sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Diálogo com a Índia


Entre as muitas ameaças à paz mundial, uma me preocupa em especial: a próxima novela de Glória Perez será sobre as relações entre Brasil e Índia, narrada a partir de uma história de amor bi-nacional. Sim, ela já fez isso em América, deixando traumas indeléveis entre as nações retratadas na trama. Enquanto as ogivas nucleares indianas não sobrevoam os oceanos rumo ao Projac, mergulho no estudo do país, que talvez seja o primeiro passo rumo a uma pesquisa mais ampla sobre estratégias de desenvolvimento na Ásia.

Quinta e sexta estive no Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, para seminários sobre a Índia e a respeito do Diálogo que ela mantém com Brasil e África do Sul (Fórum IBAS). Acompanho o tema desde a criação da iniciativa e é impressionante a reação positiva da comunidade acadêmica brasileira, com a fundação de centros ou programas de estudos nas universidades de Brasília e Federal de Minas Gerais. Está em formação no país uma equipe de pesquisadores dedicados a entender a ascensão global indiana.

Grosso modo, a história econômica da Índia entre 1947 e 1991 é a de realizações modestas, simbolizadas no que ficou conhecido como “taxa de crescimento hindu”, de 3%ao ano. O modelo de substituição de importações era ainda mais fechado do que os implementados na América Latina - bem mais restritivo ao investimento externo, o país chegou a expulsar a Coca Cola! O sistema de permissões e autorizações, o Licence Raj (Raj era o domíno britânico na Índia) era um poço de ineficiência e corrupção.

A crise do modelo veio com a Guerra do Golfo, devido ao aumento nos preços do petróleo e a repatriação de centenas de milhares de indianos que trabalhavam nos países árabes, cujas remessas em dólares eram fundamentais para manter as contas nacionais equilibradas. Houve um movimento de liberalização, ainda que mais limitado do que na América Latina, e a ascensão de setores dinâmicos da economia, como a indústria de software e de telecomunicações – a Índia é talvez o principal centro de terceirização mundial de atividades como call centers e contabilidade empresarial.

A guinada econômica foi acompanhada por transformações na política externa, que abandonou a proximidade com a Rússia por uma semi-aliança com os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que procura lidar com tensões mal-resolvidas com a China e as eternas disputas com o Paquistão, e agora ambos os países são potências nucleares. Além disso, a Índia iniciou a estratégia diplomática de “Olhar para o Leste”, reforçando vínculos com as potências econômicas da Ásia-Pacífico.

Natural que esta amplitude de horizontes signifique mirada mais profunda àquela outra grande democracia em desenvolvimento, o Brasil. Há intensa cooperação entre os dois governos na ONU e na OMC (embora o protecionismo agrícola indiano tenha atrapalhado bastante a Rodada Doha), comércio crescente e muitos projetos de cooperação. Me parece que agora as respectivas sociedades também começam a se examinar com atenção, em busca de possibilidades conjuntas de negócios, aprendizados e parcerias.

Mais do espectador, quero ser parte do processo. Tenho lido bastante sobre a Índia e há diversas obras sobre o país na minha lista. Um amigo que leciona na Inglaterra me convidou para enviar trabalhos para uma conferência que ele prepara a respeito do Fórum IBAS. A idéia é ótima, mas não sei se terei tempo de apresentar um trabalho no prazo. Gostaria de entender o aspecto econômico, diplomático e as mudanças políticas internas, como o fortalecimento do fundamentalismo religioso hindu.

Também planejo viajar à Índia em algum momento dos próximos anos e conhecer pelo menos a capital, Nova Délhi, e os centros financeiros e tecnológicos – respectivamente, Mumbai (Bombaim) e Bangalore. Quem sabe o interesse não se misture com algumas das tarefas que eu assuma na minha nova vida de tecnocrata?

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Para (Tentar) Entender o Desenvolvimento


O debate teórico sobre desenvolvimento começa a se renovar. A ascensão da China, Índia e outras economias emergentes, a crise nos EUA e a estagnação na Europa têm levado a questionamentos e visões críticas sobre as reformas adotadas na década de 1990. Eu andava à busca de um livro que pudesse me dar o panorama das principais correntes em debate e gostei muito do que encontrei em “Understanding Development: theory and pratice in the third world”, de John Rapley.

Numa obra pequena, elegante e de clareza didática exemplar, Rapley conta o nascimento e apogeu dos estudos sobre desenvolvimento, a partir da Segunda Guerra Mundial, e examina suas principais linhas de reflexão: as vertentes keynesianas, o estruturalismo da CEPAL, a teoria da dependência etc. A partir da crise dos anos 70 e da guinada liberal que seguiu a ela, muitos acreditavam que essas teorias estariam mortas, sobrepujadas pela crítica da economia neoclássica. Rapley analisa as objeções liberais em detalhe, mas chama a atenção para a retomada dos teóricos desenvolvimentistas a partir dos pesquisadores dos modelos do Leste da Ásia e mesmo dos enfoques pós-modernos, que negam a validade de muitos dos pressupostos das abordagens anteriores, mas chamam a atenção para temas antes menosprezados como questões de gênero e preservação ambiental.

No início dos anos 70 Nixon disse que todos eram keynesianos, no Brasil talvez pudesse ter observado que todos eram e são desenvolvimentistas, tamanha a força que essas idéias alcançaram por aqui. Depois da “década perdida” de 1980 muita gente boa escreveu balanços tentando aprender com os erros do passado, como o protecionismo excessivo que favoreceu a corrupção e a ineficiência. Parte desse debate é visível na nova política industrial (ou de desenvolvimento produtivo, como é oficialmente batizada) com sua ênfase em utilizar as exportações como medida do sucesso empresarial e do acesso a benefícios.

Claro que muito da mea culpa brasileira veio do contraste entre os problemas das experiências na América Latina com os modelos bem-sucedidos no Leste Asiático. Num primeiro momento o Japão, depois a Coréia do Sul, Hong Kong, Taiwan, Cingapura. Atualmente, Índia e China, mas também merecem atenção os casos do Vietnã, Indonésia e Malásia. Penso mesmo em montar um grupo de estudos sobre o desenvolvimentismo asiático junto com os colegas da minha futura turma na Escola Nacional de Administração, porque acredito que há lições importantes a aprender no estudo do continente, e provavelmente teremos um módulo sobre economia e desenvolvimento no curso de formação.

Mais ou menos por coincidência, conversei por estes dias com uma amiga que quer cursar mestrado em administração pública e estivemos olhando, embasbacados, os programas da London School of Economics and Political Science e de Harvard. Esta última dá ênfase ao estudos em desenvolvimento internacional.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A Serviço da República


"Queríamos treinar profissionais que fossem céticos, mas não cínicos: isto é, sempre questionando a sabedoria convencional, mas sem a atitude derrotista que diz que nada funciona e que a ação pública não consegue alcançar seus objetivos." (Dani Rodrik)


Há poucos dias foi divulgado o resultado final do concurso para Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, e fui um dos aprovados. Daqui a algumas semanas me mudarei para Brasília e iniciarei o curso de formação da carreira, na Escola Nacional de Administração Pública.

Há cerca de dois ou três anos eu pensava seriamente em ingressar no serviço federal, para obter experiência prática com temas ligados às políticas públicas. No entanto, tinha decidido priorizar a formação acadêmica e só prestar concurso após concluir o doutorado. Por coincidência, a seleção foi marcada justamente para uma semana depois da minha defesa de tese.

Fiz provas de direito administrativo e constitucional, economia, ciência política, políticas públicas, gestão governamental, administração, idiomas (português e inglês) e raciocínio lógico-quantitativo. Tive muitas dificuldades na preparação e não acreditava que fosse passar. Meu plano era usar o concurso para ganhar experiência, e depois tentar outras oportunidades, como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. De fato, fui apenas razoável na múltipla escolha, embora excelente na discursiva.

Minha nova carreira existe há 20 anos, ainda que só tenha se consolidado a partir de 1995. Sua história é narrada assim no site de sua Associação:

A idéia de constituir um quadro de profissionais com perfil generalista e alta qualificação para a Administração Federal surgiu a partir de um estudo realizado pelo Embaixador Sérgio Paulo Rouanet (...) Para tanto, recomendava a criação de uma instituição encarregada da formação de quadros dirigentes no Brasil, e a constituição de uma carreira para os seus egressos, a fim de que se viabilizasse a sua absorção pela máquina administrativa, à semelhança dos "grands corps" franceses, mas sem sua heterogeneidade. Essa carreira teria atribuições generalistas (à semelhança dos administradores civis da França), a garantia legal do exercício de atribuições de direção e assessoramento e inserção em todos os ministérios.

Vem aí grandes mudanças na minha vida. Passei os últimos cinco anos como pesquisador numa organização não-governamental, lidando com cooperação internacional, direitos humanos e políticas públicas, enquanto cursava o doutorado em ciência política e lecionava em duas universidades. Antes disso, trabalhei como jornalista em editora, site e jornais. De quando em quando gosto de trocar os chápeus e assumir uma nova identidade. Neste caso, ainda haverá a ida para Brasília, a terceira cidade na qual viverei, depois do Rio de Janeiro e Buenos Aires.

As reações dos meus amigos e colegas de trabalho têm sido bastante diversificadas. Em geral positivas, mas houve vários que se queixaram por eu deixar o Rio e outros, sobretudo acadêmicos, verdadeiramente enfurecidos com minha decisão de me tornar funcionário público. Meus amigos tecnocratas são os mais entusiasmados e curiosamente os que mais destacam a importância pública do trabalho – a tendência dos colegas na iniciativa privada é ressaltar os beneficios da burocracia federal, como salários, estabilidade, aposentadoria especial etc.

Como será trabalhar para a República? Em que ministério serei lotado? Quais funções assumirei?

Aguardem os próximos capítulos.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Um Teólogo na Presidência



A teologia da libertação foi a origem de muitos religiosos latino-americanos que se tornaram políticos: ministros na Nicarágua, líderes guerrilheiros na Colômbia, assessores presidenciais no Brasil. Agora o ex-bispo Fernando Lugo chega à presidência do Paraguai. Curiosamente, em momento em que a esquerda católica está em declinio profundo, assolada por movimentos rivais dentro da Igreja, como a Renovação Carismática, e pelos evangélicos.

Quando leciono sobre o Paraguai, os alunos costumam perguntar se a influência dos jesuítas ainda é forte no país, ou se Lugo é um caso isolado. Respondo com algumas histórias ouvidas e vividas na nação guarani. A América Latina é hoje um continente bastante urbanizado, mas no Paraguai cerca de 40% da população mora na zona rural, em geral como micro-proprietários, trabalhando à base da mão-de-obra familiar (a foto abaixo mostra uma casa de camponeses na província do Alto Paraná, tirei durante uma pesquisa em 2007). No contexto de um Estado frágil e pouco presente, a Igreja continua a ser uma referência importante e uma influência política progressista fundamental, por vezes até contra sua vontade.



Explico: o Paraguai não foi alheio às mudanças conservadoras na Igreja latino-americana, à medida em que João Paulo II e Bento XVI afastaram expoentes da teologia da libertação e promoveram sacerdotes mais afinados às suas concepções. Nas regiões produtoras de soja que visitei, era muito comum que os principais auxílios financeiros para os padres locais viessem das empresas agrícolas e dos grandes comerciantes da área. Meus amigos comentaram que com freqüência o sacerdote, ao se instalar numa comunidade, ganha de presente uma caminhonete.

No entanto, a participação em grupos religiosos é um dos poucos instrumentos à disposição dos jovens interessados em conhecer um pouco mais além de seu próprio vilarejo. Através da Igreja eles viajam para cidades, fazem amigos, vivenciam novas realidades, eventualmente entram em contato com pessoas com experiência política. Mesmo dentro da mesma província paraguaia há discrepâncias grandes no padrão de cada comunidade camponesa. A maioria é muito pobre, mas algumas se desenolveram, outras fazem experimentos à base de agroecologia. Abaixo, a vila de Minga Porã (em português significa algo como “Mutirão Bonito”), formada por antigos sem-terra que ocuparam a área no fim da ditadura Stroessner. Fica a menos de uma hora de carro da casa mostrada acima.



Lugo era bispo de San Pedro, das dioceses mais pobres da América Latina, fora da área relativamente mais próspera do cultivo da soja e do algodão do Paraguai. A marca do convívio nessa zona difícil é visível em seus gestos e atos, como na maneira simples de se vestir, que o diplomata indiano Rengaraj Viswanathan chama de “revolução das sandálias” e compara ao simbolismo de Gandhi. Também é forte no uso de expressões na língua guarani e em seu vínculo com movimentos camponeses.

Os primeiros dias de governo de Lugo foram marcados por uma ofensiva anti-corrupção e pela defesa que o novo presidente faz de um estilo de vida austero, chegando mesmo a renunciar a seu salário. Isso me assusta um pouco: não gosto da ênfase da Igreja em rejeitar o conforto material. As pessoas querem uma vida melhor, querem dinheiro para comprar uma camisa bonita e levar a namorada ao cinema. Não vejo sentido em pregar um comportamento de santo eremita no deserto. Esse tipo de exigência moralista é tão inatingível que acaba levando inevitavelmente à frustração e à decepção, quando não ao cinismo.

Querelas teológicas à parte, Lugo tem grandes desafios: lidar com a maioria do Partido Colorado no Congresso, nos governos provinciais e no funcionalismo civil e militar, gerir sua própria coalizão, bastante heterogênea, negociar com Brasil e Argentina e dialogar com as enormes expectativas que sua presidência desperta.

No circuito dos movimentos sociais, há um desejo intenso de que Lugo seja bem-sucedido. Colegas que conheceram seus novos ministros ficaram muito bem impressionados com a alta qualificação técnica. Há inclusive a idéia de realizar eventos e reuniões em Assunção, para valorizar este momento tão importante na região.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Uma Conversa com Samantha Power



Na manhã desta quarta estive numa palestra da jornalista americana Samantha Power, que veio ao Rio de Janeiro lançar “O Homem que Queria Salvar o Mundo – uma biografia de Sérgio Vieira de Mello”. Já resenhei aqui a edição original do livro (que em inglês tem título mais bonito, “Chasing the Flame – Sergio Vieira de Mello and the Fight to Save the World”), portanto hoje escrevo somente sobre a personalidade da autora.

Em cerca de seis anos Samantha Power se tornou uma celebridade no campo das relações internacionais: escreveu dois livros primorosos (o outro é “Genocídio: a retórica americana em questão”, mais uma má tradução para um original que se chamou “A Problem from Hell: America in the age of Genocide”), fundou um centro de direitos humanos em Harvard, destacou-se como correspondente de guerra e foi assessora de Barack Obama – a quem ela se referiu, num delicioso ato falho, como presidente Obama. Com todo esse currículo, ela é de simplicidade encantadora, com um entusiasmo juvenil pelos temas sobre os quais escreve.

Enquanto autoridades da ONU faziam a apresentação formal da palestrante, Samantha levantou-se de sua cadeira para oferecer o lugar a uma mulher idosa que chegou quando a platéia já estava lotada. A conferencista se sentou no chão, já que nenhum dos diplomatas e militares brasileiros que ocupavam as fileiras da frente teve um mínimo de presença de espírito ou cavalheirismo para oferecer-lhe a cadeira. Quando foi para a tribuna, Samantha esperou que dona Gilda, a mãe de Vieira de Mello, colocasse os fones de ouvido para que iniciasse sua palestra, na qual destacou por diversas vezes como o apoio dela e dos demais parentes de Sérgio foi essencial para o livro. Por diversos momentos Samantha esteve tão emocionada que pensei que não fosse capaz de continuar. Um rapaz da organização foi ajustar o microfone e ela lhe disse: “Não adianta, o problema é com a palestrante”.




Sua apresentação foi basicamente o resumo da carreira de Vieira de Mello na ONU, na perspectiva de que lições sua vida oferece para a resolução dos conflitos contemporâneos. Algumas de suas observações certamente serão controversas – como a necessidade de negociar com os bad guys, sejam eles terroristas ou genocidas, como Sérgio fez no Camboja do Khmer Vermelho ou na Bósnia dos paramilitares sérvios. Outras são politicamente difícies, senão inviáveis, com a ênfase de Vieira de Mello para que organizações internacionais compartilhem poder com grupos locais quando operam em países estrangeiros, tarefa que ele desempenhou com brilhantismo em Timor Leste, mas que tentou inutilmente no Iraque.

O evento estava lotado, mas senti falta de maior presença de jovens, de estudantes e pesquisadores. A maioria das pessoas era bem mais velha, talvez amigos da família Vieira de Mello, e as perguntas formuladas foram bastante convencionais, do tipo “Como foi que você se interessou pela vida de Sérgio?”. Aliás, sempre me irritou a falta de interesse que nós, brasileiros, demonstramos por ele. Acredito mesmo que uma biografia excelente como a de Samantha Power não conseguiria ser escrita aqui, porque exige conhecimentos especializados sobre crises internacionais na Ásia, África, Oriente Médio e Bálcãs, além de dados precisos sobre a intricada burocracia das Nações Unidas, onde Sérgio fez carreira. Será que algum dia conseguiremos escapar desse provincianismo sufocante?

Naturalmente, Samantha aproveitou a ocasião para autografar o livro e levei meu exemplar. Brinquei com ela que comprei a edição americana porque não pude esperar a publicação da obra no Brasil. Ela gostou de saber que sou professor de relações internacionais e que falo bastante de Vieira de Mello em minhas aulas, o resultado foi uma dedicatória simpaticíssima que guardarei com afeto, e que me faz sentir parte de uma conspiração do bem, nestes tempos em que não faltam confrarias do mal.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Fora de Jogo



Um pouco mais sobre o futebol como maneira de driblar os obstáculos à participação na política. Já falei da China, agora é a vez do Irã.

Entre as vantagens de ser professor está o convívio com alunos inteligentes, que muito me ensinam. Tem sido constante nas turmas de relações internacionais a demanda de estudantes que querem discutir a situação das mulheres nos países muçulmanos. Uma das melhores monografias apresentadas neste ano tratou justamente de como o cinema iraniano aborda os direitos femininos. Minha aluna me presenteou com os DVDs das produções que analisou, como Persépolis e Fora de Jogo.

(Clique no link para ver o trailer de Fora de Jogo).

O segundo filme é uma ficção bem-humorada sobre um grupo de mulheres que tentam entrar num jogo importante para a seleção iraniana de futebol, as eliminatórias para a Copa do Mundo. Como a presença feminina é proibida nos estádios, elas se disfarçam de homens, mas são capturadas pela polícia e mantidas em detenção, fora de campo, enquanto ocorre a partida. Quase toda a trama se desenrola no cercadinho onde estão confinadas, nas conversas que mantêm entre si e com os guardas.

O filme é inspirado em fatos dolorosamente reais. Em 1997, o Irã voltou à Copa, pela primeira vez após a Revolução Islâmica. As ruas de Teerã foram tomadas por multidões que celebraram a conquista e em algumas áreas, em particular nas de classe média e alta, mulheres também comemoraram, com a cabeça descoberta, sem véus. Para horror total dos clérigos, a polícia se juntou à festa, em vez de reprimi-la. A revolta continuou dias depois, quando um grupo de mulheres rompeu as barreiras policiais e entrou à força no estádio nacional (ironicamente batizado de “Liberdade”), onde a seleção era recebida em glória. Temerosas de um conflito, as autoridades cederam, mas mantiveram as manifestantes numa área separada.

O futebol foi muito promovido no Irã do velho xá Reza Pahlevi, como símbolo de modernidade e adaptação do país às tradições européias, e até como um instrumento de socialização para os migrantes rurais que se mudavam para Teerã e outras grandes cidades, à medida que progredia a industrialização. A paixão pelo esporte permaneceu após a queda da monarquia, ainda que seu caráter cada vez mais globalizado cause embaraços aos aiatolás. Muitas estrelas da seleção jogaram em times internacionais, na Europa e na Ásia e o regime permitiu até a um estrangeiro treinar a equipe iraniana. Claro que foi um brasileiro: Valdeir Vieira, que comandou a campanha vitoriosa que culminou na participação na Copa.

Do outro lado da fronteira, também coube a um brasileiro, Jorvan Vieira, a a missão quase impossível de treinar a seleção iraquiana de futebol, no que sobrou do país após a guerra de 2003. O resultado foi uma conquista espetacular, a vitória na Copa da Ásia, superando obstáculos sérios – por exemplo, os sunitas não passavam a bola para os xiitas – e dando àquela sofrida nação um de seus poucos momentos de felicidade e união em anos recentes. Infelizmente, a equipe foi desmantelada pouco depois e não disputará o mundial de 2010.

As meninas de Fora de Jogo encontraram no futebol uma maneira de expressar seu desejo de ser aceitas como parte integral de sua sociedade, de ter direito a se divertir ao lado de seus amigos, namorados, parentes, maridos e filhos. Os membros da seleção do Iraque descobriram no esporte uma celebração que lançou pontes sobre anos de lutas fratricidas e lhes deu novo propósito comum. O futebol é tudo isso, uma maneira de passar uma tarde divertida e de aproveitar o que vida tem de bom. Também pode ser um modo de manipular paixões populares para fins espúrios, como sabem demagogos de sobra na Argentina, Brasil e Itália, ou mesmo de canalizar ódios raciais, sociais e religiosos na forma de torcidas organizadas.

Em 2010, a Copa será na África do Sul, democracia multiracial que simboliza a esperança africana em superar os problemas de sua trágica história colonial. Os jogos acontecerão num momento difícil para o país, em que ataques xenófobos contra imigrantes de outras nações africanas deixaram muitos mortos. Vai ser um mundial e tanto.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

A Quarta Espada



A guerra entre o Sendero Luminoso e o Estado peruano durou, em seu auge, 12 anos e matou cerca de 70 mil pessoas. Mais do que assassinaram, em conjunto, as ditaduras da Argentina, Bolívia, Brasil e Chile. O Sendero era de personalismo extremo, de culto a seu fundado e líder, Abimael Guzmán. Que tipo de homem ele é? O jornalista peruano Santiago Roncagliolo avança bastante em responder à indagação em sua reportagem-biografia, “A Quarta Espada”.

Roncagliolo escreveu o livro na Espanha, depois dos atentados da Al-Qaeda em Madri. Filho de intelectuais, passara a infância acompanhando os pais em exílio mexicano, a família voltou ao Peru com a redemocratização da década de 1980, o momento em que o Sendero despontou. De certa forma, “A Quarta Espada” é o ajuste de contas do escritor com a pátria que pouco conhece e que claramente lhe causa espanto e repulsa.

A biografia de Guzmán mostra história de abandonos, fragilidade emocional e social. Bastardo de um comerciante próspero, foi abandonado pela mãe, mas acolhido pela madrasta. Cresceu em Arequipa, cidade provinciana com expressiva vida cultural. Tímido e introspectivo, Guzmán tornou-se professor universitário como quase todos os irmãos. Mas não conseguiu se firmar na carreira, devido a intrigas acadêmicas – seu mentor deixou a cidade após brigar com colegas. Guzmán passou também por um trauma amoroso pouco claro, um namoro interrompido por pressão da família da moça, que pode ter incluído uma filha natimorta, ou dada em adoção sem seu consentimento. Ele não teve outros filhos.

Jovens de classe média com muita educação formal e poucas oportunidades sociais, com raízes frágeis, são bons candidatos a revolucionários. Guzmán encontrou seu lugar ao ir lecionar na recém-recriada Universidade de San Cristobal, em Ayacucho, uma das cidades mais pobres do Peru. As salas de aula eram o único lugar em que os jovens filhos de camponeses podiam conviver com aqueles oriundos das classes médias e da elite, no ambiente carregado da década de 60. Guzmán mergulhou no universo da extrema-esquerda, que então era formada por cerca de 70 micro-grupos. Fundou o seu próprio, o Partido Comunista Peruano pelo Caminho Luminoso de Mariátegui, em 1969. Começou com 12 membros.



Passou os dez anos seguintes em brigas fratricidas, afastando rivais e consolidando sua influência no movimento estudantil e camponês de Ayacucho. À época, parecia apenas mais um radical, que considerava a Revolução Cubana de direita e criticava a URSS e a China de Deng Xiaoping. Roncagliolo observa que em seus textos de doutrinação “o valor quase místico atribuido à ideologia faz lembrar a Força de Luke Skywalker, uma ferramenta espiritual e transcedente que dá poder ilimitado ao seu usuário.” Há controvérsias sobre a capacidade intelectual de Guzmán, alguns observadores lhe consideram brilhante, mas a maioria afirma que era mediano, dado a repetir clichês.

Ninguém esperava que o Sendero fosse à ação, mas isso aconteceu, ironicamente quando o Peru voltou a ser uma democracia. O grupo começou a atacar alvos governamentais e pessoas ricas em Ayacucho Sempre estranhei o timing, mas Roncagliolo explica a decisão citando o próprio Guzmán:

“Em 1980 o governo tinha que ser substituído através de eleições, seriam necessários um ano e meio ou dois anos para o novo governo poder armar o manejo do Estado. Os militares estavam saindo depois de 12 anos e não poderiam assumir facilmente uma luta imediata contra nós, nem poderiam de imediato tomar o timão do Estado, porque estavam desgastados politicamente e desprestigiados.”

O livro conta rapidamente os principais lances da guerra – se você quiser os detalhes, recomendo a obra do jornalista peruano Gustavo Gorriti – tais como a declaração do Estado de emergência em Ayacucho, a intervenção das Forças Armadas em 1982, os massacres mais chocantes, como o assasssinato de jornalistas no povoado de Uchuruccay (os camponeses nunca tinham visto câmeras e microfones e as tomaram por armas, confundindo os repórteres com membros do Sendero), os massacres nas prisões e banho de sangue que matou sobretudo pessoas pobres, da região rural e indígena nos Andes.

Um coronel brasileiro que foi adido militar em Lima me disse que a opinião pública só levou o Sendero a sério quando a guerra chegou à capital. Roncagliolo narra os atentados em Lima, como a inflitração do Sendero nas favelas, o assassinato de líderes comunitários que se opunham ao grupo, os apagões promovidos ao dinamitar torres de transmissão e o carro-bomba na principal rua do bairro de elite, Miraflores, “o momento em que os limenhos, em particular as classes médias e altas, sentíamos que também podíamos morrer”

Guzmán foi preso sem que fosse disparado um único tiro, em excepcional trabalho investigativo da unidade anti-terrorismo da polícia peruana. Na prisão, entrou em polêmico acordo com a ditadura de Fujimori, negociando com seu braço direito, o sombrio Montesinos, que hoje divide o mesmo presídio com Guzmán. A maior parte do Sendero foi desmantelada, seus líderes condenados à prisão perpétua, embora militantes remanescentes ainda atuem no vale do Apurímac – na visão cínica de alguns entrevistados no livro, uma reserva que os políticos podem usar em caso de emergência, para unir o país em torno de um inimigo.

Guzmán deu apenas duas entrevistas em toda sua vida, e não falou com Roncagliolo, mas o autor conversou com muitos líderes do Sendero, inclusive a esposa de Guzmán. Os presos viraram um trama semi-esquecido, “perguntam o que se pensa deles na Espanha, com a esperança de que alguém pense neles em algum lugar.”

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O Futebol Explica a China


O desempenho da China nas Olimpíadas de Pequim está excelente, mas há um esporte onde a China não consegue se destacar positivamente: o futebol. A frustração com a pífia atuação da seleção masculina nos diz muito sobre o estado atual do país.

A política internacional da China expressa um desejo intenso de aceitação, de ser considerada parte do clube seleto das grandes potências. Algo bastante lógico se olharmos para os últimos 150 anos de humilhação nacional, desde as guerras do Ópio e a fragmentação territorial do império. Ora, nenhum esporte é tão amado como o futebol. É uma verdadeira cultura global, que atravessa os continentes. Ser bem-sucedido no futebol rende uma imagem internacional difícil de ser igualada por outras conquistas esportivas, como nós, brasileiros, bem sabemos.

No entanto, a seleção masculina chinesa de futebol é um desastre. A piada no país é que merecem apenas medalhas por artes marciais, devido ao hábito de bater no adversários vitoriosos. Se você acha curioso que em meio a mais de 1 bilhão de chineses não se consigam reunir 11 que saibam jogar, saiba que a população do país já desenvolveu suas teorias para explicar o fracasso. Algumas delas:

- Os salários dos jogadores são tão altos que eles perdem a disciplina e a austeridade, dedicando-se a uma vida desregrada de prostitutas, drogas e festas (pois é, a China ainda tem muito do puritanismo comunista).

- O mundo do futebol na China é muito corrupto e isso impede o desenvolvimento do esporte.

- O Estado chinês é muito bom em financiar atletas que se destacam em esportes individuais, mas é muito caro treinar equipes numerosas, como no futebol.

Os brasileiros olhamos essas teorias com um certo ceticismo, em particular as duas primeiras, mas o debate político corre a sério no país. Por exemplo, as autoridades chinesas permitem a expressão de críticas aos desmandos da lideranaça futebolística chinesa, algo que raramente ocorre em outras áreas da vida pública da China. Já apareceram até pessoas dizendo que essa válvula de escape pode se tornar a oportunidade para se discutir a sério a democratização do país e o estabelecimento de um Estado de Direito, onde "a regra é clara", como diria um célebre comentarista brasileiro.

Dica do Bruno Borges

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

A Nova Classe Média



"Se vocês ouvirem tiros, saiam correndo", me disse o traficante. Ponderei por alguns instantes, consultei os colegas e decidimos que, diante de um conselho tão bom, o melhor era antecipar a dica, em respeito ao interlocutor.

A ONG em que trabalho conduz uma grande pesquisa sobre juventude, em seis países da América do Sul. No primeiro semestre realizamos grupos focais com grupos juvenis e atualmente estamos na etapa do levantamento quantitativo. Contratamos uma empresa para aplicar cerca de 15 mil questionários e há alguns dias acompanhei uma de suas equipes, na periferia do Rio de Janeiro. Fomos fazer o pré-teste e avaliar que perguntas funcionam e quais dão problemas. Acabou sendo uma experiência imediata da ascensão da nova classe média - e das dificuldades ainda dramáticas que estão em seu caminho.

Num pré-teste como o que participei, deve-se realizar um determinado número de entrevistas, divididas por faixa etária e nível de escolaridade de modo a preencher as cotas necessárias. Algo como, "tantas mulheres de até 30 anos, com nível superior" ou "tantos homens idosos, com instrução fundamental". Os entrevistadores decidiram começar pelos jovens que possuíam até 8a série: "Hoje em dia quase todos nessa faixa etária têm ensino médio", me disse um dos funcionários, em tom de lamentação, porque o fato dificultava seu trabalho: "Precisamos ir nas favelas para encontrar jovens que tenham apenas escolaridade fundamental".

Assim, fomos a uma pequena comunidade, próximo à estação do metrô. De fato, achamos pessoas que correspondiam às características que buscávamos. Mas quando realizávamos a primeira entrevista, um grupo de homens armados até os dentes passou por nós, muito tensos, e nos deram o conselho que abre este texto. Ao sairmos da favela, nos deparamos com poças de sangue na calçada e os moradores nos informaram que tinha havido uma batalha entre traficantes rivais durante a madrugada. Nos afastamos um ou dois quarteirões quando ouvimos tiros. Mas aí já estávamos longe.

O resto daquela manhã foi dedicado às ruas vizinhas, que são uma representação bastante típica da nova classe média que já se tornou 52% da população brasileira. Com renda entre R$1.000 e R$4.500, são pessoas que já superaram a barreira da pobreza e da escassez. Nas entrevistas que realizamos, ficou muito claro como a melhoria nos ganhos econômicos está se traduzindo num padrão de vida e de consumo mais elevado. Quase todos com quem conversávamos contavam das obras que faziam em suas casas, ou dos eletrodomésticos que estavam comprando. Com freqüência a estratégia profissional mistura um emprego fixo, de carteira assinada, com um trabalho no setor informal.

Uma grande parcela da população que melhora de vida, ainda que exposta de maneira fortíssima à violência, e com menos escolaridade do que a classe média tradicional.

Às vezes escuto amigos - classe média alta, zona sul do Rio de Janeiro, como eu mesmo - céticos diante dos novos emergentes. Julgam que mil reais por mês é uma renda muito baixa, que não seria suficiente para escapar da pobreza. Cito o economista Marcelo Neri, da FGV, que coordenou a pesquisa sobre a nova classe média: "Para aqueles que acham que a renda da classe C é baixa: acordem, pois ela é a imagem mais próxima da sociedade brasileira. A elite que se julga classe média e acha feio o que vê, procure as palavras Made in USA atrás de seu espelho."

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Regiões e Poderes



Ontem dei aula no MBA em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. Foi minha estréia como professor na FGV, embora esteja tocando também outros projetos para a instituição. O tema da minha apresentação foi o papel das organizações regionais na manutenção da ordem internacional, tanto no aspecto econômico quanto em termos de segurança. A eclosão da guerra no Cáucaso tornou a discussão bem mais atual, e eventualmente um tanto mais assustadora.

Após o colapso da URSS, EUA e União Européia avançaram sobre a antiga área de influência de Moscou. A Europa Oriental foi incorporada à UE e à aliança militar, a OTAN - o mapa que abre o post mostra sua expansão. Acordos de cooperação foram assinados com Geórgia e Ucrânia, e bases americanas estabelecidas em diversos países da Ásia Central, sobretudo depois dos atentados do 11 de setembro e das guerras no Iraque e no Afeganistão. A idéia era tornar a Rússia um "Estado pós-imperial", o que significaria reverter uns bons 4 ou 5 séculos de sua história.

Entre 2003 e 2005 houve uma série de “revoluções coloridas” na Geórgia, Ucrânia e Quirguistão, acompanhadas de convulsões semelhantes no Azerbaijão e no Uzbequistão. Essas mobilizações resultaram na queda de governos pró-Moscou e na eleição de presidentes mais dispostos a aprofundar o vínculo com Estados Unidos e União Européia.

O país em que essa tendência foi mais forte foi a Geórgia, onde chegou ao poder Mikheil Saakashvili. Ele substituiu o último ministro das Relações Exteriores da URSS, Eduard Shevardnadze, que governava a Geórgia desde 1995. É visto como o mais pró-Ocidente dos líderes do Cáucaso e mandou até tropas para o Iraque – embora desprezadas pelos EUA por sua falta de treinamento e equipamento adequadas, são valorizadas como apoio político num momento de dificuldades para Washington.

Uma olhada no mapa abaixo mostra como o Cáucaso é o coração da instabilidade global, bem no meio das potências rivais e dos locais onde ocorrem guerras. Explica porque a Rússia dá tanto valor à região e porque Moscou cada vez mais se considera cercada e isolada pelas instituições comandadas pelos EUA e pela Europa.



Na perspectiva do novo nacionalismo que ganhou força na era Putin, é a reedição do “cordão sanitário” (grupo de Estados hostis ao redor do país) que foi imposto à União Soviética após a Revolução de 1917. Do ponto de vista dos vassalos do antigo império soviético, é a busca de aliados que possam contrabalancear o expansionismo de Moscou, a tentativa de jogar com a rivalidade entre as grandes potências e conseguir um pouco de espaço de manobra.

Na Guerra Fria, o Ocidente assistiu basicamente passivo enquanto a URSS esmagava rebeliões em seus satélites na Alemanha Oriental (1953), Hungria (1956) e Tchecoslováquia (1968). A Rússia parece ter ganhado a batalha na Geórgia – os EUA precisam da cooperação de Moscou em diversas questões mais sérias, como o Irã, e a Europa depende do gás russo. Foi dado um recado claro para outros países do Cáucaso que buscam aproximar-se do Ocidente, em especial para a Ucrânia, a jóia da coroa na região.

O resultado da guerra é muito mais difícil de prever. A escala da reação russa foi tão violenta que bem pode ter o efeito contrário no longo prazo, estimulando a formação de coalizões anti-Moscou. O Ocidente acena com integração e cooperação econômica. O que a Rússia tem a oferecer para rivalizar com tais seduções? Também não está claro para mim até que ponto a OTAN irá permitir aos russos a manutenção de uma zona de influência, inclusive com intervenções militares. A Geórgia não é prioritária, mas é difícil imaginar a mesma reação conformada diante de um eventual ataque à Ucrânia, ou mesmo aos países da Ásia Central.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Os Referendos na Bolívia



As primeiras notícias da votação de domingo dão conta de que Evo Morales venceu com cerca de 60% dos votos e que os prefeitos departamentais (equivalentes no Brasil aos governadores estaduais) de Oruro, La Paz e Cochabamba, foram derrotados. Os dois últimos fazem oposição ao presidente, mas o núcleo duro de resistência a Evo se mantém nos departamentos da Meia Lua (Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija), cujos prefeitos foram confirmados nos cargos, com altos percentuais de apoio.

Tudo contabilizado, o equilíbrio de forças muda ligeiramente a favor de Evo. A semana que antecedeu os referendos foi tensa, mas a votação transcorreu razoavelmente tranqüila. O principal foco de tensão é Cochabamba, cujo prefeito Manfred Reyes declarou repetidas vezes que não aceitaria ser afastado do cargo pelo referendo.

Referendos se tornaram um elemento comum na paisagem política sul-americana. Só nesta primeira década do século XXI a Venezuela realizou seis, a Bolívia dois e estes instrumentos também foram utilizados no Uruguai (privatização do abastecimento de água) e Brasil (desarmamento). Outros devem ocorrer para a aprovação das novas constituições na Bolívia e no Equador.

O uso mais freqüente dos referendos faz parte da tendência da América do Sul de utilizar instrumentos de democracia participativa para reforçar os sistemas tradicionais de representação. Outros países também utilizam referendos de maneira intensa, em particular Suíça e EUA.

Não sou grande fã do processo: avalio que referendos e plebiscitos tendem a polarizar questões políticas complexas em torno de sim/não, quando a realidade exige negociações mais cautelosas, nas quais o "como" é muitas vezes mais importante do que a resposta curta e grossa. Em cenários de nitroglicerina pura, como Bolívia e Venezuela, eles são especialmente propensos a gerar mais tensões, e mesmo num país moderado como o Brasil empobreceram o debate sobre as leis de desarmamento.

Em um continente tão marcado por diferenças sociais, étnicas e geográficas, o clima de "tudo ou nada" despertado por referendos pode ser bastante perigoso. Não faria mal algum a busca de soluções negociadas que procurassem equilibrar os interesses conflitantes dos principais grupos políticos de cada país.

sábado, 9 de agosto de 2008

Guerra no Cáucaso


Qualquer crise política que envolva a Rússia faz todos os outros problemas diplomáticos parecerem minúsculos, certa observou um amigo jornalista que ocasionalmente escreve sobre o país. A guerra entre Rússia e Geórgia acontece por causa da tentativa de Moscou de manter o domínio sobre as antigas repúblicas soviéticas, regiões marcadas por enorme fragmentação étnica, presença de expressivas minorias russas e a ascensão do fundamentalismo islâmico.

Tudo isso em área estratégica, por onde passam gasodutos e oleodutos importantes para a indústria de energia que se transformou na base da recuperação econômica russa e de seu pleito a retomar o status de grande potência, depois da década mais humilhante da história russa desde o colapso do czarismo.

Há muitas zonas de tensão opondo Rússia e OTAN, as duas principais estão nos países bálticos (lembram da ciber-guerra contra a Estônia?) e no Cáucaso, sobretudo na Geórgia e na Ucrânia. As negociações dos dois países para ingressar na OTAN foram um dos temas mais polêmicos da reunião de cúpula da organização, em abril.



O conflito étnico na Geórgia vem em escalada desde o fim da URSS – chegou a haver guerra civil por lá em 1991/1992 - e se tornou mais explosivo após a independência do Kosovo, pois os separatistas na Ossétia e na Abkhásia argumentam que se a ex-província sérvia pode ser um país autônomo, eles também tem o direito. Os separatistas também temem o ingresso da Geórgia na OTAN, e o amparo do Ocidente aos propósitos desse Estado em manter o controle sobre os territórios contestados.

A metade norte da Ossétia é uma região com certo grau de autonomia na Federação Russa e, historicamente, os ossétios têm sido aliados da expansão no Cáucaso dos regimes controlados por Moscou, dos czares a Putin, passando pelos comunistas. Mais de metade dos ossétios possuem cidadania russa e analistas europeus acreditam que a Rússia aproveitará a crise para tentar incorporar toda a Ossétia, desse modo enfraquecendo a Geórgia pró-Ocidente.



Naturalmente, não está claro qual será o desfecho da crise. Uma delegação conjunta de representantes dos EUA, da UE e da Organização para a Segurança e Cooperação da Europa está a caminho para tentar negociar um cessar-fogo. As estimativas são de que mais de 2 mil pessoas já morreram nos combates, em poucos dias. É um número enorme: a título de comparação, a guerra das Malvinas durou quatro meses e teve 1/3 desse total de mortos. A alta cifra provavelmente se deve aos bombardeios de cidades, o número de baixas civis deve ser muito elevado.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

As Olimpíadas na China


A abertura das Olimpíadas de Pequim foi um espetáculo impressionante que fortaleceu o propósito do governo chinês de usar os jogos para se afirmar como grande potência em ascensão. O acaso ajudou, e muito: com a Rússia invadindo a Geórgia, a situação dos direitos humanos na China recua ainda mais em termos de relevância para a política internacional.

O governo chinês tem reprimido a oposição com particular intensidade às vésperas dos Jogos. Prendeu dissidentes, apertou o cerco à imprensa e colocou 100 mil soldados e policiais para fazer a segurança em Pequim. Aglomerações públicas foram desaconselhadas e os meios de comunicação incentivaram os habitantes da capital a assistir a abertura pela TV, em suas casas. Mas em sua face internacional, procura abrandar posições nas crises diplomáticas em que está envolvido, como Sudão e Myanmar.

Não chegou a se concretizar um boicote às Olimpíadas de Pequim, como ocorreu nas de Moscou (1980), realizadas logo após a URSS ter invadido o Afeganistão. Ainda assim, houve problemas para o governo chinês. A chanceler da Alemanha e o primeiro-ministro do Canadá se recusaram a comparecer à cerimônia de abertura. O presidente da França oscilou, cogitou em se reunir com o Dalai Lama, mas acabou mandando dona patroa Carla Bruni ao encontro do líder tibetano. Protestos contra a China ocorrem em diversos países, mas até agora nada de grande porte. O maior risco, no curto prazo, é o terrorismo: o atentado separatista nos territórios de Xianjiang e o medo de algo semelhante em Pequim.



Críticos comparam as atuais Olimpíadas com as que Hitler organizou em Berlim, em 1936, para celebrar a recuperação do status de potência da Alemanha. Vejo exagero na analogia: os nazistas tinham um projeto político internacional de guerra e expansão, a China tem atuado de maneira mais equilibrada. Seu regime político é uma ditadura, mas não genocida: os tibetanos são reprimidos, não exterminados como foram os judeus sob Hitler.

Há, no entanto, semelhanças perturbadoras. A propaganda nazista encontrou uma expressão artística genial nos filmes da cineasta Leni Riefenstahl, inclusive o que ela fez sobre os Jogos Olímpicos de Berlim. O governo chinês também achou um mestre das artes: Zhang Yimou, certamente o mais célebre dos diretores chineses contemporâneos, e a meu juízo um dos melhores cineastas da atualidade. Filho de um militar nacionalista, ele foi muito perseguido na juventude e seus primeiros filmes sofreram censuras e ataques das autoridades comunistas. Nos últimos anos ele se tornou uma celebridade pró-sistema, ao ponto de ser nomeado diretor artístico da cerimônia de abertura. Ele havia convidado Steven Spielberg para seu consultor. O americano aceitou inicialmente, mas depois renunciou ao posto.

Embora as Olimpíadas tenham começado bem para a China, é cedo para dizer se o regime será bem-sucedido em seus propósitos. Basta lembrar os Jogos da Cidade do México, em 1968: programados para ser a celebração do crescimento econômico do PRI, se transformaram no marco do declínio daquele sistema, quando os protestos estudantis na praça de Tlatelolco foram reprimidos num banho de sangue.

Será que uma tragédia parecida pode acontecer em Pequim?

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

México: através do Cristal



Brasil e México sempre se viram com desconfiança, como se olhassem através de cristal que deturpa suas imagens, embora ocasionalmente encarem o Outro como o aliado natural no extremo oposto da América. Essa é a conclusão do historiador Guillermo Palacios, professor do Colegio de México, em seu livro “Intimidades, Conflitos e Reconciliações”. Recém-publicado pela Editora da USP, narra as idas e vindas das relações entre ambos os países, de suas independências até a formação do Nafta.

Palacios escreveu a obra em encomenda para a Secretaria de Relações Exteriores do México, e pesquisou basicamente nos arquivos diplomáticos de seu país e do Brasil. Por razões não muito claras, o material integral só estava disponível até o fim da Segunda Guerra Mundial, de modo que o período posterior é abordado de maneira mais superficial.

No século XIX, a jovem república mexicana temia os propósitos expansionistas do império brasileiro, e os medos se agravaram quando o arquiduque austríaco Maximiliano (foto abaixo), primo de d. Pedro II, tornou-se por alguns anos imperador do México. A aventura trágica foi financiada pelas armas francesas e terminou com o fuzilamento do monarca. O Brasil, embora até visse com simpatia outra monarquia nos trópicos, não estreitou contatos com Maximiliano, pois rejeitou expressamente a intervenção estrangeira na América Latina.



Durante a República Velha, os diplomatas brasileiros observavam com admiração a ditadura de Porfírio Diaz no México, considerando-o o defensor dos mesmos ideais de Ordem e Progresso dos positivistas brasileiros. O surgimento da Revolução Mexicana foi pessimamente interpretado pelo Itamaraty, que considerava seus líderes como bandidos e selvagens, e Palacios tem razão ao criticar o conservadorismo tacanho da chanceleria do Brasil como um fator que afastou os dois países. As tensões aumentavam à medida que o México se envolvia em atritos com os EUA – que incluíram duas intervenções armadas – e a política externa brasileira se tornava cada mais próxima aos ditames de Washington.

Nas décadas de 1930 e 1940 o México passou por uma efervescência social, com reforma agrária e leis trabalhistas de forte inspiração socialista. O momento coincidiu com o integralismo e o Estado Novo no Brasil, e a opinião pública mexicana adotou como causa a libertação de Luis Carlos Prestes – sua mãe, filha e irmã se refugiaram no país – para profundo desgosto de Vargas.



O surto desenvolvimentista dos dois países nos anos 50 e 60 os aproximou, com projetos de cooperação econômica, sobretudo em petróleo, tentativas de impulsionar a integração latino-americana (Alalc, Sela), de coordenar esforços para manter o preço de commodities das quais eram ambos grandes produtores (café e açúcar), realização de visitas presidenciais... O advento da ditadura militar no Brasil complicou as coisas, muitos exilados brasileiros foram para o México, repetindo um pouco o padrão da década de 1930.

O livro tem apenas um breve capítulo sobre os problemas dos anos 80/90, quando ambos os países enfrentaram a crise da dívida externa e tentaram tomar fôlego internacional formando blocos econômicos regionais – o México aderindo ao Nafta, junto com EUA e Canadá, o Brasil juntando-se à Argentina, ao Paraguai e ao Uruguai para formar o Mercosul. Palacios termina sua obra nesse ponto e não menciona, infelizmente, a notável aproximação que vem ocorrendo entre ambas as nações. Ainda assim, deveria ser leitura de cabeceira para os negociadores envolvidos no diálogo.

Acompanhamos pouco do cotidiano do México, que passa por crise de segurança pública, conflitos nacionalistas sobre o petróleo, controvérsias com os EUA por causa da construção do muro na fronteira... Mas fiquem tranqüilos: há poucos dias se instalou na Cidade do México minha querida amiga Júlia Sant´anna: jornalista e cientista política de primeira categoria, que nos contará um pouco de suas aventuras por lá no blog Farofa de Nopal, enquanto cursa seu estágio de doutorado em terras mexicanas.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Meu Irmão é Filho Único



Houve um tempo em que o cinema italiano era referência internacional e formou gerações de cinéfilos, encantados com ladrões de bicicletas, partigiani que lutavam contra fascistas ou com os heróis cômicos que povoam as impagáveis comédias do país. Não é fácil criar à sombra de talentos como Fellini, Rossellini, Antonioni ou Monicelli, e nas últimas décadas os filmes produzidos na bota foram de mediocridade assustadora. Agora, alguns críticos apontam para indícios de renascimento. Torço para que seja verdade, e quem sabe “Meu Irmão é Filho Único” seja um sinal promissor.

O belo filme de Daniele Luchetti conta a história de dois irmãos mergulhados até o pescoço na política extremista da década de 1960. A trama é narrada pelo caçula Antonio, dito “Accio” (aço) pelo hábito que possui desde a tenra idade de resolver suas discussões a tapa, em particular com o irmão Manrico, comunista, mulherengo e arrojado, não necessariamente nessa ordem. Accio passa uma breve temporada no seminário, mas troca a batina pela militância no fascismo, aderindo ao Movimento Social Italiano, o herdeiro das tradições de Mussolini. A lenha na fogueira entre os dois fratelli vem quando Accio se sente atraído pela namorada de Manrico, Francesca.



O filme é incrivelmente leve e bem-humorado, muito mais do que seria de se esperar para uma trama que envolve alto grau de violência política de extrema-esquerda e extrema-direita: há surras, bombas, tiros, assaltos, mas quase sempre num tom de chanchada, de um saudável não se levar muito a sério. A família de operários a qual pertencem os dois irmãos se comunica à base de gritos e pancadas e vivem em uma casa literalmente caindo aos pedaços, à espera de irem para um conjunto habitacional que nunca fica pronto, por artes da burocracia italiana.

Há pelo menos um personagem antológico no filme, o vendedor de toalhas e militante fascista Mario, que apresenta Accio às realizações do Duce e que será um mentor atrapalhado para o rapaz. Entre outros méritos, “Meu Irmão é Filho Único” é uma vitrine para o trabalho de dois jovens atores italianos: Elio Germano, o melhor em cena, que interpreta Accio com paixão e dedicação, e a bela Diane Fleri, no papel de Francesca.

Pena apenas que o diretor Daniele Luchetti pareça às vezes não saber muito bem o que fazer com um bom elenco. Sobretudo na parte final, ele adota um tom sombrio, de passar um sermão sobre a falta de perspectivas da geração que se bandeou para as Brigadas Vermelhas, algo que já feito com muito mais categoria em outros filmes (como “Bom Dia, Noite”).

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Punir os Torturadores



Há um “tempo do mundo” que cada vez mais influi nas decisões políticas em cada país. Há cerca de um ano e meio a historiadora Janaína Telles e eu escrevemos artigo sobre a memória e a punição dos crimes cometidos pelas ditaduras militares na América do Sul. O texto foi publicado no jornal “O Estado de S. Paulo” e listava o que Argentina, Chile e Uruguai têm feito nessa área. Diante da passividade que observávamos no Brasil, perguntamos: “E nós?”. Agora finalmente o debate chegou ao país, com a declaração do ministro da Justiça, Tarso Genro, de que é preciso punir os torturadores e abrir os arquivos da época do regime autoritário.

Tarso afirma que a tortura é um crime comum, e não delito político, portanto não seria coberta pela Lei de Anistia. Não entendi a argumentação do ministro. Em geral os movimentos de direitos humanos ressaltam que a tortura, pelos tratados internacionais, é crime conttra a humanidade, imprescritível. Na Argentina, simplesmente se aboliram as leis de anistia e indulto. No Chile, a justiça entendeu que a ausência dos corpos dos desaparecidos permitia supor que continuavam seqüestrados, então nada de anistia. Cada país encontra sua maneira de ir atrás dos culpados e contornar os obstáculos jurídicos herdados dos delicados e difíceis momentos de transição à democracia.

A punição aos torturadores se justifica por si mesma, mas o Valor de sexta-feira publicou razões extras, fornecidas pela cientista política americana Kathryn Sikkink, uma de minhas ex-professoras na Argentina e autora de brilhante obra focada em direitos humanos e desenvolvimento na América Latina – infelizmente, inédita no Brasil. Em Buenos Aires, conversamos sobre a pesquisa que Kathryn realizava no Cone Sul, sobre os julgamentos dos crimes das ditaduras. O trabalho ficou pronto e eis suas conclusões:

Os regimes democráticos que julgaram aqueles que violaram os direitos humanos, em crimes como tortura, assassinato, prisão sem processo, desaparecimento de pessoas ou genocídio, tiveram uma melhora significativa na preservação dos direitos básicos de seu povo. (...)

No caso do Brasil, ainda sem punições, a situação foi inversa e o respeito aos direitos básicos hoje é pior do que na época da ditadura, segundo o estudo. "A não-punição abre precedente para que o Estado continue autoritário", comenta Kathryn. "No caso brasileiro houve uma regressão por conta da repressão policial, assassinatos por parte de agentes públicos. Parece que são repressões diferentes, mas não são". Ela cita como exemplo os recentes incidentes com o Exército no Morro da Providência, quando três jovens da comunidade foram entregues por militares a gangues rivais e mortos. "A impunidade do agente do estado pode gerar mais repressão?", questiona.


Na América do Sul atual, salta aos olhos como o tema dos direitos humanos ganhou força, em particular pela recuperação da memória dos tempos autoritários, de ditaduras militares ou civis – o julgamento de Fujimori, no Peru, é exemplar nesse aspecto. O Brasil, como observa minha professora, não só ficou para trás: regrediu. O fenômeno “Tropa de Elite”, com seu culto ao herói-torturador, é algo que impressionou vários de meus amigos hispano-americanos, que ficaram espantados com o filme e com as reações no Brasil. Eles fazem comparações com os EUA pós-11 de setembro – Jack Bauer é primo-irmão do capitão Nascimento, e ambos tomaram o caminho que só pode terminar mesmo é em Abu Grahib...

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Dois Anos de Raúl Castro


Tomei um susto quando li as notícias que destacavam que Raúl Castro já está há dois anos como presidente de Cuba – ainda que só cinco meses como governante oficial. O general de 77 anos tomou algumas medidas liberalizantes, mas foram tão poucas e insuficientes que eliminam expectativas que conduziria a transição democrática na ilha.

O caçula dos irmãos Castro convocou funcionários e cidadãos a exporem suas críticas aos problemas administrativos do governo. Recebeu mais de 1 milhão de sugestões. Sua decisão mais importante é a reforma agrária: alocar 50% das terras produtivas do país para produtores privados, afastando-se do clássico modelo comunista de fazendas coletivas estatais. É uma decisão semelhante àquela tomada por Deng Xiaoping no início de sua revolução econômica na China. Embora a situação cubana seja bastante diferente, é de se esperar que a iniciativa resulte no aumento da produção agrícola no país.

Chama a atenção também como os investimentos e auxílio econômico da Venezuela e da China deram sobrevida ao regime cubano, melhorando as condições de vida da população em aspectos essenciais como transporte público e abastecimento energético. Foram permitidas as importações de eletrodomésticos e telefones celulares, bens comuns em muitos países, mas artigos de luxo na ilha.

Outras áreas apresentam situação bem mais problemática. A educação, um dos orgulhos da Revolução, passa por muitas dificuldades. Estima-se que existe um déficit de 8 mil professores, porque muitos docentes abandonaram as salas de aula e emigraram, ou foram para a indústria do turismo. O governo tem lidado com a crise contratando de forma temporária pessoas que têm apenas o ensino médio, sem formação específica para dar aulas. Surpreendentemente parecido com o Brasil, vejam só.

A grande frustração do governo de Raúl Castro é a ausência de medidas que apontem para a liberalização política do país. Concordo com Yoani Sánchez, a blogueira mais famosa da ilha, que compara o presidente ao comandante de um avião:

No esperamos ni piruetas en el aire, ni caramelos bajo la lengua que nos ayuden a soportar las turbulencias del viaje. Queremos que el piloto dé la cara, nos cuenten el itinerario y que nosotros decidamos la ruta. Que este discurso del sábado no se convierta en una exaltación a mantenernos en el aire, sino en un claro reporte de cómo y cuándo abordaremos otra nave.