segunda-feira, 31 de março de 2008

Os Blogueiros contra Raúl Castro


Na semana passada, Elio Gaspari escreveu coluna sobre os conflitos entre os blogueiros cubanos e o governo Raúl Castro. O mesmo tema também está em debate no ótimo site Global Voices Online, que oferece links para as vozes dissidentes em Cuba.

A discussão acontece em meio ao sentimento predominante de frustração com as primeiras medidas do caçula dos irmãos Castro. Seus gestos iniciais parecem ter sido calculados para sinalizar boa vontade à comunidade internacional. Contudo, são tão pouco significativos apontam apenas para mudanças cosméticas, que não abordam as demandas da população cubana por abertura política. Para o sociólogo mexicano Jorge Castañeda, é a tentativa de uma "solução à chinesa", mas que esbarra na importância que a democracia adquiriu na América Latina após décadas de ditaduras e violações de direitos humanos.

O governo anunciou a adesão a dois instrumentos internacionais de direitos humanos: o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto dos Direitos Civis e Políticos. Ambos são acordos firmados na década de 1960. O primeiro trata sobretudo do acesso à educação, saúde e proteção sócio-econômica, temas nos quais Cuba tem bom desempenho. O segundo aborda questões mais delicadas para o regime socialista, como eleições livres, liberdade de associação e críticas à pena de morte. O texto tem ressalvas e ambigüidades, ainda assim é uma pequena vitória para os dissidentes, uma vez que o Estado reconhece (pelo menos simbolicamente) a legitimidade de seus protestos.

A segunda medida anunciada por Raúl Castro foi a liberalização da importação de diversos eletrodomésticos, como computadores, DVDs, telefones celulares e torradeiras. O pretexto oficial é que isso só foi permitido agora por questões ligadas à melhoria do abastecimento de eletricidade. Tudo bem no que diz respeito a torradas com geléia, mas o acesso à informática é restrito por questões de controle da informação. Entrar na Internet em Cuba é tarefa cara e sujeita a controles e à censura governamental.

Se você checar os links do primeiro parágrafo, verá que nem assim o regime conseguiu impedir o surgimento de uma rica cena blogueira em Cuba, que utiliza truques e esperteza para burlar os impedimentos oficiais. O blog mais acessado da ilha é o Generación Y, da filóloga Yoani Sanchéz. Ela escreve muito bem e pega os assuntos pela veia. Leiam o que escreveu sobre a liberalização dos eletromésticos:

Al igual que los últimos rumores, el “tan-tan” comienza en el extranjero pero en las tiendas de mi barrio nadie sabe nada del “aluvión tecnológico”. Tanto desespero por los cambios que no llegan, me ha hecho creer que sí, que el veto para comprar ordenadores se levanta, o mejor dicho, se desvanece ante su ineficacia.

Con varias décadas de atraso, un memorando permitirá comercializar esos circuitos electrónicos, chips y lectores ópticos que crean, reproducen y difunden información. La razón para no venderlos antes, no había sido el consumo eléctrico, ni el temor a las diferencias sociales, sino que -hasta ayer mismo- podían controlar su expansión. Desde que un Ipod cabe en un bolsillo, un minidisk almacena varias películas y en la delgada barriguita de un Memory Flash viajan un centenar de documentos ¿qué sentido tiene prohibirlos? Para qué desgastarse en una pelea que ya tiene un ganador: la tecnología.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Mugabe em Xeque



O Zimbábue é um pequeno país africano, mas sua importância política ultrapassa em muito suas dimensões territoriais. Nele se trava uma batalha trágica pela democracia no continente, porque o protagonista do autoritarismo é também o homem que liderou a luta contra o apartheid local. Enfim, já tratei de Robert Mugabe em outro post, agora escrevo sobre as eleições e a situação geral do país, com o pensamento em amigas que lá nasceram, e hoje vivem na África do Sul, como a maioria de seus compatriotas de classe média.

Com hiperinflação que talvez chegue a 100.000% ao ano, o Zimbábue virou um laboratório a céu aberto para a inacreditável capacidade humana de se adaptar às circunstâncias mais dolorosas, e seguir vivendo apesar de tudo. Uma pedinte nas ruas da capital Harare resume o cenário: “Mugabe foi o herói da luta de libertação, mas agora há uma luta ainda maior, pela sobrevivência, e ele está nos matando”.

Mugabe convocou eleições presidenciais para o próximo sábado. É consenso que fraudou os resultados da última disputa, em 2002, mas a novidade desta vez é que apareceu um candidato que dividiu o oficialismo: o ex-ministro Simba Makoni, que aparentemente conta com o apoio silencioso de lideranças militares e políticas que não desejam esperar a morte do idoso Mugabe (84 anos) e temem o colapso total do país. Além disso, há o candidato da oposição, o sindicalista Morgan Tsvangirai, que quase foi assassinado após ser espancado pelos capangas do presidente.

O governo baniu os observadores dos países ricos, mas permitiu aqueles ligados à organizações regionais africanas, como a SADC. Ninguém sabe o que acontecerá no caso de fraudes generalizadas,que provavelmente irão ocorrer. Poderia ocorrer uma situação parecida com a do Quênia, com matanças e perseguições entre as facções rivais.



Desdobramento bizarro da crise é o “videogame humanitário” Simbabwe (foto acima). Trata-se de um “simulador de país” no qual o jogador assume o papel de um ditador que precisa esmagar a oposição e escapar das sanções internacionais. Não estou muito certo se é a melhor idéia para divulgar temas de direitos humanos, embora haja jogos bem interessantes, no qual se encarna uma família de fazendeiros ou crianças em busca de educação. Soa mais divertido do que distribuir panfletos ou escrever blogs.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Atualidade de San Tiago Dantas


No ano passado cursei o seminário de tese no IUPERJ com vários colegas que pesquisavam a política brasileira dos anos 1950 e 1960. Passamos muitas manhãs em debates entusiasmados sobre aquele período. Um nome que freqüentemente vinha à discussão era o de Francisco Clementino de San Tiago Dantas, jurista e político do PTB que exerceu por breves mas decisivos momentos os postos de ministro das Relações Exteriores e da Fazenda. Nosso entusiasmo foi estimulado pelo fato de que a professora que coordenava o curso, mestra Maria Regina, havia escrito há pouco um trabalho sobre o personagem. Nesta semana finalmente consegui ler seu artigo, publicado no pequeno livro Atualidade de San Tiago Dantas.

A obra reúne textos e apresentações realizadas em seminário em homenagem a San Tiago Dantas, organizado por amigos que trabalharam com ele, como Marcílio Marques Moreira, José Gregori, Celso Lafer, Mario Gibson Barbosa e Afonso Arinos de Mello Franco. Elenco curioso, de perfil bem mais conservador do que aquele pelo qual San Tiago Dantas se notabilizou.

Verdade que ele começou a se interessar por política como militante integralista, enquanto cursava Direito na década de 1930. A crítica da extrema-direita ao liberalismo atraiu muitos intelectuais brilhantes naquela época, incluindo os que depois migrariam para a esquerda, como dom Hélder Câmara. Segundo o próprio San Tiago Dantas, seu afastamento do movimento data da Segunda Guerra Mundial, quando se tornou claro que ficar gritando “Anauê!” pelas ruas do Rio de Janeiro tinha conseqüências um tanto mais sérias do que simplesmente passar ridículo ao lado de Plínio Salgado.

San Tiago Dantas fez carreira como jurista, professor, advogado de grandes empresas e dono de jornal, tornando-se um homem rico. Só entrou para a política no governo JK, filiando-se ao PTB, escolha inusitada para alguém de sua classe social (seria mais lógico que ele se juntasse ao PSD, bem mais conservador), mas explicável diante de sua inquietação e da ênfase que sempre deu às reformas sociais.

Porque San Tiago Dantas foi uma das mais nobres encarnações do período que chamamos no IUPERJ de “República de 1946”, ou seja, a primeira tentativa de criar uma democracia de masas no Brasil, acompanhada de impressionante processo de modernização econômica. Depois do golpe de 1964, os principais líderes da época foram arrasados pela direita e pela esquerda, sob acusações de “populismo”, “demagogia” e “peleguismo”. Claro que tinham defeitos, mas homens como San Tiago Dantas, Celso Furtado, Walther Moreira Salles, Josué de Castro e João Augusto de Araújo Castro, para citar apenas alguns luminares, contribuíram muito para o país. E ainda são insuficientemente conhecidos – não há, por exemplo, biografias de nenhum deles.

San Tiago Dantas começa a ser valorizado pelo Itamaraty, e em boa hora, pois em sua breve gestão como chanceler foi um dos criadores da política externa independente, tentando encontrar mais espaço de manobra internacional para o Brasil no auge da Guerra Fria, em disputas virulentas como a oposição brasileira à expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos.

Inevitável a comparação com Celso Amorim, mas o ministro atual perde em clareza, concisão e coragem. San Tiago Dantas tomava posições claras em assuntos muito polêmicos, ao passo que Amorim muitas vezes usa linguagem tão escorregadia que não se sabe o que ele defende.

Sua atuação como ministro da Fazenda é menos conhecida. Ele tentou aplicar o plano de combate à inflação elaborado por Celso Furtado, mas os esforços naufragaram em meio ao caos político que precedeu o golpe de 1964.

quarta-feira, 26 de março de 2008

O Mundo pelos Olhos da Imprensa Internacional


Ao acompanhar blogs e fóruns de discussão sobre jornalismo, descobri links para pesquisas interessantes. Uma delas é The State of the News Media 2008, realizado pelo Project for Excelence in Journalism. O levantamento examina apenas a mídia dos Estados Unidos, mas chega a conclusões interessantes. No que toca aos temas de política externa:

Além do Iraque, na realidade, apenas dois países receberam cobertura expressiva em 2007, e ambos estão fortemente relacionados com a guerra: Irã e Paquistão. Se eliminarmos esses três, os eventos geopolíticos no resto do mundo somam menos de 6% das notícias estudadas, e isso inclui Afeganistão, Coréia, China, Rússia, Israel e todos os outros países combinados.

Segundo a pesquisa, 25% de todas as reportagens publicadas em 2007 trataram da guerra no Iraque e das eleições presidenciais de 2008, com surtos temporários envolvendo eventos chamativos, como chacinas em universidades. De acordo com o levantamento, questões com educação receberam menos de 1% da cobertura.

A pesquisa afirma que a Internet não democratizou o acesso a fontes de informação alternativas. Cerca de 29% das visitas à Web estão concentradas nos dez maiores sites de notícias (Yahoo News, MSNBC, CNN, Aol News, NY Times, Gannett, ABC News, Google News, USA Today e CBS News).

Embora blogs e sites de jornalismo cidadão tenham se multiplicado, aparecem como confiáveis e importantes para apenas 30% das pessoas entrevistadas, muito atrás dos sites de notícia (81%), TV (78%), rádio (73%), jornais (69%) e revistas (38%). A pesquisa critica os sites alternativos por não conseguirem inovar e no fundo restringirem a participação dos leitores aos comentários.

Visão bastante diferente de opiniões da moda, como as de Chris Anderson, que argumenta que na era da Internet o consumo cultural e intelectual se tornou muito mais fragmentado, e que os maiores lucros estariam em atender às demandas bem particulares e específicas. A pesquisa do Project for Excelence in Journalism parece reforçar a tendência contrária, de concentração extrema em um pequeno grupo de empresas de mídia e em temas abordados.

Outros dados que encontrei sobre imprensa internacional estão no site francês Observatoire des Medias, que elaborou mapas mostrando como é o mundo para diversos órgãos de mídia. Os países aparecem em maior ou menor tamanho de acordo com o número de referências na mídia, e as cores também sinalizam a freqüência.

O levantamento do Observatoire des Medias cobre mídia americana (New York Times, Slate), britânicos (Economist, Guardian) e francesa (L´Humanité, Rue 89), entre outros. Os mapas indicam concentração de notícias nos EUA, na Europa e no Oriente Médio, com alguns países se destacando regionalmente, tais como China e Índia na Ásia, México e Brasil na América Latina e África do Sul na África.



O mapa acima também é do Observatoire des Medias e mostra como a blogosfera retrata o mundo. É uma visão mais plural e diversificada do que a da grande mídia. Reparem, por exemplo, em como países latino-americanos como Argentina e Chile ganham destaque, em função de sua população mais instruída e com mais acesso à Internet. Observem que o mesmo ocorre com outros países em desenvolvimento, como Indonésia e Turquia, e na Europa Oriental.

De modo geral, as pesquisas que citei mostram que a imprensa internacional está fazendo um mau trabalho em informar os cidadãos de um planeta cada vez mais interdependente e conectado. Política e economia exigem mais informações e capacidade de compreender outras culturas e realidades, mas o jornalismo com muita freqüência reforça esteriótipos nacionais, religiosos e propaga visões estreitas das relações diplomáticas.

Como seria uma pesquisa semelhante a esses dois trabalhos abordando o tratamento que a imprensa brasileira dá aos temas internacionais?

terça-feira, 25 de março de 2008

Celso Amorim no Roda Viva



Cada vez que assisto a uma entrevista no Roda Viva com temas ligados às Relações Internacionais ou à América Latina, saio com a mesma frustração: a de ter visto um bom programa, mas que poderia ter sido muito melhor caso os jornalistas estivessem bem preparados e mais interessados em estimular um bom debate do que fazer propaganda política de seus slogans favoritos. Ontem me senti assim com a sabatina ao ministro das Relações Exteriores, embaixador Celso Amorim.

Amorim ocupa o cargo desde 2003 e já havia sido chanceler no governo Itamar Franco. Depois do barão do Rio Branco, é a pessoa que mais tempo esteve à frente do Itamaraty. O que mais me chamou a atenção no programa foi a abrangência que assumiu a agenda da política externa brasileira. As perguntas trataram de assuntos como Mercosul, crises na América Latina, negociações na OMC, direitos humanos, deportação de brasileiros na Espanha, missão de paz no Haiti e a eterna demanda pela vaga no Conselho de Segurança. E ficaram de fora questões importantes como a articulação entre Índia, Brasil e África do Sul, ou toda a política africana brasileira.

A maior parte dos questionamentos dos jornalistas abordou a Venezuela, colocando em dúvida a pertinência do país entrar no Mercosul como membro pleno e pressionando o Brasil a condenar o apoio venezuelano e equatoriano à guerrilha na Colômbia. Claro que Amorim não fez isso, mas suas declarações foram as mais firmes que ouvi de um diplomata brasileiro sobre as FARCs, afirmando que elas não devem obter status político de beligerante por conta dos crimes que cometem. O chanceler frisou que o Brasil não é neutro no conflito armado, apoioando o Estado colombiano.

Achei curioso que Amorim falasse pouco, e sem precisão, da importância crescente da Colômbia e da Venezuela para a economia brasileira. São mercados para os produtos do país, e também fontes de energia. O chanceler deveria ter citado os números dos negócios com as duas nações, me parece que tais interesses comerciais são o melhor argumento para uma ação diplomática que seja algodão entre esses dois cristais ariscos.

Outro ponto de destaque do programa foram as cobranças dos jornalistas para política externa mais afirmativa em termos de direitos humanos. Citou-se muito o artigo 4 da Constituição, que coloca a prevalência dos DH como um dos princípios das relações internacionais do Brasil. Amorim tentou defender a baixa atuação do Itamaraty na área alegando que não é produtivo entrar em confronto aberto com países violadores de direitos humanos, a melhor opção seria trabalhar discretamente por acordos conjuntos. Só concordo com a afirmativa para casos especiais, mas fiquei surpreso do ministro não ter citado outro dos princípios do artigo 4: o da não-intervenção. É claro que com freqüência os dois entram em conflito, e harmonizá-los é sempre bastante difícil.

O Roda Viva permite aos espectadores fazerem perguntas através do email e me surpreendi positivamente com o alto nível delas. O público do programa queria saber qual a posição do Brasil com relação ao Tibete (apóia a ocupação chinesa, mas repudia a violência contra a população local, embora seja evidente que uma é a conseqüência inevitável da outra) e sobre a independência do Kosovo (não é contra nem a favor, muito pelo contrário).

Precisamos de mais entrevistas assim. O debate sobre política externa e relações internacionais ganharia muito.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Juízo



Quem gosta de documentários (eu adoro) já deve ter percebido que o gênero ganhou nova dimensão de maturidade no Brasil. Sem qualquer exagero, os filmes de não-ficção produzidos por aqui estão na vanguarda mundial, como é o caso de "Santiago", de João Moreira Salles, e o recém-lançado "Juízo - o maior exige do menor", de Maria Augusta Ramos.

"Juízo" conta a história de um grupo de adolescentes, rapazes e moças, que cometeram crimes e passam por audiências na Vara da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça. Como a lei não permite que seus rostos sejam filmados, a diretora encontrou solução original: colocou outros adolescentes, também pobres, para representar os casos dos infratores. Os demais personagens do documentário - juíza, promotores, defensor público, agentes do DEGASE, pais dos adolescentes - interpretam a si mesmos, às vezes com notável desenvoltura.

O documentário muitas vezes pretendeu ser o olhar fiel sobre o mundo real, como se a câmera revelasse a verdade e a intimidade daquelas pessoas. Maria Augusta Ramos explode essas ilusões e em seu lugar mostra o quanto a vida cotidiana, tem de teatral e de artificial, como a juíza que se compraz em dar lições de moral aos infratores, o defensor público que recita leis tão idealizadas e distantes da realidade que parecem uma má fala de ficção, e o comportamento arrenpendido que se espera dos adolescentes e de seus pais.

As histórias contadas no filme vão do banal (roubo de turistas na praia, sem maior violência do que alguns empurrões) ao trágico (parricídio), passando pelo cômico (um rapaz que se mete numa trama rocambolesca de fugas, em grande medida pela incapacidade de entender sua situação juridica).

O perfil social dos adolescentes é parecido: pobres, negros ou pardos, pouca escolaridade. Todos têm família. A mãe sempre está presente, o pai, às vezes. Violência doméstica e alcoolismo são constantes. A maioria dos adolescentes já têm filhos.

O filme acompanha, sem se aprofundar, o cotidiano do Instituto Padre Severino, famosa "unidade de internação provisória" no Rio de Janeiro, responsável por "medidas sócio-educativas" para usar os eufemismos oficiais. Também mostra um pouco do cotidiano familiar de alguns dos jovens. Nenhum dos cenários é agradável.

A personagem mais marcante do filme é a juiza Luciana Fiala, que já se tornou uma celebridade no Rio de Janeiro. Seu estilo de dar broncas nos adolescentes, utilizando a linguagem dos malandros, conquistou as platéias que estavam saudosas das tiradas do capitão Nascimento. Mas "Juízo" não é Tropa de Elite, o filme faz pensar e questiona os demônios desta sociedade.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Perseguindo a Chama: Sergio Vieira de Mello



Samantha Power é uma das minhas heroínas intelectuais, principalmente pela capacidade (rara) de combinar excelente jornalismo, reflexão acadêmica e ativismo político em defesa dos direitos humanos, autora do ótimo A Problem from Hell: America in the Age of Genocide. Sergio Vieira de Mello talvez tenha sido o brasileiro com a mais interessante carreira em relações internacionais. Quando soube que Samantha Power escreveria sua biografia, fiquei radiante. O resultado superou minhas expectativas: “Chasing the Flame: Sergio Vieira de Mello and the fight to save the world” é estupendo, uma obra-prima para todos os que gostam de política internacional, assuntos humanitários e organizações internacionais. O livro é fruto de quatro anos de pesquisa, e de mais de 400 entrevistas.

A capa mostra Vieira de Mello numa expressão preocupada, mas também reflexiva, sonhadora mesmo. A introdução narra como Samantha Power o conheceu em um jantar na Bósnia, durante a conturbada missão da ONU. Ele lhe fora descrito como um “misto de James Bond e Bobby Kennedy” e em sua primeira conversa lhe contou que jamais serviria ao governo brasileiro, devido à ditadura militar ter cassado seu pai, que era diplomata.

Vieira de Mello nasceu no Rio de Janeiro, em 1948 e durante a infância acompanhou o pai numa série de postos no exterior, na Itália e no Líbano. Formou-se na Sorbonne e participou dos protestos de 1968, chegando a ser espancado pela polícia. Entrou na ONU em 1969, um pouco por acaso, mas gostou e passou sua primeira década na organização trabalhando para o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Serviu em Bangladesh, Moçambique, Sudão e Peru, ajudando pessoas que fugiam de guerras e massacres.

Sua primeira missão política de relevo ocorreu em 1982, quando se licenciou do ACNUR para ser assessor do comandante da missão de paz na ONU no Líbano. A operação foi para o ralo quando Israel invadiu o país, mas Vieira de Mello aprendeu lições importantes sobre a fragilidade das Nações Unidas em situações de crise, tais como a necessidade de negociar com insurgentes e grupos armados irregulares, como OLP e Amal.

Colocou os ensinamentos em prática numa série de ações na Tailândia e no Camboja, onde ajudou a repatriar refugiados da guerra civil cambojana, no que foi a mais ambiciosa missão da ONU até então. As Nações Unidas assumiram o controle de diversos ministérios cambojanos e Vieira de Mello conseguiu o impensável: engajar os genocidas do Khmer Vermelho no processo de paz. A partida da ONU foi considerada prematura e a violência ressurgiu, mas muito do que aprendeu ali foi vital no Timor Leste.

No inferno da ex-Iugoslávia dos anos 90, Vieira de Mello exerceu missões cada vez mais importantes na Croácia, na Bósnia e em Kosovo. Demonstrou coragem, entrando em áreas conflagradas e ajudando a evacuar civis na Sarajevo sitiada, mas também foi criticado por seu desejo de estar bem como todos, inclusive com os criminosos de guerra – foi apelidado de “Serbio” por sua tolerância com os desmandos de Belgrado. Foi preciso o massacre de Srebrenica para que aprendesse a lição, e sua postura no Kosovo foi diversa, apoiando o uso da força pela OTAN para deter o genocídio.

Vieira de Mello foi o primeiro administrador internacional do Kosovo, o que lhe rendeu o apelido de “vice-rei” e levou à sua missão seguinte: conduzir Timor Leste à independência e construir o Estado do país. Em meio às confusas diretrizes da ONU, seus esforços foram fundamentais para a participação dos timorenses e o estabelecimento da democracia.

Samantha Power também narra os fracassos de Vieira de Mello, principalmente uma série missões mal-sucedidas para o ACNUR, com crises de refugiados de genocídio na região dos Grandes Lagos africanos, em Ruanda, Tanzânia e na República Democrática do Congo.

Ainda assim, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan – seu amigo de longa data – o nomeou Alto Comissário de Direitos Humanos, cargo que ele exerceu por pouco tempo e um tanto a contragosto. Menos de seis meses depois, Vieira de Mello recebeu sua última e impossível missão – representar a ONU no Iraque, tentando encontrar um papel para a organização em meio ao caos pós-invasão. Seu trágico fim, como sabemos, foi ser assassinado num atentado da Al-Qaeda, em agosto de 2003.

O livro de Samantha Power, além de uma excelente e apaixonada biografia, é valioso como apanhado dos erros (e acertos infelizmente ocasionais) da ONU nas missões de paz e transições políticas. Como muitos, ela acredita que Vieira de Mello se tornaria secretário-geral da organização. Isso ficará como um dos grandes “E Se...?” das relações internacionais neste início de século.

Se você acha que a vida de Vieira de Mello daria um filme, não é o único. Samantha Power nos diz que Terry George, o diretor de “Hotel Ruanda”, tocará o projeto.

quarta-feira, 19 de março de 2008

O Rei (Brasileiro) da Soja no Paraguai


O Valor desta quarta traz uma entrevista com o empresário brasileiro Tranquilo Favero (o link vai para o blog do Hermenauta, que disponibilizou a reportagem) o maior plantador de soja do Paraguai, país que nesse mercado só fica atrás de EUA, Brasil e Argentina. Favero estima que entre 90% e 95% da produção de soja paraguaia seja controlada por brasileiros. Como essa é a principal commodity de exportação do país vizinho, pode-se imaginar o tipo de tensão política e econômica que envolve brasileiros, camponeses e o governo em Assunção.

O assunto me interessa de perto porque em 2007 visitei o Paraguai para conversar com lideranças camponesas, no âmbito da pesquisa sobre juventude sul-americana. Viajei pelo departamento (província) de Alto Paraná, na fronteira com o Brasil, cuja paisagem foi inteiramente transformada pela soja. A região é de colonização recente - a maioria da população se estabeleceu por lá a partir da década de 1970, com o início da construção da usina de Itaipu e graças aos incentivos agrícolas da ditadura Stroessner.

O Paraguai possui cerca de 40% de sua população na zona rural, índice alto para o padrão cada vez mais urbanizado da América Latina. O avanço da soja sobre as áreas tradicionais camponesas tem tido um impacto social profundo. A valorização da terra leva a muitos pequenos agricultores a venderem suas propriedades para as empresas sojeiras. O dinheiro que recebem com freqüência é dissipado em tentativas mal-sucedidas de montar negócios nas cidades, pois não possuem a instrução e a experiência necessárias. Terminam em biscates, serviços temporários e precários. Mas o mundo urbano fascina e atrai, em especial os jovens.

Além dos atrativos econômicos para deixar o campo, pesam os problemas trazidos pela soja. O uso intensivo de agrotóxicos polui os mananciais de água, estive em vilarejos onde muitas pessoas adoecem por causa da contaminação oriunda das grandes plantações vizinhas. Também ouvi relatos de violências e intimidação praticadas pelas empresas produtoras de soja, inclusive as brasileiras.

É esse o contexto que explica a ascensão da candidatura à presidência do ex-bispo jesuíta Fernando Lugo, que montou uma coalizão de partidos e movimentos que opõem aos colorados, há 70 anos no poder. Lugo tem um discurso duro contra os interesses econômicos do Brasil, tanto pela questão da soja quanto pelo preço da energia de Itaipu. Favero afirma que ele vencerá, e que acredita na moderação do ex-bispo, devido a seus aliados políticos liberais. O governo brasileiro preferiu apoiar o general golpista Lino Oviedo.

Não é impossível buscar acordos entre a expansão do agronegócio e o bem-estar dos camponeses paraguaios, bastaria criar um fundo de desenvolvimento para projetos sociais que beneficiem essa população - com recursos vindos da taxação das exportações de soja. Não é o que tem ocorrido e como tantas vezes ocorre nos debates oficiais sobre Mercosul, os pobres ficam de fora da festa da integração regional.

Evidentemente, pesa também a notável sensibilidade cultural dos nossos compatriotas no Paraguai, como ilustrado pela declaração de Favero: “Sou criticado publicamente por não falar guarani, mesmo estando aqui há 40 anos. Falo para os meus netos: aprendam língua de povo desenvolvido.“ Bela frase para dizer num país onde praticamente todos os vassalos falam o idioma desprezado pelo rei da soja. Não sei se é consolo para os paraguaios, mas os sentimentos da elite brasileira com relação a seus subalternos sociais e nacionais não é tão diferente, ainda que falem a mesma língua.

terça-feira, 18 de março de 2008

Cinco Anos de Guerra no Iraque



Nesta semana a guerra no Iraque completou cinco anos (já é mais longa do que a Primeira Guerra Mundial) e os principais jornais e revistas dos Estados Unidos deram destaque à data, com reportagens detalhadas sobre o assunto. A mais completa foi a da Newsweek que avalia entusiasmada a nova estratégia de contra-insurgência colocada em prática pelo general David Petraeus.

Petraeus assumiu o controle das tropas americanas e de seus aliados no Iraque em 2007 e tem conseguido resultados expressivos, ainda que controversos. Ele basicamente tem encorajado seus oficiais a trabalharam em parceria com as comunidades locais, passando bastante tempo com líderes de vizinhança e até mesmo negociando com antigos inimigos. A revista tem um excelente perfil de um capitão americano que liderou esforços assim no Iraque e no Afeganistão, chegando a subornar líderes insurgentes para tornarem-se aliados dos americanos. Naturalmente, a prática revolta muitos militares, que se indignam ao ver inimigos que mataram alguns de seus colegas agora trabalhando por salários pagos pelos Estados Unidos.

A Newsweek fala na “geração de Petraeus”, jovens oficiais veteranos do Iraque e do Afeganistão com mentalidade mais autônoma e independente, versados em contra-insurgência e com capacidade de lidar com assuntos políticos, negociações com líderes religiosos, etc. Esses capitães e majores teriam aprendido, “com freqüencia por contra própria, como operar com independência sem precedentes nas complexidades das culturas muçulmanas. Diante de governos centrais ineficientes, atuaram como prefeitos, mediadores, policiais, engenheiros civis, geralmente em ambientes devastados.”

Tenho minhas ressalvas com a apreciação elogiosa da revista. Petraeus tem, de fato, currículo brilhante: o general serviu nos EUA, Itália, Bélgica (OTAN), Bósnia, Haiti, Kuwait e Iraque, e ainda conseguiu tempo para cursar o doutorado em relações internacionais. Contudo, suas ambições políticas são bem conhecidas e especula-se que ele possa concorrer à presidência pelo Partido Republicano. A maneira com a Newsweek lhe dá crédito por uma série de iniciativas que foram criadas por muitas pessoas dentro do Exército reforça minha desconfiança de que estamos diante de uma campanha em construção. O governo Bush o tem favorecido nas lutas burocráticas, como a que levou à renúncia do almirante William Fallon, que encabeçava o Comando Central das Forças Armadas (responsável pelo Oriente Médio e Ásia Central) e queria mais tropas para o Afeganistão, que afirmava ser principal front da “guerra contra o terror”.

Na New York Review of Books, excelente artigo de Michael Massing trata do perfil dos recrutas do Exército, a partir dos relatos de veteranos do Afeganistão e do Iraque. Sua principal conclusão: “esses soldados se alistaram para escapar de empregos sem futuro, relacionamentos fracassados, famílias desestruturadas, contas, dores de dente e tédio. As Forças Armadas ofereceram um refúgio das lutas e tensões da América moderna, um lugar para ganhar segurança e habilidades profissionais, disciplina e auto-estima”.

Apesar dos atrativos, Massing informa que o Exército chegou a enfrentar um déficit de quase 7 mil recrutas em 2005, mas que conseguiu resolver o problema aumentando o número de recrutadores e os bônus pagos aos novos soldados. Contrariamente ao que pensava, o percentual de negros caiu muito – despencou de 23,5% (2000) para 13% (2006), devido à impopularidade da guerra entre esse grupo da população americana.

Os dados dizem respeito apenas aos soldados – os oficiais do Exército continuam a ser, majoritamente de classe média. Suas expectativas e frustrações foram tema de meu post anterior, vale acrescentar apenas o artigo de um jovem capitão no Washington Post, no qual explica porque está deixando as Forças Armadas, apesar de adorar a carreira militar: “Primeiro, estou prestes a me casar, e quero uma família. Segundo, posso ganhar um salário no mundo civil tão alto ou maior do que no Exército. E finalmente, minha experiência com a guerra me deixou irritado, frustrado e sem rumo.”

segunda-feira, 17 de março de 2008

Os Protestos no Tibete



As quase duas décadas que se seguiram ao massacre da Praça da Paz Celestial foram das mais pacíficas da história contemporânea da China e havia uma certa aposta entre os analistas internacionais para saber quando e onde as tensões voltariam. Eu acreditava que algum tipo de distúrbio ocorreria em Xinjiang, os territórios de extremo-oeste onde persistem problemas nas relações dos muçulmanos locais com Pequim. Para minha surpresa, a rebelião aconteceu no Tibete, já resultou em dezenas de mortos e criou sérios embaraços para o governo chinês no ano em que o país sediará o que já é chamado de “Olimpíadas do Genocídio”.

A China ocupou o Tibete pouco após a Revolução Comunista e desde então tem praticado a política de estimular a migração de chineses para a região. Com o crescimento acelerado da economia, essa tendência se fortaleceu, com muitos investimentos na área turística e no comércio. A independência do Tibete, ou pelo menos mais liberdade para seu povo, tornou-se uma causa importante do movimento internacional em defesa de direitos humanos, inclusive pelo prestígio global conquistado pelo Dalai Lama.

Os protestos começaram na sexta-feira na capital tibetana, Lhasa e se espalharam para as províncias. Começaram em meio às manifestações pelo aniversário de 49 anos de um grande levante contra o domínio comunista. Os tibetanos atacaram autoridades e cidadãos chineses (alguns são muçulmanos, o que agrava as coisas num país budista) com pedradas, saqueando lojas e depredando propriedade da China. A reação – moderada para os padrões do autoritarismo chinês – resultou em cerca de 20 mortos, que podem chegar a 100 se aceitamos a estimativa do Dalai Lama, que classificou a repressão de "genocídio cultural".



A China está se tornando uma grande potência, com responsabilidades crescentes na política internacional, como pressão da opinião pública global com respeito a direitos humanos. As ações da China no Tibete e seu apoio a governos atrozes em Myanmar e no Sudão têm levado a diversos problemas com a União Européia (particularmente com a Alemanha) e muita rejeição de cidadãos comuns em toda a parte.

Além disso, os protestos tibetanos repercutem em países vizinhos, como Índia e Nepal, onde vive grande e influente comunidade de exilados do Tibete. E prejudica as relações chinesas com outras regiões sensíveis para Pequim, como Xinjiang e Taiwan.

Com tudo isso somado, espero não ver nova versão dos massacres da Paz Celestial, desta vez no Himalaia. A prioridade chinesa é reafirmar seu novo status global como sede das Olimpíadas e isso significa a necessidade de fazer concessões diante da rebelião tibetana.

domingo, 16 de março de 2008

Auto-Retrato dos Militares dos EUA


O Centro para a Nova Segurança Americana é um think tank recém-fundado que tem publicado material de qualidade sobre assuntos militares. Sua pesquisa mais recente é um retrato das preocupações das Forças Armadas dos EUA, a partir de 3.400 entrevistas com oficiais da ativa e da reserva. O resultado foi publicado pela revista Foreign Policy e mostra panorama de receios e fragilidades.

O primeiro ponto que chama a atenção é o distanciamento dos militares com relação à população e sua desconfiança das instituições políticas. Atualmente, apenas 10% dos americanos serviram em algum momento nas Forças Armadas. Os militares se mostram críticos do Congresso e da diplomacia americana. Apenas a Presidência e o Departamento de Defesa tem avaliações superiores à 50%, e mesmo assim pouco acima desse percentual.

A maioria avalia que as guerras no Iraque e no Afeganistão enfraqueceram as Forças Armadas, levando-as perigosamente perto de seu limite operacional. Cerca de 80% consideram que não estão preparadas para um conflito adicional, embora haja variações com relação às avaliações de cada cenário potencial, conforme o quadro abaixo:



O que os militares querem para combater com mais eficiência? O item mais citado, com espantosos 73%, é inteligência - no sentido de informações recolhidas e analisadas pelos serviços especializados. O segundo da lista, com 38% de menções, são mais Forças Especiais. Respostas que mostram consciência clara dos desafios de segurança pós-11 de setembro - era de ameaças difusas, insurgentes, terrorismo. O tipo de inimigo que não é combatido da maneira tradicional, com batalhas em campo aberto.

A ênfase dada à inteligência reflete o desencanto com sucessivos escândalos e falhas envolvendo os órgãos do setor, particularmente os erros cometidos pela CIA e pelo FBI na prevenção a atentados e a manipulação da inteligência para justificar a invasão do Iraque com base na suposta presença de armas de destruição em massa no país e de pretensos vínculos de Saddam Hussein com a Al-Qaeda.

A tortura tem sido amplamente utilizada pelas autoridades americanas para recolher informações relativas ao terrorismo, o que rendeu incontáveis crises internacionais por conta de Abu Grahib, Guantanamo, os vôos da CIA na Europa (a versão atual da Operação Condor dos anos 70) e as disputas judiciais para autorizar o uso de tortura por afogamento (waterboarding). Para 44% dos militares entrevistados, a tortura é um método aceitável, pelo menos em algumas ocasiões.

(No Brasil, a título de comparação, pesquisa recente indicou apenas 26% de apoio à tortura praticada pela polícia.)

Outra questão que preocupa os militares americanos é a falta de pessoal qualificado. Só o déficit de capitães é estimado em 3 mil. O que fazer para atrair novos recrutas? A maioria dos oficiais, como mostra o quadro abaixo, aposta nos imigrantes.



Trocar serviço militar pela cidadania. O paralelo histórico é claro: o Império Romano agia assim em seus anos finais, incorporando os bárbaros germânicos. Também surgiu com força a idéia de abaixar os critérios educacionais, aceitando pessoas sem o ensino médio completo. Contudo, os oficiais resistem a aceitar criminosos que se alistem para reduzir ou eliminar a pena. Apesar da opinião dos militares, a prática tem se tornado comum: em 2007, o Exército aceitou mais de 12.000 pessoas nessa base.

sexta-feira, 14 de março de 2008

A Crise Andina e a Política de Defesa do Brasil



Não lembro se conheci Fabian Calle pessoalmente quando estudei na Universidad Torcuato di Tella, mas meus colegas que fizeram seu curso sobre segurança internacional o elogiavam bastante. O Nueva Mayoria publica excelente artigo no qual ele examina os impactos da crise entre Colômbia-Equador-Venezuela para a política de Defesa do Brasil. É o texto mais completo que li sobre o assunto e revisa de maneira detalhada as novas iniciativas brasileiras.

Em resumo, Calle afirma que o Brasil começa a ter papel de liderança mais ativa no campo militar sul-americano. Do ponto de vista regional, a principal proposta brasileira é a criação de conselho de defesa, provavelmente no âmbito da União das Nações Sul-Americanas, que substitua o TIAR. Esse tratado, do início da Guerra Fria, prevê a ajuda mútua entre EUA e América Latina no caso de ataque por uma potência extra-hemisférica. À época, pensava-se na União Soviética. Desde a guerra das Malvinas o acordo está desacreditado. O México se retirou dele em 2001, poucos dias antes dos atentados, o Brasil chegou a evocá-lo para se solidarizar com os Estados Unidos.

A postura mais ativa em termos regionais tem duas origens. Uma delas é o sentimento – bastante disseminado entre as Forças Armadas brasileiras e certos setores do Itamaraty – de que há envolvimento crescente dos EUA na América do Sul, com o estabelecimento da base militar no Equador, de missões de cooperação na Colômbia e no Paraguai e dos riscos da instabilidade política na Venezuela. Pessoalmente, acho que os Estados Unidos estão muitíssimo mais preocupados com o Oriente Médio e a Ásia Central, pelo menos até que um hermano exploda a Estátua da Liberdade ou atire na Oprah Winfrey. Mas a Amazônia é sempre um tema sensível no Brasil.

A segunda razão é o fortalecimento do aparato de Defesa brasileiro, com o aumento de 50% nos gastos do setor, a assinatura de expressivos acordos militares e tecnológicos com França, Rússia, Índia e Argentina, a ampliação da Agência Brasileira de Inteligência e a retomada do projeto do submarino nuclear.

Neste contexto, como ficam os planos brasileiros diante da crise andina? Gostei da resposta de Calle:

Nada más alejado del proyecto de liderazgo regional del Brasil que una militarización y polarización del choque entre Caracas-Quito-Managua (con el visto bueno más o menos explícito de potencias como Irán, Rusia y China) y la alianza Washington-Bogotá-Tel Aviv (y los amplios sectores antichavistas dentro de Venezuela). Para atenuar esta posibilidad, uno de los cursos de acción posibles sería el de fortalecer el espacio de integración político-económico y militar en el Cono Sur. Tal vez, y de manera indirecta e inesperada como suelen ocurrir las grandes cosas en la política internacional, el 1M sirva en parte para darle una mayor carga de modestia a la intención brasileña de transcurrir de manera acelerada el camino hacia el club de los poderosos del sistema internacional y le brinde argumentos a los que favorecen en Brasil una mayor cooperación con la Argentina.

Assim é. E Condoleezza Rice esteve por aqui, elogiou a mediação brasileira na crise e pediu ao Brasil para apertar o cerco às FARCs. No fim, acabou tocando um pandeiro com o ministro Gilberto Gil na Bahia. Não há crise internacional que resista a este país.

quarta-feira, 12 de março de 2008

A Caçada às FARCs



A crise sul-americana terminou com abraços meio constrangidos na Cúpula do Grupo do Rio. No fim das contas, o resultado foi a vitória política de Uribe, que mostrou ser capaz de atacar as FARCs nos países vizinhos, matar um dos principais líderes da guerrilha e manobrar com habilidade em meio à tempestade regional que se seguiu. Outra boa notícia para Uribe ocorreu poucos dias depois: a morte de mais um líder das FARCs, Ivan Ríos (foto), responsável pelas finanças da guerrilha. Ríos foi assassinado por um de seus subordinados, motivado pela recompensa de 5 milhões de pesos. Para comprovar a morte do chefe, entregou às autoridades a mão de Ríos, que decepara por garantia. A Colômbia não é para amadores.

Quando uso a expressão "líder", me refiro aos membros dos secretariado-geral das FARCs, a cúpula da organização. Até o dia 1 de março, nenhum integrante do secretariado havia sido morto em combate, em mais de 40 anos de conflito armado. Em uma semana, foram dois. Além disso, o Exército matou comandantes de "Frentes" (unidades das FARCs que variam de algumas dezenas a centenas de tropas). Claro que isso fortalece muito a popularidade de Uribe, que está altíssima, e reforça seu argumento de que é possível derrotar militarmente a guerrilha.

Na semana passada houve manifestações importantes na Colômbia, teoricamente em defesa das vítimas de toda a violência política, embora na prática tenha sido algo mais voltado à oposição aos grupos paramilitares. Foi uma reação aos protestos de fevereiro, que tinham sido dirigidos exclusivamente contra as FARCs. A questão é delicada porque os paras envolvem a cumplicidade de policiais, militares e políticos - sim, se você é do Rio de Janeiro, o paralelo com nossas milícias é assustador e evidente.

Surgiram informações interessantes sobre a tecnologia avançada usada pelo Exército colombiano para o ataque ao destacamento das FARCs no Equador. Tropas colombianas teriam se infiltrado próximo à base e instalado localizadores de fabricação israelense, que foram utilizados para guiar as bombas lançadas pelos aviões - Super Tucanos da brasileira Embraer, escolhidos para a missão porque "podrían pasar por inocuas avionetas turísticas, cuentan con avanzados sistemas de visión nocturna y alta tecnología para visión térmica y guía de bombas y misiles."

Outra curiosidade: as bombas utilizadas foram do tipo cluster, que explodem a alguns metros do solo, e espalham explosivos por grande área. São perfeitas para o ataque a alvos difusos, como bases guerrilheiras, mas muitos problemas têm sido observados em sua aplicação, em particular a permanência de munição não-detonada que pode atingir civis, à semelhança de minas. Por isso, esse tipo de armamento enfrenta resistências internacionais e sua proibição é discutida em fóruns multilaterais. O Brasil defende as bombas cluster e tem várias em estoque.

terça-feira, 11 de março de 2008

Planalto, Planície, Baixada



As últimas semanas foram bastante movimentadas no trabalho. Lançamos a pesquisa “Juventude e Integração Sul-Americana” com um belo evento no Palácio do Planalto (foto). Aproveitamos a posse dos novos membros do Conselho Nacional de Juventude – inclusive eu mesmo.

O Conselho é um órgão consultivo da Secretaria-Geral da Presidência da República e reúne representantes do governo e da sociedade civil. Cada conselheiro participa de alguma comissão interna e fiquei como um dos relatores da área de relações internacionais. A agenda de cooperação é muito interessante, com foco na América Latina e nos países africanos de língua portuguesa.

Essas duas regiões são, tradicionalmente, a prioridade para a agenda social internacional do governo brasileiro e é curioso observar como o Brasil se tornou referência importante para os debates sobre políticas públicas de juventude, por conta de programas como Pró-Jovem, Pró-Uni e Pronasci. O inusitado é que o país tem pouca experiência no campo – o órgão federal de juventude só foi criado em 2005, enquanto entre os vizinhos isso geralmente ocorreu há 15 ou 20 anos.

A diversidade dos 60 membros do Conselho impressiona. Tenho o prazer de conviver com pessoas de vários estados e com trajetórias de vida das mais diferentes: militantes jovens do movimento negro, gay, feminista, missionários católicos e protestantes, pesquisadores, gestores de políticas públicas... Um tributo às muitas faces da geração de brasileiros que atinge a maturidade política na democracia.

Um dos desafios que tenho como membro do Conselho é aproximar Planalto e sociedade – Planície como dizia o saudoso Betinho, fundador da ONG em que trabalho. A área de juventude, por sua própria natureza, requer cooperação entre o governo federal e as esferas estaduais e municipais. Isso é difícil em qualquer situação, ainda mais porque poucos municípios brasileiros possuem órgãos dedicados à juventude. São Paulo tem um excelente, mas no Rio de Janeiro, nada.

No entanto, está em curso um processo muito rico, o da I Conferência Nacional de Juventude, que irá ocorrer em Brasília, no fim de abril, para debater a formulação de políticas públicas para a área. Os delegados para o encontro estão sendo escolhidos em conferências nos estados e nos municípios, das quais também tenho participado. Ajudei a organizar uma “conferência livre” (isto é, só da sociedade) há duas semanas, e dei palestra na abertura do encontro municipal em Nova Iguaçu, representando o Conselho.

Num dos encontros o Conselho havia sido criticado por estar distante dos municípios da Baixada Fluminense e abordei essa observação na minha palestra, dizendo que esperava ser cobrado na minha função de conselheiro e que estava ali justamente para ajudar a fazer essa ponte.

O trabalho está apenas começando. Também estou na comissão organizadora da conferência estadual de juventude, ontem mesmo passei a tarde numa reunião para discutir aspectos da metodologia do encontro.

Em meio a todo esse turbilhão, nem sei como encontrei tempo, mas a tese de doutorado está pronta e foi devidamente aprovada pelo meu orientador. Só falta agora marcar a data da defesa, que provavelmente será no fim de maio.

Ontem foi o coquetel de boas-vindas aos novos alunos do IUPERJ – o último do qual participo como estudante do instituto. Foi muito bom o carinho dos colegas e dos professores, lembramos de histórias antigas e conversamos sobre o futuro.

domingo, 9 de março de 2008

O Fundamentalista Relutante



Porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Carlos Drummond de Andrade, Elegia 1938

Um amigo certa vez me recomendou “Sábado” de Ian McEwan como a primeira obra-prima literária pós-11 de setembro. De fato, o relato sobre como pacata rotina de um médico londrino é sacudida pela turbulência contemporânea é um ótimo livro, mas acredito que o pódio agora foi ocupado pelo romance “O Fundamentalista Relutante”, do escritor paquistanês Mohsin Hamid.

O intrigante título se explica em função do caráter do protagonista, Changez, que narra sua história a um americano num café de Lahore. Ele é um jovem que emigra do Paquistão para cursar a universidade Princeton, nos EUA, e vai trabalhar para uma prestigiosa firma de consultoria em Nova York – mesmo trajeto, aliás, do autor. Changez vem de uma família da decadente elite paquistanesa e estabelece uma forte empatia com seu chefe que ascendeu da classe operária americana: “Nesse aspecto, Jim e eu éramos realmente parecidos: ele havia crescido do lado de fora da loja de doces, e eu, na soleira dela, enquanto a porta se fechava.”

A história de um rapaz de poucos meios, mas inteligente e ambicioso, que ascende na vida, só se completa quando ele se casa com uma mulher da aristocracia. Changez encontra sua princesa em uma colega de universidade, Erica, que parece lhe abrir as portas da alta sociedade de Manhattan. Mas o romance não decola, porque a moça vive presa à memória do ex-namorado morto de câncer.

Enquanto isso, Changez começa a se tornar respeitado como consultor, e viaja às Filipinas pela empresa, onde se sente dividido entre identificar-se com os pobres do mundo em desenvolvimento ou com os executivos americanos que são seus colegas na firma. É nesse estado de confusão emocional que ele vê pela TV os atentados de 11 de setembro de 2001.

À medida que os Estados Unidos embarcam na sua cruzada militar, Changez se sente cada vez mais isolado e perdido, angústia que se aprofunda com a guerra no Afeganistão e as tensões crescentes entre Paquistão e Índia:

De repente, morar em Nova York foi como viver num filme sobre a Segunda Guerra Mundial... Por que é que ansiavam os seus compatriotas, não estava claro para mim – por uma era de dominação incontestável? De segurança? De certeza moral? (...) Eu me sentia um traidor por me perguntar se essa época seria fictícia e, caso fosse realmente possível trazê-la à vida, se haveria nela um papel escrito para uma pessoa como eu.

As incertezas de seu amor por Erica e de seus sentimentos com relação aos Estados Unidos deixam Changez cada vez mais irritado, amargurado e crítico do pais onde vive. Os ataques que começa a sofrer por sua aparência só pioram as coisas. Ele é um “fundamentalista relutante”, porque traz em si as contradições de quem vive entre dois mundos:

Essas viagens me convenceram de que nem sempre é possível reestabelecermos nossas fronteiras depois que um relacionamento as embota e as torna permeáveis: por mais que tentemos, não conseguimos reconstituir-nos como os seres autônomos que antes imaginávamos ser. Algo de nós fica do lado de fora, e algo de fora passa a habitar dentro de nós.

Changez tem um perfil semelhante ao dos terroristas que cometeram os atentados de 11 de setembro, muitos deles oriundos de famílias proeminentes da Arábia Saudita e do Egito – aliados de Washington, como o Paquistão – e com estudos na Europa ou nos Estados Unidos. Algo a se pensar.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Zapatero prendeu minha estagiária



Entre os 30 brasileiros detidos no aeroporto de Madri estavam dois colegas de pós-graduação no IUPERJ, sendo que uma delas, a Patrícia, foi minha estagiária no IBASE. Ela ficou dez horas sem poder comer, beber água ou falar com a família: “Foi o pior dia da minha vida”, desabafou. A reação do instituto foi exemplar, mobilizando o Ministério das Relações Exteriores e a imprensa, e o caso teve ampla repercussão, com posições fortes dos diplomatas brasileiros em defesa dos cidadãos maltratados na Espanha. No entanto, não há muito o que comemorar: o que a Patrícia sofreu ocorreu também com 600 brasileiros na Espanha, somente em 2008.

Como em tantos outros países ricos, a imigração se tornou um problema político explosivo na Espanha e um dos temas mais sensíveis para as eleições deste domingo. O governo socialista está na berlinda e com parca vantagem diante da oposição de direita. Na sempre ótima análise do Valor (link só para assinantes):

Noutro tema importante para a Espanha, a imigração, o governo de Zapatero (que regularizou 700 mil estrangeiros em 2005) foi aos poucos endurecendo as regras e hoje adota posições bem parecidas com as do PP, que para muitos exalam algo de xenofobia. Algumas restrições a estrangeiros têm a ver com o momento econômico. Desde o ano passado, as taxas de desemprego vêm crescendo, e o setor imobiliário, perdendo fôlego. Em um ano, o número de espanhóis sem emprego aumentou em 240 mil, chegando a 2,3 milhões.

É compreensível, nesse cenário, que a Espanha resolva endurecer suas leis de imigração e restringir a entrada de pessoas que considera suspeitas de que permanecerão no país de forma ilegal. O problema é que a decisão vem sendo aplicada com base em critérios racistas e discriminatórios, atingindo em especial jovens latino-americanos, simplesmente por seu local de origem, e indepentemente de terem os papéis em ordem. Meus colegas detidos em Madri estavam na cidade apenas de passagem para um congresso acadêmico em Lisboa, com todos os documentos necessários. Caso parecido aconteceu com outra mestranda brasileira, da USP, Patrícia Magalhães, que narrou a história num email ao IUPERJ:

Finalmente (após quatro horas esperando sem saber o que poderia acontecer), um policial apareceu com um pilha de passaportes nas mãos e foi chamando os brasileiros que iam então sendo liberados. E então percebi que todos os homens tinham sido liberados e só restaram as mulheres, em sua maioria negras e mulatas. Quando, depois de 5 horas de espera, chegou um outro avião da Venezuela, muitas outras mulheres se juntaram a nós e fomos todas levadas para o outro aeroporto onde ficaríamos presas por 3 dias até sermos enviadas de volta, na manhã desta terça-feira (12) às 11h35, no vôo IB6821.

Acompanhei muitos casos de maus tratos aos brasileiros no exterior por minha participação no Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa. Conversei com líderes das comunidades brasileiras nos EUA e na Europa Ocidental, bem como deputados que tratam do tema e todos foram muito críticos com relação às medidas adotadas por esses governos no âmbito dos medos ligados ao desemprego e ao terrorismo.

Infelizmente, a crítica se estende ao Ministério das Relações Exteriores. Para muitos de nossos diplomatas, atender a brasileiros com problemas é algo visto como incômodo, um desvio de suas funções. Um embaixador certa vez me disse, em conversa na Câmara dos Deputados, que para ele isso era “assistência social, e não diplomacia”. Por isso não estou surpreso com o que narra Patrícia Magalhães, a mestranda da USP: “O consulado brasileiro na Espanha foi acionado por nós e pelo Brasil, diversas vezes e por muitas pessoas diferentes, e nada fez frente ao nosso chamado de socorro. Nem ao menos respondeu nossas ligações. “

No caso atual a história foi outra, graças aos contatos políticos dos professores do IUPERJ. O Itamaraty reagiu bem e afirmou que o mau tratamento dado aos brasileiros na Espanha é incompatível com as boas relações entre os dois países. Não sou a favor da reciprocidade, ou seja, que passemos a expulsar os espanhóis (bem, talvez eu abra uma exceção para o Chico Recarey). O mundo precisa de menos nacionalismo e mais integração.
Me prontifiquei perante o IUPERJ de levar o tema para o Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e para o Conselho Nacional de Juventude – onde a cooperação com a Espanha é item importante da agenda internacional. Na segunda-feira faremos o coquetel de boas-vindas aos novos alunos e a direção aceitou minha sugestão de transformá-lo em festa de desagravo para os dois alunos detidos em Madri.

Oxalá outros brasileiros submetidos a essas práticas racistas possam encontrar tanto apoio e solidariedade de instituições com força para defender seus direitos.

Se você passou por algo parecido, ou tem amigos que sofreram casos semelhantes, deixe seu recado por aqui ou me escreva em msantoro@iuperj.br.

Pós-Escrito: segue o link para o comunicado oficial do IUPERJ sobre o caso, com críticas ao embaixador espanhol no Brasil por suas evasivas diante da crise.

quarta-feira, 5 de março de 2008

A Carta de Ingrid Betancourt


Durante muito tempo, fomos como os leprosos que estragam a festa. Os reféns não são um assunto “politicamente correto”, soa melhor dizer que é preciso ser forte diante da guerrilha, estar disposto a sacrificar algumas vidas humanas. Diante disso, silêncio.
Ingrid Betancourt

A Editora Agir publicou "Cartas à mãe - direto do inferno", da política colombiana Ingrid Betancourt, que se tornou sem dúvida o grande símbolo internacional das atrocidades cometidas pelas FARCs. Infelizmente para a senadora e ex-candidata à presidência, ela se tornou importante demais para seu próprio bem, e virou uma peça no jogo de xadrez entre a guerrilha, o governo colombiano e a opinião pública internacional.

Comecemos pelo livro. Ingrid foi seqüestrada em plena campanha presidencial, em 2002, e não dava notícias desde 2003. Com a retomada das negociações por sua libertação, foram exigidas provas de vida, divulgadas em outubro de 2007. Uma delas é a famosa foto que mostra a senadora abatida, em meio à selva, e que ilustra a capa. Outra foi a carta de 12 páginas que ela escreveu à mãe, e que é o principal documento publicado no livro. Ele também traz a resposta dos filhos da senadora e um pequeno posfácio do historiador brasileiro Francisco Carlos Teixeira sobre a situação política na Colômbia.

"A vida aqui não é a vida, é um lúgubre desperdício de tempo", escreve Ingrid Betancourt. Ela narra as agruras das péssimas condições de vida na selva, o constante movimento para escapar às perseguições das autoridades, o isolamento, o tédio, a solidão: "Estou cansada de sofrer, de carregar essa dor comigo todos os dias, de mentir para mim mesma achando que tudo vai terminar e constatar que cada dia equivale ao inferno do dia anterior."

As FARCs impõem um regime cruel aos seqüestrados. Além de privá-los da liberdade e do contato com a família e os amigos, com freqüência proibem que eles tenham livros, roupas confortáveis, etc: "Nesta selva, a única resposta para tudo é “Não”."



Ingrid Betancourt é o caso mais famoso entre os reféns, pela sua proeminência política e pelo fato de que, como cidadã francesa, virou o centro de ampla campanha internacional por sua libertação, sobretudo na Europa (França, Espanha, Itália). Me parece que, na América Latina, somos muito mais insensíveis à sua sorte. Foi preciso que Sarkozy colocasse a questão em debate, diante do silêncio dos presidentes da região, que não querem colocar a mão na casa de marimbondos do conflito colombiano, nem se indispor com as autoridades de um país que é um sócio econômico lucrativo e bastante promissor - só a Vale está investindo US$6 bilhões em mineração e geração de energia por lá.

Álvaro Uribe foi eleito em meio ao fracasso das negociações de paz promovidas pelo governo anterior, de Andrés Pastrana, e toda sua política para as FARCs é de buscar uma vitória militar (embora negocie com a guerrilha do ELN e com os paramilitares). Como vimos, o Exército colombiano está desenvolvendo tática semelhante ao de Israel com relação ao Hamas/Hezbolá: ações localizadas visando a assassinar as lideranças inimigas. Nesse cenário, negociar com as FARCs é algo que só faz contra a vontade, sob intensa pressão internacional. As famílias dos reféns são extremamente críticas à pouca disposição que Uribe tem em chegar a um acordo para a libertação dessas pessoas - a maioria, policiais e militares capturados em conflitos com a guerrilha.

No caso de Ingrid Betancourt, pesa um sério problema político. Ela é uma líder do Partido Liberal, de oposição a Uribe. Caso fosse libertada, se tornaria imediatamente uma heroína nacional e o pólo de uma coalizão que quase com certeza inviabilizaria o sonho do presidente de mudar a Constituição e concorrer a um terceiro mandato. Temo que a senadora tenha o mesmo fim dos 11 deputados mantidos reféns pelas FARCs, mortos durante um ataque do Exército...

A Multilateralização da Crise Andina


A crise escapou dos Andes e alcançou a esfera das instituições multilaterais, com negociações muito tensas na Organização dos Estados Americanos (OEA) e a declaração de Uribe de que irá processar Chávez no Tribunal Penal Internacional. Nenhuma das duas iniciativas é boa notícia para a América do Sul.

A Colômbia está na berlinda na OEA, sob intensa pressão do Equador, da Venezuela e da Nicarágua (Cuba está suspensa da organização desde os anos 60). Contudo, a diplomacia colombiana se defendeu bem e conseguiu impedir uma resolução da organização condenando o país pela violação da fronteira equatoriana. Ainda não se chegou a um consenso na OEA, mas me parece que a tendência é pela aprovação da proposta lançada por Brasil e Chile, para se criar uma comissão de investigação – o típico instrumento do deixa-disso, para acalmar os ânimos até a poeira baixar.

Simultaneamente às negociações na OEA, Uribe anunciou que processaria Chávez no Tribunal Penal Internacional (TPI), por cumplicidade com genocídio. A acusação é confusa – o conflito armado na Colômbia é uma tragédia humanitária, mas de modo algum se encaixa na definição de genocídio, que implica a tentativa de eliminar um grupo étnico ou religioso. Depois da polêmica inicial, diplomatas colombianos afirmaram que o processo seria pelo apoio do presidente venezuelano aos grupos terroristas.

O TPI tem competência para julgar quatro tipos de casos: agressões entre Estados, genocídio, crimes de guerra e violações massivas de direitos humanos contra a população civil. Os especialistas estão divididos com relação à possibilidade de que Chávez possa ser processado pelo TPI, entre outras razões porque no que toca aos crimes de guerra, a Colômbia suspendeu sua participação no tribunal até 2009, para facilitar as negociações com a guerrilha e os paramilitares.

Contudo, o cerne da controvérsia é político. Os principais partidos de oposição a Uribe, o Pólo Democrático e o Partido Liberal, rechaçaram a idéia. Acreditam que só pioraria a já péssima situação entre Colômbia e Venezuela. Além disso, o próprio TPI precisa aceitar a denúncia, o que é um longo processo.

A decisão da Venezuela de fechar a fronteira com a Colômbia também é péssima notícia, porque o fluxo comercial entre os dois países é muito intenso – as importações colombianas são fundamentais para a indústria e a alimentação dos venezuelanos. É possível que isso resulte em mais compras dos produtos brasileiros, mas indústrias do Brasil instaladas na Colômbia, que exportam para o mercado da Venezuela, como a Marcopolo, já amargam prejuízos sérios (o link é só para assinantes do Valor).

terça-feira, 4 de março de 2008

O Lado Sombrio do Nacionalismo Sul-Americano


O nacionalismo tem papel importante na América do Sul, no sentido de promover o desenvolvimento econômico, construir sociedades um pouco mais coesas em meio às horrendas desigualdades sociais do continente e fortalecer um Estado capaz de defender os direitos da população. Infelizmente, há um lado sombrio no nacionalismo, que com freqüência se expressa em agressões estridentes, overdoses geopolíticas e a exacerbação de tudo que diz respeito às fronteiras.

Esse tipo de nacionalismo agressivo foi comum na América do Sul de meados do século XIX e ressurgiu nas décadas de 1930 e de 1970, numa série de disputas que envolveram Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru. A redemocratização do continente parecia ter encerrado o ciclo, com processos de integração regional e soluções pacíficas para contenciosos territoriais. Contudo, a retomada nacionalista deste início de século XXI trouxe novamente à tona o problema, com praticamente o mesmo elenco citado acima: a novidade é a saída do Brasil e a entrada da Venezuela, da Guiana e do Uruguai. Ou seja, de 12 países sul-americanos (mais a colônia da Guiana Francesa) 10 enfrentam disputas fronteiriças.

É um padrão que desafia cientistas políticos, e estou com muita vontade de escrever algo a respeito. Antes de teorizar, vamos à análise da conjuntura. Em meio à troca de acusações entre Colômbia, Equador e Venezuela, surgiram informações razoavelmente sólidas que nos ajudam a entender o conflito.

1) A inteligência militar colombiana atacou o destacamento das FARCs no Equador porque constatou a presença da cúpula da guerrilha na localidade. Raúl Reyes é o primeiro integrante da elite das FARCs a morrer em conflito com o Exército colombiano, num duro golpe para o prestígio militar do grupo. Há notícias não-confirmadas de que o lendário Manuel Marulanda, o líder das FARCs, teria sido ferido no ataque.

2) O ataque à cúpula das FARCs foi precedido de uma série de golpes (prisão ou morte) aos chamados "coronéis" da guerrilha, líderes como o Negro Acácio e Simón Trinidad.

3) A ofensiva militar do governo Uribe ocorre em paralelo às negociações por libertação de reféns, o que pode significar uma tentativa das autoridades de negociar a partir de uma posição de força ou simplesmente de inviabilizar o processo de paz, provocando a ala mais radical das FARCs. A morte de Reyes, expoente dos moderados, alimenta tal opção.

4) Há um enorme risco de que as FARCs lancem algum tipo de contra-ofensiva extremamente violenta em represália à morte de Reyes.

5) A reação internacional foi bastante negativa à Colômbia, com os países sul-americanos e europeus condenando a violação da soberania do Equador e pedindo calma e moderação aos envolvidos. Como sempre nesses casos, a mediação se dará sob liderança do Brasil (o chanceler Celso Amorim está em ótimo momento) e da OEA.

Cumpre lembrar o importante papel moderador que está sendo desempenhado não só pelo Brasil, mas também por Chile e Peru - algo notável porque este país tem longo conflito com o Equador, além de tensões com a Venezuela, e poderia ser tentado a uma aliança com a Colômbia.

Na foto, soldados do Equador marcham rumo à fronteira com a Colômbia. Imagem sombria, que não pensava em ver em nossa América.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Trombetas



No fim de semana tropas colombianas atacaram um destacamento das FARCs refugiado em território equatoriano e mataram um dos principais líderes de guerrilha, Raul Reyes. Os governos do Equador e da Venezuela reagiram enviando tropas à fronteira com a Colômbia e está em curso uma sucessão de expulsões de diplomatas e fechamentos de embaixadas entre os três países, no que é a pior crise política em dez anos entre nações da América do Sul.

Um amigo que trabalhou para a ONU na fronteira do Equador com a Colômbia me descreveu a região como a “loja, bordel e hotel das FARCs”. Os vínculos entre as autoridades equatorianas e a guerrilha não são surpresa para ninguém. A polícia colombiana (na foto, seu comandante, o general Naranjo) afirma que os computadores apreendidos com Reyes comprovam que ministros equatorianos pediam às FARCs a libertação de reféns, num processo a ser mediado pelo presidente Correa, visando ao aumento de seu prestígio internacional.

O Equador protestou contra a invasão de seu território, expulsou o embaixador colombiano, mandou tropas à fronteira e pediu ajuda à OEA, ao Mercosul e à Comunidade Andina. A Colômbia alegou que agiu de acordo com o princípio de legítima defesa, pois as FARCs usavam o refúgio equatoriano para lançar ataques, e pediu desculpas ao governo equatoriano.

A Venezuela fechou sua embaixada em Bogotá, mandou blindados para a fronteira da Colômbia e decretou minuto de silêncio em homenagem a um “revolucionário covardemente assassinado”. O gesto tem sido interpretado como recado de Chávez a Uribe: não se meta a tentar aqui o que você fez no Equador.

Demais respostas internacionais: Argentina, Chile, França, Itália e Alemanha condenaram a violação da soberania do Equador e aconselharam cautela aos países envolvidos na crise. As declarações mais forte foram as do chanceler francês, que ressaltou que a morte de Reyes “não é boa notícia”, destacando o importante papel que ele tem nas negociações para a libertação dos reféns.

Fidel Castro, aproveitando o tempo livre, disse que soam as trombetas da guerra na América do Sul, e que a culpa de tudo é do “império ianque”.

Ainda não consegui encontrar qualquer declaração do governo brasileiro, mas pela nossa tradição diplomática o Brasil irá se apresentar como moderador do conflito em curso, da mesma maneira que realizou em crises anteriores na América do Sul, como Peru x Equador e Venezuela x Colômbia.

Embora a Colômbia tenha agido em legítima defesa contra as FARCs, será difícil encontrar algum governo disposto a defender o ataque ao território de outro Estado (talvez os EUA). Bogotá foi longe demais, e sua incursão matou o principal expoente dos moderados dentro da guerrilha. Nenhuma nação sul-americana deseja dar a Colômbia carta branca para lançar outras incursões desse tipo, pelos efeitos imprevisíveis que teriam, por exemplo, na Venezuela. E o que fazer com relação aos ataques das FARCs contra a Colômbia? Penso que a melhor resposta veio do editorial do jornal colombiano El Tiempo: regionalizar as discussões:

Habrá que ver qué pasos se dan, pero, por lo pronto, entramos en un tenso período de confrontación, ojalá solo verbal y diplomática, entre Colombia y Venezuela. Al prudente silencio con el que se ha respondido hasta ahora, y sin dar pie a provocación alguna, quizá sea hora de añadir una mediación internacional, o de buscar que el sistema interamericano comience a jugar un papel activo en una crisis que puede desestabilizar a toda la región. Las cosas con Venezuela están pasando de castaño oscuro y eso no es bueno para nadie.