segunda-feira, 30 de abril de 2012

Isto não é um Filme

Confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?

Rainer Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta

Na semana passada participei de dois debates sobre cinema e política no Oriente Médio. Na FGV, discuti com Monique Goldfeld o documentário israelense “Valsa com Bashir” (que resenhei neste blog), e no Cine Jóia, Thalita Bastos e eu falamos sobre o iraniano “Isto não é um Filme”. É uma excelente produção que nos diz muito sobre as novas possibilidades que a tecnologia dá aos artistas que precisam enfrentar ditaduras.

Jafar Panahi é um famoso cineasta iraniano que foi condenado pelas autoridades da República Islâmica a ficar 20 anos (!) sem dirigir ou escrever filmes. Ele também corre o risco de ir para a cadeia, onde esteve por um processo anterior. O governo o proibiu de deixar o país, pelo medo que se torne uma influência internacional importante contra o regime autoritário. No passado, Panahi estaria num beco sem saída, mas o avanço tecnológico o permitiu driblar a censura. Com a ajuda de um amigo, Mojtaba Mirtahmasb, uma câmera portátil, e um celular, ele realizou o documentário “Isto não é um Filme”.

As filmagens foram feitas no dia do ano novo iraniano, no elegante apartamento do cineasta, em Teerã e consistem basicamente de duas longas conversas. A primeira é entre os dois amigos. Panahi começa tentando narrar um filme que tem em mente, sobre uma moça do interior que vai à capital estudar Artes. Mas ele se emociona e desiste: “Para que contar um filme quando se pode filmá-lo”. Os dois então falam sobre o processo judicial que o cineasta enfrenta, revêm em DVD trechos de suas obras mais famosas e trocam lembranças e observações sobre a dependência dos diretores com o Estado islâmico.

A segunda conversa é entre Panahi e um rapaz pobre, o cunhado do porteiro de seu edifício, que está substituindo o parente naquele dia. Ele é do interior, vive de vários biscates e cursa o mestrado em Arte – uma trajetória bastante parecida com a da personagem do filme que o diretor queria rodar. Conta que não tem esperança de conseguir emprego fixo, mesmo quando terminar a pós-graduação e os dois lembram da noite em que o cineasta foi preso pela primeira vez.

“Isto não é um Filme” tem pontos em comum com outras belas produções iranianas, como “A Separação”, “A Onda Verde” ou “Persepolis”. É um retrato tocante das aspirações democráticas de boa parte da população do país, uma crônica das desigualdades sociais e das expectativas frustradas e uma obra de arte que emociona e faz pensar. A produção foi contrabandeada para fora do Irã em um pen drive escondido dentro de um bolo e fez sucesso internacional. O Festival de Cannes, que a exibiu pela primeira vez no exterior, abriu uma petição online pela libertação do cineasta.

A propósito: tivemos excelente debate no Cine Jóia e a gentilíssima direção local me ofereceu o espaço para outros eventos semelhantes. Penso em fazer uma seção sobre a brilhante nova geração de cineastas da Turquia, ainda pouco conhecida no Brasil. Sugestões de vocês são bem-vindas.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Futuro do Poder

O cientista político Joseph Nye Jr. sintetiza neste ótimo livro três décadas de reflexão sobre as diversas manifestações do poder nas relações internacionais, incorporando sua experiência como professor em Harvard e em funções de dirigente no Departamento de Estado, no Pentágono e no Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos. Nye chama a atenção para os aspectos mais brandos do poder, mas preconiza a combinação de todos os seus elementos para a política externa americana, em um mundo que ele vê como o de uma transição suave e limitada de influência para potências emergentes, numa era de “poder com outras nações, e não simplesmente sobre outras nações”.

(...)

Embora “poder” seja uma das palavras mais utilizadas pelos teóricos de Relações Internacionais, há surpreendemente poucas discussões sobre os diversos significados do termo. Nye utiliza três deles: 1) Mudar o comportamento de alguém (ou de um país) contra suas preferências iniciais; 2) Controlar a agenda de possibilidades a serem escolhidas por um determinado ator social; 3) Criar, moldar ou influenciar crenças, percepções e interesses.

A partir desse capítulo teórico – muito claro e bem explicado – Nye examina como três tipos de poder – militar, econômico e brando – se relacionam com essas definições. É uma discussão bastante marcada pelas guerras de contrainsurgência do pós-11 de Setembro, nas quais classificações convencionais de força mostraram-se inadequadas. Como afirma um guerrilheiro talibã citado no livro: “Vocês têm os relógios, mas nós temos o tempo”.

O resto, na resenha que escrevi para o Amálgama.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O Adversário de Obama

As primárias do Partido Republicano para escolher seu candidato à Presidência dos Estados Unidos arrastaram-se por cerca de um ano e foram lideradas por 11 pessoas diferentes. Com a desistência do ex-senador Rick Santorum no dia 10 de abril, a vitória sofrida e tardia deverá ser do empresário e ex-governador de Massachussets, Mitt Romney, cujas posições políticas moderadas foram ridicularizadas pelas alas conservadoras do partido, ouriçadas pelo fenômeno do Tea Party. À frente de um partido fragmentado, Romney tem a difícil tarefa de vencer Barack Obama na disputa pela Casa Branca. As pesquisas dão de 7 a 10 pontos percentuais de vantagem para o presidente, apesar da persistência da crise econômica.

Romney representa a corrente centrista dos republicanos, tradicional na Costa Leste dos Estados Unidos. Seu pai seguia a mesma linha política e governou o estado do Michigan, nos Grandes Lagos. A família pertence há várias gerações à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, uma denominação protestante que surgiu na década de 1820. Conhecidos como mormóns, os fiéis seguem os ensinamentos de seu profeta Joseph Smith Jr, abstêm-se do álcool e realizam intenso trabalho missionário – o próprio Romney exerceu essa função na França.

(...)

O Tea Party saiu-se bem nas eleições legislativas de 2010, com muitas declarações de apoio de deputados e senadores republicanos. Porém, o movimento sofreu sério desgaste nos conflitos envolvendo a elevação do teto da dívida pública dos Estados Unidos. Sua intransigência em aceitar acordos foi reprovada pela maioria dos eleitores, acostumados a compromissos com relação a esse tema.

Além disso, os pré-candidatos presidenciais simpáticos ao Tea Party saíram-se mal nas primárias presidenciais, demonstrando dificuldade de converter os slogans radicais do grupo em propostas de políticas públicas atraentes para os eleitores moderados que são fundamentais na conquista da Casa Branca. O dilema republicano é difícil: conciliar o fervor ideológico das bases com o centrismo necessário para ganhar uma eleição majoritária.

O resto, no artigo que escrevi para a Revista Pittacos.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A Vitória de Le Pen

O primeiro turno das eleições presidenciais da França foi realizado ontem com duas surpresas: um comparecimento eleitoral bastante acima do que era esperado (em torno de 80%) e o excelente desempenho de Marine Le Pen (foto), que com 20% teve o melhor resultado da extrema-direita na história francesa – dobrou o percentual de seu pai na última disputa. Como era previsto pelas pesquisas, o candidato socialista, François Hollande, venceu o primeiro turno com 28,3%, um pouco à frente do presidente Nicholas Sarkozy, que teve 25,8%.

Desde o princípio da crise na União Européia, os eleitores – ou as instituições internacionais – têm afastado os partidos que estavam no poder, fossem eles de centro-esquerda (Espanha, Portugal, Grécia, Reino Unido) ou de direita (Itália). Contudo, a França pode ser uma exceção. A votação de Le Pen a coloca como uma aliada decisiva para Sarkozy e ela já se anunciou como a única “oposição real” à esquerda. Como seu desempenho foi acima dos 17% que lhes creditavam as pesquisas – o mesmo havia ocorrido com seu pai em 2002 – é preciso olhar com ceticismo as sondagens que davam vitória folgada a Hollande no segundo turno, e aguardar novas investigações.

Desde o início da década de 1980, no governo de François Mitterand, o Partido Socialista da França abandonou seu programa histórico, centrado numa forte ação do Estado na economia e nas políticas redistributivas, e adotou uma ideologia mais centrista, na qual as políticas públicas estão mais presentes como maneira de compensar os desequilíbrios mais intensos do sistema. Mais ou menos na linha dos trabalhistas britânicos ou dos sociais democratas alemães, embora com maior peso ao Estado, como é tradição francesa desde os tempos de Luís XIV. Hollande é um tecnocrata, a quintessência desse programa moderado e um homem tão esforçado em aglutinar consensos que com frequência é considerado tedioso por seus próprios eleitores.

A polarização sócio-econômica na França aumentou com a crise e o país já vivenciou nos últimos anos explosões de ódio e violência na periferia das grandes cidades, onde há tensões raciais com os imigrantes e o índice de desemprego entre os jovens chega a 40%. Acreditava-se que esse seria parte do sucesso do candidato da extrema-esquerda, Jean-Luc Mélenchon, mas ele teve somente 11% dos votos, bem menos do que os 15% que lhe davam as pesquisas. Quem conseguiu canalizar a raiva e a angústia dos franceses foi Le Pen, inclusive entre os jovens, grupo que seu pai nunca conseguiu atrair. Sem dúvida, os recentes atentatos em Toulouse, cometidos por um terrorista muçulmano, contribuíram para isso.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Os Dominós Democráticos na África

Há poucas semanas escrevi neste blog sobre o golpe no Mali e uma série de colapsos democráticos na África Ocidental, envolvendo também Níger, a guerra civil na Costa do Marfim e a crise política no Senegal. Infelizmente a situação piorou, com a deposição do governo da Guiné-Bissau em mais uma intervenção militar na política africana. O país está no segundo turno da eleição presidencial, após a morte (por causas naturais) do ex-mandatário, em janeiro. O presidente interino e o principal candidato ao cargo estão desparecidos.

Mali e Senegal são – ou eram – bastiões de estabilidade na região e as crises nesses países surgiram como ilustração de uma tendência preocupante: se até eles enfrentam problemas sérios, o que dirá das outras nações. A Guiné-Bissau é um caso extremo de instabilidade. Desde a independência de Portugal, em 1975, nenhum de seus presidentes conseguiu completar o mandato. Nos últimos três anos, houve seis assassinatos de dirigentes políticos, civis e militares. É um Estado muito frágil e que se transformou em um problema de segurança internacional, pois vem sendo usado com frequência por traficantes que levam drogas da América Latina para a Europa.

A Economist publicou um excelente quadro da democracia na África – do qual foi extraído o mapa abaixo - no qual afirma que a situação das liberdades civis e políticas é um “copo meio cheio”, com avanços consideráveis no Cone Sul e em países como Tunísia, Gana e Benin. É uma interpretação válida, mas a meu ver a conjuntura é mais sombria e exige atenção aprofundada pelos desdobramentos internacionais das crises domésticas.

No Mali, o caos político resultante do golpe favoreceu os rebeldes beduínos no norte do país, que proclamaram um Estado independente. A organização sub-regional da África Ocidental, Ecowas, ameaçou com uma intervenção militar contra os golpistas, pressionando por um acordo político, mas o desfecho da crise ainda não está claro.

Os golpistas na Guiné-Bissau também enfrentam resistência da Ecowas, e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa manifestou-se duramente contra o golpe. O Brasil, aliás, acordou com os Estados Unidos patrulhas navais conjuntas próximas ao litoral do país, para combater a pirataria.

No Egito, os passos iniciais da disputa presidencial estão confusos e turbulentos, como era de se esperar. O ex-chefe da polícia política da ditadura Mubarak, general Osmar Suleiman, lidera as pesquisas e a junta militar que governa o país tem vetado as candidaturas dos principais concorrentes – inclusive a do próprio Suleiman, vista mais como uma ambição pessoal do que como a representação dos interesses das Forças Armadas.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A Batalha pelo Petróleo na Argentina

A presidente Cristina Kirchner enviou ao Congresso da Argentina um projeto de lei para tornar a empresa petrolífera YPF novamente propriedade do Estado, como ela havia sido de sua fundação em 1922 até a privatização em 1993. A decisão ilustra os constantes embates argentinos entre modelos de desenvolvimento nacionalistas e liberais e a má relação do país com os investidores externos desde a crise de 1998-2002.

A comparação com o Brasil é esclarecedora. A partir da Revolução de 1930 os diversos governos brasileiros adotaram uma estratégia de desenvolvimento na qual o Estado teve papel central. Nos anos 1990 houve inflexões liberais nesse moodelo, mas suas principais instituições permaneceram. O petróleo foi nacionalizado na década de 1950 e até hoje está sobre controle estatal, embora não mais como monopólio. A Petrobras é a maior empresa da América Latina e uma peça-chave para políticas públicas de desenvolvimento, inovação tecnológica e até incentivo à cultura.

O nacional-desenvolvimentismo na Argentina foi sempre mais frágil do que no Brasil e nunca conseguiu se estabilizar em instituições que lhe transformassem em política de Estado. Governos liberais com frequência reverteram decisões de presidentes nacionalistas e o setor petrolífero foi particularmente sensível a esse tipo de confronto. A YPF teve importante papel nos esforços argentinos de crescimento, mas nem de longe alcançou a influência e o prestígio da Petrobras.

A guinada liberal da Argentina na década de 1990 foi bem mais profunda do que a do Brasil. A YPF foi privatizada pelo presidente peronista Carlos Menem (a então deputada Cristina Kirchner, do mesmo partido, votou a favor) em sua campanha de tornar a Argentina a grande vitrine das reformas do Consenso de Washington. O Estado manteve 20% das ações da empresa.

Desde sua chegada à presidência em 2003, os Kirchner têm revertido a liberalização econômica dos anos 90 e reestatizado diversas empresas, do abastecimento de água (Suez) às Aerolíneas Argentinas. Havia tensões crescentes da Casa Rosada com a YPF, envolvendo esforços para aumentar o peso dos empresários argentinos na companhia. Houve também, claro, a renegociação da dívida externa em termos muito desfavoráveis aos credores. Isso fez com que os investidores estrangeiros ficassem relutantes com o país, temerosos das mudanças abruptas no marco regulatório. A Argentina tem recebido menos investimentos não só do que o Brasil, mas também do que a Colômbia e o Chile.

A Espanha é um dos maiores investidores estrangeiros na Argentina e desde 1999 a YPF era controlada por uma empresa espanhola, a Repsol. Pelo projeto de renacionalização, o governo argentino passará a deter 51% das ações da YPF o que significará a necessidade de acordos e negociações com os sócios privados. A Repsol anunciou que irá recorrer a tribunais internacionais para acordar uma indenização bilionária (o governo argentino ainda não disse quanto irá pagar pela nacionalização) e as autoridades espanholas criticaram a decisão argentina, classificando-a como “tiro no pé”.

Para o Brasil, o ressurgimento de uma estatal petrolífera assertiva na Argentina também trará dificuldades para a Petrobras, bastante ativa no país vizinho.

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Os últimos dias foram bastante intensos para mim em termos de entrevistas. Os links:

- Nacionalização da YPF (Globo News)

- Ofensiva de Primavera dos Talibãs (Globo News)

- Cúpula de Cartagena mostra divisão entre Estados Unidos e América Latina (Agência France Presse)

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A Cúpula das Américas e a Guerra Contra as Drogas

A Cúpula das Américas foi marcada pelo habitual conflito com relação a Cuba (latinos a querem no evento, Estados Unidos recusam), e pela comédia pastelão dos agentes secretos americanos mandados para casa após orgias com prostitutas. Para além das manchetes, a história de fundo é mais importante e mais interessante: as nações do hemisfério rejeitaram a doutrina de guerra às drogas e estão em busca de alternativas que envolvem descriminalização ou despenalização do consumo.

A América Latina tornou-se o front principal da guerra às drogas na década de 1970. Os países andinos (Bolívia, Colômbia, Peru) são os maiores produtores de cocaína do mundo, e exportam o produto sobretudo para os Estados Unidos. O México e alguns países da América Central e do Caribe são importantes como corredores de escoamento da droga para o mercado americano. A política americana tem sido a de lidar com o problema tentando erradicar, ou ao menos diminuir, a produção e o envio de cocaína.

Isso falhou. O gigantismo da tarefa em geral significou um jogo de “enxugar gelo”: quando a produção diminuía num país, aumentava no outro. Houve esforços americanos de políticas de desenvolvimento agrícola alternativo, para estimular os camponeses andinos a plantar palmito ou milho em vez de folha de coca, mas os preços desses produtos nunca foram competitivos, mesmo com acesso facilitado ao mercado dos Estados Unidos. E as medidas nunca abordaram questões estruturais, como a falta de reforma agrária.

A folha de coca não é cocaína, é um cultivo tradicional dos índios andinos, usado há milênios. Mas a indústria da droga criou uma poderosa demanda e estima-se que de um terço a metade da produção seja usada na fabricação da cocaína. É difícil separar os usos legítimos dos criminosos e a instransigência deu parcos resultados. A repressão aos cocaleiros gerou forte reação social e foi um dos fatores que levou Evo Morales à presidência da Bolívia. Ele reivindica que a coca seja retirada da lista de substâncias proibidas pela ONU e se isso acontecesse poderiam surgir nichos interessantes para mercadorias baseadas na folha, como pastilhas ou bebidas – como era a praxe até a década de 1920.

A rejeição da guerra às drogas ganhou força em muitas correntes políticas, como na Comissão Global que reúne ex-presidentes como Bill Clinton, Fernando Henrique Cardoso e Cesar Gavíria (Colômbia) e em declarações como a do general Pérez Ospina, atual presidente da Guatemala e ex-comandante do serviço de inteligência do país. As nações da América Central são hoje as mais violentas do mundo, por uma combinação de razões que incluem de modo decisivo o tráfico de drogas. Outra fonte importante é o excelente documentário "Quebrando o Tabu", dirigido pelo cineasta brasileiro Fernando Grostein Andrade. Como o jornal de humor The Onion observou, "as drogas venceram a guerra contra as drogas"

O diagnóstico do fracasso é mais consensual do que a decisão sobre o que colocar no lugar, mas as políticas bem-sucedidas na região apontam para abordagens como as de polícia comunitária e uma perspectiva de coordenação entre diversas políticas públicas num mesmo território. O caminho é longo e complexo.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Xingu

O filme de Cao Hamburguer é um épico sobre os esforços dos irmãos Villas Boas (Cláudio, Orlando e Leonardo) em desbravar o Centro-Oeste do Brasil e posteriormente em criar um parque nacional para proteger as tribos indígenas com as quais entraram em contato. É uma espécie de faroeste político no qual o principal campo de batalha é o Estado, retratado como a única instituição capaz de mediar os diversos interesses que se enfrentam no Xingu – e ocasionalmente surgir ele mesmo como ameaça.

O filme começa com os irmãos se juntando à expedição Roncador-Xingu, na década de 1940, por espírito de aventura. Em plena Era Vargas e durante a Segunda Guerra Mundial, o Estado queria mapear o território, construir pistas de pouso e criar a infraestrutura que lhe permitisse gerir aquela vasta região, maior do que muitos países europeus. Em muitos aspectos era a continuação do trabalho iniciado pelo marechal Candido Rondon, que havia instalado as linhas de telégrafo no extremo-oeste e começado seu crucial trabalho em prol dos índios. Os irmãos Villas Boas foram chefiados por ele, mas o marechal, infelizmente, só é citado rapidamente no filme.

A primeira parte do enredo trata dos contatos iniciais da expedição com as tribos do Xingu, e seu extremo cuidado para dialogar com eles e estabelecer relações pacíficas. Eles são bem-sucedidos, mas descobrem que sua própria presença por ali traz consequências devastadoras: doenças mortais para os índios, como a gripe, e a abertura da região para pecuaristas e fazendeiros, que começam a matar para se apoderar das terras recém-abertas para a agricultura.

A partir, os irmãos iniciam articulações políticas com o governo federal e as Forças Armadas, negociando apoios para proteger os índios e o território – em troca de ajudar a contruir uma base militar na Serra do Cachimbo, os irmãos conseguem a promessa oficial da criação de um parque indígena. A cena em que Jânio Quadros se compromete com o projeto é antológica.

A parte final do filme é dedicada ao processo de implementação do parque, com as tensões que nascem entre os irmãos, as críticas e ameaças que sofrem dos grupos econômicos contrariados pelo projeto e seu empenho em levar para o território protegido tribos indígenas dispersas pelo Oeste e Norte do Brasil – necessidade acelerada quando o governo resolve construir a rodovia Transamazônica.

Não há menção no filme ao projeto da usina de Belo Monte, a obra pública mais controversa do Brasil de hoje, que ocorre justamente no rio Xingu. Mas este longa faz pensar nos modelos de desenvolvimento e nas abordagens experimentadas para lidar com as populações indígenas e ribeirinhas, e nas dificuldades em que sejam beneficiadas pelos grandes projetos governamentais. Vale ler também a crítica de Ivana Bentes ao filme: ela gostaria que houvesse a incorporação da cultura indígena à narrativa. É um bom ponto.

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Minhas entrevistas dos últimos dias:

Visita da presidente Dilma aos Estados Unidos (New York Times)

Brasil, Estados Unidos e América Latina, às vésperas da Cúpula das Américas (France Presse)

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Reagan e Thatcher - uma relação difícil

Este livro do historiador britânico Richard Aldous, recém-publicado no Brasil, é um ótimo panorama de uma relação pessoal mais conflituosa e contraditória do que em geral se supõe. O autor argumenta que ela não atingiu a profundidade das ligações entre Roosevelt e Churchill e que os governos americanos e britânicos discordaram bastante durante o período de Ronald Reagan como presidente (1981-1989) e de Margaret Thatcher como primeira-ministra (1979-1990) em temas como a União Soviética, as guerras nas Malvinas e em Granada, o controle de armas nucleares e contratos de compra e venda de armamentos. Clique neste link para ver a entrevista do autor à Globo News.

Reagan e Thatcher eram ambos outsiders nos meios conservadores anglo-americanos, que custaram a ser levados a sério por seus pares devido às suas origens profissionais esociais (ator de filmes B, para Reagan; uma mulher da baixa classe média do interior para Thatcher). Uma vez no poder, levaram seus partidos a se afastarem do que havia sido o consenso keynesiano do pós-Segunda Guerra Mundal, em nome de uma reafirmação das práticas liberais. Curiosamente, ambos haviam identificado seu potencial mútuo de liderança ainda em meados da década de 1970, quando poucos acreditavam que um dia comandariam seus países.

Apesar da semelhança ideológica, as personalidades eram muito diferentes. Thatcher era cerebral e analítica, orgulhosa de sua formação acadêmica em química e direito, e cercada de intelectuais. Reagan, intuitivo e emocional, embora Aldous destaque algo que poucos observam: o presidente era um leitor compulsivo e profundo, em particular de história. desde seus dias como ator (Kissinger notou o mesmo). Contudo, as razões de suas fricções não foram tanto suas características individuais, mas os interesses nacionais distintos a as posições diversas de seus países na política internacional.

Na década de 1980, os Estados Unidos passavam por uma fase de prosperidade econômica e com uma política externa mais assertiva, aumentando os gastos militares para colocar a União Soviética na defensiva e voltando a intervir em pequenos países, de maneira direta (ilha de Granada, Líbia) ou financiando opositores armados locais (Nicarágua). O Reino Unido enfrentava uma situação econõmica mais difícil e as medidas de Thatcher eram impopulares, pelo menos até a vitória nas Malvinas. Os britânicos mostravam-se preocupados com as ações e a retórica de Reagan e queriam que os EUA agissem de modo mais discreto, preferencialmente em fóruns colegiados, como o G-7 e a OTAN.

Os dois governos encaravam Gorbachev como um líder soviético “com que é possível fazer negócios”, nas palavras de Thatcher, mas os britânicos se inquietavam com os discursos de Reagan, por vezes impetuosos (“império do mal”, “comunismo vai para a lata de lixo da história” “derrube esse muro, sr. Gorbachev”), por vezes descolados da realidade (eliminar todas as armas nucleares) e defendiam posições mais moderadas, amparadas por fortes aparatos de dissuação militar.

Curiosamente, os dois aliados resistiram às guerras promovidas pelo parceiro da “relação especial”. Os EUA não gostaram da disposição britânica em enfrentar os argentinos nas Malvinas, e propuseram soluções negociadas que envolveriam tropas da ONU nas ilhas. No Reino Unido, a decisão americana de invadir a ilha caribenha de Granada foi recebida com preocupação – temiam os efeitos no resto da América Latina – e Thatcher ficou enfurecida por ter sido apenas informada, e sequer consultada, sobre a guerra.

Outra razão de fricções entre os dois governos foram contratos militares. Para decepção britânica, empresas do país perderam vendas lucrativas para rivais franceses, que ofereciam preços mais baixos. Aliás, um dos elementos provocadores do livro é insinuar que em diversos momentos o presidente socialista da França, François Mitterand, teve relações mais próximas com os EUA do que sua contraparte conservadora no Reino Unido.

Para além do excelente estudo de caso, Aldous também mostra em detalhes como funciona a “relação especial” EUA-Reino Unido, com os fortes simbolismos envolvidos, da presidência à família real britânica, a ênfase em situações de intimidade, como visitas a casas de campo e passeios entre os chefes de Estado e o jogo de fascínio e estranhamento mútuo entre os dois países.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Dilma e Obama: em busca de novas regras para o jogo

A Agência Lusa (Portugal) publicou nesta sexta entrevista comigo a respeito da viagem da presidente Dilma Rousseff para os Estados Unidos. Gostei muito da reportagem e reproduzo o texto abaixo, está melhor organizado do que eu mesmo seria capaz de escrever:

A Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, viaja na segunda-feira para os Estados Unidos, num momento em que Washington saúda o crescimento da economia brasileira, apesar das discordâncias em temas cruciais da agenda internacional.

«Há um entusiasmo nos EUA em relação ao que está acontecendo hoje no Brasil, principalmente em termos económicos. Mas eles ficam confusos, muitas vezes irritados, quando o Brasil age de maneira contrária aos seus interesses em temas internacionais», afirmou à Lusa o cientista político Maurício Santoro.

A recente declaração de Dilma Rousseff de que o «tom» com o Irão precisa ser modificado, bem como a rejeição brasileira a uma intervenção militar na Líbia e na Síria, estão entre os temas que deixam os americanos «confusos», de acordo com o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

«Os EUA não conseguem entender que, embora o Brasil tenha essa semelhança muito grande com eles, ainda é um país em desenvolvimento e não uma superpotência. Portanto, a maneira como o Brasil vê o mundo é bastante diversa daquela que se observa nos EUA», compara Santoro.

Os interesses de um país em desenvolvimento - somados à crise mundial que afectou parte de seu mercado consumidor externo – fizeram com que o governo brasileiro perceba os países do Médio Oriente como uma oportunidade económica, enquanto, para os Estados Unidos, se trata de uma questão de segurança nacional.

«Estamos num momento em que as normas internacionais estão sendo ‘rediscutidas’. O que for decidido em relação à Síria ou ao Irão terá um peso muito maior do que simplesmente o destino desses dois países. Irá pautar muito da agenda internacional nos próximos anos», afirma Santoro, ao explicar por que estes temas são defendidos com tanta firmeza pelo Brasil.

Já em termos económicos, enquanto o Governo de Barack Obama olha para o Brasil e sua crescente classe média consumidora com «entusiasmo», o Governo de Dilma Rousseff está atento às possibilidades de cooperação na área de inovação e tecnologia.

Após mais de um século como o principal parceiro económico do Brasil, os Estados Unidos perderam o posto para a China, em 2009. Isso fez com que, já em março de 2011, a visita do Presidente Obama a Brasília fosse vista como uma tentativa de retomar essas relações.

Do lado brasileiro, a maior preocupação está no aumento excessivo do peso dos produtos primários na sua agenda de exportações.

«O produto que o Brasil mais exporta hoje para os EUA é petróleo. E essa tendência é perigosa, porque o preço das ‘commodities’ oscila muito», pondera Santoro.v Para o especialista, uma das medidas brasileiras mais efectivas na direcção de tentar contornar esse quadro é o programa estatal «Ciência Sem Fronteira».

«É uma maneira relativamente barata de como os dois países podem trabalhar juntos, num projecto de cooperação, que servirá para qualificar a sociedade brasileira», analisa.

A prova de que o crescimento económico do Brasil desperta o interesse do gigante norte-americano está no anúncio de facilitação de vistos para os brasileiros, feito no final do ano passado pelo próprio Obama.

«Não foi à toa que quando o Obama anunciou as medidas de facilitação de vistos, ele fez isso em frente ao castelo da Cinderela, na Disney. Se a Florida fosse um país, seria o principal parceiro económico do Brasil. Além disso, hoje, os turistas brasileiros são os que mais gastam em Nova Iorque», destaca.

A melhora das relações bilaterais, no entanto, embora espelhadas em sólidos factores, como o crescimento económico brasileiro e políticas públicas bilaterais, possui um «tecto» - avisa Santoro.

«Há uma tentativa do governo brasileiro de melhorar essa relação que esteve muito deteriorada nos últimos anos, principalmente no segundo mandato do presidente Lula da Silva, mas essa melhora tem um teto. Ela não irá passar da relativa cordialidade que os dois países desfrutam hoje», prevê.

O encontro entre a Presidente brasileira, Dilma Rousseff, e o líder norte-americano, Barack Obama, ocorre no dia 9 de Abril, em Washington.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Um Presidente da Irmandade?

Quando o general Mubarak renunciou no Egito, há pouco mais de um ano, a Irmandade Muçulmana anunciou que não iria apresentar candidato a presidente, tentando acalmar as pessoas que temiam a instalação de um regime fundamentalista no país. Dias atrás, a organização mudou de idéia e anunciou que irá disputar o cargo, por meio da candidatura de um empresário milionário, Khayrat el-Shater.

El-Shater integra a Irmandade desde os anos 70 e já esteve preso cinco vezes. Ele é um dos principais dirigentes da organização e uma figura-chave para as negociações da Irmandade com os ricos emirados do Golfo e com instituições econômicas internacionais. Sua escolha como candidato é lógica, o que merece explicação é por que a Irmandade mudou de atitude quanto a disputar a Presidência.

O grupo controla quase metade do novo parlamento e é a força política mais poderosa do país. Porém, enfrenta opositores bastante assustados com sua ascensão e que chegaram a falar na possibilidade de fechar o Congresso. As complexas relações com os militares também estão tensas, com os rumores de que o ex-chefe da inteligência da ditadura Mubarak irá disputar a presidência.

Outro fator importante é o risco de que não lançar candidato fragmentasse a Irmandade, pois muitos de seus ativistas deixaram a organização para apoiar o miliante islâmico Abdel-Moneim Abolfotoh, que também disputa a presidência. Ter um líder concorrendo ao cargo provavelmente irá unir os dissidentes em torno do nome de Shater.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Malvinas, 30 Anos

Esta noite, somos uma nação.

Margaret Thatcher, 1982

Este é o dia que nossos pais e avós esperaram por 150 anos. Hoje somos uma nação!

Do filme argentino “Los Chicos de la Guerra

Hoje é um dia de luto e memória para argentinos e britânicos, com o aniversário de 30 anos da guerra das Malvinas. O impacto do conflito nas relações entre os dois países tem sido tema constante neste blog, como neste post sobre a nova rodada de confrontos entre Buenos Aires e Londres, ou na resenha do melhor livro acadêmico recente acerca do tema, Sal en las Heridas, do sociólogo argentino Vicente Palermo. De modo que este texto trata das consequências da guerra para ambas as nações: a democratização da Argentina e um enorme impulso na popularidade da primeira-ministra Margaret Thatcher, que muito contribuiu para que ela ficasse mais de uma década no poder.

A ditadura militar argentina se destaca entre os regimes autoritários no Cone Sul por uma série de características negativas: foi a mais violenta, a de pior desempenho econômico e, ainda por cima, perdeu a guerra de forma devastadora e humilhante para os britânicos – só se salvou a coragem da Força Aérea no confronto.

Tudo somado, a redemocratização do país foi mais rápida e profunda do que a de seus vizinhos, com presidente civil eleito diretamente já em 1983 e um expressivo julgamento contra suas juntas militares e oficiais envolvidos na repressão, que culminou nas primeiras condenações do tipo na América Latina. Foi o início de um longo processo que, entre avanços e retrocessos, tornou a Argentina um importante exemplo internacional em justiça transicional. É difícil imaginar esse resultado sem as Malvinas, pois as ditaduras no Brasil, Chile e Uruguai negociaram suas saídas em meio a pactos de impunidade e proteção. Thatcher foi uma inesperada madrinha para a democracia argentina – em contraste com seu apoio de toda a vida ao ditador chileno Augusto Pinochet.

As consequências da guerra para o Reino Unido foram bem mais ambíguas. A vitória foi, claro, um momento de exaltação patriótica e autoconfiança, após uma década bastante difícil do ponto de vista econômico. Mas as Malvinas eram então um conjunto de ilhas sem importância comercial, e assim permaneceriam até a década de 1990, quando houve um boom de pesca e a descoberta de petróleo e gás. Mesmo hoje é questionável se elas são lucrativas para o Estado britânico, em função do custo elevado de defendê-las e fornecer serviços públicos.

Mas o impacto principal para os britânicos foi, claro, a permanência de Thatcher como chefe de governo, até a década de 1990. Sem sua reação firme e a vitória na guerra, provavelmente ela teria perdido eleições bem antes, pois enfrentava uma enorme onda de impopularidade, em função de seus cortes no orçamento, do longo conflito com os mineiros em greve e de sua posição controversa inclusive dentro do Partido Conservador.

Enfim, a guerra foi uma tragédia, mas também propicia muitas soluções, pelo menos para alguns grupos. Sempre é.