiros do país foram destruídos, assim como o principal aeroporto e o porto mais importante, dificultando o trabalho da defesa civil, o recebimento de ajuda humanitária, a busca por sobreviventes e o atendimento dos feridos.

Contudo, há um debate mais amplo sobre as causas da pobreza estrutural dessa nação. Militares brasileiros com quem conversei chamam a atenção para o contraste com a República Dominicana, que ocupa a parcela leste da mesma ilha onde está localizado o Haiti, e tem uma situação bem mais confortável. O texto mais interessante que li sobre o tema lista diversas razões. Algumas delas:



- A revolução do Haiti expulsou a parcela de maior instrução da população(que fugiu dos escravos em revolta) e o novo país nasceu com pesada indenização de guerra com a França, a ex-metrópole colonial, que só terminou de ser paga no século XX, e mesmo assim às custas de novas dívidas externas. Foi uma transição bem diferente do que aquela realizada pelos EUA, Brasil ou pela América Espanhola, onde as independências foram conduzidas pelas elites locais: os Founding Fathers, os criollos, o príncipe herdeiro do trono de Portugal.

- As constantes invasões militares estrangeiras (França, Estados Unidos) e os impactos dos embargos econômicos. As sanções da década de 1990, por exemplo, danificaram bastante a indústria têxtil que ascendia como principal alternativa comercial do país.

- A língua créole falada no Haiti funcionou como um elemento de isolamento internacional, por não ser um idioma de uso difundido, como o inglês ou o espanhol.

- Na era colonial, a especialização econômica no açúcar criou uma dependência perversa desse produto, que requer uma escala de produção muito ampla (latifúndios) para ser rentável e com freqüência resulta em relações de trabalho coercitivo análogas à escravidão. Mesmo depois da independência, o poder permaneceu nas mãos de uma reduzida elite de proprietários, que tem se mantido no controle do país desde o início do século XIX, transformando o Estado numa estrutura mafiosa.



- O descaso com o Meio Ambiente, tornando o Haiti um dos países mais desmatados do planeta, com sérios impactos para a produtividade agrícola. Novamente, há forte constraste com a vizinha República Dominicana.

- Conflitos étnicos entre negros e mulatos, com violência, instabilidade política.

Diante de tais circunstâncias, a ajuda externa para a reconstrução do país é fundamental, a questão é discutir quais as melhores maneiras de aplicá-la de modo eficaz. Um palpite: dar mais voz à comunidade de haitianos no exterior, em particular nos EUA e no Canadá, cuja crescente prosperidade pode ser o motor para retomar os investimentos no país, e quem sabe construir uma alternativa política às famílias da oligarquia.

A rápida reação dos Estados Unidos - US$100 milhões em ajuda e 10 mil soldados - impressiona pela capacidade de ação mesmo em meio às guerras no Oriente Médio. Contudo, coloca em questão a liderança do Brasil (1.250 tropas e US$15 milhões). O mal-estar provocado a partir da tomada pelos americanos do que restou do aeroporto de Porto Príncipe mostra o tipo de problema que virá pela frente. A liderança brasileira no Caribe foi construída durante o hiato de poder nos EUA, quando Washington estava no auge dos conflitos no Iraque. Até que ponto as ambições do Brasil se sustentam diante do que parece ser a disposição de Obama de voltar a envolver os Estados Unidos mais firmemente na região?

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Haiti: o horror, o horror




As ferramentas normais da análise política e econômica parecem de algum modo irrelevantes – ou mesmo sórdidas – diante de uma calamidade como o terremoto haitiano.... Depois de noticiar esses fatos assustadores, há algo mais a dizer?
Gideon Rachman, Financial Times

Nas décadas de 1970 e 1980 os terremotos na Nicarágua e no México mobilizaram a sociedade civil e ajudaram a acabar com os regimes autoritários nesses países. Oxalá a tragédia que atingiu o Haiti possa catalizar as energias de renovação doméstica e na comunidade internacional, num movimento de reconstrução nacional.

As estimativas iniciais sobre os efeitos do terremoto são assustadoras. Cem mil mortos – 1% da população! Três milhões de desabrigados. A destruição da capital, Porto Príncipe, com falta de luz, água potável e telefones. A ruína de prédios importantes como o Palácio Presidencial, o Parlamento e o QG das Nações Unidas. O Brasil, que comanda militarmente a missão da ONU para a estabilização do país, sofreu de forma considerável. A morte de 14 soldados num só dia (4 ainda estão desaparecidos) é a maior perda das Forças Armadas desde a campanha na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. E a sociedade civil brasileira se despediu de uma de suas personalidades mais admiráveis, Zilda Arns, da Pastoral da Criança, morta no desabamento de uma igreja quando dava palestra.

Os desafios para o Haiti, no curtíssimo prazo, são imensos. É preciso lidar com a devastação da infraestrutura, atender, abrigas e alimentar os desabrigados e feridos, enterrar os mortos antes que os cadáveres se tornem focos de doença, conter a onda de crimes que já se espalha pelos destroços e impedir que o desespero gere uma crise de refugiados e fugas em massa para a República Dominicana ou para os Estados Unidos.

A ironia da história é que 2009 havia sido um ótimo ano para o Haiti. Na ausência de desastres naturais, a economia crescera 2.4%, em particular as exportações (incríveis 23%) e os investimentos externos retornavam, sobretudo da comunidade de imigrantes haitianos nos Estados Unidos. A tragédia do terremoto destrói a esperança de retomada do país, a luta agora é mais urgente e imediata, pela mera sobrevivência.

Torço para que a catástrofe humanitária desperte uma reação vigorosa na comunidade de doadores internacionais e que os recursos da ONU sejam canalizados para a reconstrução do país. Contudo, não espero muito dessas possibilidades. Há outras, e muitas, prioridades. Afeganistão, Paquistão, Iraque, Congo. O Haiti é o país mais pobre das Américas, mas não está no centro de nenhum grande conflito político, nem possuir recursos naturais importantes para a economia global.

Para o Brasil, a tragédia haitiana é um travo amargo no excelente trabalho desenvolvido pela Minustah e um lembrete dos riscos imponderáveis e dos custos, inclusive em vidas humanas, de uma política externa mais ativista, mesmo em missões de paz. É inevitável o sentimento de frustração com os caprichos da natureza, que destruíram um processo lento mas constante de ações sociais brasileiras no Haiti.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A Desvalorização da Venezuela



O pacote econômico que o governo da Venezuela anunciou nesta semana é uma imagem do passado brasileiro: maxidesvalorização da moeda, taxas múltiplas de câmbio, racionamento de energia elétrica e repressão estatal aos comerciantes que ameçam aumentar os preços. Difícil imaginar que o resultado será diferente do que aconteceu com tanta frequência no Brasil: inflação e/ou desabastecimento.

Desde 2005 o Bolívar tinha seu valor fixo ao dólar a uma taxa demasiado baixa de 2,15. O acesso à moeda estrangeira é controlado de forma rigorosa na Venezuela, o que fez com que muitas empresas tivessem problemas em suas operações cotidianas, por escassez de divisas. Firmas e pessoas também recorriam bastante ao mercado clandestino de câmbio. O Bolívar sobrevalorizado ajudava a controlar a inflação, por meio de importações baratas, mas nem assim a Venezuela conseguiu lidar com o problema, pois seu índice inflacionário de 25% (2009) é o mais alto da América Latina e um dos piores do mundo.

Com a desvalorização, o dólar passa a valer 4,30 Bolívares, mas haverá uma taxa especial de 2,60 para comprar produtos estrangeiros que o governo classificar como essenciais. Esse tipo de medida foi amplamente utilizado no Brasil, para favorecer determinadas indústrias (por meio da importação de bens de capital) e proteger setores sensíveis da economia. Dá margem à muita corrupção, na medida em que os grupos de interesses tentam convencer os as autoridades a favorecê-los com as taxas mais vantajosas.

A desvalorização beneficia os exportadores, que vêem seus lucros em Bolívares duplicados. Ora, 90% das exportações venezuelanas são de petróleo e derivados, realizadas pela estatal PDVSA. O objetivo de Chávez é claro: melhorar o caixa do governo, que vem enfrentando um déficit crescente, preocupante em meio à conjuntura da crise internacional.

É uma macroeconomia bastante diferente daquela que tem sido adotada pelos países latino-americanos mais bem-sucedidos, que têm controlado rigidamente a inflação, acumulado superátivs primários e usado a “flutuação suja” do câmbio, isto é, só intervindo no mercado quando a taxa ultrapassa certo limite de segurança.

O problema é que, ao encarecer as importações, a desvalorização cria uma forte pressão inflacionária, num país que já sofre muito com esse assunto e que compra do exterior 80% dos produtos que consume. A corrida dos venezuelanos às lojas, antes da vigência do novo câmbio, mostra a baixa confiança no governo e as dificuldades que as autoridades encontrarão para lidar com as expectativas da população. Chávez deu sua resposta tradicional de repressão, no espantoso uso do Exército para fechar 70 lojas que aumentaram preços.

Como nada está tão ruim que não possa piorar, a Venezuela enfrenta sua pior crise de energia em anos, com racionamentos nas principais cidades e apelos presidenciais para que as pessoas diminuam o tempo no banho. Num país tão rico em recursos energéticos, algo assim só é possível por péssimas políticas públicas de investimento e infraestrutura.

Diante de tantos problemas, só resta culpar os Estados Unidos, e Chávez lançou uma cartada nesse sentido acusando aviões americanos de violar o espaço aéreo da Venezuela. Resta saber se a população dará atenção a isso, diante de problemas econômicos cotidianos de tanta gravidade.

***

A tragédia humanitária no Haiti me deixa até mal em escrever sobre a economia venezuelana, mas no momento ainda não tenho informações mais precisas sobre o terremoto na ilha caribenha, apenas especulações assustadoras sobre o número de mortos, feridos e desabrigados. Em breve abordarei o tema, tão logo a situação fique clara.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Touros Indomáveis e Sem Destino



No fim da década de 1960, Holywood estava em crise. Acossados pela competição com a TV e fora de sintonia com os novos tempos, os grandes estúdios estavam à beira da falência. Num esforço para superar os problemas, os executivos resolveram dar poder a um grupo de jovens cineastas e atores – Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, George Lucas, Steven Spielberg, Warren Beaty, Roman Polanski, Jack Nicholson, Robert de Niro, entre outros - fortemente influenciados pela contracultura que grassava no país, e o resultado foram dez anos de criatividade explosiva e obras-primas, mas também de tragédias pessoais que em boa medida soterraram as promessas daquele grupo. O livro “Easy Riders and Raging Bulls ”, do jornalista Peter Biskind, conta esta história de modo brilhante, e agora finalmente saiu a edição brasileira, “Como a geração sexo, drogas e rock and roll salvou Hollywood”.

Para Biskind a revolução começou com dois filmes: “Bonnie and Clyde” e “Sem Destino”, que fizeram enorme sucesso e mostraram as novas tendências: desconfiança ou revolta com relação às autoridades (no clima dos protestos contra a guerra no Vientã e do escândalo de Watergate), mais violência, ousadia sexual, ambiguidade moral e mistura entre comédia e tragédia. Os novos cineastas eram influenciados pela doutrina francesa da Cahiers du Cinema do “diretor como autor”, desafiando a tradição americana na qual o produtor era a figura-chave da realização de um filme. É um sinal do desespero de Hollywood que a indústria tenha comprado essas pretensões e autorizado os jovens a brincar de criadores.



Muitos deles eram os primeiros cineastas americanos a terem estudado a disciplina em universidades, nas quais fizeram pequenos curta-metragens, ou no caso de Copolla, um longa. Suas referências eram sobretudo européias – a Nouvelle Vague francesa, Antonioni, Bergman ou então os japoneses Akira Kurosawa e Yasujiro Ozu. Havia também admiração pelos mestres dos EUA, como John Ford, Howard Hawks, e acima de todos, Orson Welles. Os jovens diretores foram ajudados pelo avanço da tecnologia: com equipamentos mais leves e portáteis, queriam sair do mundo fechado dos estúdios e contar histórias na rua, com “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, como diziam suas contrapartes brasileiras.




O que é mais surpreendente é que esse programa radical foi compatível com o sucesso nas bilheterias, quando Coppola dirigiu “O Poderoso Chefão”, transformando um best seller sobre gangsters numa tragédia shakesperiana sobre poder e corrupção. Ou quando Scorsese filmou em “Taxi Driver” sua descida ao inferno de Nova York, com doses inéditas de violência e degradação urbana.

Contudo, a turma mais atinada com o circuito comercial percebeu que os colegas iam longe demais para o gosto do público mediano, e que havia demanda das platéias por um tipo de enredo mais convencional, de Bem contra o Mal, e que pudesse ser assistido por toda a família. Spielberg e Lucas notaram com atenção essas lições e inventaram os blockbusters contemporâneos com “Tubarão” e “Guerra nas Estrelas”, ainda que incorporassem alguns elementos contraculturais, como a valorização da inocência infantil, dos mitos, do inconsciente (da Força?), como seja.



Nesse processo, a indústria do cinema foi transformada. Até a década de 1970 os filmes estreavam em Nova York ou Los Angeles e aos poucos eram lançados em outras cidades dos EUA. O boca a boca era importante, bem como os críticos nos jornais, em especial a toda-poderosa Pauline Kael, do New York Times, que muito ajudou a nova geração. Talvez até demais, para sua isenção como jornalista. Mas com os blockbusters, os lançamentos passaram a ser mega eventos, centenas de cinemas ao mesmo tempo, com investimento pesado em publicidade, divulgação massiva na TV.

Os cineastas cujas carreiras são examinadas no livro sentiam fundo a contradição entre o desejo de serem autores rebeldes e suas posições como partes de uma indústria gigantesca e bem-sucedida, de lucros multimilionários que frequentemente enloquecem quem os recebe. No entanto, isso não é nada com relação aos comportamentos autodestrutivos descitos por Biskind, em particular com o abuso de drogas, manipulação pessoal, fogueira de vaidades, disputas individuais e casos extraconjugais em massa que destruíram muitas vidas e carreiras.

Por isso o livro tem um fecho melancólico, no qual Biskind analisa o declínio de tantos artistas que tiveram inícios geniais – Coppola é o exemplo mais expressivo, Peter Bogdanovich (“A Última Sessão de Cinema”) é outro, para não mencionar Polanski, preso por estuprar uma adolescente. Eles queriam ser autores, mas talvez não tivessem muito a dizer, alfineta Biskind. Scorsese é um belo contraste: soube manter um altíssimo padrão de qualidade, apesar de quase ter sido destruído pela cocaína. Os cineastas entrevistados manifestam idolatria por Woody Allen, que teria realizado o ideal dessa geração, mas ele é citado apenas de passagem por Biskind. Os interessados podem ler o excelente livro de entrevistas com o diretor.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O Quebra-Cabeças do Rio



O Rio de Janeiro foi a capital do país por quase 200 anos, e chegou a sediar um império colonial que se estendia por vários continentes. Essa situação levou à carências curiosas. Tradicionalmente, as universidades e centro de pesquisas sediados na cidade pensaram o Brasil e o mundo, mas pouco olharam para a região ao redor. Nestes primeiros meses de retorno ao Rio, tenho me esforçado para reunir informações e dados sobre o estado. Com pesquisas, garimpo em sebos, observações e conversas com colegas na máquina do governo, na academia e no jornalismo estou aos poucos montando o quebra-cabeças da realidade estadual. Eis minhas principais conclusões, até agora.

O Rio tem um território densamente povoado, com 15, 5 milhões de habitantes,. Seu PIB é o segundo maior do Brasil (depois de São Paulo), equivalendo ao do Chile, e sua população, a segunda mais instruída (após o Distrito Federal). O estado tem o maior percentual de idosos do país, porque muitas pessoas optam por morar nele quando se aposentam.

A Região Metropolitana tem mais peso no Rio do que em qualquer outro estado brasileiro. Nela se concentram ¾ da população e 55% do PIB. Este último percentual foi muito mais elevado, da ordem de 85%, mas a partir da década de 1990 o interior cresceu a taxas dignas da China – por volta dos 12% anuais - ainda que esse sucesso econômico esteja concentrado em dez municípios do Norte, que se beneficiam do boom do petróleo. Persistem bolsões de pobreza expressivos, sobretudo na região serrana. Os recentes desabamentos em Angra dos Reis também de explicam, em parte, pela deteroriação econômica: a cidade foi muito favelizada (inclusive em áreas de risco) em decorrência do fechamento de diversos estaleiros na região, ao longo das crises das décadas de 1980 e 1990.

Os indicadores sociais fluminenses refletem tais desequilíbrios: apesar do estado crescer acima da média nacional, o desemprego é um dos mais altos do país e os dados relativos à saúde e à distribuição de renda estão mais próximos do Nordeste brasileiro do que dos outros estados do Sudeste. A educação enfrenta crise: as taxas de evasão e desempenho escolar são ruins e apontam para a perda de competitividade do estado, a menos que os profissionais qualificados venham de outras regiões para suprir as necessidades da economia.

Mesmo antes da exploração da camada pré-sal, a Bacia de Campos produz 85% de todo o petróleo brasileiro, e o setor é responsável por incríveis 25% do PIB estadual. Essa importância se traduz no cronograma dos investimentos para 2010-2012. São previstos cerca de R$125 bilhões em recursos, sendo que 60% deles estão a cargo da Petrobras, concentrados na instalação do Complexo Petroquímico em Itaboraí.

Todos sabem que a dependência do petróleo é perigosa e há esforços do governo e da sociedade para se pensar em alternativas e ações que diversifiquem a economia estadual. Os dois principais setores são a indústria naval e a siderurgia, que têm recebido investimentos de vulto – no primeiro caso, como desdobramento das atividades de extração petrolífera no litoral, no segundo, com a instalação da siderúrgica da ThyssnKrupp CSA (o maior investimento privado em curso no Brasil) e a futura usina da Votorantim em Resende.



Um velho gargalo para o desenvolvimento estadual é a infraestrutura. O problema começou a ser enfrentado graças à articulação entre os três níveis de governo. A maior parte dos recursos está nos portos: Sepetiba, Açu (no Norte do estado, para atender à cadeia petrolífera), a revitalização do porto do Rio e a construção de oito portos por empresas privadas. Outra ação fundamental é a construção do Arco Metropolitano (imagem acima), que ligará o porto de Sepetiba ao Complexo Petroquímico. A obra permitirá que os caminhões de carga deixem de atravessar a cidade do Rio, contribuindo para a melhora do trânsito. A agenda de reformas tem itens que ainda não foram totalmente definidos, como a modernização do Aeroporto Internacional Tom Jobim e a expansão do metrô carioca para a Barra da Tijuca.

A construção do Trem-Bala ligando o Rio de Janeiro a Campinas também terá um efeito positivo na economia do estadual, principalmente no Vale do Paraíba, que tem tudo para se tornar a região industrial mais dinâmica do país, a meio caminho entre os principais mercados – Rio, São Paulo e Minas Gerais. Cerca de 50% do PIB brasileiro é produzido num raio em torno de 500 Km em volta da cidade do Rio, e com a melhora dos transportes aumenta o atrativo do local como um pólo de serviços de alto valor agregado.

Além de tudo, há o impacto dos três grandes eventos que o Rio sediará (integralmente ou em parte) entre 2011 e 2016: Jogos Mundiais Militares, Copa do Mundo e Olimpíadas. E o planejamento do governo, centrado na reforma da gestão pública, na segurança e na atração de investimentos. Temas que ficam para outros posts.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

(Bi)Centenários



Em 2010 se comemoram 200 anos da independência da América Espanhola, e cem da Revolução Mexicana. Será uma estranha celebração: no México e na Argentina, os dois maiores países da região, o clima é de desalento pelas oportunidades perdidas. Na América Latina como um todo, o crescimento econômico tem se concentrado em nações menores – Chile, Peru e Colômbia – em meio às divisões políticas entre bolivarianos, sociais-democratas e conservadores. O Brasil está cada vez mais afastado dos vizinhos de língua espanhola, consolida a identidade internacional como potência emergente/BRIC e suas preocupações são diversas daquelas da região.

(Imagem acima: pintura representando o encontro entre Bolívar e San Martin, abaixo, foto da reunião entre Pancho Villa e Emiliano Zapata, durante a Revolução Mexicana).

Tudo era muito diferente em 1910, quando a Argentina parecia ingressar de forma definitiva no grupo de países mais ricos do mundo, e o México deixava para trás a longa ditadura de Porfirio Díaz para iniciar o que aparentava ser uma revolta liberal-democrática. Foi um século turbulento para ambos os países, mas o que se vê atualmente é a sociedade argentina presa a um ciclo infindável de crises e de confrontações políticas, ao passo que os mexicanos amargam o fracasso de seu modelo de atrelamento aos Estados Unidos e enfrentam o colapso da segurança pública em função do tráfico de drogas.

A ascensão da China valorizou muito os produtos de exportação da América Latina, mas não há um modelo de desenvolvimento conjunto associado à nova conjuntura. Nos países bolivarianos (Venezuela, Bolívia, Equador), predomina o retorno de governos fortemente nacionalistas, que procuram usar os recursos naturais (sobretudo petróleo e gás) para custear políticas sociais e a expansão das atividades do Estado na economia. Em menor grau, essas diretrizes são observadas em mandatários de ideologia semelhante, mas que dispõem de capacidades ainda mais frágeis (Paraguai, Nicarágua, El Salvador).




Nas nações cujos presidentes são sociais-democratas (Chile, Uruguai) as redes de proteção social também crescem, mas sem aumento correspondente do ativismo econômico estatal. Naquelas de orientação conservadora (Colômbia, Peru) a agenda está mais voltada para temas como segurança pública, defesa nacional e ampliação da infraestrutura.

O retrato da América Latina contemporânea é bastante matizado. Há muitos aspectos positivos: novos movimentos sociais que representam os setores mais pobres, melhor gestão macroeconômica e considerável crescimento do PIB. Também há sombras diversas: persistência de autoritarismo, manipulação demagógica, ameaças de golpe de Estado, insegurança pública, forte influência do crime organizado e dificuldade da região em se inserir de maneira qualificada na economia global, para além do formato tradicional de exportadora de matérias-primas, produtos agrícolas, minerais e combustíveis.

Para onde vai o continente? Que objetivos os povos e governos da região almejam? Qual o papel da integração nesse processo? São algumas das perguntas a se fazer neste ano que pode ser tão rico em debates políticos para a América Latina.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Por que a FAB prefere o Gripen



O relatório da Força Aérea Brasileira que classifica o caça sueco Gripen como a melhor opção para a renovação da frota brasileira e que aponta o francês Rafale como o pior entre os finalistas colocou o presidente Lula numa situação constrangedora – por sua própria culpa. Em setembro, ele aproveitou a visita de Sarkozy para anunciar a decisão de comprar os aviões da França, no âmbito do amplo acordo militar entre os dois países. Mas o fez à revelia dos procedimentos jurídicos corretos, antecipando-se à avaliação técnica da Aeronáutica. O troco veio agora e agrava a crise entre o governo e as Forças Armadas.

Há boas razões para a FAB preferir o Gripen. O Rafale é um avião novo, que jamais foi vendido para outro país fora da França. Por conta da pequena escala de produção, seus custos, incluindo os de manutenção, são extremamente elevados. Cerca do dobro do caça sueco. Além disso, os militares temem que o Rafale não consiga se consolidar no mercado internacional, e que a Dassault, empresa que o fabrica, acabe por retirá-lo de circulação, o que traria grandes dificuldades na obtenção de peças de reposição.

Além disso, há a questão da transferência de tecnologia. Os franceses prometeram muito, mas há muito ceticismo dos técnicos brasileiros quanto à proposta da Dassault. Em minhas conversas com os engenheiros da Embraer, ficou claro que a empresa prefere a SAAB sueca. O modelo do Gripen que está sendo oferecido ao Brasil é um novo projeto, que seria desenvolvido em parceria com a firma brasileira. Como me explicaram em São José dos Campos, esse formato permite um aprendizado muito mais rico e intenso por parte da Embraer, que já tem experiência nesse tipo de projeto em função de acordos anteriores com a Itália, para a construção do AMX.

O presidente Lula não é obrigado legalmente a aceitar a recomendação da FAB e pode optar pelos caças Rafale. Naturalmente, será uma decisão política: aceitar um produto inferior em razão dos benefícios oferecidos pela aliança com a França, seja no campo propriamente militar (a parceria na construção do submarino nuclear, a compra dos helicópteros) seja no apoio à obtenção dos objetivos da política externa brasileira.

Mas é claro que uma escolha desse tipo desgastará ainda mais as relações do governo com as Forças Armadas. É hora de boas conversas para aparar as arestas entre a elite civil e a cúpula militar, antes que alguém se corte a sério nelas.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Clarice Lispector



Escrever é procurar.
Clarice Lispector

Certa vez uma amiga mencionou um livro de Clarice Lispector numa entrevista de emprego num grande jornal e foi rechaçada: “Por que você gosta dela? Você é deprimida?”. O entrevistador foi eleito há pouco tempo para a Academia Brasileira de Letras e com a cultura nacional com esse tipo de luminar, não surpreende que a reflexão sobre a mais importante autora do país venha de fora, das mãos do americano Benjamin Moser. “Clarice,” (no original em inglês, “Why this world?”) é uma excelente biografia daquela que Moser classifica como “a melhor escritora judia desde Kafka” e descreve como “uma mulher que se parecia com Marlene Dietrich e escrevia como Virgina Woolf”.

A família Lispector enfrentou provações trágicas em sua Ucrânia natal. Com o caos da guerra civil que se seguiu à Revolução Russa, a população judaica foi alvo de massacres tanto pelos comunistas quanto pelos monarquistas. Um dos avôs de Clarice foi assassinado num pogrom, e sua mãe, estuprada por um grupo de soldados russos. Contraiu sífilis, e a doença e o trauma psicológico acabaram por matá-la precocemente. Os Lispector conseguiram fugir da Ucrânia e foram para o Nordeste brasileiro, onde tinham parentes. Clarice ainda era bebê. Viveram em Maceió e no Recife e após a morte da mãe se mudaram para o Rio de Janeiro. A família tinha condições modestas de vida, mas as três filhas – Elisa, Tânia e Clarice – eram inteligentes, dedicadas e trabalhadoras. Todas se destacaram nos estudos e Elisa e Clarice tiveram carreiras como escritoras e profissionais liberais.

Clarice se formou em Direito – algo raro para uma mulher no Brasil da década de 1940. Ainda na faculdade, começou a trabalhar como jornalista e conheceu o escritor Lúcio Cardoso, por quem teve uma paixão platônica – ele era homossexual – e que foi amigo íntimo por toda a vida. Clarice era muito bonita e tinha diversos admiradores. Casou-se cedo com Mauro Gurgel Valente, um colega de universidade que se tornou diplomata. Como sua esposa, passou cerca de 15 anos no exterior, na Itália, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos e Polônia.



Escrevia desde menina, quando seus contos eram rejeitados pelos suplementos infantis dos jornais por não seguirem as fórmulas convencionais do “era uma vez”. Publicou contos quando repórter e o primeiro romance, “Perto do Coração Selvagem”, pouco antes de deixar o Brasil. O livro teve excelente recepeção, mas o longo período no exterior foi uma época difícil para Clarice. O marido era apaixonadíssimo por ela, tiveram dois filhos (um dos quais tornou-se esquizofrênico) e um círculo de amigos amplo e instigante, que incluía o escritor Érico Veríssimo, os jornalistas Samuel e Bluma Wainer, o poeta João Cabral de Mello Neto, o banqueiro Walther Moreira Salles, a filha de Getúlio Vargas, Alzira do Amaral Peixoto e os diplomatas Vasco Leitão de Cunha e João Araújo Castro. Ainda assim, Clarice com frequencia ficava deprimida e com saudades do Brasil e da família. Ressentia-se do formalismo e dos protocolos da vida diplomática, e tais sensações aparecem no que escreveu na época, sobretudo o romance “A Cidade Sitiada”.

A correspondência de Clarice com os amigos no Brasil foi farta e muito calorosa, Moser faz excelente uso delas na biografia. Destacam-se as cartas para as irmãs e para os escritores Lúcio Cardoso, Fernando Sabino e Rubem Braga. Além de mantê-la a par das novidades, ajudavam com sua carreira literária e tentavam lhe encontrar editores. Ela fazia sucesso junto a um círculo restrito de admiradores, mas tinha dificuldade em publicar. Seu estilo introspectivo e mesmo sua aparência, nome e sotaque causavam estranhamento, como se fosse estrangeira.

Clarice terminou se separando do marido e voltando em definitivo ao Brasil no início da década de 1960, vivendo no Rio até morrer em 1977. Foi uma fase de grande produtividade artística e literária, com reconhecimento público crescente e a publicação de seus livros mais celebrados, como “A Paixão Segundo G.H.”, “Laços de Família” e “A Hora da Estrela”. Mas também momentos pessoais de solidão, isolamento, depressão, a doença mental do filho, problemas com o abuso dos tranquilizantes e dificuldade de aceitar o envelhecimento.

Moser analisa de maneira clara os principais temas da obra de Clarice – a impossibilidade em se ajustar ao cotidiano, a ruptura caótica que se esconde em gestos banais, a dificuldade em se abrir para os outros, a procura de uma identidade e de um lugar no mundo. Credita esse aspecto sombrio à trágica história familiar dos Lispector, mas também mostra o lado luminoso de Clarice: as invenções linguísticas, as relações ternas com crianças e animais. Um lado muito interessante são os pontos em comum entre sua literatura e o misticismo judaico, de Spinoza aos cabalistas, sobretudo no que diz respeito à procura (ou invenção) de Deus e sobre a incapacidade das palavras expressarem a realidade.

sábado, 2 de janeiro de 2010

A Comissão da Verdade e a Crise com os Militares



O projeto do novo Programa Nacional de Direitos Humanos provocou uma crise entre o governo Lula, o ministro da Defesa e os comandantes militares, que ameçam renunciar caso o documento seja aprovado. O ponto central que motivou a insubordinação da cúpula das Forças Armadas é a proposta de instalação de uma Comissão da Verdade para apurar as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura. Os militares temem que as investigações abram brechas na Lei de Anistia e resultem na condenação de torturadores, e encaram essa situação como vingança - “revanchismo”, na expressão que mais utilizam – dos antigos grupos da esquerda armada, que ocupam postos importantes no governo e podem chegar à Presidência caso a ministra Dilma Roussef seja eleita em outubro. O contexto regional também os preocupa: os vizinhos sul-americanos foram muito mais longe em iniciativas semelhantes.

Comissões de Verdade, Justiça e Reconcialiação foram implementadas em dezenas de países, sobretudo na América Latina e na África, na transição de regimes autoritários para democracias nas décadas de 1980/1990. A mais famosa é a sul-africana, que oferecia anistia aos depoentes, contanto que comprovassem que seus crimes tivesses motivações políticas. Em outras nações, os trabalhos das Comissões fundamentaram processos judiciais e auxiliaram na condenação de pessoas responsáveis por crimes contra a humanidade e violações de direitos humanos. Tradicionalmente, as Comissões incluem representantes dos regimes autoritários – em geral, militares e policiais – e das organizações que os combateram. Costumam abordar também as atrocidades cometidas pela oposição às ditaduras, mas quase sempre o fazem de modo secundário.

Os militares brasileiros com frequencia se queixam de que há uma dupla moral no julgamento sobre a ditadura, na qual se denunciam os crimes perpretados pelas autoridades do regime, enquanto os atos terroristas da esquerda (sequestros, assassinatos, atentados a bomba) são esquecidos, ou mesmo louvados como ações heróicas. Seu maior ressentimento é ver antigos membros da esquerda armada em cargos de prestígio como ministros e deputados, cortejados pela mídia, enquanto os oficiais das Forças Armadas que lutaram a guerra suja são execrados publicamente e encontram apoio sobretudo entre seus colegas de farda. Os sentimentos de amargura ecoam na crítica à política externa, como o apoio do governo Lula à ditadura em Cuba, os silêncios diante do autoritarismo na Venezuela e decisões como a concessão de refúgio a um terrorista condenado, como o italiano Cesare Battisti.

As Forças Armadas incorrem muitas vezes na mesma dupla moral, calando-se diante do terrorismo de direita (os atentados ao Riocentro, à OAB) e mostrando conivência, quando não apoio, à tortura e às prisões ilegais cometidas pela ditadura. O corporativismo intenso que prevalece entre os militares os impediu de reavaliar o período autoritário à luz dos novos valores democráticos da sociedade brasileira, criando um fosso perigoso entre a cúpula das Forças Armadas e a elite civil, que é péssimo para a formulação das políticas públicas e pouco salutar para o Estado de Direito. A recusa em aceitar uma Comissão da Verdade sobre a ditadura, mais de 20 anos após seu término, é sintoma dessa incapacidade em acompanhar a evolução da opinião pública brasileira.

O presidente Lula está numa posição muito favorável para negociar um acordo com a cúpula das Forças Armadas. Com 80% de aprovação popular, a economia em boa situação, amplo prestígio internacional e um aumento expressivo do orçamento para a Defesa, ele tem condições para mediar o diálogo entre militares, o ministro da Justiça e o secretário de Direitos Humanos da Presidência. O próprio cenário eleitoral favorece a pressão para um entedimento, pois os três principais pre-candidatos – Dilma, Serra, Marina – têm em comum a história de oposição ferrenha à ditadura. O “partido das vivandeiras” (as mulheres que seguiam os soldados nas guerras) certa vez invocado pelo marechal Castello Branco, já não tem espaço na vida pública brasileira.

E é bom que seja assim.