segunda-feira, 31 de maio de 2010

A Crise na Coréia do Norte



Em março a Coréia do Norte afundou uma corveta da Coréia do Sul e matou 46 marinheiros. O episódio rende um dos piores confrontos entre os dois Estados no qual a península foi dividida em 1945. Embora o risco de guerra seja pequeno, o aumento das tensões na região têm impacto bastante negativo para a economia global, num momento em que não faltam turbulências por conta da crise européia e dos conflitos com o Irã.

O regime político norte-coreano é provavelmente o mais fechado do mundo e há diversas teorias que tentam explicar a decisão de afundar o navio de guerra da Coréia do Sul. A maioria dos analistas acredita que o ataque foi motivado por conflitos internos no governo comunista, sobretudo a necessidade do presidente Kim Jong-Il se afirmar como apóstolo do nacionalismo diante de sua linha dura, preparar o terreno para ser sucedido por seu filho, Kim Jong-eun e oferecer uma crise internacional para desviar a atenção dos problemas econômicos do país.

A economia norte-coreana entrou em colapso na década de 1990, com o fim dos subsídios soviéticos. A falência da agricultura local resultou em fome em massa que só encontra comparações nos piores momentos dos regimes de Mao e Stálin. A estimativa é que talvez um milhão de pessoas tenham morrido. Para sobreviver, a população recorre aos mercados informais, inclusive muito contrabando.

A situação vinha preocupando o governo, que implementou há alguns meses uma reforma monetária que forçou as pessoas a abandonarem o dinheiro antigo e substituírem por uma nova moeda. Contudo, a quantia autorizada a ser trocada era pequena, um modo de as autoridades tentarem controlar o mercado informal. O resultado foi uma onda de descontentamento e protestos de rua – raríssimos no país.

A Coréia do Norte desenvolveu uma curiosa política externa, que basicamente consiste em levar as ameaças até próximo do ponto de ruptura, e depois recuar em troca de concessões econômicas do Ocidente. Até agora, tem funcionado.

No dia 15 de junho, Brasil e Coréia de Norte se enfrentam na Copa do Mundo. Pyongyang não perde por esperar: além da disputa no futebol, terá que enfrentar os missionários evangélicos brasileiros, que elegeram os comunistas como alvo preferencial de sua pregação religiosa.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Argentina, 1910, 2010



Disputas em torno da identidade nacional foram dos elementos mais importantes do pensamento social latino-americano no século XX. Como bem observou o filósofo chileno Eduardo Devés, tratava-se do contraste entre a busca de valores locais e os ideais modernizadores vindos da Europa e dos EUA. É possível que esse embate tenha sido mais forte na Argentina do que em outras partes da região e continua a ser uma questão relevante neste maio de 2010, em que o país celebra seus 200 anos.

O que hoje chamamos “Argentina” era parte do vice-reinado do Prata, que incluía também Paraguai, Uruguai e Bolívia. Boa parte da história do Cone Sul até 1870 é a disputa por meio da guerra e diplomacia para decidir os destinos da região. O império brasileiro manobrou para explorar as divisões no antigo vice-reinado, porque temia um vizinho forte e poderoso em suas frágeis fronteiras do sul.

No fim do século XIX a Argentina se consolidou como um país próspero, a partir das exportações de carnes e cereais para o império britânico, e da imigração em massa de europeus para colonizar suas férteis terras do Pampa. Em 1910 (foto abaixo), a Argentina era uma potência emergente, com alta renda per capita e oportunidades econômicas que rivalizavam, ou superavam, as da Europa meridional.



Por que o país declinou ao longo do século seguinte é ainda hoje uma das questões mais conflituosas que dividem liberais, peronistas, nacionalistas, socialistas e outras correntes políticas. De minha perspectiva, a prosperidade argentina não era sustentável no longo prazo devido à dependência das fortunas econômicas britânicas. A decadência do Império após a I Guerra Mundial foi fatal para o país platino. A transição política de um regime oligárquico para a democracia foi, evidentemente, muito complexa, com a dificuldade de incorporação dos pobres, a polarização política em torno (e contra) o peronismo e os freqüentes golpes militares, que culminaram no banho de sangue da ditadura de 1976-1983.

Não é fácil definir a Argentina de 2010. Continua a ser um país com excelente qualidade de vida. Buenos Aires é uma cidade deslumbrante e a riqueza da vida intelectual e cultural da nação impressiona qualquer um. Economicamente, a história é outra. A crise de 1998-2002 foi superada em termos do crescimento do PIB, mas as marcas ficaram no aumento das desigualdades sociais, na desorganização do sistema partidário e no modo como boa parte das indústrias mais importantes passaram para controle estrangeiro, inclusive brasileiro.

Há cem anos a Argentina era o país mais importante da América Latina, com ambições de desafio da liderança dos EUA sobre o continente. Hoje, ocupa um lugar bem mais ambíguo. O Brasil se consolidou como o gigante regional, mas mesmo nações menores, como Venezuela, Colômbia ou Chile têm uma agenda diplomática mais clara e objetiva. Diante do fracasso das “relações carnais” com os Estados Unidos, algumas autoridades brasileiras crêem que a Argentina poderia ser “o Canadá do Brasil”, isto é, um Estado associado, mais interessado em questões sociais do que num papel global proeminente. Não acredito que isso aconteça. Por tradição e espírito, a política externa argentina será outra coisa. O quê? Façam suas apostas.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

A Guinada da Turquia



Meses atrás, eu acompanhava a serviço do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior um seminário sobre internacionalização de empresas dos países BRICs. Um dos acadêmicos mais interessantes que conheci no evento foi um pesquisador turco. Por acaso, na ocasião eu lia um romance do mais famoso escritor da Turquia, Orhan Pamuk, e tivemos uma ótima conversa e me chamou a atenção seu interesse pela política externa brasileira e pelas perspectivas econômicas da África. De modo que a recente parceria de alto nível entre Brasília e Ancara não é surpresa, se insere no contexto dessas transformações. O primeiro-ministro Recep Erdogan (foto) chega nesta quarta ao Brasil, acompanhado de seu chanceler e de outras autoridades para uma visita de três dias.

Já há alguns anos os analistas internacionais têm observado que o Brasil se destaca como interlocutor importantes em certos temas globais, como comércio e meio ambiente, e agora começa a fazê-lo também no Oriente Médio. A Turquia passa por outro tipo de transformação: de sólido aliado do Ocidente desde o início da Guerra Fria, tem adquirido maior autonomia diplomática e adotado uma visão política muito mais voltada para os países muçulmanos.

Há duas razões principais para a guinada. A primeira é a rejeição do núcleo duro da União Européia, França e Alemanha, ao pleito da Turquia em integrar a organização. Sarkozy a classificou como um “país da Ásia Menor” e Merkel foi apenas um pouco menos rude. Há diversas pendências que dificultam sua adesão à UE: violações de direitos humanos, persistência da pena de morte, não-reconhecimento do governo de Chipre, menor nível de desenvolvimento econômico (embora não tão distinto das nações mais pobres da União Européia, como Bulgária e Romênia). Mas é claro que pesa a questão religiosa, embora o Estado turco seja orgulhosamente laico, o que causa constantes tensões com os crescentes movimentos islâmicos do país.

O segundo motivo são as catastróficas turbulências no Oriente Médio e Ásia Meridional, desde 2001. Guerras no Afeganistão, Faixa de Gaza, Líbano e Iraque, as tensões com o Irã e a instabilidade no Paquistão. A Turquia tem adotado papel de destaque na moderação de conflitos regionais e que chama de “política de zero problemas” com os vizinhos, inclusive dialogando efetivamente com antigos antagonistas, como Rússia e Síria.

É uma política externa inteligente, bem executada e que merece maior atenção dos brasileiros. Seu principal mentor é o cientista político Ahmet Davutoglu, um intelectual brilhante, comparado a Henry Kissinger, que assumiu em 2009 o posto de ministro das Relações Exteriores, embora já tivesse ocupado outros altos cargos.

A diplomacia turca tem causado perplexidade e preocupação nos EUA e na União Européia, como pode comprovar quem lê a imprensa e os relatórios de pesquisa dos institutos dessas regiões. Na própria opinião turca, evidentemente, há vários analistas que preferem uma política externa mais próxima aos aliados tradicionais e temem os impactos da guinada para os vizinhos no Oriente Médio.

A revista Foreign Affairs publicou uma lista muito interessante com sugestões de leituras sobre a Turquia. Vou encomendar alguns desses livros, até como um aperitivo para me preparar para uma viagem ao país, que planejo conhecer em minhas próximas férias.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O Guerrilheiro Acidental



The Accidental Guerrilla” é o mais influente livro sobre assuntos militares publicado após os atentados de 11 de setembro de 2001 e as guerras do Afeganistão e do Iraque. Seu autor é David Kilcullen (foto), tenente-coronel do Exército da Austrália que assessorou autoridades dos Estados Unidos, como Condoleezza Rice e o general David Petraeus. É uma reflexão que busca entender a natureza dos conflitos assimétricos na Ásia.

Seu argumento: a maioria dos insurgentes que combatem os EUA na região são “guerrilheiros acidentais”, motivados por questões locais, basicamente a intromissão de estrangeiros em seus assuntos comunais. A dinâmica da “guerra ao terror” terminou por vinculá-los às redes terroristas internacionais, como Al-Qaeda e certas correntes entre os Talibãs, que são muito mais irredutíveis em seu ódio aos ocidentais. Para separá-los, Kilcullen propõe a mudança na estratégia de guerra, com contrainsurgência voltada para garantir a segurança da população, e não a destruição do inimigo. Inspirou o “surto”, a reviravolta americana no Iraque.

Kilcullen fez carreira no Exército australiano servindo em missões de paz na Indonésia, Timor Leste e em operações na África e no Oriente Médio. Doutorou-se em Antropologia sobre o impacto das insurgências em sociedades tradicionais, sobretudo os conflitos entre fundamentalistas islâmicos e culturas tribais. Pelo circuito acadêmico-militar, realizou rápida ascensão como consultor para o Pentágono e o Departamento de Estado. Os EUA simplesmente não tinham especialistas nesses temas, tendo praticamente abandonado a reflexão sobre contrainsurgência após a derrota no Vietnã. Agora, despontou nova comunidade que trata do assunto.

Seu livro começa com observações teóricas e dedica capítulos aos estudos de caso do Afeganistão e do Iraque. O ponto forte de Kilcullen é sua observação de campo sobre os costumes dos grupos étnicos (basicamente, redes familiares ampliadas) nos dois países. As tribos afegãs são mais igualitárias, mas as iraquianas têm hierarquias rígidas. Ambas as estruturas foram muito abaladas por décadas de guerra, ditadura, ocupações estrangeiras e as tribos aprenderam a negociar com os Estados, em padrões complexos de clientelismo, conflito, oposição e aliança.




Assim, os Talibãs se tornaram um movimentos dos pashtun – no Afeganistão e no Paquistão – para se impor sobre etnias rivais. Outros povos – Hazara, Uzbeques – com freqüência preferem apoio da OTAN. No Iraque, sunitas e xiitas travam uma feroz disputa sectária, mas certas tribos da primeira denominação, oriundas da província de Anbar, acabaram por se indispor com a Al-Qaeda, e mudaram de lado para apoiar os EUA.

A Al-Qaeda percebeu a importância das tribos e seus líderes procuram se casar com mulheres locais para se integrar às redes de solidariedade comunitária. Mas o puritanismo religioso dos fundamentalistas em geral entra em confronto com os costumes mais brandos das tribos, que podem incluir sunitas e xiitas. Outro estopim de divergência é o controle sobre lucrativos negócios ilegais, como contrabando e tráfico de drogas, tradicionalmente dominados pelos líderes tribais.

A estratégia proposta por Kilcullen é explorar tais divisões, e seu livro contém várias recomendações operacionais que foram aplicadas no Afeganistão e no Iraque, tais como patrulhas conjuntas entre os americanos e os locais, abandono de operações bruscas, como invadir casas em busca de suspeitos, esforços para construir a confiança com a população.

Já existe longa literatura sobre contrainsurgência, construída a partir de estudos sobre as guerras na Argélia e no Vietnã. “The Accidental Guerrilla” certamente entrará para o cânone dessas análises, mas com a cautela: os exemplos anteriores resultaram em fracassos bélicos. Em grande medida porque seus autores falham em encarar a amarga mensagem política de que, para os povos envolvidos, a maior medida de segurança pode muito bem ser a partida dos exércitos estrangeiros aos quais pertencem os escritores. Com todas as suas boas intenções.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Sanções contra o Irã



Nesta semana fui entrevistado para o programa “Sem Fronteiras” da Globonews, que foi exibido ontem à noite. Conversei com o jornalista Tonico Ferreira sobre a situação no Oriente Médio. Meu amigo e chefe Matias Spektor participou de Washington, onde está como pesquisador no Council on Foreign Relations, falando a Jorge Pontual sobre o impacto do tema para as relações entre Brasil e Estados Unidos. Reproduzo neste post alguns dos pontos da entrevista e ascrescento comentários.

Os Estados Unidos reagiram ao acordo com o Irã orquestrado por Brasil e Turquia com a proposta de nova rodada de sanções da ONU contra o país. O projeto conta com o apoio dos outros membros permanentes do Conselho de Segurança e da Alemanha. Os seis países consideraram o entendimento com Teerã como manobra do regime iraniano para ganhar tempo e prosseguir com o programa nuclear. O acordo tem muitas falhas, mas poderia ser usado como primeiro passo para estabelecer confiança e clima favorável às negociações. Ao optar pela intransigência, o Grupo dos 6 fechou importantes possibilidades de diálogo com os países emergentes e criou uma situação de radicalismo que cada vez mais se parece com a controvérsia que precedeu a invasão do Iraque.

A proposta da nova rodada de sanções é a quarta apresentada na ONU. Ela se concentra na Guarda Revolucionária, a unidade militar de elite do Irã, que também possui muitas empresas e investimentos na economia. É o principal braço armado do regime, mas teve a lealdade de vários de seus comandantes questionada pelos recentes protestos pró-democracia.

As sanções são, em realidade, bastante moderadas e tímidas. Não tocam, por exemplo, na indústria do petróleo, o esteio da economia iraniana. A razão é simples: China e União Européia estão entre os principais parceiros comerciais do país.

As sanções têm como objetivo impor mais pressão sobre Teerã, para forçar as autoridades a negociar um acordo que seja mais abrangente do que aquele mediado por Brasil e Turquia. É duvidoso que funcione, como mostra a história em outros casos: Coréia do Norte, o Iraque de Saddam Hussein e o próprio Irã desde a Revolução Islâmica de 1979.

Os Estados Unidos pressionam por sanções mais duras e a resposta rápida do presidente Barack Obama foi muito influenciada pelos problemas do Partido Democrata, às voltas com eleições legislativas e precisando aparecer para a opinião pública como rigoroso em temas de segurança nacional. Por isso a secretária de Estado, Hilary Clinton, fez o anúncio da nova proposta em audiência no Senado.

Apesar do futuro incerto do acordo mediado por Brasil e Turquia, ele foi um ganho diplomático importante para ambos os países. Mostraram iniciativa, capacidade de articular coalizões, disposição para o diálogo. Qualidades fundamentais para evitar o agravamento de tensões no Oriente Médio.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A Estratégia do Antílope



Jean Hatzfeld é um jornalista francês nascido em Madagascar que escreveu três livros sobre Ruanda. Acabo de ler o mais recente: “The Antelope´s Strategy: living in Rwanda after the genocide”. É uma extraordinária reportagem sobre como vítimas e executores do genocídio ocorrido em 1994 estão tentando conviver após a decretação de uma anistia parcial, em 2003.

Não há precedentes para o que ocorre em Ruanda. Seria como se os sobreviventes dos campos de concentração tomassem o poder na Alemanha e aceitassem de volta os nazistas que os executaram. É possível perdoar crimes tão terríveis como os que aconteceram em Ruanda? Hatzfeld não dá respostas definitivas. Seu livro não é um sermão moral ou uma obra teórica, trata-se de uma coletânea de entrevistas, histórias de vida ricas, contraditórias, cheias de medo, raiva, esperança e cautela. Muita cautela.

Ruanda foi uma pequena colônia alemã no leste da África, que passou para o controle da Bélgica depois da Primeira Guerra Mundial. O povo tutsi havia chegado à região como conquistador, pastores de gado que se impuseram como reis e aristocratas aos camponeses hutus. Mas ao longo de séculos de convivência, as diferenças tinham se diluído. Os colonizadores, no entanto, se valeram delas para dividir e governar. Quando o país se tornou independente, a maioria hutu começou a perseguir a minoria tutsi, com certo número de massacres e conflitos. Em abril de 1994, os ódios afloraram quando milícias hutus lançaram um programa de extermino em massa dos tutsis. Durante 100 dias, mataram cerca de metade dessa etnia, até serem derrotadas por uma guerrilha tutsi, que passou a governar o país.



Ruanda é extremamente pobre e não podia abrir mão das centenas de milhares de hutus que fugiram para países vizinhos, sobretudo o Congo. Houve um Tribunal Internacional para julgar acusados de genocídio, mecanismos tradicionais de justiça (como as cortes gacaca) e programas de reconciliação financiados por doadores estrangeiros, em especial pelo Banco Mundial. Essas iniciativas misturam punição, anistia parcial, assistência psicológica e doutrinação ideológica para tentar ensinar hutus e tutsis a conviver.

Os relatos de Hatzfeld se concentram num pequeno vilarejo, microcosmo para o país. Lá, a minoria tutsi é em proporção razoável, mas os sobreviventes do genocídio se sentem com medo dos hutus, e com feridas não-cicatrizadas das semanas escondidos nos pântanos, mutilados ou violentados. Houve também o trauma econômico: pessoas de boas condições de vida, que perderam muitas posses. A maioria se recuperou bastante bem em termos financeiros, embora persistam problemas psicológicos como depressão e angústia.

Claro, há momentos de esperança. Como o casamento entre um genocida hutu e sua amiga de infância tutsi, que talvez ele tenha protegido durante a violência. Ou o caso da moça tutsi que, antes da mortandade, não conseguia ter filhos. Depois do genocídio, algo aconteceu dentro dela: hoje, é mãe de seis crianças. A vida é mais forte, sempre, mesmo diante de toda a estupidez e violência.

Foto que abre o post: memorial do genocídio, em Ruanda.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Acordo em Teerã



Ele conseguiu. O presidente Lula mediou de forma bem-sucedida o acordo sobre o programa nuclear iraniano e o Irã enviará urânio à Turquia, para ser enriquecido a 20% com auxílio da Rússia e da França. O percentual insuficiente para armas, mas que garante aplicações para usos médicos. É uma extraordinária vitória diplomática para o Brasil, que coloca a política externa brasileira em outro patamar, e ilumina o potencial da aproximação com a Turquia, fundamental para este processo.

O acordo havia sido proposto pela primeira vez cerca de um ano atrás, mas o Irã havia desistido na última hora em aceitá-lo. Há uma série de indefinições quanto a ele, que inspiram certa cautela. A primeira é que devido ao aumento da produção de urânio iraniano, o percentual que será enviado à Turquia é de cerca da metade do estoque do país. Ou seja, muito poderia ser enriquecido em segredo, em instalações secretas como a que foi descoberta recentemente perto da cidade de Qom.

Para evitar que isso acontecesse, seria necessário um regime de inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica, como a que garantiu o desarmamento do Iraque na década de 1990. O governo iraniano tem resistido a esse tipo de vistoria, e não assinou o Protocolo Adicional ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear, o instrumento que autoriza as inspeções mais abrangentes.

A mediação do Brasil e da Turquia colocou os Estados Unidos numa situação delicada, praticamente forçando o governo Obama a aceitar o acordo atual, apesar de suas deficiências. Naturalmente, isso dá tempo ao Irã – inclusive para levar adiante seu programa nuclear, quaisquer que sejam os objetivos do aiatolá Kamenei, do presidente Ahmadijenad e de outros líderes do país.

Um ponto importante, que teve pouco destaque na imprensa brasileira, é a ofensiva diplomática da Rússia no Oriente Médio. Na última semana, o presidente russo Dmitiri Medvedev visitou Turquia e Síria, assinando diversos acordos de cooperação. No caso sírio, é a retomada da antiga aliança da Guerra Fria, junto a esforços russos para mediar as tensões do país árabe com Israel – que há poucos dias falou de um novo “eixo do Mal” envolvendo Irã, Síria e Coréia do Norte.

A aproximação Rússia e Turquia é inovadora. Os dois países tem uma longa história de guerras, rivalidades e desconfianças, que vem do século XIX e envolve disputas por territórios estratégicos: Bálcãs, Ásia Central, os estreitos ligando o Mar Negro ao Mediterrâneo. Mas descobriram interesses comuns: um intenso fluxo comercial, construção de oleodutos, mediação de conflitos locais. Os russos irão inclusive ajudar os turcos a instalar sua primeira usina nuclear.

Em outras palavras: o Oriente Médio deixou de ser a área de influência hegemônica dos Estados Unidos, como foi em grande medida nos últimos 20 anos, e se tornou o campo de provas para a nova ordem multilateral em gestação. Rússia, Turquia, Irã e mesmo o Brasil ganham possibilidades de ação internacional na região.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Jantar com Mugabe



Nos anos 70, Heidi Holland era uma jornalista progressista na Rodésia, que simpatizava com as guerrilhas que combatiam o governo da minoria branca, que estabelecera um regime semelhante ao apartheid. Numa noite, um advogado amigo lhe pediu para receber em sua casa um dos líderes da luta armada, Robert Mugabe. Ela jantou com os dois, o levou até a estação de trem, e o achou inteligente e simpático. No dia seguinte Mugabe telefonou para agradecer e perguntar pelo filho bebê de Holland, que havia ficado sozinho enquanto ela levava o convidado para tomar o trem. Pouco depois, Mugabe partiu para o exílio em Moçambique. Tornou-se presidente cerca de cinco anos mais tarde e há trinta anos oprime o Zimbábue (como o país passou a se chamar a partir de 1980) numa das piores ditaduras da África. O que aconteceu com aquele homem gentil?

Para responder à pergunta, Holland escreveu um livro-reportagem fascinante, que lembra a estrutura do filme “Cidadão Kane”. Ela entrevista diversas pessoas que conviveram proximamente a Mugabe: seu irmão, sua sobrinha, um policial que foi seu carcereiro, um ex-ministro, uma aristocrata britânica que foi sua confidente no início do governo, um ex-chanceler do Reino Unido, um padre jesuíta que até hoje o apóia. Cada um revela algo sobre o ditador, e ao fim, a jornalista consegue reencontrá-lo, para uma conversa surpreendemente intimista.

Parte considerável da tragédia de Mugabe vem de que ele poderia ter sido uma pessoa muito diferente. Ele nasceu numa família pobre, mas se destacou na escola missionária, freqüentando os melhores estabelecimentos de ensino da Rodésia. Dois dramas familiares o marcaram: a morte do irmão mais velho e o abandono do pai. Mugabe tornou-se o cerne de todas as expectativas de sua mãe, que instilou nele a idéia de que nascera para um propósito divino. O menino se tornou solitário e desconfiado, ainda que muito inteligente. Ao longo da vida, Mugabe obteve nada menos do que seis diplomas universitários.



Ele foi para Gana – o primeiro país da África negra a conquistar a independência – onde trabalhou como professor e conheceu Sally, a ativista política que viria a se tornar sua primeira esposa. Embora ela se tornasse uma primeira-dama corrupta, é consenso que despertou o lado suave e emocional de Mugabe, sendo boa influência para seus aspectos mais sombrios. O jovem intelectual logo se transformou numa figura importante no movimento nacionalista da Rodésia, respeitado por seus dotes acadêmicos e facilidade de expressão. Ele retornou ao país para se dedicar à política, e talvez esse tenha sido o erro. Ficou preso 11 anos, em condições difíceis, e sequer pode ir ao enterro do único filho que teve com Sally, que morreu aos três anos. As disputas na guerrilha eram ferozes, envolvendo traições, violência e assassinato.

Holland descreve em detalhes as tensões de bastidores da conferência de Lancaster House, as negociações quadripartites entre os dois grupos guerrilheiros, o governo branco da Rodésia e os britânicos, que promoveram a transição pacífica para a vida independente do Zimbábue. O acordo estabeleceu várias cláusulas para proteger a minoria branca, por alguns anos. Mugabe cumpriu o prometido. Mas avançou na jugular de seus inimigos negros: matou milhares de oponentes na região de Matabeleland. O mundo se calou: o Zimbábue era uma história de sucesso vista como prelúdio para desmantelar o apartheid na África do Sul. Melhor fingir que tudo ia bem.

Ela toca de passagem nas disputas entre Mugabe e a oposição democrática (o partido MDC) e a hiperinflação. Como quase sempre acontece nos livros sobre o Zimbábue, o destaque maior é para o saque do governo às fazendas dos brancos, na década de 2000. Destruiu a agricultura comercial do país e, por tabela, a estabilidade da moeda. Mas é sempre um tanto perturbador observar como os sofrimentos da maioria da população – no caso do Zimbábue, negros na zona rual – aparece pouco. Ao menos Holland tem o mérito de apontar as feridas de seu próprio grupo, os descendentes dos britânicos, criticando seu racismo, arrogância e miopia política. Há inclusive uma ótima entrevista com Ian Smith, o legendário líder do governo minoritário, que rompeu com o Reino Unido e recusou diversas propostas para negociar com os nacionalistas negros.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Debatendo o Irã



Ontem estive em Brasília. A Câmara dos Deputados me convidou para debater as relações entre Brasil e Irã e participei de um debate ao vivo no programa Expressão Nacional, da TV Câmara. Discuti o assunto com deputados do PT e do PSDB, e um com um diplomata que assessora o presidente Lula. O gancho da conversa foi, claro, a visita do chefe de Estado ao Oriente Médio e as controvérsias despertadas pela iniciativa brasileira de tentar o diálogo com o mandatário iraniano, Mahmoud Ahmadinejad.

(Em breve o vídeo do programa estará disponível no site da Câmara, e colocarei o link por aqui)

O argumento do governo é que o isolamento do Irã aumentaria os riscos à paz e que é preciso manter espaços abertos à negociação, para chegar a uma solução pacífica com respeito ao programa nuclear iraniano. As autoridades brasileiras avaliam experiências anteriores com sanções, como as adotadas contra Iraque e Cuba, não funcionam. Defendem a não-intervenção nos assuntos internos da República Islâmica, como a repressão aos movimentos democráticos, mas se dispuseram a intermediar diálogos entre Teerã e os bahai´s, uma minoria religiosa bastante perseguida, desde os tempos da monarquia. O governo brasileiro afirma que a tradição diplomática nacional, de defesa da paz e da conciliação, fornece ao país credenciais sólidas para mediar conflitos no Oriente Médio.

A oposição alega que a proximidade com o Irã desgasta a imagem internacional do Brasil, devido às polêmicas envolvendo o programa nuclear iraniano, o apoio de Teerã a grupos terroristas (Hamas, Hezbolá) e às repetidas manifestações de racismo e violações de direitos humanos pelo governo do país. Citam reportagens recentes publicadas no jornal The Washington Post e na revista Der Spiegel, que criticam o Brasil, respectivamente, como "idiota útil" e insinuam que o apoio ao Irã pode esconder objetivos bélicos, de desenvolver armas nucleares.

Boa parte do debate seguiu a linha de discutir as contradições na política de não-proliferação nuclear dos Estados Unidos, com a oposição ao Irã e à Coréia do Norte mas, apoio a Israel, Índia e Paquistão. Faltou tempo para que eu falasse um pouco sobre o panorama da política externa brasileira no Oriente Médio: a visita do presidente Lula a Israel, a ratificação do acordo de livre comércio entre esse país e o Mercosul, esforços por receber refugiados palestinos, resgate de brasileiros que vivem no Líbano (durante a invasão israelense) e conferências de cúpula entre a América do Sul e a Liga Árabe.

A Turquia desponta como uma parceira interessante, em particular neste momento das controvérsias sobre o Irã. Os dois países fazem fronteira, compartilham o problema da minoria curda, e mantém um intenso comércio. O governo turco também se opõe a novas sanções contra o Irã e assim como o Brasil, atualmente ocupa uma vaga no Conselho de Segurança da ONU.

A Ásia é o continente com o qual o Brasil tem o maior comércio. Em grande medida isso se deve à ascensão da China, mas o rápido crescimento do intercâmbio com os países do Oriente Médio também é importante. O Irã, por exemplo, já é o segundo maior comprador de carne brasileira. Acredito que a região continuará a ser bastante relevante para o Brasil, embora os próximos governos possam alterar vários pontos da agenda diplomática com os países locais, em especial as tentativas de negociação com o Irã e no conflito árabe-isralense.

No entanto, a sociedade brasileira conhece pouco a região. Faltam especialistas em todas as partes: no governo, na universidade, na imprensa. Mais do que em outros debates sobre política internacional, prevalecem opiniões simplistas e extremadas, que se destacam pelo parco conhecimento sobre a história e cultura dos povos e Estados do Oriente Médio.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Que Resta do Tempo



Em “O Que Resta do Tempo – crônica de um presente ausente”, o cineasta Elia Suleiman conta a história de 60 anos de conflito árabe-isralense por meio de quatro episódios na vida de uma família palestina de classe média, residente na cidade de Nazaré, que se vê incorporada a contragosto no Estado de Israel. Político, poético e autobiográfico, Suleiman criou uma obra de arte comovente que mostra que a resistência à opressão passa por muitos caminhos, inclusive os gestos cotidianos, como pescar, manter a língua afiada, dançar durante o toque de recolher e jamais perder a capacidade de indignação e surpresa com os absurdos da guerra.

A narrativa começa em 1948, com a guerra que criou Israel. O pai de Elia é um rapaz que fabrica armas e integra uma mílicia árabe desorganizada, que não é páreo para o exército israelense, que rapidamente ocupa Nazaré. Preso após ser traído por um companheiro palestino, ele passará por momentos dramáticos com seus captores.

No episódio seguinte, em 1960, o cineasta é um menino sonhador e inquieto, que estuda numa escola israelense voltada para a minoria árabe que vive no país. Os alunos cantam canções em hebraico que falam da alegria da criação de Israel, mas Elia se mete em confusão por suas opiniões heterodoxas. Os palestinos enfrentam a humilhação da derrota: o vizinho da família se embriaga e ameaça se autoimolar, enquanto tece teorias mirabolantes para pensar maneiras de vencer o inimigo. A tia do garoto desenvolve uma obsessão com o escapismo da TV, e acredita sempre ver na tela a irmã que emigrou para a Jordânia.



No trecho posterior, em 1970, Elia é um adolescente cujos problemas vão se tornando mais sérios, incluindo enfrentamentos com as autoridades israelenses por conta de atividades na resistência à ocupação. A causa palestina vive um momento de desorientação, abalada pela morte do presidente egípcio, Gamal Nasser, que havia sido seu principal patrono.

O último episódio mostra um Elia já maduro, retornando a Nazaré para visitar a mãe doente. A cidade enfrenta a turbulência da Segunda Intifada, e o cineasta visita também Ramalah, a capital da Autoridade Palestina. O cineasta vê com humor os detalhes surreais do conflito e as contradições entre a modernização da sociedade – imigrantes e turistas de várias partes do mundo, cultura pop – com a persistência dos ódios étnicos, nacionais e religiosos.

“O que Resta do Tempo” é um filme com surpreendentemente poucos diálogos, Suleiman tem um estilo cômico que lembra o humor mudo de Buster Keaton ou Jacques Tati. E, como Keaton, seus personagens não sorriem. É fascinante como ele mostra a passagem de 60 anos por meio de pequenas mudanças, no cenário, no figurino, nos objetos em cena.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A Europa na Encruzilhada



A Grécia em greve geral e com conflitos nas ruas. A Espanha com desemprego acima de 20% e pânico nos mercados financeiros. Portugal rebaixado pelas agências de risco. O Reino Unido numa reviravolta eleitoral, com a perspectiva de um governo minoritário para enfrentar a recessão e com projeções de dívida pública ainda piores que as gregas. A Alemanha falando na Europa em tempo de encruzilhadas, com o futuro em jogo. São dias sombrios para a União Européia.

O pacote de ajuda da UE e do FMI à Grécia é o maior da história, mas corresponde a apenas 1/3 da dívida do país, e há questionamentos sérios se a conjuntura econômica será boa o suficiente nos próximos anos para permitir a retomada do crescimento grego. Martin Wolf, colunista do Financial Times, aponta outras contradições:

"Está se pedindo à Grécia que faça o que fez a América Latina na década de 1980. Aquilo resultou numa década perdida, e os beneficiários foram os credores estrangeiros. Além disso, uma vez que os credores estão sendo pagos para escapar, quem irá substituí-los? Esse pacote certamente não conseguirá trazer a Grécia de volta ao mercado em condições administráveis em poucos anos. Mais dinheiro será necessário se a reestruturação da dívida for, imprudentemente, descartada."

Wolf tocou num ponto importante - a semelhança do ajuste estrutural imposto à América Latina na década de 1980 com o pacote atual aceito pelo governo da Grécia sob fortes pressões da Alemanha. A reação da população grega foi feroz, com a decretação de uma greve geral, enfrentamentos com a polícia nas ruas e cenas que lembram eventos parecidos na política latino-americana: o Caracazo na Venezuela, a marcha dos mineiros na Bolívia, o levantamento indígena no Equador.

As autoridades alemãs e do Banco Central Europeu têm insisto no risco de contágio, que a crise grega se espalhe rapidamente por outras combalidas economias européias. A figura abaixo ajuda a entender esses medos. Os países mais problemáticos devem muito não só às nações mais ricas, mas também entre si. Por exemplo, se Portugal entrar em moratória, o efeito sobre a Espanha seria terrível.




Sair de uma crise assim seria difícil em qualquer circunstância, mas é ainda mais em função da rigidez do sistema monetário europeu. A adesão ao euro significa ganhos em termos de estabilidade e confiança, porque os governos se comprometem a jogar de acordo com as regras severas do Banco Central Europeu. Mas em contrapartida, abrem mão de flexibilidade e de possibilidades de escolhas em políticas públicas. Não podem promover desvalorizar o câmbio, para tornar suas exportações mais competitivas, nem emitir moeda.

A Alemanha tem se mantido rigorosa em condicionar a ajuda à Grécia a um programa amplo de reformas fiscais que requer que o governo grego mude as práticas clientelistas e irresponsáveis que adota, bem, desde que Péricles ajudou seu sobrinho Alcebíades a comandar a desastrosa expedição à Sicília que selou a derrota de Atenas na guerra contra Esparta. Com o risco da disseminação da crise, mais e mais membros da UE questionam a rigidez germânica. O ex-ministro das Relações Exteriores Joschka Fischer declarou ao New York Times: "Recentemente conversei com um grupo dos chamados jovens líderes alemães. De um ponto de vista pessoal e político eles não são mais investidores na Europa. Seu envolvimento se limita a serem consumidores da Europa." Será que a zona do euro se manterá intacta? Ou veremos países se retirando dela?

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Revendo o TNP



A conferência de revisão do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) começou segunda-feira em Nova York, em meio a um atentado terrorista frustrado em Times Square e poucas expectativas que os Estados Unidos consigam avançar em seus principais objetivos: obter apoio ampliado ao Protocolo Adicional e deter o programa atômico do Irã.

Isso ocorre porque a última década foi marcada pela proliferação nuclear de países que não são signatários do TNP (Índia e Paquistão) ou que o abandonaram (Coréia do Norte). Os países do Oriente Médio estão descontentes com a estagnação do projeto de transformar a região numa zona livre de armas nucleares. Embora temam o Irã, ressentem-se da aliança americana com Israel, que continua a desfrutar de apoio apesar de ter a bomba atômica e nunca ter assinado o TNP.

O governo Obama tem feito esforços significativos no campo do desarmamento. Conseguiu assinar o Novo START com a Rússia, o primeiro acordo do tipo em 20 anos, pelos quais os EUA reduzirão seu arsenal atômico de 5.100 para 1.500. Antes do TNP, o número chegara ao pico de cerca de 31.200. A conferência de segurança nuclear presidida por Obama implementou algumas medidas de controle de materiais sensíveis, basicamente para proteção contra terrorismo. Há possibilidades de que o Congresso dos Estados Unidos finalmente ratifique o tratado que proíbe testes nucleares (CTBT).



O Brasil tem se esforçado para que o Irã não seja submetido a sanções, e também se opõe ao Protocolo Adicional ao TNP. Esse instrumento, de caráter voluntário, foi criado em 1997 e estabelece inspeções bastante intrusivas, inclusive visitas sem aviso. Se aderissem a ele, as autoridades brasileiras teriam que ampliar o monitoramento de instalações como a Fábrica de Combustível Nuclear de Resende, centro da tecnologia própria de enriquecimento de urânio desenvolvida pelo país. A Agência Internacional de Energia Atômica tem acesso restrito ao local, para proteger os segredos industriais brasileiros.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O Primeiro Camus



Dias atrás li “O Primeiro Homem”, de Albert Camus, o romance autobiográfico que conta a história de um bem-sucedido escritor, Jacques Cormery, que na meia idade relembra sua infância pobre na Argélia. O livro estava inacabado quando Camus morreu num acidente de automóvel, e foi publicado postumamente. Nem parece: é uma pequena jóia e um testemunho sobre um mundo há muito desaparecido, o dos colonos franceses no norte da África.

O romance começa com Cormery visitando o túmulo do pai, morto na França na Primeira Guerra Mundial, quando ele era apenas um bebê. O protagonista percebe que é mais velho do que o pai, quando partira para a batalha, e a desorientação o leva a relembrar sua infância. A pobreza era rigorosa, e aumentada por aflições familiares: a mãe e o tio eram quase surdos, e pouco falavam. A casa era dominada pela avó, analfabeta e autoritária.

Era um mundo fechado, quase tribal, pouco conectado com o que acontecia ao redor. Cormery descreve a reação da mãe à deflagração da I Guerra Mundial: “ela não sabia história da França, nem o que era história. Conhecia um pouco da sua, e mal conhecia a das pessoas que amava... Dentro da noite do mundo, que não era capaz de imaginar, e da história, que ignorava, uma noite mais escura simplesmente acabava de se instalar.”

O que salva Cormery – e Camus – é a educação pública de qualidade, a principal conquista da III República Francesa. O menino se destaca na escola primária e conquista a admiração e afeto do professor, que o recomenda a uma bolsa de estudos para o ginásio e convence seus parentes a apostar em sua educação, em vez de forçá-lo a trabalhar para ajudar no sustento da casa. Camus dedicou o Prêmio de Literatura a esse professor, e a edição do livro contém as cartas que os dois trocaram após o seu “querido menino” ter sido laureado pela Academia Sueca. Diz o narrador do velho mestre que ele “lançara Jacques no mundo, assumindo sozinho a responsabilidade de arrancá-lo de suas raízes para que fosse em busca de descobertas ainda maiores.”



A ascensão social tem um preço alto para Cormery, pois sua vida se divide entre duas existências que não se tocam – o mundo dos livros e das aspirações despertadas pela escola, e a rotina familiar. A avó, por exemplo, não consegue entender os meses de férias aos quais o rapaz tem direito, pois ela havia trabalhado sem trégua desde menina. Cormery ganha consciência de quão pobre é sua família ao preencher uma ficha escolar onde anota a profissão da mãe: “empregada doméstica”. Ele tem vergonha, e se sente mal pelo sentimento.

Camus escrevia em meio à sangrenta guerra de independência da Argélia. Os rascunhos do romance contém apontamentos que indicam que ele abordaria o tema, por meio da amizade do Cormery de meia idade com ativistas favoráveis ao rompimento com a França. Mas esses trechos não chegaram a ser escritos, e o que ficou foi a prosa – magnífica – descritiva dos bairros populares de Argel, do anoitecer na África, das manhãs de sol à beira do Mediterrâneo, do prazer do futebol e das leituras. E também certa nostalgia pelo universo de sua infância, na qual brancos pobres conviviam de forma razoavelmente harmoniosa com os árabes, quase irmanados por suas posições subordinadas na sociedade colonial.