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quarta-feira, 13 de julho de 2011

Poder, Fé e Fantasia: os EUA no Oriente Médio



História é quando tudo inesperado em seu próprio tempo é registrado na página como inevitável. A história oculta o terror do imprevisto, transformando um desastre num épico.

Phillip Roth, escritor americano

O Oriente Médio tem sido importante para os Estados Unidos desde a criação do país. Conflitos com a região foram fundamentais para a expansão do poder militar do país e inspiraram símbolos nacionais como o hino e a Estátua da Liberdade. O próprio termo “Oriente Médio” foi inventado por um almirante americano. No entanto, tais relações são permeadas por desconhecimento, preconceito e atitudes irracionais, baseadas em fantasias ideológicas ou religiosas, que dificultam a formulação de políticas coerentes. Esses são os principais argumentos do excelente “Power, Faith and Fantasy: America in the Middle East, 1776 to the present”, do historiador e diplomata israelense Michael Oren.

A maior parte das análises sobre os EUA e o Oriente Médio concentra-se no período iniciado com a Segunda Guerra Mundial e a questão do petróleo, mas Oren defende de forma convincente que é necessário olhar as épocas anteriores. Na realidade, dois terços de seu livro abarcam os anos entre 1776 e 1939, e suas reflexões sobre os tempos contemporâneos deixam a desejar, talvez pela sua falta de objetividade: Oren é o atual embaixador israelense em Washington.

Ele se sai bem melhor tratando do passado mais remoto. Oren mostra como o envolvimento militar americano no Oriente Médio começou com ainda no século XVIII, com as guerras contra os piratas do Mediterrâneo, que operavam sob a proteção de governantes no Norte da África. A jovem república americana chegou a pagar 20% do seu orçamento anual em tributo aos bandidos, até chegar à conclusão que era necessário ter uma Marinha de guerra para defender seus interesses na região. O hino dos fuzileiros navais dos EUA começa falando nas “praias de Tripoli”, onde eles lutaram um de seus primeiros conflitos. Até hoje jogam bombas por lá, mas a retórica de condenação dos piratas bárbaros ao “cachorro louco” Kadafi é muito semelhante. A melodia do hino americano foi composta para essas guerras, mas depois ganhou a letra atual quando do confronto de 1812 com a Grã-Bretanha.



Ao longo do século XIX, a região ganhou em importância comercial e como importante local de atuação dos missionários americanos, que construíram não só igrejas, mas muitas escolas, universidades e hospitais como parte de seu esforço de evangelização. Acabaram criando fortes laços com elites locais, sobretudo cristãos (maronitas, ortodoxos, armênios etc) que viam nos EUA um aliado em reformas modernizadoras e como proteção aos impérios coloniais europeus. Isso ocorreu em especial no Egito e no Líbano. A Estátua da Liberdade havia sido pensada inicialmente como um símbolo das reformas egípcias, com auxílio dos técnicos e militares americanas. Foi nesse período que começou a tradição de usar judeus americanos como representantes diplomáticos no Oriente Médio, por supostas afinidades deles com a região. Os Estados Unidos também foram, desde o início, apoiadores importantes do movimento sionista.

O próprio termo “Oriente Médio” foi inventado pelo almirante americano Alfred Mahan, no fim do século XIX, para delimitar a área que vai do Marrocos até o Irã. Os europeus se referiam à região como “o Leste” ou “o Oriente”. Mas o conceito é elástico, hoje em dia é aplicado com frequência também ao Afeganistão e ao Paquistão, que no entanto não estão cobertos pelo livro de Oren.

Em todo caso, a destruição do Império Otomano após a I Guerra Mundial marcou a divisão da área pela Grã-Bretanha e pela França. Já comentei no blog sobre a decepção árabe com o presidente Woodrow Wilson, em particular no Egito, quando os nacionalistas descobriram que os princípios de autodeterminação dos povos não seriam aplicados fora da Europa. Na luta contra o Eixo, os americanos ocuparam Marrocos, Argélia e Líbia, mas em geral não foram saudados como libertadores, e sim tratados com cautela e desconfiança.



A descoberta das grandes reservas de petróleo e a recriação da Israel tem marcado a diplomacia americana no Oriente Médio desde a década de 1940, com o frequente envolvimento dos EUA nas ferozes disputas locais e traumas históricos como o golpe contra os nacionalistas do Irã, em 1953, a ocupação da embaixada americana em Teerã, na revolução islâmica de 1979, os atentados terroristas e sequestros contra os americanos no Líbano, na década de 1980, as duas guerras contra o Iraque e os conflitos sem fim que culminaram nos atentados de 11 de setembro de 2001.

Essa história está longe de terminar. E nada indica que ela ficará pacífica.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O Guerrilheiro Acidental



The Accidental Guerrilla” é o mais influente livro sobre assuntos militares publicado após os atentados de 11 de setembro de 2001 e as guerras do Afeganistão e do Iraque. Seu autor é David Kilcullen (foto), tenente-coronel do Exército da Austrália que assessorou autoridades dos Estados Unidos, como Condoleezza Rice e o general David Petraeus. É uma reflexão que busca entender a natureza dos conflitos assimétricos na Ásia.

Seu argumento: a maioria dos insurgentes que combatem os EUA na região são “guerrilheiros acidentais”, motivados por questões locais, basicamente a intromissão de estrangeiros em seus assuntos comunais. A dinâmica da “guerra ao terror” terminou por vinculá-los às redes terroristas internacionais, como Al-Qaeda e certas correntes entre os Talibãs, que são muito mais irredutíveis em seu ódio aos ocidentais. Para separá-los, Kilcullen propõe a mudança na estratégia de guerra, com contrainsurgência voltada para garantir a segurança da população, e não a destruição do inimigo. Inspirou o “surto”, a reviravolta americana no Iraque.

Kilcullen fez carreira no Exército australiano servindo em missões de paz na Indonésia, Timor Leste e em operações na África e no Oriente Médio. Doutorou-se em Antropologia sobre o impacto das insurgências em sociedades tradicionais, sobretudo os conflitos entre fundamentalistas islâmicos e culturas tribais. Pelo circuito acadêmico-militar, realizou rápida ascensão como consultor para o Pentágono e o Departamento de Estado. Os EUA simplesmente não tinham especialistas nesses temas, tendo praticamente abandonado a reflexão sobre contrainsurgência após a derrota no Vietnã. Agora, despontou nova comunidade que trata do assunto.

Seu livro começa com observações teóricas e dedica capítulos aos estudos de caso do Afeganistão e do Iraque. O ponto forte de Kilcullen é sua observação de campo sobre os costumes dos grupos étnicos (basicamente, redes familiares ampliadas) nos dois países. As tribos afegãs são mais igualitárias, mas as iraquianas têm hierarquias rígidas. Ambas as estruturas foram muito abaladas por décadas de guerra, ditadura, ocupações estrangeiras e as tribos aprenderam a negociar com os Estados, em padrões complexos de clientelismo, conflito, oposição e aliança.




Assim, os Talibãs se tornaram um movimentos dos pashtun – no Afeganistão e no Paquistão – para se impor sobre etnias rivais. Outros povos – Hazara, Uzbeques – com freqüência preferem apoio da OTAN. No Iraque, sunitas e xiitas travam uma feroz disputa sectária, mas certas tribos da primeira denominação, oriundas da província de Anbar, acabaram por se indispor com a Al-Qaeda, e mudaram de lado para apoiar os EUA.

A Al-Qaeda percebeu a importância das tribos e seus líderes procuram se casar com mulheres locais para se integrar às redes de solidariedade comunitária. Mas o puritanismo religioso dos fundamentalistas em geral entra em confronto com os costumes mais brandos das tribos, que podem incluir sunitas e xiitas. Outro estopim de divergência é o controle sobre lucrativos negócios ilegais, como contrabando e tráfico de drogas, tradicionalmente dominados pelos líderes tribais.

A estratégia proposta por Kilcullen é explorar tais divisões, e seu livro contém várias recomendações operacionais que foram aplicadas no Afeganistão e no Iraque, tais como patrulhas conjuntas entre os americanos e os locais, abandono de operações bruscas, como invadir casas em busca de suspeitos, esforços para construir a confiança com a população.

Já existe longa literatura sobre contrainsurgência, construída a partir de estudos sobre as guerras na Argélia e no Vietnã. “The Accidental Guerrilla” certamente entrará para o cânone dessas análises, mas com a cautela: os exemplos anteriores resultaram em fracassos bélicos. Em grande medida porque seus autores falham em encarar a amarga mensagem política de que, para os povos envolvidos, a maior medida de segurança pode muito bem ser a partida dos exércitos estrangeiros aos quais pertencem os escritores. Com todas as suas boas intenções.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Um Governo no Iraque


Rory Stewart tem uma vida impossível, que parece recortada de um folhetim de capa e espada do século XIX. Nascido em Hong Kong, de família escocesa, cresceu na Malásia, então colônia britânica, na qual seu pai militar combatia a guerrilha comunista. De volta ao Reino Unido, Stewart se destacou de tal modo numa escola privada de elite que o príncipe Charles o contratou como tutor de seus filhos. Cursou o mestrado em Oxford, serviu brevemente no Exército, e um pouco mais como diplomata, em postos na Ásia e nos Bálcãs. Obcecado por relatos de aventuras, tirou licença do Foreign Office para uma longa viagem a pé pelo Afeganistão em guerra, e também por trechos do Paquistão, Irã, Turquia, Bangladesh e Nepal. “Acidentes de trabalho: meu governo no Iraque” conta o que fez depois disso: trabalhar para a coalizão que invadiu o país, como vice-governador de duas províncias pobres do sul, Maysan e Dhi Qar.

Maysan é do tamanho da Irlanda do Norte, e tem com 54 partidos políticos, 20 tribos, e apenas mil funcionários britânicos e americanos para administrá-la. Área pantanosa, atrasada economicamente, foi um bastião da resistência xiita a Saddam Hussein. A história que Stewart conta não é tanto a da escassez de recursos financeiros - com frequencia havia mais dinheiro do que capacidade de gastá-lo - e sim a ausência de conhecimentos sobre a história, cultura e realidade do Iraque.



Stewart narra as dificuldades de lidar com as principais facções políticas da província: os diversos partidos xiitas, muitos deles próximos ao Irã, os xeques tribais em decadência, mas ainda fortes na zona rural, e uma série de oportunistas querendo dinheiro fácil da corrupção. A classe média liberal sonhada em Washington e Londres se restringia a meia dúzia de intelectuais, sem base de apoio e sem a massa de jovens desempregados, raivosos, e armados que podia lhes dar poder.

A situação foi ainda pior em Dhi Qar, onde Stewart se viu em meio ao estourar da guerra civil entre os iraquianos, que culminou no cerco e bombardeio de seu escritório, defendido de maneira precária e ineficiente por aliados italianos nada confiáveis. Sua conclusão, pessimista, é que os legados de Saddam Hussein e da história recente impedirão a consolidação da democracia no Iraque, resultando num governo autoritário, de forte influência religiosa, semelhante ao que existe no Irã atual.

O livro é extraordinário como relato de aventuras, mas deficiente no que toca à análise da política iraquiana. Parece haver uma curiosa ingenuidade em Stewart, de nunca discutir claramente seu papel como representante de governos que invadiram o país numa guerra com sérios problemas de legitimidade. Ele aparenta acreditar nos propósitos benevolentes dos britânicos em levar a democracia ao Iraque e se retirar o mais rapidamente possível. Também senti falta de depoimentos mais pessoais, sobre como lidou com solidão e medo durante os meses que passou no Oriente Médio.

Stewart abandonou as aventuras neo-coloniais. Passou alguns anos dirigindo uma ONG em Cabul para a reconstrução do Afeganistão e há poucos meses assumiu a coordenação do Centro de Direitos Humanos da Universidade Harvard.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Fora de Jogo



Um pouco mais sobre o futebol como maneira de driblar os obstáculos à participação na política. Já falei da China, agora é a vez do Irã.

Entre as vantagens de ser professor está o convívio com alunos inteligentes, que muito me ensinam. Tem sido constante nas turmas de relações internacionais a demanda de estudantes que querem discutir a situação das mulheres nos países muçulmanos. Uma das melhores monografias apresentadas neste ano tratou justamente de como o cinema iraniano aborda os direitos femininos. Minha aluna me presenteou com os DVDs das produções que analisou, como Persépolis e Fora de Jogo.

(Clique no link para ver o trailer de Fora de Jogo).

O segundo filme é uma ficção bem-humorada sobre um grupo de mulheres que tentam entrar num jogo importante para a seleção iraniana de futebol, as eliminatórias para a Copa do Mundo. Como a presença feminina é proibida nos estádios, elas se disfarçam de homens, mas são capturadas pela polícia e mantidas em detenção, fora de campo, enquanto ocorre a partida. Quase toda a trama se desenrola no cercadinho onde estão confinadas, nas conversas que mantêm entre si e com os guardas.

O filme é inspirado em fatos dolorosamente reais. Em 1997, o Irã voltou à Copa, pela primeira vez após a Revolução Islâmica. As ruas de Teerã foram tomadas por multidões que celebraram a conquista e em algumas áreas, em particular nas de classe média e alta, mulheres também comemoraram, com a cabeça descoberta, sem véus. Para horror total dos clérigos, a polícia se juntou à festa, em vez de reprimi-la. A revolta continuou dias depois, quando um grupo de mulheres rompeu as barreiras policiais e entrou à força no estádio nacional (ironicamente batizado de “Liberdade”), onde a seleção era recebida em glória. Temerosas de um conflito, as autoridades cederam, mas mantiveram as manifestantes numa área separada.

O futebol foi muito promovido no Irã do velho xá Reza Pahlevi, como símbolo de modernidade e adaptação do país às tradições européias, e até como um instrumento de socialização para os migrantes rurais que se mudavam para Teerã e outras grandes cidades, à medida que progredia a industrialização. A paixão pelo esporte permaneceu após a queda da monarquia, ainda que seu caráter cada vez mais globalizado cause embaraços aos aiatolás. Muitas estrelas da seleção jogaram em times internacionais, na Europa e na Ásia e o regime permitiu até a um estrangeiro treinar a equipe iraniana. Claro que foi um brasileiro: Valdeir Vieira, que comandou a campanha vitoriosa que culminou na participação na Copa.

Do outro lado da fronteira, também coube a um brasileiro, Jorvan Vieira, a a missão quase impossível de treinar a seleção iraquiana de futebol, no que sobrou do país após a guerra de 2003. O resultado foi uma conquista espetacular, a vitória na Copa da Ásia, superando obstáculos sérios – por exemplo, os sunitas não passavam a bola para os xiitas – e dando àquela sofrida nação um de seus poucos momentos de felicidade e união em anos recentes. Infelizmente, a equipe foi desmantelada pouco depois e não disputará o mundial de 2010.

As meninas de Fora de Jogo encontraram no futebol uma maneira de expressar seu desejo de ser aceitas como parte integral de sua sociedade, de ter direito a se divertir ao lado de seus amigos, namorados, parentes, maridos e filhos. Os membros da seleção do Iraque descobriram no esporte uma celebração que lançou pontes sobre anos de lutas fratricidas e lhes deu novo propósito comum. O futebol é tudo isso, uma maneira de passar uma tarde divertida e de aproveitar o que vida tem de bom. Também pode ser um modo de manipular paixões populares para fins espúrios, como sabem demagogos de sobra na Argentina, Brasil e Itália, ou mesmo de canalizar ódios raciais, sociais e religiosos na forma de torcidas organizadas.

Em 2010, a Copa será na África do Sul, democracia multiracial que simboliza a esperança africana em superar os problemas de sua trágica história colonial. Os jogos acontecerão num momento difícil para o país, em que ataques xenófobos contra imigrantes de outras nações africanas deixaram muitos mortos. Vai ser um mundial e tanto.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Blackwater



Atualmente há cerca de 180 mil mercenários na Guerra do Iraque, e apeas 160 mil militares dos Estados Unidos. Mal começamos a discutir as implicações da privatização dos conflitos bélicos, mas o jornalista Jeremy Scahill deu bela contribuição com seu livro “Blackwater – a ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo”. Mais do que o exame da empresa, é a crônica de lado pouco explorado da estratégia da “guerra contra o terror” do governo Bush.

Em 1991, no conflito no Golfo, menos de 10% do pessoal presente no teatro de operações pertencia a empresas privadas. O então secretário de Defesa (e atual vice-presidente), Dick Cheney, queria mudar o quadro e começou a assinar contratos para terceirizar diversas atividades das Forças Armadas, em particular aquelas ligadas à logística, como alimentação e limpeza. Esqueça a imagem do recruta Zero descascando batatas: esse tipo de serviço passou a ser executado por funcionários de grandes corporações, como Halliburton, da qual Cheney se tornou presidente após deixar o governo.

A tendência continuou no governo Clinton, mas explodiu com Bush filho, após o 11 de setembro, quando o escopo de atuação das empresas passou a abarcar também treinamento de militares e policiais (americanos e de outros países), segurança a autoridades governamentais e a executivos e até operações de inteligência. As atividades começaram nos Estados Unidos e logo se espalharam para as zonas de guerra no Afeganistão e no Iraque.

A Blackwater é apenas a maior e mais bem-sucedida de mais de 600 dessas empresas e tem a particularidade de que seus principais executivos não estão interessados só em bons negócios, possuem agenda política-religiosa. Seu fundador, Erik Prince, nasceu em milionária família de industriais, vinculados à extrema-direita evangélica. No entanto, ele se converteu ao catolicismo e serviu nas forças especiais da Marinha. Com a morte de seu pai, as empresas do grupo foram vendidas por US$500 milhões. Em 1996, Prince usou sua parte na herança para criar sua própria companhia, dedicada ao nascente e promissor mercado de serviços de segurança e treinamento policial e militar para governos e iniciativa privada.

O nome sombrio da Blackwater é uma referência às águas escuras dos pântanos da Carolina do Norte, onde está sua sede – impressionante complexo de treinamento que em muitos pontos é mais avançado até do que as instalações das Forças Armadas dos EUA. Recrutou funcionários entre militares veteranos, analistas da CIA e policiais. Muito se comenta sobre os profundos vínculos da família Prince com o Partido Republicano, mas a empresa obteve seus primeiros contratos públicos no governo do democrata Bill Clinton, quando ofereceu serviços de segurança que contrabalancearam os medos após o massacre na escola de Columbine e depois dos primeiros atentados de Bin Laden contra alvos americanos.

A principal tarefa da Blackwater no Iraque é garantir a segurança dos diplomatas americanos – a embaixada tem 3 mil funcionários (mais do que o dobro do Itamaraty brasileiro). Nenhum deles foi morto durante a ocupação do país, o que mostra a eficiência da empresa em cumprir sua missão. O problema são seus métodos, que levaram a pelo menos três grandes massacres de civis, em Bagdá, Fallujah e Najaf - áreas sunitas e xiitas. Além disso, a empresa, e os demais mercenários, não estão sujeitas nem às leis iraquianas, nem às americanas, num limbo jurídico que contribui para a impunidade e estimula a violência.

Os militares americanos se ressentem da ação da Blackwater e companhias semelhantes. Os mercenários recebem salários várias vezes maiores e, na visão de muitos oficiais nas Forças Armadas, sues métodos truculentos prejudicam o objetivo de longo prazo, de conquistar a confiança da população iraquiana. Ao mesmo tempo, a baixa quantidade de tropas no país só é possível porque as empresas privadas executam muitas tarefas de segurança, que de outro modo exigiram número bem maior de soldados.

Schahill trata a ascensão da Blackwater como ruptura absoluta com o passado no qual assuntos militares eram exclusivos do Estado. No entanto, essa é uma experiência histórica bastante recente, que no caso dos EUA corresponde ao fortalecimento do poder central no século XX.

Se recuarmos para períodos anteriores, podemos encontrar modos parecidos de dividir as tarefas do império entre Estado e iniciativa privada: as companhias de comércio das Índias, na Inglaterra e Holanda, os piratas dos séculos XVI a XVIII, os bandeirantes no Brasil, as milícias étnicas nos Bálcãs e na região dos Grandes Lagos da África, as unidades paramilitares do nazismo e do fascismo e muitos outros exemplos, a bem da verdade pouquíssimos edificantes no que diz respeito à civilização... Curiosamente, agora um acadêmico importante no círculo neoconservador, Max Boot, fala em criar uma versão americana da Legião Estrangeira da França, que se chamaria... Legião da Liberdade...

A Blackwater recruta bastante na América Latina, em particular no Chile e em El Salvador, países com veteranos militares experimentados em operações anti-guerrilha. Schahill conta em detalhes como a empresa atua na região, e mostra que ela paga salários bem mais baixos aos latino-americanos - chegou a acontecer até um embrião de motim por parte de alguns colombianos.

terça-feira, 18 de março de 2008

Cinco Anos de Guerra no Iraque



Nesta semana a guerra no Iraque completou cinco anos (já é mais longa do que a Primeira Guerra Mundial) e os principais jornais e revistas dos Estados Unidos deram destaque à data, com reportagens detalhadas sobre o assunto. A mais completa foi a da Newsweek que avalia entusiasmada a nova estratégia de contra-insurgência colocada em prática pelo general David Petraeus.

Petraeus assumiu o controle das tropas americanas e de seus aliados no Iraque em 2007 e tem conseguido resultados expressivos, ainda que controversos. Ele basicamente tem encorajado seus oficiais a trabalharam em parceria com as comunidades locais, passando bastante tempo com líderes de vizinhança e até mesmo negociando com antigos inimigos. A revista tem um excelente perfil de um capitão americano que liderou esforços assim no Iraque e no Afeganistão, chegando a subornar líderes insurgentes para tornarem-se aliados dos americanos. Naturalmente, a prática revolta muitos militares, que se indignam ao ver inimigos que mataram alguns de seus colegas agora trabalhando por salários pagos pelos Estados Unidos.

A Newsweek fala na “geração de Petraeus”, jovens oficiais veteranos do Iraque e do Afeganistão com mentalidade mais autônoma e independente, versados em contra-insurgência e com capacidade de lidar com assuntos políticos, negociações com líderes religiosos, etc. Esses capitães e majores teriam aprendido, “com freqüencia por contra própria, como operar com independência sem precedentes nas complexidades das culturas muçulmanas. Diante de governos centrais ineficientes, atuaram como prefeitos, mediadores, policiais, engenheiros civis, geralmente em ambientes devastados.”

Tenho minhas ressalvas com a apreciação elogiosa da revista. Petraeus tem, de fato, currículo brilhante: o general serviu nos EUA, Itália, Bélgica (OTAN), Bósnia, Haiti, Kuwait e Iraque, e ainda conseguiu tempo para cursar o doutorado em relações internacionais. Contudo, suas ambições políticas são bem conhecidas e especula-se que ele possa concorrer à presidência pelo Partido Republicano. A maneira com a Newsweek lhe dá crédito por uma série de iniciativas que foram criadas por muitas pessoas dentro do Exército reforça minha desconfiança de que estamos diante de uma campanha em construção. O governo Bush o tem favorecido nas lutas burocráticas, como a que levou à renúncia do almirante William Fallon, que encabeçava o Comando Central das Forças Armadas (responsável pelo Oriente Médio e Ásia Central) e queria mais tropas para o Afeganistão, que afirmava ser principal front da “guerra contra o terror”.

Na New York Review of Books, excelente artigo de Michael Massing trata do perfil dos recrutas do Exército, a partir dos relatos de veteranos do Afeganistão e do Iraque. Sua principal conclusão: “esses soldados se alistaram para escapar de empregos sem futuro, relacionamentos fracassados, famílias desestruturadas, contas, dores de dente e tédio. As Forças Armadas ofereceram um refúgio das lutas e tensões da América moderna, um lugar para ganhar segurança e habilidades profissionais, disciplina e auto-estima”.

Apesar dos atrativos, Massing informa que o Exército chegou a enfrentar um déficit de quase 7 mil recrutas em 2005, mas que conseguiu resolver o problema aumentando o número de recrutadores e os bônus pagos aos novos soldados. Contrariamente ao que pensava, o percentual de negros caiu muito – despencou de 23,5% (2000) para 13% (2006), devido à impopularidade da guerra entre esse grupo da população americana.

Os dados dizem respeito apenas aos soldados – os oficiais do Exército continuam a ser, majoritamente de classe média. Suas expectativas e frustrações foram tema de meu post anterior, vale acrescentar apenas o artigo de um jovem capitão no Washington Post, no qual explica porque está deixando as Forças Armadas, apesar de adorar a carreira militar: “Primeiro, estou prestes a me casar, e quero uma família. Segundo, posso ganhar um salário no mundo civil tão alto ou maior do que no Exército. E finalmente, minha experiência com a guerra me deixou irritado, frustrado e sem rumo.”

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Vieira de Mello no Iraque


Quando eu crescer, quero ser Samantha Power.

A moça é uma das melhores jornalistas do planeta, leciona em Harvard, é assessora de Barack Obama e acaba de escrever mais um livro, “Chasing the Flame: Sérgio Vieira de Mello and the fight to save the world”, que será lançado em fevereiro.

A New Yorker traz uma prévia: seu artigo sobre a trágica experiência de Vieira de Mello como representante da ONU no Iraque, que culminou com seu assassinato em agosto de 2003.

O texto é jornalismo de primeira qualidade. Samantha Power situa o contexto político quase impossível no qual Vieira de Mello teve que operar. Logo após a invasão do Iraque, o Conselho de Segurança aprovou a resolução 1483, que legitimou a ocupação americana do país e deu vaga cobertura para ação da ONU. Kofi Annan acreditou que era melhor do que nada e que se tratava de oportunidade urgente para lidar com a crise de credibilidade da organização.

Vieira de Mello acabara de tomar posse como Alto Comissário de Direitos Humanos e era a escolha óbvia, talvez única, para a missão. Ele tinha vastíssima experiência em lidar com crises humanitárias, refugiados e reconstrução nacional, tendo trabalhado em tarefas assim por 30 anos, em países como Moçambique, Bangladesh, Camboja, Chipre, Sérvia, Timor Leste. E nutria ambições de suceder Annan como secretário-geral. Ainda assim, não quis aceitar: preferia ficar em Genebra com a nova namorada. Annan o convenceu a assumir o cargo por apenas quatro meses e ele acabou concordando a contragosto.

Sua tarefa no Iraque era ser “algodão entre cristais” entre as forças de ocupação e a população local, ajudando na mediação para a formação de um governo provisório e eventuais eleições. Nas palavras de Annan para Vieira de Mello: “Temos que servir como um ponte para a Coalizão [os EUA e seus aliados] mas também teremos que nos distanciar da Coalizão”.

O brasileiro era famoso por seu carisma e foi descrito por um de seus amigos como “um homem que não sabe como fazer inimigos”. Alguns de seus colegas da ONU eram mais críticos e achavam que seu desejo de sempre agradar o levava a compromissos difíceis, segundo Samantha Power havia quem nas Nações Unidas o visse como “acomodado e amoral”, e no mundo árabe vários acreditavam que ele estava sendo usado pelos americanos.

Seu estado de espírito, compreensivelmente, não era dos melhores no Iraque. Samantha o descreve tendo períodos de reclusão e de depressão, evitando contato até com os membros de sua equipe. Um de seus amigos árabes assustou-se ao vê-lo falar na TV, ele parecia um administrador do país (como o que fora em Timor). Ele recomendou que Vieira de Mello procurasse mais contatos com a sociedade iraquiana, com as pessoas comuns no café.

Os problemas de segurança e de falta de infra-estrutura enfrentados pela ONU no Iraque já eram conhecidos, mas Samantha Power dá o tipo de informação que só um bom repórter consegue apurar, listando os erros e a imprudência quase inacreditável. Falhas que também se estenderam ao próprio Exército americano, que não contava sequer com os equipamentos básicos para resgate de vítimas de bombas – o material pertencente aos iraquianos fora saqueado no caos que se seguiu à queda de Saddam Hussein.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Iraque: Tomando Sopa com Faca


Nesta semana o tenente-coronel John Nagl anunciou que está deixando o Exército dos Estados Unidos. Sua decisão causou furor nos círculos especializados. Nagl é um dos militares mais respeitados e admirados do país, basicamente por seu trabalho como pensador de assuntos estratégicos.

Nagl é um Rhodes Scholar, ou seja, passou por um dos programas acadêmicos mais prestigiados dos Estados Unidos, e cursou doutorado na Universidade de Oxford, onde escreveu a tese “Learning to Eat Soup with a Knife: counterinsurgency Lessons from Malaya and Vietnam”. A escolha do Vietnã é óbvia, a da Malásia se explica porque os britânicos venceram uma ampla guerrilha comunista por lá, nos anos 50.

O militar havia servido no Oriente Médio na Guerra do Golfo, em 1991, e lutou no Iraque após os Estados Unidos invadirem o país em 2003. Depois disso, exerceu diversos cargos importantes como conselheiro político no Pentágono e foi um dos principais autores do novo manual de Contra-Insurgência do Exército americano, elaborado a partir da experiência dos combates recentes.

Nagl afirmou à imprensa que o Iraque lhe ensinou que ele nada sabe sobre contra-insurgência e resolveu deixar o Exército para se tornar pesquisador de um think-tank recém-criado, o Center for a New American Security.



Claro que a decisão de um oficial tão promissor coloca em questão a estratégia que os americanos implementam no Iraque. As estatísticas mostram que o desempenho das tropas melhorou bastante em 2007, mas a Economist chama a atenção para que a melhora é apenas relativa, diz respeito ao contraste com situação precedente, de desespero. Mais de 100 pessoas continuam a morrer na guerra, por semana, e o total de vítimas desde a invasão é estimado em 150 mil.

Ponto diretamente relacionado ao debate é o papel dos militares em tarefas de auxílio humanitário, reconstrução e cooperação para o desenvolvimento. Já escrevi neste blog sobre como o Pentágono assumiu tarefas crescentes na área, uma vez que após o 11 de setembro missões envolvendo atividades desse tipo no Afeganistão e no Iraque ganharam em importância.

Agora a maré começou a virar e analistas políticos como Matt Armstrong argumentam que a experiência no Iraque está ensinando que é melhor deixar a cooperação política a cargo dos civis. Traduzo trecho de seu interessante artigo:

“A militarização da ajuda humanitária reforça a imagem dos Estados Unidos militaristas e leva desconfiança às populações beneficiadas. Se os EUA só aparecem em botas de combate, os aliados tendem a não apoiar ou participar em missões que de outro modo seriam valiosas (...) Comandantes em combate têm procurado enfatizar a cooperação cívico-militar e maximizar a “face civil” do engajamento americano.”

Vários dos candidatos à presidência nos Estados Unidos têm destacado a necessidade de melhorar as políticas de auxílio ao desenvolvimento. Acredito que a reformulação dos órgãos do setor ocorrerá no próximo governo, e vale a pena acompanhar o debate.

domingo, 21 de outubro de 2007

Os Blogs na Guerra do Iraque



Os blogs são os novos atores da política internacional e já têm força suficiente para influir até mesmo no debate sobre a Guerra do Iraque. A edição atual da Military Review, editada pelo Exército dos Estados Unidos, traz excelente artigo sobre os blogs militares. O texto é da autoria da major Elizabeth Robbins, que trabalha como assessora de imprensa e professora para as Forças Armadas americanas.

Robbins defende os blogs militares como a “face humana” do Exército e louva sua capacidade de funcionar como elo de comunicação entre os soldados e uma sociedade que ela julga cada vez mais distante do cotidiano das Forças Armadas. Também elogia a capacidade dos blogs em fornecer uma válvula de desabafo emocional para pessoas em situações de tensão, como é obviamente o caso dos soldados servindo em guerras, em locais estranhos a sua cultura, como Iraque e Afeganistão.

É evidente que muito do que esses soldados têm a dizer pode ser embaraçoso, desagradável e mesmo perigoso para o Exército, desde fofocas sobre colegas de tropa até informações que comprometam a segurança de missões, ou mesmo denúncias de crimes cometidos pelas Forças Armadas. Robbins discute as melhores maneiras para censurar o material produzido pelos blogs militares, mas seu tom geral é que os benefícios superam os eventuais problemas.

Pouco depois de ler seu artigo, foi publicada a excelente entrevista que Elaine Guerini realizou com o cineasta americano Brian de Palma (outra do Valor, jornal do qual cada vez gosto mais). De Palma completou filme sobre o massacre de Mahmudiya, no qual cinco soldados americanos estupraram uma adolescente iraquiana e depois assassinaram ela, os pais e sua irmã caçula. Quem conhece a obra de De Palma percebe de imediato a semelhança com seu filme sobre o Vietnã, “Pecados de Guerra”. Todos os roteiros de atrocidades se parecem.

A novidade é que desta vez De Palma recorreu a muito material documental disponível na Internet, principalmente fotos, vídeos e blogs de soldados. Nas palavras do cineasta:

“Com a internet e as webcameras, os soldados agora fazem pequenos filmes sobre suas experiências no campo de batalha. Além daquelas mensagens protocolares do governo, anunciando como estamos fazendo progresso no Iraque, felizmente também temos acesso à verdade. A grande novidade nessa guerra é o fato de os soldados poderem se comunicar com o resto do mundo em tempo real. Eles estão na internet o tempo todo. Morrendo de tédio, acabam dando testemunhos, muitas vezes surpreendentes. Fiquei perplexo ao perceber que eles são os primeiros a contestar o ridículo discurso de que os Estados Unidos foram até lá para levar democracia ao povo iraquiano.”

Houve um tempo em que tarefas como essas eram desempenhadas pelos correspondentes de guerra e De Palma é bastante crítico em sua entrevista à acomodação da grande imprensa dos EUA com os atos de seu governo, em particular com a cobertura do que acontece no Iraque.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

A Guerra Latino-Americana no Iraque


Nas últimas semanas, a ação das empresas de segurança privada no Iraque ganhou enorme destaque na imprensa internacional depois de um massacre de civis em Bagdá cometido por mercenários. O que poucos sabem é que há muitos latino-americanos envolvidos no negócio, como analisa o ótimo artigo de Kristina Mani para a revista americana Foreign Policy. Segundo ela, 1/3 dos soldados privados no Iraque vêm do nosso continente.

O que explica o altíssimo índice de participação? Várias razões. Mão-de-obra qualificada – militares e policiais, muitos deles com experiência de combate no conflito colombiano ou nas guerras sujas do Cone Sul e da América Central. Desemprego e pobreza, que tornam atraente a possibilidade de um tour bem pago no Oriente Médio. Proximidade ideológica com os Estados Unidos. Por essas e outras, as grandes empresas do ramo, como Blackwater e Triple Canopy, recrutam extensamente no Chile, Peru, Colômbia, Nicarágua, Honduras e El Salvador.

O artigo não menciona o Brasil, mas está claro que as condições presentes entre os hermanos também são fortes por aqui. Conversando sobre o tema com meus alunos, eles brincaram que quando a Blackwater descubrir o BOPE, nunca mais sairá do Brasil. Ironia ou não, o irmão de um colega professor, oficial da Polícia Militar, está de malas prontas para a missão de paz em Darfur. A família é só alívio: acha que ele estará mais seguro em meio ao genocídio naquela região inóspita do Sudão do que nas incursões pelas favelas do Rio. O pior é que concordo, apesar da situação em Darfur continuar péssima.

A reação dos governos latino-americanos é um tanto ambígua. Muitos países centro-americanos apóiam a Guerra do Iraque e têm ajudado os EUA nas operações bélicas, alguns inclusive com tropas regulares. Outros, como o Chile, são contra e iniciaram debate sobre legislação para regulamentar a ação dos mercenários.



A discussão também acontece nos Estados Unidos, devido ao furor provocado pelos massacres recentes. Eu sabia da importância dos soldados privados no país, mas desconhecia que eles operam num limbo jurídico – não estão sujeitos nem às leis do Iraque, nem à legislação americana. Isso deve mudar: o Congresso dos EUA acabou de aprovar, por acordo bipartidário, projetos para impor algum controle sobre os mercenários.

Não é pouca coisa. Com o anúncio de que os britânicos irão se retirar do Iraque até o fim de 2008 (antes das eleições gerais de 2009, Gordon Brown não é bobo), provavelmente vai ser um peruano ou guatemalteco que ficará para apagar a luz dessa guerra estúpida.