quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Meu Ano na Corte


Hoje é meu último dia em Brasília. Retorno à noite para o Rio de Janeiro, para trabalhar para o governo fluminense. Serei membro da primeira turma da carreira estadual de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, a mesma da qual faço parte na esfera federal. A idéia é justamente levar um pouco da experiência da Corte para ajudar na reforma do funcionalismo no Rio.

Minha estadia de um ano em Brasília foi mais curta do que eu planejava. O resumo da ópera é que adorei a experiência de trabalho por aqui, mas perdi muito em termos de qualidade de vida, em comparação com o que tenho nas terras cariocas. A capital é riquíssima em oportunidades profissionais, mas sinto falta da diversidade social e das atrações culturais do Rio, para não mencionar família e amigos. O trabalho é importante, mas para a vida ser realmente boa é preciso equilibrar melhor os vários elementos que a compõem.

Aprendi muito trabalhando como assessor do Secretário de Comércio Exterior, e no convívio com a excelente equipe de amigos que forma o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Os colegas no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão também me ensinaram bastante, em particular no curso de formação na Escola Nacional de Administração Pública e no estágio sobre finanças do Estado. Foram muitos projetos interessantes com negociações na América Latina, atração de investimentos, os novos papéis das multinacionais brasileiras, a necessidade de maior coordenação governamental na área de comércio exterior etc.

A volta para o Rio de Janeiro traz uma série de desafios. Contribuir na reforma do estado, nas discussões sobre como investir os royalties do pré-sal, a construção do complexo petroquímico da Petrobras, a instalação do trem-bala, a chance de sediar as Olimpíadas de 2016 e os preparatios para a Copa de 2014. Além disso, a inédita e bem-vinda cooperação entre os governos federal, estadual e municipal abriu parcerias que vão da reurbanização da zona portuária aos projetos de infraestrutura e segurança nas favelas. Os problemas são imensos, mas pela primeira vez em muitos anos há soluções no horizonte.

A dinâmica da minha vida no Rio vai me permitir retomar a vida acadêmica, que andou um tanto parada em Brasília. Volarei a lecionar na Fundação Getúlio Vargas e na Universidade Candido Mendes, e negocio colaborações com outras instituições.

Sentirei falta dos amigos de Brasília, das discussões acaloradas sobre política e dos bons momentos que tive por aqui. Mas meu sonho feliz de cidade é mesmo o Rio de Janeiro, com as multidões na rua, o caos delicioso do centro, os passeios de fim de semana na praia e na Lagoa e a riquíssima vida comunitária do meu bairro de Santa Teresa.

São mil quilômetros de distância, mas apenas 1h30 de avião. A todos os bons amigos que fiz na Corte: gostaria de ter convivido mais com vocês, pessoas maravilhosas. Fica o abraço fraterno e o desejo de que continuemos a nos rever pela ponte aérea. Aos amigos do Rio de Janeiro, tirem a cerveja da geladeira e vamos retomar nossos trabalhos, que ainda chego a tempo de curtir o finalzinho do Festival de Cinema.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A Sombra do Futuro



"Não se pode fomentar uma insurreição política de dentro de uma embaixada. Estamos brincando com fogo aqui."

Jorge Castañeda, sociólogo, ex-ministro das relações exteriores do México

"Será que também consigo me hospedar com 70 amigos numa embaixada brasileira? Tava pensando em ficar na da Itália."

Hélio de La Peña, humorista brasileiro

Imaginem que os Estados Unidos intervenham em um pequeno país da América Latina e permitam a um aliado - anteriormente deposto por um golpe, e rejeitado pela maioria da população - usar a embaixada americana como base para tentar retornar ao poder. Tudo em nome da democracia, claro. Só que, simultaneamente, Washington segue apoiando ditaduras na região. Qual seria a reação da opinião pública do Brasil?

Trabalhei vários anos com cooperação internacional na América Latina e conheço o receio que nossos vizinhos sentem das ações do país. Um Brasil que hoje age para restaurar Zelaya em Honduras pode amanhã intervir na Bolívia ou no Paraguai para colocar no poder um presidente qualquer (de direita ou esquerda) que lhe seja conveniente. O Itamaraty inaugurou um precedente perigoso, que despertará medos profundos na região.

O Brasil não é uma grande potência. Seus interesses nacionais são melhor servidos por uma ordem multilateral na qual as normas e princípios jurídicos importem. Minar os tratados (como a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, observem o artigo 41) é atentar contra si mesmo.

É legítimo que o Brasil procure maior influência nos assuntos internacionais e a experiência bem sucedida do país em conjugar políticas sociais e estabilidade econômica contribui neste momento de crise global. Mas a inserção externa deve ser pautada por respeito às regras multilaterais, moderação e a melhor tradição de resolução pacífica de conflitos. Essa tem sido a tônica na história republicana brasileira (em contraste com o intervencionismo militar do Império), com negociações bem-sucedidas envolvendo Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Suriname e Venezuela.



A América Central não tem sido região importante para o Brasil. No período de maior turbulência, das guerras civis da década de 1980, o país se contentou em jogar um papel secundário, no Grupo de Apoio ao Processo de Contadora, a iniciativa diplomática capitaneada pelo México, que ajudou na moderação daqueles sérios conflitos. Nos últimos anos, os interesses brasileiros na região cresceram com perspectivas ligadas aos biocombustíveis e às obras de infraestrutura do Plano Puebla-Panamá. A vitória de partidos de esquerda na Nicarágua, El Salvador e Honduras aproximou esses países do projeto político de Hugo Chávez e também foram vistos com simpatia pelo governo brasileiro, dentro do ideário de uma integração latino-americana conduzida por movimentos progressistas.

A preservação da democracia e da estabilidade política na América Latina são do interesse nacional brasileiro, e referendados pelos tratados diplomáticos regionais, como a Carta Democrática da OEA. Faz todo o sentido a condenação ao golpe em Honduras e os esforços do governo Lula para reestabelecer Zelaya na presidência. Mas é preciso observar princípios fundamentais: o respeito ao multilateralismo e às normas internacionais, a busca de soluções negociadas e a necessidade de concessões por parte de Zelaya, em particular o cancelamento de seu projeto ilegal de reformar a Constituição por meio de plebiscito, que motivou o golpe que o derrubou.

As ações dos últimos dias foram péssimas para o Brasil e significam a erosão da credibilidade diplomática do país na América Latina, ameaçando um patrimônio sólido contruído com dificuldade ao longo de décadas de bom trabalho. O ultimato que o governo hondurenho deu ao presidente Lula coloca o Brasil em situação difícil.

Enquanto isso, a crise se agrava em Honduras. Os golpistas decretaram Estado de Sítio, invadiram órgãos de imprensa contrários ao regime e impediram a entrada de uma missão da OEA. Nos bairros pobres da capital, organizam-se milícias pró-Zelaya.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A Cúpula de Pittsburgh



O encontro do G20 consolidou esse fórum como a principal articulação intergovenamenal para assuntos de economia internacional, e enterrou em boa hora o G8, que terá uma agenda mais restrita a temas de segurança. Os líderes mundiais reconheceram a importância crescente dos países em desenvolvimento e anunciaram a transferência de até 5% dos direitos de votos no FMI e no Banco Mundial para essas nações. Passo pequeno, mas relevante. A transformação está em curso.

A declaração da cúpula tem o tom de otimismo cauteloso, de que o pior já passou, mas que o retorno à normalidade não pode significar complacência diante dos problemas no sistema financeiro internacional. O documento estabelece uma série de diretrizes para a cooperação econômica global, a maioria delas sobre a necessidade de regulação mais eficiente. No campo das organizações multilaterais, há o compromisso de reforçar o FMI, que ganhará US$500 bilhões em recursos. Nada mal para uma instituição considerada moribunda após a crise asiática, dez anos atrás.

Contudo, o G20 não chega a marcar o retorno do keynesianismo. As decisões de Pittsburgh apontam para melhor articulação regulatória, mas estão bastante aquém das ambiciosas estratégicas que o economista britânico havia proposto em Bretton Woods, em 1944. A declaração do G20 é prudente ao afirmar que o setor público deve ceder espaço à iniciativa privada, à medida que a crise diminui. Ainda que simultaneamente mantenha a necessidade dos pacotes de estímulo nacionais, que tiveram bons desempenhos na China, na Alemanha e no Brasil. Certamente haverá mudanças significativas em várias economias, e daí a boa escolha de sediar a cúpula em Pittsburgh, antiga cidade siderúrgica que se reinventou após séria crise e hoje é um pólo de serviços e tecnologia, sobretudo na área médica.

A sombra da recessão continua presente em diversos países: EUA, Reino Unido, as nações do Leste da Europa. As guerras e tensões políticas continuam na Ásia (Afeganistão, Iraque, Paquistão, Irã, Coréia do Norte) e os esforços multilaterais demoram para chegar a bom termo em iniciativas que vão da Rodada Doha da OMC às negociações sobre mudança climática.

É um novo mundo que se desenha, e como o Brasil se adaptará a ele? As circunstâncias estão postas para que o país tenha influência no planejamento e ampliação das instituições internacionais, mas falta reflexão por parte do Estado e das universidades. Nos últimos meses, fui um dos negociadores de um acordo de cooperação entre o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e a CAPES. Nesta sexta foi publicado o fruto de nossa parceria: o edital do Pró-Comex, um programa de financiamento a pesquisas de pós-graduação na área de comércio exterior. Cada projeto receberá até R$75 mil, com direito a recursos para bolsas de doutorado e mestrado, viagens, compra de material acadêmico e até a possibilidade de estagiar no ministério e acompanhar as negociações governamentais. É sempre gratificante quando um trabalho desses é concretizado, ainda mais quando ocorre em meio a uma conjuntura internacional tão rica em oportunidades para o país.

Amanhã volto a comentar a crise em Honduras.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Qual Democracia?



No mesmo dia em que discursou na ONU exigindo a volta da democracia em Honduras, o presidente Lula se reuniu com seu homólogo Mahmoud Ahmadinejad, do Irã, que se mantém no poder após eleição marcada por acusações de fraudes, violência, prisões e torturas. Lula creditou as denúncias sobre irregularidades no voto a maus perdedores, e renovou o convite para que Ahmadinejad visite o Brasil.

Com freqüência meus amigos na Argentina e no Chile questionam a política externa brasileira no que toca à promoção da democracia e à defesa dos direitos humanos. Fazem o contraste entre a participação intensa de seus países nos fóruns internacionais com as posições de obstrução a investigações e sanções, adotadas pela diplomacia do Brasil, que afirma preferir o “engajamento construtivo”.

Os interesses políticos e econômicos na África e na Ásia levam o Brasil a colocar os assuntos humanitários em segundo plano, para não melindrar os aliados que busca nas rodadas da OMC ou na campanha pelo assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Essa postura vem desde a ditadura militar, foi menos acentuada sob Collor e Fernando Henrique Cardoso, mas voltou à tona com a ênfase de Lula nas relações sul-sul.



Mas os tempos mudaram. General Geisel, saia deste corpo, que ele não te pertence: a democratização da sociedade brasileira, a abertura econômica e a expansão das telecomunicações ampliaram o número de atores sociais envolvidos com a política externa, e muitos deles valorizam temas de direitos humanos, opondo-se às posturas do governo. O Itamaraty optou por não incomodar a ditadura de Robert Mugabe no Zimbábue, mas os sindicalistas pressionam em solidariedade a seus colegas perseguidos no país. Lula trata Ahmadinejad com honras, mas sua visita ao Brasil enfrenta resistência de grupos (judeus, baha´i, homossexuais) que condenam as violações de direitos humanos no Irã.

A política externa brasileira precisa estar conectada aos anseios e valores da sociedade. O Brasil não é a China ou a Rússia, que podem prescindir de considerar importantes os assuntos humanitários. Infelizmente, a democracia brasileira ainda não se encontra tão consolidada quanto as da Europa Ocidental ou as de algumas nações de sua vizinhança continental (Argentina, Chile, Costa Rica, Uruguai).

Mesmo nessa escala imperfeita e intermediária, o país pode ter uma diplomacia mais afinada com ideais progressistas, que priorize a estabilidade democrática na América Latina, com a exclusão de apoios a grupos armados e caudilhos autoritários. E adote equilíbrio nas alianças na África, priorizando relações com Estados moderados (África do Sul, Benin, Gana, Libéria) e mantendo distâncias de regimes asquerosos (Gabão, Líbia, Sudão, Zimbábue). A recente visita de Obama à região foi exemplar nesse aspecto.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Banzé na Embaixada



O retorno a Honduras do presidente deposto, Manuel Zelaya, foi um gesto provocador para tentar impedir a realização de eleições que referendassem seu afastamento do poder. A decisão de Zelaya, tomada sem o consentimento interno ou apoio de organizações internacionais colocou o Brasil em situação constrangedora. O presidente apareceu de surpresa na embaixada brasileira em Tegucigalpa, que após contactar Brasília autorizou que ele a utilizasse como base de operações. E de descanso, como se vê na foto acima.

Da perspectiva de Zelaya, faz todo sentido envolver o Brasil. Ele procura a legitimidade da proteção de um país moderado que, ao contrário de Venezuela ou Nicarágua, pode lhe oferecer alguma perspectiva de diálogo com a oposição. O presidente deposto acreditava que a chancela do Brasil lhe desse também alguma segurança física, mas não é o que tem acontecido. O governo golpista hondurenho cortou energia e água da embaixada, cercou o prédio e conflitos entre grupos pró e contra Zelaya ocorrem em frente à construção.

É do interesse nacional brasileiro a preservação da democracia na América Latina, mas uma solução negociada em Honduras – digamos, o retorno de Zelaya em troca de seu compromisso de não modificar a Constituição – seria bem melhor do que apoiar de modo tão decisivo uma ação unilateral do presidente deposto.



Abrigá-lo na embaixada se justificaria em caso de concessão de asilo, mas ao fazê-lo nas circunstâncias atuais o Brasil se tornou algo próximo de um refém nas mãos de um político impulsivo e instável.

Se a polícia hondurenha invadir a embaixada e ferir funcionários do Estado brasileiro, o que fará o governo? Enviará nota diplomática indignada? Mandará o porta-aviões? Os caças franceses? Ou o senador Sarney, como negociador plenipotenciário, e passagem só de ida a Tegucigalpa?

Os três meses de crise política hondurenha demonstraram que Zelaya possui apoio importante, mas minoritário da população do país e que seu retorno intempestivo provocará conflitos de rua, com violência e risco de mortes. Difícil acreditar que poderá servir de base para um acordo de governabilidade ou algo mais do que uma provocação aos golpistas.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Che - a Guerrilha



A primeira parte do épico de Steven Soderbergh sobre Che Guevara me deixou com sentimentos ambíguos: admiração por ele ter levado ao cinema uma parte importante da história da América Latina, irritação com o modo “realismo socialista” que o diretor usou para narrar a saga de Ernesto. A segunda metade, “Che – a Guerrilha”, conta o fracasso maior do revolucionário, a tentativa de lançar uma guerrilha na Bolívia. A sucessão de erros mostra um Guevara mais humano do que no outro filme, os pontos negativos são a visão simplista da política boliviana e a falta de atenção para personagens fascinantes que participaram da luta armada iniciada pelo Che.

Soderbergh retrata a Bolívia como um país miserável e títere dos Estados Unidos, com camponeses abandonados vivendo à margem da História. Na realidade, o país possui uma tradição revolucionária própria, que nada deve à cubana, embora seja bem diferente. Na ilha caribenha, predominavam os levantamentos armados, ao passo que na nação andina os movimentos contestatórios mais fortes eram o sindicalismo mineiro e rural, sendo que esse último tinha uma relação complicada com a questão indígena, tratando-a mais pelo prisma das classes sociais do que pelos aspectos étnicos e culturais. Que diabos, leia meu ensaio sobre o tema, publicado pelo Itamaraty.

Quando Guevara chegou à Bolívia, o país vivia sob a ditadura do general René Barrientos. Ele era um oficial carismático, profundo conhecedor do meio rural, que falava quéchua com fluência e havia mediado com sucesso um conflito armado entre camponeses e sindicalistas, nos anos turbulentos após a Revolução de 1952. Houve reforma agrária ampla, sobretudo no Altiplano, e a extinção das formas mais abusivas de exploração da mão-de-obra indígena. Era um péssimo cenário para fomentar uma guerrilha, ainda mais sob a liderança de um estrangeiro, num país que vivia em ebulição nacionalista desde a década de 1930.



O filme retrata bem as dificuldades de Guevara para lidar com os camponeses e a falta de apoio que recebeu do partido comunista local, mas passa por alto por alguns de seus colegas de armas mais fascinantes, como Haydée Tamara Bunke Bider (Tânia, vivida pela atriz Franka Potente) uma argentina que executou diversas missões de espionagem para a Alemanha Oriental e Cuba. Bonita, inteligente e misteriosa, continua até hoje a ser uma figura polêmica. Aparentemente, ela teve um caso com o general Barrientos, e talvez com o próprio Guevara.

Outro personagem que merecia mais destaque é o do escritor francês Régis Debray, que visitou Che na Bolívia e acabou capturado pelo Exército. Sua trajetória era uma boa oportunidade para refletir sobre os descaminhos das relações entre os intelectuais e as utopias revolucionárias da década de 1960. O pintor argentino Ciro Bustos faz uma breve aparição no filme, que poderia ser maior, em especial porque é interpretado pelo excelente ator Gastón Pauls.

Em vez de isso, a maior parte do filme é focada no jogo de gato e rato do Exército perseguindo os guerrilheiros pela selva boliviana. O efeito assusta, mas também é um tanto tedioso, as emboscadas são todas parecidas. Gostaria de menos tiroteios e mais concentração nos personagens.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Contando os Mortos



A Colômbia vive em conflito armado há mais de 60 anos, numa espiral sangrenta que envolveu os principais partidos políticos, guerrilhas, paramilitares, Forças Armadas, polícia e traficantes de drogas. Num contexto assim, quem topa ser um ativista de direitos humanos, com todos os riscos que a atividade implica? Que valores e hábitos influenciam as pessoas que escolhem esse campo? “Counting the dead: the politics and culture of human rights activism in Colombia”, da antropóloga americana Winifred Tate, é um belo mergulho nesse mundo.

A autora viveu vários anos em Bogotá, trabalhando em ONGs de direitos humanos, e exerceu as mesmas funções em Washington, em instituições que acompanham a situação colombiana. Não a conheço pessoalmente, mas é provável que tenhamos nos cruzado em algum congresso acadêmico ou evento social, porque ela trata de um ambiente que me é familiar.

Tate começa o livro com um excelente capítulo-resumo sobre a história do conflito colombiano (clique aqui para um texto semelhante, de Catherine LeGrand). Até a década de 1970 o conflito armado era relativamente restrito a áreas isoladas no interior, mas dali em diante a brutalidade se generalizou numa escala que só encontra paralelos com o Peru do Sendero Luminoso e com as guerras na América Central. A estratégia de sobrevivência encontrada pelos ativistas de direitos humanos foi intensificar seus vínculos internacionais e apostar na qualificação profissional como um escudo contra represálias. De fato, sempre admirei o trabalho dos colegas do país (por exemplo, a Fundação Viva La Ciudadanía), por sua alta capacidade técnica e um nível quase inacreditável de coragem.



É claro que só se entra numa vida tão arriscada por valores que estão além do cálculo utilitário imediato, de custos e benefícios. Tate identifica com precisão a influência da Igreja Católica e dos movimentos da esquerda universitária, mas talvez subestime o espírito de comunidade, o sentir-se parte de um grupo, que motiva tantos militantes. Afinal, as lembranças mais agradáveis que tenho do convívio com os amigos colombianos não são conversas sobre mortos e massacres, mas os papos sobre literatura latino-americana, regados a caipirinha e boas risadas.

Tate descreve com bons detalhes as frustrações dos trabalhos em redes internacionais de direitos humanos e como as atividades da ONU muitas vezes parecem fúteis e vazias diante do sofrimento com o qual procuram lidar. Chequem, por exemplo, os casos que Igor Pessoa conta de Genebra em seu excelente e recém-criado blog.

Ao mesmo tempo, ela mostra como as Nações Unidas se tornaram um ator importante no conflito colombiano, com a abertura pioneira do escritório do Alto Comissário de Direitos Humanos em Bogotá. A análise política é muito boa e me fez lembrar as histórias de um amigo que trabalhou nele, e terminou almoçando numa prisão de segurança máxima com o líder do grupo guerrilheiro Exército de Libertação Nacional (“Foi a melhor lasanha que comi na vida”).

O governo de Álvaro Uribe tem sido duro com os ativistas de direitos humanos, frequentemente acusando-os de ajudar as guerrilhas e grampeando seus telefones e emails. O livro de Tate tem um final um tanto sombrio, talvez excessivamente. Afinal, há processos importantes em curso na Colômbia, como a desmobilização dos paramilitares, as sucessivas derrotas das FARCs e a renovação partidária do Pólo Democrático.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Alemanha: eleições, crises, memórias



Na semana passada meu irmão passou alguns dias em Brasília e um dos temas sobre os quais mais conversamos foi a situação atual da Europa, continente que ele visita com freqüência (chequem seu ótimo blog de viagem, com impressões que vão da Sérvia à Finlândia). E, naturalmente, falamos muito do país mais importante da região, que nos fascina: a Alemanha.

O país perdeu há poucas semanas sua posição de maior exportador mundial. Para a China, é claro. Há ansiedade em como conciliar os direitos de cidadania alemães com a economia global cada vez mais competitiva, mas o país enfrenta bem a crise internacional. As políticas públicas de proteção social funcionaram, e as medidas de incentivo ao consumo e à indústria foram eficazes, em particular no setor automobilístico. Forte contraste com a situação bem mais complicada do Reino Unido.

No fim deste mês haverá eleições gerais na Alemanha e a vantagem (ligeira) é para a coalizão entre democratas cristãos e sociais-democratas, liderada por Ângela Merkel. É uma situação curiosa, porque o principal rival à chanceler é seu próprio ministro das relações exteriores. A imprensa observa que os debates entre ambos parecem mais um dueto do que o enfrentamento entre posições opostas.



Tédio é um luxo raro na história política alemã, como lembraram as cerimônias sobre deste mês sobre os 70 anos do início da Segunda Guerra Mundial, e duas décadas da queda do muro de Berlim. O mais interessante foi a publicação de documentos do Foreign Office britânico, até então confidenciais, que mostram o pavor de Margareth Thatcher e François Mitterand com a possibilidade de uma Alemanha unida e ressurgente. Os dois pensaram em recriar a aliança com a Rússia para conter o colosso germânico, mas recuaram diante do turbilhão incontrolável dos acontecimentos.

As mudanças na política externa alemã foram bem mais graduais do que se imaginava. O país retomou a influência na Europa Oriental e flerta com a retomada do sentimento de orgulho nacional (mesmo que por ora limitado ao esporte), mas segue jogando de acordo com as regras, na União Européia e na OTAN.

Ou quase sempre. Uma das polêmicas das eleições alemãs é o desempenho dos militares do país na guerra do Afeganistão. Há uma série de limitações a seu envolvimento em operações de combate, mas dias atrás eles foram responsáveis pelo ataque aéreo a um comboio seqüestrado pelos Talibãs. O bombardeio resultou em muitas mortes de civis inocentes e despertou um debate amargo na Alemanha sobre as responsabilidades internacionais do país.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Missões Francesas



O bom debate que tivemos no blog sobre a opção francesa da política de defesa me estimulou a escrever novamente a respeito do tema, desta vez para discutir o precedente da Missão Francesa contratada pelo Exército brasileiro nas décadas de 1920/1930, e avaliar o desempenho militar da França em tempos recentes.

A decisão do governo brasileiro em requisitar a Missão foi controversa, e se explica mais em função da influência política e cultural da França do que pelo seu desempenho na I Guerra Mundial, na qual parte considerável da zona industrial do país foi ocupada pelos alemães, que por duas vezes no conflito chegaram a poucos quilômetros de Paris.

Frágil frente à Alemanha, a França era obcecada com posturas defensivas. Mentalidade que culminou na inadequação das fortalezas da Linha Maginot diante da combinação de blindados e aviação da “guerra-relâmpago” dos nazistas. Mas a Missão Francesa introduziu avanços no Brasil, em particular na reforma do sistema de ensino do Exército, com criação ou melhoria de muitas escolas. Ajudou também a implementar o serviço militar obrigatório, aperfeiçoar regras de promoção etc.

A França entrou em declínio com a derrota na Segunda Guerra Mundial e as catástrofes militares nos conflitos coloniais na Indochina e na Argélia, além do fiasco da tentativa de tomar o Canal de Suez, em parceria com britânicos e israelenses. Os pára-quedistas franceses tentaram um golpe em Argel, e De Gaulle voltou à vida política e enterrou a IV República, reforçando os poderes presidenciais na nova constituição e garantindo um mínimo de estabilidade ao país.



Apesar da turbulência política do pós-guerra, a França desenvolveu um impressionante programa de modernização econômica, conduzido por tecnocratas como Jean Monnet e os especialistas da Escola Nacional de Administração. O poder público apoiou a formação de “campeãs nacionais”, grandes empresas com capacidade de inovação tecnológica e competição internacional, numa economia que se abria com a Comunidade Econômica Européia e com as rodadas de negociação do GATT. A modernização abarcou a área militar, com o desenvolvimento de indústrias de ponta na área aeroespacial e nuclear.

As Forças Armadas francesas não lutaram guerras entre 1962 e 1991, mas desempenharam uma série de operações semi-policiais nas antigas colônias, em particular na África. De lá para cá, os militares franceses combateram no Golfo Pérsico e com a OTAN no Kosovo, no Afeganistão. Participaram também de difíceis missões da ONU na antiga Iugoslávia, em Ruanda e em outros lugares turbulentos. A nova política de defesa prevê Forças Armadas menores, porém melhor treinadas, com ênfase na capacidade de intervenções rápidas no exterior e auxílio interno em caso de ataques terroristas.

Da Segunda Guerra Mundial até o fim da década de 1970, o principal parceiro internacional das Forças Armadas brasileiras foram os Estados Unidos. Os conflitos a respeito de energia nuclear, direitos humanos e mar territorial levaram o governo Geisel a denunciar o acordo com Washington. Atualmente, a agenda da Defesa brasileira está cada vez mais global, com parcerias com China, Índia, Rússia, países da América do Sul e da África etc.

A opção francesa faz sentido nessa estratégia de diversificação, mas espero que não se dê à França um peso exagerado nas questões militares brasileiras.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Senhores das Finanças



Durante a crise asiática, Liaquat Ahamed olhou com apreensão uma capa da revista Time com fotografias de autoridades econômicas com o título “o comitê para salvar o mundo”. Economista formado em Harvard e Cambridge, com longa carreira como banqueiro de investimentos, Ahamed pensou no fracasso dos titulares dos bancos centrais dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Alemanha em enfrentar a Grande Depressão da década de 1930. Do desconforto nasceu o excelente livro “Lords of Finance: The Bankers Who Broke the World”.

As biografias dos quatro protagonistas se entrelaçam com os dilemas de seus países. Montagu Norman, da Grã-Bretanha, era um aristocrata herói da guerra dos bôeres. Émile Moreau, da França, tecnocrata da prestigiosa Inspetoria de Finanças. Benjamin Strong, dos Estados Unidos, executivo de Wall Street que participara da organização tardia do Fed, após a sucessão de crises que afligiu “o primitivo, fragmentado e instável sistema bancário” (p.52) do país. O personagem mais interessante é Hjalmar Schacht, raro exemplo de self-made man da Alemanha imperial. Brilhante, mas de ambição desmedida, que o levou à aliança com os nazistas. O economista John Maynard Keynes foi o contraponto ao quarteto, na qualidade de intelectual em ascensão cujas opiniões críticas desafiavam a ortodoxia com a qual os banqueiros tentaram lidar com a Grande Depressão.

Ahamed começa a narrativa com a crise financeira decorrente da Primeira Guerra Mundial. O conflito causou sérios distúrbios ao comércio internacional e ao funcionamento das economias européias. Para financiar gastos militares, os governos recorreram a aumentos de impostos, empréstimos (“O mais pernicioso e insidioso legado econômico da guerra foi a montanha da dívida na Europa”, p.100) ou simplesmente emissão monetária. A inflação disparou: os preços se multiplicaram por dois na Grã-Bretanha, três na França e quatro na Alemanha, abrindo caminho à catastrófica hiperinflação da década de 1920.



Outro problema: as excessivas reparações que os vencedores impuseram à Alemanha no Tratado de Versalhes. A impossibilidade de honrá-las levou a uma série de conflitos políticos, como a ocupação francesa da Renânia, fomentando o extremismo político. Tentativas internacionais de limitar as reparações – os Planos Dawes (1924) e Young (1929) – tiveram impacto positivo, mas criaram na Alemanha uma perigosa dependência ao capital estrangeiro. A fonte secou após a quebra da bolsa de Nova York e o medo de novo colapso da economia contribuiu para a vitória de Hitler.

O resto desta resenha está no site Meridiano 47.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A Onda



Outro dia eu conversava com uma amiga sobre o ótimo momento do cinema alemão, com filmes que discutem o trágico passado do país – o nazismo, a cisão durante a Guerra Fria (“Adeus, Lênin”, “A Vida dos Outros”) e o mal-estar atual, no qual a prosperidade material convive com o esvaziamento das utopias (“Edukators”). “A Onda” é mais um bom exemplar da série. Embora seu roteiro seja um tanto mais esquemático que as outras produções que mencionei, também vale um bom debate sobre o espectro dos fanatismos.

O filme é um remake de um original americano da década de 1980, e ambos foram baseados em um caso real ocorrido nos Estados Unidos. Resumidamente: um professor de escola secundária realiza uma oficina sobre o totalitarismo com seus alunos. Entediados, resolvem adotar alguns dos métodos de propaganda e mobilização do nazismo e a brincadeira logo escapa ao controle.



A grande sacada do roteiro é perceber como a participação em movimentos que apelam ao instinto de grupo supre as necessidades emocionais e preenche as carências de jovens com problemas de adaptação – e qual adolescente não se sente assim? Vemos como a moça que tem vergonha de suas roupas mais pobres encontra satisfação ao vestir um uniforme – mesmo que seja jeans e camisa branca – que a iguala aos colegas. Ou como o rapaz desajustado, com uma família desestruturada, mergulha na possibilidade de finalmente se sentir parte de algo. E acompanhamos aqueles que se unem à equipe porque buscam companhia ou querem ir a festas.

O elenco do filme é muito bom, com um grupo de jovens atores muito convincentes em seus papéis – bem mais, por exemplo, do que na maioria dos dramas americanos ambientados em escolas secundárias. Jürgen Vogel também está excelente como professor roqueiro, que gosta de Ramones e simpatiza com o anarquismo, mas aos poucos releva uma assustadora tendência para líder autoritário.

A mensagem do filme me fez lembrar o Albert Camus de “A Peste”: o germe do fascismo está em todos nós, à espera de despertar para assombrar outra cidade feliz.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Kissinger e o Brasil



Meses atrás Henry Kissinger passou por experiência rara: a de não ser a pessoa mais inteligente na sala. Isso aconteceu quando foi entrevistado por meu amigo Matias Spektor, para a pesquisa que resultou em seu excelente livro “Kissinger e o Brasil”, que acaba de chegar às livrarias.

Kissinger foi o principal formulado diplomático dos governos de Richard Nixon e Gerald Ford (1969-1977). Suas realizações foram notáveis: encerrou a guerra do Vietnã, reaproximou os EUA da China, estabeleceu relações cordiais (“détente”) com a URSS e mediou os conflitos no Oriente Médio. Em geral se dedica pouco espaço à sua agenda para a América Latina e o próprio Kissinger estimula essa visão com declarações de que nada de importante vem do sul.

Matias mostra que não bem é assim, com base em entrevistas e pesquisa documental nos Estados Unidos e no Brasil. Washington propôs o estabelecimento de uma “relação especial” com a ditadura militar brasileira, que “recebeu a proposta de Kissinger com hesitação, mas aceitou entrar no jogo”. Embora o projeto não se concretizasse, esse fim não estava pré-determinado. Matias questiona a interpretação tradicional de que os governos Médici e Geisel buscaram maior autonomia diante dos EUA. O que parece ter acontecido de fato é uma relação mais ambígua, marcada por um lado pela “desconfiança e falta de entusiasmo para agir em conjunto com os Estados Unidos, e por outro, o anseio de reconhecimento americano como um ´país em ascensão´.” Sentimentos contraditórios que, a meu ver, até hoje permeiam as relações entre os dois países.

O principal interlocutor de Kissinger no governo militar foi o chanceler Antônio Azeredo da Silveira, o arquiteto da política externa do “pragmatismo ecumênico e responsável” de Geisel. Polêmico, genial e genioso, autoritário, vaidoso, Silveira marcou época e defendia seus gestos ousados argumentando que “o papel de uma chancelaria é pôr o país à frente de seu tempo”. Isso significava reconhecer regimes marxistas na África, reestabelecer relações com a China, assinar um ambicioso acordo nuclear com a Alemanha, lidar com a oposição da Argentina à construção de Itaipu e fortalecer os laços com potências européias e o Japão, no esforço para obter o reconhecimento do projeto de “Brasil potência”.

Há pontos comuns entre Kissinger e Silveira – ambos vinham de famílias que haviam tido prestígio, mas decaído, e ascenderam a partir de um certo status de outsider. Desconfiavam de suas respectivas burocracias e procuraram centralizar o poder em si mesmos e num seleto grupo de assessores: “Silveira repetia com ironia que se Kissinger pudesse, ensinaria o povo americano a ´escovar os dentes´. Mas ele não era muito diferente em relação ao povo brasileiro.”



Brasil e Estados Unidos cooperavam no combate à esquerda na América Latina, o que à época de Médici significava intervenções no Chile, Bolívia e Uruguai. Quando o presidente visitou os Estados Unidos, Nixon o saudou com a famosa frase de que para onde for o Brasil, iria a América Latina. A declaração provocou enormes polêmicas na região, que tendia a ver Brasília como “testa-de-ferro” ou “sub-imperialista” de Washington: “Anos mais tarde, Kissinger brincaria dizendo que ele nunca vira os países do hemisfério tão unidos – contra a aproximação entre Brasil e Estados Unidos”

Com Geisel, a situação na região se tornou um tanto mais estável, e curiosamente a ditadura militar brasileira aconselhou os americanos a serem mais moderados em suas relações com Angola e Portugal, onde o Brasil apoiava regimes marxistas e socialistas. Os EUA seguiram por um caminho intransigente do qual se arrependeram depois, mas Matias destaca o quando a decisão brasileira para reconhecer o domínio do MPLA em Luanda foi tomada sem as informações adequadas. Por exemplo, o governo americano não avisou Geisel da ida de milhares de tropas cubanas para Angola, o que colocou a ditadura brasileira numa posição constrangedora, e que serviu de munição para a tentativa de golpe da linha dura, como as diatribes do general Sylvio Frota.

A tentativa de aproximar os dois países acabou naufragando nas ambigüidades da relação, em pontos controversos como direitos humanos e energia nuclear e no declínio brasileiro após a segunda crise do petróleo. Matias mostra que os dissabores entre Washington e Brasília tiveram conseqüências inesperadas, como a busca pela aproximação com a Argentina, justamente porque os diplomatas perceberam o quanto as fissuras entre os dois países eram exploradas pelos Estados Unidos.



Um dos momentos mais curiosos do livro é a intervenção de Kissinger para levar Pelé aos Estados Unidos. Fã de futebol, ele superou os receios do Departamento de Estado, que acreditava que a ida do craque geraria uma onda de anti-americanismo no Brasil! Kissinger foi além e disse que o estilo futebolístico de um país diz muito sobre sua política externa. O jeito brasileiro de praticar o esporte é marcado pela capacidade de surpreender o adversário e “por isso, um dia desses vamos acordar e descobrir que o Brasil virou uma grande potência”.

O pior é que acho que ele tem razão.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A Opção Francesa



Carla Bruni não veio, mas Sarkozy e Lula anunciaram em grande estilo uma série de acordos militares entre França e Brasil. As Forças Armadas brasileiras comprarão 36 caças, 50 helicópteros e 5 submarinos, sendo um deles de propulsão nuclear. O pacote de R$37,5 bilhões é o maior da história brasileira - valor significativo em qualquer época, verdadeira benção para a combalida indústria de defesa francesa, que sofre os impactos da crise mundial.

A opção pela França se deu mais por razões políticas do que pela qualidade indiscutível dos produtos – os sites militares brasileiros se dividem nas preferências pelos caças russos ou americanos. Mas a excelente relação franco-brasileira tem se traduzido na disposição dos parceiros europeus em transferir tecnologias avançadas, numa escala que outras potências, como os Estados Unidos, jamais propuseram. Os franceses também aceitaram adquirir o novo cargueiro militar da Embraer, embora a aeronave rivalize com um produto semelhante de sua própria Airbus.

Em contraste, há ressentimentos com o veto americano à venda de Super Tucanos da Embraer à Venezuela – algo tornado possível pela presença de componentes dos EUA nesse modelo de avião.



O anúncio do presidente Lula favorecendo o Rafale passou por cima do cronograma oficial do Ministério da Defesa, que só divulgaria o resultado no fim de outubro. É a primeira venda internacional do novo caça. Quatro tentativas anteriores fracassaram e agora há certa expectativa do governo francês em conseguir encomendas de outros países emergentes, como a Índia.

A decisão brasileira se dá no contexto dos aumentos dos gastos militares na América do Sul, que quase dobraram ao longo da década de 2000. No entanto, é preciso cautela antes de falar em “corrida armamentista”, pois a região continua a ser a que menos despende em defesa. Mas o boom de commodities propiciou a alguns países (Chile, Venezuela) melhorar bastante suas capacidades em algumas áreas, ao passo que o apoio americano permitiu à Colômbia grande expansão de suas Forças Armadas.

Em parte, esses investimentos lidam com questões de sucateamento e abandono, mas levaram também o Brasil a aumentar seus gastos com defesa, para manter posições de liderança frente aos países vizinhos e fortalecer suas possibilidades de ação em regiões sensíveis - Amazônia e Atlântico Sul - em contexto de crises andinas, maior presença dos Estados Unidos na região, e a novas riquezas do pré-sal.

O problema, como observou Thiago de Aragão, é que a América do Sul está se tornando um perigoso tabuleiro de rivalidades entre potências extra-hemisféricas, com os EUA fornecendo armas à Colômbia, a França ao Brasil e a Rússia à Venezuela. Não é exatamente um bom cenário para a região.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Argentina, Brasil e a Segunda Guerra Mundial



Neste setembro faz 70 anos que começou a Segunda Guerra Mundial e o jornalista Ariel Palácios aproveitou o gancho para publicar excelente série de textos sobre a Argentina durante o conflito, e a influência do nazismo no país. Inevitável pensar na comparação com o Brasil, pois as escolhas feitas pelas duas nações nesse período crucial foram fundamentais entender a divergência nas trajetórias posteriores de ambas.


A ascensão de Hitler foi contemporânea da “década infame” na Argentina, época de golpes militares e regimes que se mantinham no poder por meio de eleições fraudulentas. No Brasil, foi período de instabilidade e levantes armados de comunistas e integralistas, culminando com a ditadura do Estado Novo, que atravessou toda a guerra. Ambos os países tiveram surtos de antissemitismo, lá mais forte do que cá.


A Argentina manteve-se neutra na Segunda Guerra Mundial até 1945, quando declarou guerra à Alemanha – declaração meramente formal, condição para a entrada na ONU. A neutralidade se devia a razões contraditórias: o desejo de continuar a abastecer o império britânico com alimentos e a simpatia de muitos argentinos pelo nazi-fascismo. Também havia, claro, importantes correntes da opinião pública favoráveis aos Aliados. Ficou famoso o gesto do general Justo, ex-presidente do país, que foi até a embaixada do Brasil em Buenos Aires e ofereceu sua espada para lutar contra o Eixo.


Divisões semelhantes às que existiam no Brasil à mesma época. Mas a tradição diplomática brasileira, desde o fim do Império, era de proximidade e trabalho conjunto com os Estados Unidos (o principal mercado para as exportações de café e açúcar) culminando na “aliança não-escrita” durante a longa gestão do barão do Rio Branco como chanceler. As relações da Argentina com os americanos haviam sido sempre tensas, em função de rivalidades comerciais. Impressiona como os líderes políticos da Argentina falharam em observar a decadência de seu aliado tradicional, a Grã-Bretanha, ao longo da primeira metade do século XX, e como não conseguiram perceber que o mundo que se desenhava estaria sob a hegemonia dos Estados Unidos.




Os britânicos compreenderam bem os dilemas da liderança política argentina durante a guerra. Os despachos dos embaixadores da Grã-Bretanha à época continuam a ser modelos de análise política e moderação. Mas os Estados Unidos embarcaram numa cruzada ideológica contra a Argentina, interpretando as decisões de seu governo como adesão ao nazismo. Tensões bem exploradas por Perón ao longo de toda sua carreira, lançando a cartada nacionalista de defesa da soberania contra a ingerência de Washington. Uma longa história de desconfianças e intransigências entre o peronismo e os EUA, que até hoje não terminou.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Roosevelt e Obama



Tenho lido muito sobre o governo Franklin Roosevelt e a Grande Depressão da década de 1930. Claro que as leituras tem me feito pensar na crise atual e nas dificuldades de Barack Obama – implementar a reforma no sistema de saúde, estimular o crescimento econômico e buscar soluções (já não digo vitórias) para as guerras no Afeganistão e no Iraque. Contudo, Obama não tem conseguido avançar sua agenda, ao contrário da expectativa de que seus primeiros 100 dias de governo replicassem o ativismo do início do mandato de Roosevelt. A popularidade do novo presidente cai significativamente, em algumas pesquisas está na faixa dos 40%.

Quando Roosevelt foi eleito, o Partido Democrata havia passado a maior parte dos 50 anos anteriores afastado da Casa Branca, era quase uma sigla regional, concentrada nos estados do sul - rurais, pobres e segregacionistas. Ainda assim, Roosevelt conseguiu forjar uma coalizão que apoiou suas reformas, e muitas delas (sobretudo as do chamado “segundo New Deal”, de 1935) contrariaram os interesses da elite. O presidente logrou sucesso apesar do mau desempenho da economia. Sua política social rendeu estabilidade em um mundo turbulento, mas o desemprego continuou acima dos dois dígitos até a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Muitos setores foram prejudicados por regulação excessiva ou mal formulada.

Obama enfrenta recessão menos pronunciada. Os pobres dispõem de redes de proteção social criadas pelo New Deal ou pela onda reformista da década de 1960. Ainda que limitadas em comparação à Europa, impedem a miséria e desespero observados na Grande Depressão. O Partido Democrata se fortaleceu com a urbanização do século XX e não mais carrega o fardo de um sul conservador, que em grande medida se afastou da sigla após as leis dos direitos civis (a própria região mudou e se tornou o próspero “cinturão do sol”, com cidades modernas).



A meu ver, a explicação está no tipo de polarização política que ocorreu nos Estados Unidos nos últimos anos e na ausência de graves desafios à ordem social.

Roosevelt enfrentou opositores de direita, mas a verdadeira ameaça a seu poder estava à esquerda, em políticos como Huey Long ou nos riscos representados pelo acirramento do conflito sindical ou da revolta social no miserável dust bowl. Boa parte de sua habilidade como reformista consistiu em extrair concessões dos conservadores com base no argumento “ruim comigo, pior se forem os radicais no poder”.

Existem muitos movimentos sociais à esquerda de Obama, mas não com poder para se apresentar como alternativa viável ao presidente. Seus principais opositores estão na direita, são eles quem Obama teme. Seu discurso moderado foi cuidadosamente construído para evitar as polarizações das décadas de 1990/2000, mas isso também significa a paralisia diante de questões controversas como a reforma do sistema de saúde. Ao contrário de Clinton, Obama basicamente lançou a responsabilidade sobre o Congresso.

Roosevelt lidava com um eleitorado disposto a inovações e com notável capacidade para aceitar o aumento da ação governamental, mesmo em seus aspectos mais desagradáveis, como o grande crescimento dos impostos em seu governo. Obama atua em meio a outros valores políticos, com uma população muito mais cética e crítica diante do Estado. Seu espaço de manobra é menor e por isso diversas de suas iniciativas parecem parar pela metade, como o inquérito sobre tortura nos serviços de inteligência. Cedo para dizer o que acontecerá, mas o início não é promissor.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O Boom do Cinema Sul-Africano


O cineasta Walter Salles Jr. certa vez observou que um país costuma passar por um boom cinematográfico 15 anos após um grande acontecimento histórico. Ele citava como exemplo as nações da Europa Oriental, particularmente a Romênia, mas sua percepção se adapta à perfeição ao que acontece com a África do Sul. Década e meia depois do apartheid, diversos filmes estão em produção sobre aquele período.

Um deles é Distrito 9, inesperado sucesso nas bilheterias dos Estados Unidos. Dirigido pelo jovem cineasta sul-africano Neill Blomkamp, ele conta uma parábola sobre racismo e discriminação, usando como pretexto o mau tratamento que os humanos de Johannesburg dão a um grupo de alienígenas que desembarca na cidade.

Mas minha maior expectativa está com o “Clube do Bang Bang”, ainda em produção. É a história de um grupo amigos fotojornalistas que cobriu os momentos mais dramáticos da transição do apartheid para a democracia, como o conflito entre os xhosa e os zulu que quase cortou o país em dois. Algumas das imagens que os repórteres registraram se tornaram símbolos de uma época, como a imagem abaixo – de um homem queimado durante os choques étnicos – que ganhou o Prêmio Pulitzer.



Para além da importância jornalística do grupo, adorei a idéia de contar uma parte importante da história de um país por meio do trabalho de amigos repórteres. Fiquei pensando na riqueza do que aconteceu no Brasil nos últimos anos. Digamos, do fim da ditadura ao governo Lula. E em como o cotidiano meio maluco da imprensa é uma ótima maneira de olhar essas situações.

Outra boa pedida será a adaptação para o cinema do romance “Desonra”, de J. M. Coetzee, uma elogiadíssima trama de violência e degradação sobre a África do Sul pós-apartheid. O livro toca em tantos pontos polêmicos que nenhum produtor do país topou financiar o filme, o dinheiro saiu de investidores australianos. Coetzee, Prêmio Nobel de literatura, é um cronista talentoso e amargo das agruras de sua terra natal.

Um conto mais ameno será o que fala sobre a relação de Nelson Mandela com o rugby. Quando foi presidente, Mandela o usou habilmente para promover a integração racial e o espírito de solidariedade nacional, conseguindo fazer com que os negros se entusiasmassem pelo esporte, até então associado quase exclusivamente aos brancos.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Manu Chao: música para a dança da América Latina



Uma das minhas glórias como repórter foi ter entrevistado Manu Chao, quando ele lançava o CD Clandestino. Conversamos no restaurante Nova Capela, no bairro carioca da Lapa, num papo descontraído e aberto que tratou de México, Colômbia, EUA, movimentos sociais e, claro, música. Me fascina como ele é capaz de colocar num liquidificador criativo as principais tendências culturais do século XXI e tirar dali canções maravilhosas em francês, inglês, espanhol, português, o que for.

Há poucos meses assisti a um show de Manu aqui em Brasília, e o achei em plena forma. Agora leio sobre o lançamento de seu novo disco: “La Colifata”, gravado num hospital psiquiátrico na Argentina, é uma parceria do cantor e compositor com as pessoas internadas na instituição. Você pode baixar as canções pela Internet, gratuitamente, é só clicar no link.

A BBC organizou um debate online no qual Manu conversa com seus fãs, sobretudo os da América Latina, e fala da “crueldade e poesia” que caracterizam o continente. Naturalmente, há certa ironia em gravar num hospício um disco sobre a região, mas a metáfora bem pode se aplicar a qualquer canto do planeta nestes dias que correm.



Em junho, quando estive em Porto Alegre para um evento acadêmico, os cordialíssimos alunos da UFRGS me levaram para tomar um café no Centro Cultural Mário Quintana. Conversando, descobrimos inquietações comuns com o enfoque tradicional de estudo/ensino de relações internacionais no Brasil, ainda muito voltados para a história diplomática, do que o chanceler fulano disse ao embaixador sicrano. Um dos nossos desejos é reforçar o aspecto da cultura, tão rico em possibilidades.

Manu Chao oferece várias. Nascido na França, filho de exilados políticos da Espanha, ele sempre transitou por diversas culturas. Na América Latina, sua turnê artística-social do Expresso de Gelo merece uma boa análise acadêmica. Tratou-se de uma viagem pela Colômbia, num trem fretado, atravessando a zona da guerrilha e dos paramilitares, parando em pequenas cidades e vilarejos para conversar com as pessoas e ouvir suas histórias.

Quando o entrevistei, Manu destacou em diversos momentos esse desejo de estar com a gente comum, de escapar ao cerco do show-business e poder passear por mercados e estações rodoviárias. Mais de uma vez pensei nessas palavras, em minhas andanças por Quito, La Paz ou Ciudad del Este. Acadêmicos e artistas podem e devem andar mais próximos.