terça-feira, 30 de novembro de 2010

Uma Certa Paz



O israelense Amós Oz está rapidamente se tornando um dos meus escritores favoritos. Começou quando li “A Caixa Preta”, uma história de amor devastadora sob o pano de fundo da ascensão do nacionalismo religioso. E continua agora com o lançamento no Brasil de seu romance “Uma Certa Paz”. Publicado pela primeira vez em 1982, é um triângulo amoroso ambientado às vésperas da Guerra dos Seis Dias, com protagonistas que representam o conflito entre a geração dos fundadores da Israel e seus filhos, para quem os ideais trabalhistas dos pais não servem mais como bússola, num mundo que se tornou estreito demais para o anseio por liberdade.

O protagonista do romance é Ionatan, uma espécie de rapaz-modelo da primeira geração a crescer em Israel. Seu pai é o secretário-geral do kibutz (fazenda coletiva) onde mora, e Ionatan sempre fez o que se esperava dele. Serviu lealmente ao Exército nas guerras, casou-se com uma colega de organização e trabalha com dedicação nas atividades agrícolas. Mas Ionatan se sente angustiado com as regras rígidas que regulam sua vida, e deseja com intensidade e urgência algo que ele não sabe bem o que é. Seu casamento é vazio de amor, a rotina lhe entedia e ele sente vontade de partir e conhecer o mundo.




O elemento que detona a decisão de Ionatan é a chegada ao kibutz de Azaria, um jovem excêntrico e um tanto desajustado, uma espécie de proto-hippie que traz em si algo do idealismo dos fundadores de Israel. Ele se esforça para se integrar à comunidade da fazenda e se apaixona por Rimona, a esposa de Ionatan, que corresponde a seu amor.

O pano de fundo político do romance é a tensão crescente entre Israel, Egito e Síria, que eclodiu em 1967 na Guerra dos Seis Dias. O pai de Ionatan, Iulek, é um líder respeitado, que foi ministro no governo de Ben Gurion e é um interlocutor, ainda que crítico, do primeiro-ministro Levi Eskhol, que faz algumas aparições na trama.

domingo, 28 de novembro de 2010

A Longa Marcha da República



As polícias e as Forças Armadas ocuparam o Complexo do Alemão em poucas horas, sem confronto violento, mas os traficantes não se entregaram, nem foram presos, o que faz crer que estão escondidos nas casas dos moradores (provavelmente mantendo muitos como reféns) ou abrigados nas matas das redondezas.

Caiu o mito do crime organizado todo-poderoso. O que vimos foi uma rede de compadres, arrogante, autoritária, cheia de bravatas, que desmoronou diante da reação rápida e decidida do poder público, com cenas humilhantes como a do traficante que urinou nas calças ao ser detido. Torço para tenhamos uma solução pacífica, com a captura dos bandidos.

A imagem mais marcante deste domingo foi o hasteamento da bandeira brasileira (e não a das unidades policiais de elite, como era habitual nas operações de invasão de favelas) no alto do complexo, simbolizando a (re)conquista do território pelo Estado. Mais uma foto para a iconografia bélica que tomou conta da cidade, numa semana que certa imprensa comparou ao desembarque Aliado na Normandia. Por esta lógica, este momento seria talvez como os soviéticos erguendo seu estandarte no Reichtag, durante a conquista de Berlim...

Mas o que vivemos no Rio - insisto no ponto - não é uma guerra. Nem sequer um conflito civil, de fundo religioso ou étnico. Os xiitas não tomaram o Alemão, os hutus não conquistaram Vila Cruzeiro. Trata-se de uma operação policial, com auxílio militar, para eliminar o controle de quadrilhas criminosas sobre bairros pobres. A linguagem bélica tem muitos usos e abusos, em especial legitimar atos autoritários do poder público contra a população mais vulnerável.

Todos os episódios marcantes da violência no Rio geraram um impulso de renovação e reforma, que murchou após poucas semanas de entusiasmo midiático. Isso ocorreu depois das chacinas dos anos 90 e de crimes chocantes como o sequestro do ônibus 174,o assassinato do jornalista Tim Lopes e o do menino João Hélio etc. Há consenso que são necesssárias transformações profundas no aparato legal-repressivo: um código prisional, um regime mais restritivo aos chefes criminosos, monitoramento de advogados e parentes de presos que agem como pombos-correios... Ainda não se fala na reforma da polícia - por exemplo, criação de uma força de ciclo único, que fundisse a PM e a Civil. Sou cético quanto à chance de algo assim avançar.

O Alemão havia sido palco de um grande conflito há quase quatro anos, no início do governo Cabral. Aquela operação fracassada acabou sendo o incentivo para outras iniciativas, que acabaram resultando nas UPPs. A tendência é expandir essa experiência para além das 13 comunidades nas quais foram implementadas e a ocupação do Alemão é o primeiro passo para a UPP nesse complexo de favelas.

O Alemão agora tem Estado, oxalá possa em breve ter também a República, entendendo por essa expressão aquilo que todos os outros brasileiros queremos e merecemos: império das leis, democracia, bens públicos básicos (educação, saúde, segurança). Implementá-la nas favelas requer o uso da força, para desalojar as quadrilhas criminosas que as controlam.

Louvemos o Estado de Direito Democrático: Forças Armadas e polícias são nossos instrumentos, a serviço dos cidadãos. O que vimos nestes dias é aquilo que deve ser normal em qualquer país decente - pessoas aplaudindo os agentes da lei, oferecendo-lhes água e ajuda, pedindo para tirar fotografias a seu lado. Estamos, felizmente, bem distantes do que via quando fui repórter, e testemunhava hostilidade ou indiferença da população a essas instituições. Tomara que tudo isso fique para trás, do mesmo modo como o país superou o descalabro econômico da hiperinflação e começa a avançar sobre a pobreza.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Terrorismo no Rio



Vivo no Rio de Janeiro há mais de 30 anos e já vi um impressionante catálogo da violência: chacinas, arrastões, atentados a prédios públicos, ataques aleatórios à propriedade privada, epidemias de sequestros, proliferação de grupos armados ilegais e o desenvolvimento de uma cultura da morte e da agressão junto a uma geração de jovens que cresceram em meio à crise de segurança pública da cidade. Mas nada se compara ao que experimento nesta semana, com os sucessivos atos terroristas lançados (aparentemente) por uma coligação das facções do tráfico de drogas, em represália à instalação das Unidades de Polícia Pacificadora em 13 das principais favelas cariocas.

O terrorismo é o uso da violência em massa contra alvos civis com o propósito de difundir o medo para alcançar objetivos determinados. A maior parte dos atentados ocorre em resposta a ocupações militares estrangeiras, mas também há casos de atentados perpretados pelo crime organizado, visando a deter a repressão governamental contra suas atividades. Isso ocorreu na Colômbia da década de 1990, quando Pablo Escobar e outros traficantes lançaram ataques desse tipo, entre outras razões para tentar impedir as autoridades colombianas de deportá-los para os EUA. As ações de uma facção mafiosa em São Paulo, há quatro anos, também se enquadram nessa categoria, bem como os atentados da máfia italiana contra a Operação Mãos Limpas.



O mesmo vale para o Rio, embora a metáfora mais usada por estes dias seja a de "guerra civil". As comparações bélicas são perfeitamente compreensíveis, quando vemos imagens como a dos blindados da Marinha, acompanhados por fuzileiros navais, ocupando uma das favelas que se tornaram refúgio para os bandidos que fugiram das comunidades onde foram instaladas as UPPs. Ou quando assistimos aos repórteres de televisão transmitindo com coletes à prova de balas, como correspondentes no Afeganistão. A própria escala da ação dos criminosos - a TV mostrou centenas deles correndo das tropas policiais e militares - reforça a imagem da guerra.

Contudo, um conflito civil pressupõe grupos que disputam o Estado, que tem projetos políticos distintos para a sociedade. Não é o caso. O que temos no Rio são quadrilhas criminosas querendo a continuidade de sua situação de impunidade e reagindo a uma política pública que, embora com defeitos, eliminou o controle territorial de grupos armados ilegais sob vários bairros pobres, onde vivem cerca de 200 mil pessoas. O tráfico não tem organização política, quando muito adota um vago discurso demagógico de denúncia das injustiças sociais.

As imagens das Forças Armadas ocupando favelas perigosas têm um apelo poderosíssimo para a população do Rio de Janeiro. Os militares brasileiros provaram que sabem realizar esse tipo de operação, com a experiência adquirida no Haiti. Há inclusive uma brigada do Exército especializada nessas situações. Mas todos os oficiais com quem conversei sobre o assunto, no Exército e na Marinha, são extremamente cautelosos quanto ao envolvimento das Forças Armadas, em caráter permanente, nesse tipo de missão. Temem o efeito corruptor do tráfico e o desvio da missão dos militares. Em geral, esses oficiais afirmam que as intervenções devem se limitar a ocasiões especiais, como grandes eventos esportivos e convenções internacionais.

Me parece, no entanto, que a pacificação do Complexo do Alemão será um desses casos. A existência de uma grande quantidade de traficantes armados e de obstáculos físicos como barricadas torna necessário o emprego de uma força que provavelmente as polícias não são capazes de colocar em prática. E a própria presença dos militares é um elemento poderoso de dissuação aos criminosos. Novamente, a analogia com o Haiti é muito forte, em especial a ocupação de Cité Soleil, o equivalente ao complexo do Alemão em Porto Príncipe.

Décadas de insegurança tornaram a população do Rio sedenta por demonstrações de força governamental, e ansiosa por míticos banhos de sangue que eliminem os bandidos da cidade. Traficantes são cruéis, mas em geral não são burros. Nenhum líder de quadrilha vai esperar ser aniquiliado pela cavalaria blindada. A tendência é que, ao serem ameaçados de cerco, migrem para a região metropolitana e para o interior do estado, como aliás já tem ocorrido. O xadrez da segurança vai continuar, mas ao menos desta vez parecem ser os bandidos que estão em xeque.

P.S. - O Google divulgou um mapa atualizado da violência no Rio, e o coloquei neste post em substituição à imagem anterior.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Guerra do Google



A América Central já deu ao mundo a "Guerra do Futebol" entre Honduras e El Salvador, agora corre o risco de presentear a crônica bélica com a primeira "Guerra do Google", entre Nicarágua e Costa Rica, com o inusitado extra de que este país não possui Forças Armadas. O incidente faz parte de um contexto mais amplo: a eclosão de diversas disputas territoriais na América Latina e uma sucessão de crises na América Central e Caribe (Cuba, Haiti, Jamaica, Honduras, Guiana).

Nicarágua e Costa Rica têm um velho contencioso de fronteiras com relação ao rio San Juan, que separa os dois países, e de uma ilha nesse curso fluvial. No início de novembro, o governo da Nicarágua começou a dragar o rio, ocupando um território que segundo o Google Maps, fazia parte do país. As autoridades da Costa Rica protestaram e a empresa mudou a representação da fronteira, mas soldados armados das duas nações se dirigiram para a região em disputa - no caso costarriqueno, são apenas policiais, pois seu Exército foi abolido na década de 1940.

O rio San Juan não é exatamente o jardim do Éden, mas a polarização do conflito interessa aos dois presidentes envolvidos, que podem usar a onda nacionalista para lidar com problemas de popularidade. O nicaraguense, Daniel Ortega, mobilizou seus parceiros da ALBA e conseguiu uma fonte importante de apoio na Organização dos Estados Americanos (OEA). A costarriquenha, Laura Chinchilla, está no cargo há apenas 6 meses e tenta afirmar sua liderança conservadora diante do peso do antecessor progressista, Oscar Arias, que governou o país várias vezes e ganhou o Nobel da Paz por sua mediação das guerras civis da América Central, na década de 1980.

A Costa Rica recorreu à OEA que iniciou os procedimentos de praxe nesse tipo de conflito: reuniões extraordinárias, missões de bons ofícios do secretário-geral (o hábil político chileno José Miguel Insulza) e o esforço para acalmar a situação. No entanto, há dois fatores que podem agravar a disputa.

O primeiro é a atuação instransigente do bloco da ALBA, votando contra ou se abstendo na votação da OEA que recomendou a retirada das tropas dos dois países da zona em disputa. É a primeira vez em décadas que a organização passa por uma divisão desse tipo, se não me falha a memória, a última havia sido a suspensão de Cuba, nos anos 60.

O segundo é a presença de 300 mil imigrantes da Nicarágua na Costa Rica. Muitos fugiram para o país vizinho durante a Revolução Sandinista e a guerra civil, outros migraram em busca de trabalho e melhores condições de vida. O risco de xenofobia e violência contra esse grupo é grande, e aqueles que conhecem a história da "Guerra do Futebol" devem estar lembrados de que a causa do conflito foi a presença de muitos camponeses salvadorenhos em Honduras, em busca de terra, e as tensões sociais e econômicas que resultaram disso.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Azeredo da Silveira: depoimento



Nasceu guerreiro, nasceu lutando.
João Guimarães Rosa, falando do amigo Antônio Azeredo da Silveira

O Brasil, em razão de fatores objetivos, tem um destino de grandeza ainda relativa em nossos dias, ao qual não terá como se furtar, e isso lhe impõe a obrigação de encarar seu papel no mundo em termos prospectivos fundalmentamente ambiciosos. Digo ambição no sentido de vastidão de interesses e escopo de atuação, e não no desejo de hegemonia ou de preponderância.

O papel de uma chancelaria é por o país à frente do seu tempo.
Azeredo da Silveira

A Editora da FGV lançou na semana passada "Azeredo da Silveira: um depoimento", organizado por meu amigo Matias Spektor. Trata-se de uma série de longas entrevistas que o ex-chanceler do presidente Ernesto Geisel deu ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da FGV, do qual sou professor. O depoimento foi dado entre 1979 e 1982 às professoras Maria Regina Soares de Lima e Monica Hirst - fui assistente daquela e orientando de doutorado desta. Silveira foi o mais importante ministro brasileiro das Relações Exteriores desde o barão do Rio Branco, e sua busca de um "pragmatismo ecumênico e responsável" foi a face internacional do projeto Brasil-Potência, uma influência fortíssima na atual diplomacia de "potência emergente".

Silveira era um diplomata de carreira que ocupou postos de relevo a partir da década de 1960, entre os quais se destacaram sua atuação nas negociações econômicas e políticas da ONU, em Genebra (comércio, desenvolvimento, não-proliferação nuclear) e os anos em que serviu como embaixador na Argentina, no período conturbado das ditaduras de Onganía e Lanusse, e do segundo peronismo. Geisel o escolheu como chanceler justamente porque queria alguém que destravasse as relações entre Brasília e Buenos Aires, perturbadas pela oposição argentina ao projeto brasileiro de construir a usina de Itaipu, em parceria com o Paraguai.

À frente do Itamaraty entre 1974 e 1979, Silveira comandou impressionante renovação diplomática e conceitual, no sentido em que mudou a maneira pela qual se pensava política externa. Reestabeleceu relações com a China comunista (haviam sido rompidas depois do golpe de 1964), parou com o apoio a Portugal na África, reconhecendo os novos regimes marxistas das ex-colônias lusitanas no continente, firmou um ousado acordo de cooperação nuclear com a Alemanha Ocidental, aproximou-se dos países árabes no contexto dos choques do petróleo e procurou resolver tensões entre o Brasil e os vizinhos sul-americanos, como o Peru, que então vivia sob uma ditadura militar de esquerda.

Com os EUA, Silveira a princípio encontrou um parceiro em Henry Kissinger (a relação é o tema do excelente livro anterior do Matias), com quem estabeleceu um entendimento de alto nível. Mas quando os republicanos (Nixon e Ford) foram substituídos pelo democrata Jimmy Carter, os conflitos se agravaram em torno da oposição americana ao acordo nuclear entre Brasil e Alemanha, e pela decisão de Carter de transformar a ditadura brasileira no símbolo de sua nova política de defesa dos direitos humanos na América Latina. Geisel reagiu denunciando o acordo de cooperação militar com os Estados Unidos, que vinha dos anos 50.

Com frequência se diz que a diplomacia de Geisel foi "terceiro-mundista", mas essa é uma interpretação errônea. Silveira preferia falar em "universalização da política externa" e dedicou intensa atenção às grandes potências, procurando estabelecer parcerias com Grã-Bretanha, França, Itália, Alemanha e Japão como modo de reduzir a dependência brasileira dos Estados Unidos - o ponto foi especialmente pronunciado na questão nuclear.

Também é fascinante observar o jogo entre política e economia. O chanceler observou que certos bons negócios na África - como os acordos com a Nigéria - só foram possíveis quando o Brasil se afastou do colonialismo português e do regime racista da África do Sul. A carta comercial foi igualmente útil para convencer os militares da importância de se reaproximar da China comunista, embora Silveira reconheça que isso era apenas um pretexto, pois seu real objetivo era demonstrar que a diplomacia brasileira era capaz de posições autônomas diante dos grandes temas globais. O chanceler criticava bastante a imprensa nacional (em especial o Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil) por seu provincianismo intelectual e sua falta de percepção da realidade internacional.

Silveira foi um grande operador, mas não era um intelectual que colocasse seu pensamento em discursos memoráveis, livros e artigos. Daí a enorme importância deste depoimento para todos os que se interessam pela política externa brasileira.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Ascensão e Crítica do Novo Jornalismo



Meu amigo Luiz está sempre me enviando textos interessantes por email e nesta semana me enviou esta reflexão sobre Ryzsard Kapuscinki (o branquelo na foto acima), mago do jornalismo internacional que tem sido muito criticado recentemente, porque foi descoberto que várias de suas reportagens continham elementos ficcionais. Problema, aliás, que ocorre com freqüência entre os expoentes do Novo Jornalismo.

O movimento começou nos anos 60, quando um grupo de jornalistas americanos extremamente talentosos – Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, Michael Herr, Norman Mailer, entre outros – começou a usar técnicas narrativas de ficção para escrever reportagens longas, em especial em revistas ou em livros. Acreditavam que os métodos tradicionais do jornalismo não eram mais capazes de dar conta das transformações velozes e radicais pelas quais o mundo passava naquela década turbulenta.

Houve precursores importantes do Novo Jornalismo nos anos 40 e 50, como a extraordinária reportagem de John Hershey sobre os efeitos da bomba atômica em Hiroshima, o “romance de não-ficção” de Truman Capote a respeito do assassinato de uma família no interior dos EUA ou o relato do argentino Rodolfo Walsh sobre o fuzilamento ilegal de ativistas peronistas pela ditadura militar de seu país. Os textos de velhos mestres do jornalismo brasileiro, como Joel Silveira e Antônio Callado, também poder ser classificados nesse grupo. A diferença é que os expoentes dos anos 60 eram mais ousados em termos formais e menos escrupulosos em respeitar os cânones do jornalismo. Com todas as letras: inventavam cenas, criavam personagens a partir do amálgama de duas ou três pessoas reais, elaboravam diálogos e situações.

O Novo Jornalismo sempre foi atravessado por controvérsias, que podem ser resumidas em duas críticas gerais: 1) A de que não há nada de inovador no que seus praticantes fazem, é simplesmente a boa e velha reportagem num formato um pouco mais literário; 2) A de que sua mistura de ficção e jornalismo deturpa os fatos e é ruim para informar os leitores.

As duas objeções têm valor. Gosto mais do rótulo “jornalismo literário”, porque ele é mais abrangente e captura um tipo de escritor que existia bem antes da explosão do gênero nos anos 60 (Euclides da Cunha cobrindo a guerra de Canudos, por exemplo) e abarca também ótimos repórteres contemporâneos (Mark Bowden, de “Falcão Negro em Perigo” ou o Thomas Friedman de “De Beirute a Jerusalém”).

Aliás, “jornalismo literário” é o título da excelente coleção editada pela Companhia das Letras, que reúne muitos dos mestres listados neste post, tanto brasileiros quanto estrangeiros. A igualmente ótima coleção "jornalismo de guerra", da Objetiva, também publica vários desses escritores.

Quanto à veracidade das narrativas, há que se ter certo cuidado. Leio autores como Kapuscinki ou Herr muito mais pelo seu valor literário, bela beleza do estilo e força das descrições do que em busca de análises factuais precisas. Tudo tem sua importância. Confesso, no entanto, certa nostalgia do bom e velho hábito jornalístico de checar informações, apurar com cuidado. Nesta época de mídias instantâneas, é uma qualidade ainda mais necessária.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

De Thomas Jefferson a Michael Moore



Assisti ao DVD de “Capitalismo: uma história de amor”, o documentário mais recente de Michael Moore. Superficialmente, é um filme com as características que o fazem adorado ou detestado: um panfleto ácido e bem-humorado com lógica conspiratória, que explica a crise econômica dos EUA como o resultado de um complô das elites empresariais, financeiras e governamentais, propondo como alternativa a mobilização popular para retomar o sonho americano. Mas o documentário pode ser interpretado de outro modo, como a manifestação mais recente de um padrão recorrente na história dos EUA, desde os tempos de Thomas Jefferson - a desconfiança que os defensores da democracia mantêm das grandes organizações econômicas. Moore repete, talvez sem perceber, argumentos presentes nos debates mais controversos do início da República, como a polêmica que opôs Jefferson aos federalistas pela criação do Banco dos Estados Unidos.

O banco foi idealizado por Alexander Hamilton, secretário do Tesouro. Seria de propriedade privada, mas negociaria com a dívida pública e estimularia o desenvolvimento econômico. O modelo era o Banco da Inglaterra, a bem-sucedida instituição que financiou de forma brilhante a expansão do império britânico. Mas Jefferson e seus seguidores acreditavam que o banco significaria a captura do Estado por parte de grandes interesses privados, que sem supervisão adequada desviariam os recursos públicos para seus próprios fins. Qualquer semelhança com os debates sobre a atuação do Tesouro, do Fed e do Congresso nos recentes mega pacotes de ajuda financeira não é mera coincidência.

Jefferson desconfiava de grandes burocracias e preconizava a importância de pequenos fazendeiros, autônomos e com espírito crítico, para fiscalizar a ação do Estado. Moore é um filho da prosperidade do século XX, seu modelo, como retratado no filme, é a sólida situação que sua família viveu durante sua juventude, com um pai que trabalhava na General Motors e um pacote de benefícios generosos, entre privados (plano de saúde) e públicos. Em suma, algo mais próximo ao Estado de Bem-Estar Social do que da utopia agrária de Jefferson.



O paraíso de classe média de Moore também está bastante distante da experiência contemporânea dos Estados Unidos. Nos últimos trinta anos, o país se tornou o mais desigual entre as nações desenvolvidas, como analisado em recente livro de Paul Pierson e Jacob Hacker. O 1% mais rico saltou de 8% da renda (1979) para cerca de 25% (2009). São os piores índices desde a Depressão da década de 1930. Os profissionais com menor qualificação tiveram piora considerável da renda. Em grande medida, a transformação reflete a guinada da economia industrial para serviços, como tecnologia da informação e finanças, que exigem instrução mais avançada, mas a concentração de renda também foi agravada por políticas públicas que beneficiaram os ricos, como redução de impostos.

Pierson é um dos mais respeitados especialistas na crise do Estado de Bem-Estar, na Europa e em sua versão mais modesta, dos EUA. É curioso, no entanto, que ele trate tão pouco do aspecto internacional. Será coincidência que as desigualdades sociais tenham aumentado tanto nos Estados Unidos quando a Guerra Fria acabou? A rivalidade com o comunismo e o medo da URSS foi um fator fundamental para o estabelecimento das grandes coalizões políticas das décadas de 1940-1970, que implementaram as abrangentes políticas sociais do período. Essa aliança foi rompida e nos EUA muitos conservadores inclusive repudiam as reformas do New Deal e dos anos 60.

No filme de Moore há o lamento do cineasta de que o socialismo nunca tenha sido uma ideologia política forte nos EUA. Na Europa, claro, a história foi outra, o que ajuda a explicar a permanência de boa parte dos Estados de Bem Estar naquele continente. Moore trata pouco das causas do caso americano, mas aos interessados recomendo “The Broken Covenant”, de Robert Bellah. Suas hipóteses: a fragmentação étnica dos trabalhadores americanos, dificultando a ação coletiva, e uma cultura política de matriz puritana, centrada nas virtudes do espírito individual de iniciativa, e cética diante de projetos coletivistas e de amparo governamental.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A História do Mundo em Seis Copos



Ganhei de presente de uma amiga (obrigado, Carol!) o ótimo “Uma História do Mundo em Seis Copos”. Escrito pelo jornalista Tom Standage, editor de negócios da Economist, é uma mistura esperta de gastronomia, economia e política. Standage associa cada tipo de bebida a uma sociedade e/ou época: cerveja (Mesopotâmia), vinho (Grécia e Roma Antigas), destilados (colônias européias na América do Norte e Caribe), café (Iluminismo europeu), chá (expansão do império britânico no século XIX) e coca-cola (EUA no século XX). Ele argumenta que, para além de suprirem necessidades físicas, essas bebidas atendem a outras demandas: sociabilidade, estímulos, sinais de sofisticação e riqueza e até proteções à saúde pública.

Afinal, lembra Standage, durante boa parte da história foi difícil manter a água limpa e isenta de contaminação – e, na realidade, o problema ainda é sério, persiste em muitos países em desenvolvimento. Nessas circunstâncias, bebidas fermentadas ou destiladas ajudavam a combater doenças, por agir contra os germes na água.

A humanidade aprendeu a fabricar bebidas alcoólicas muito cedo, ainda na pré-história. Segundo Standage, a prática começou quase junto ao cultivo de cereais, com a cerveja feita a partir do trigo, nas planícies da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates.



O vinho também teve início na Antiguidade, mas a princípio era um tanto caro, reservado para as elites por conta do preço. Na Grécia, a bebida se tornou o centro de um ritual festivo, o simpósio, no qual amigos se reuniam para beber e debater temas filosóficos. O mais famoso, claro, é aquele retratado no “Banquete”, de Platão, em que Sócrates discute o amor. Cultivar vinhas era símbolo de prestígio e uma maneira importante de mensurar a riqueza. O status social elevado associado ao vinho permanece até hoje, com um verniz de sofisticação que falta, digamos, à cerveja.

Os destilados surgiram no Renascimento, por conta dos avanços na química – ainda que misturados ao misticismo da alquimia e à busca de uma “água da vida” de propriedades mágicas e curativas. Tiveram papel de destaque na colonização das Américas, sobretudo o rum, feito a partir do melaço da cana-de-açúcar. Era um item importante no comércio exterior colonial, e fundamental para manter as pessoas aquecidas nos invernos do Norte. Standage menciona apenas o universo anglo-saxão, mas a cachaça teve uma importância semelhante no Brasil, durante o mesmo período, em especial como moeda de troca no tráfico de escravos com a África.

Se o rum traz a marca da associação com a escravidão, o café é o símbolo da liberdade intelectual do Iluminismo e da Era das Revoluções. Bebida estimulante que não provoca a intoxicação, ideal para alimentar trocas de idéias e discussões políticas – e os cafés de Londres e Paris foram centros desse tipo de atividade. Como lembra Standage, a queda da Bastilha nasceu de um comício num desses estabelecimentos.

O chá tem uma história igualmente vinculada a acontecimentos políticos. Nos séculos XVIII e XIX era o principal produto que o Ocidente importava da China. Com o tempo os britânicos descobriram que o ópio era uma boa maneira de pagar pela mercadoria, mas como o governo chinês não gostou da idéia de comprar grandes quantidades de drogas pesadas, teve que ser forçado a fazê-lo, por meio de guerras. Mas logos os britânicos aprenderam a cultivar o chá na Índia, que haviam recém-incorporado a seu império. E, naturalmente, os impostos sobre o chá foram importantes para deflagrar a Revolução Americana. Bebida complicada.



Por fim, Standage analisa a Coca Cola como símbolo do “Século Americano”, e da difusão do American Way of Life pelo mundo, no rastro dos soldados que lutaram as guerras da nova superpotência, e impulsionada pelas modernas técnicas de publicidade e comercialização.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A Cartada Indiana dos EUA



Nesta semana, Barack Obama declarou em discurso no parlamento indiano que a Índia deveria fazer parte do Conselho de Segurança da ONU e que o país não era mais uma “potência emergente”, porque já havia emergido. O afago de Obama tem pouca conseqüência prática, mas importa como símbolo. O apoio dos Estados Unidos à Índia é uma guinada relativamente recente na política internacional, da década de 1990 para cá. As duas nações superaram a desconfiança mútua da época da Guerra Fria, basicamente por três razões: o medo da ascensão da China, interesses econômicos e a preocupação com a influência dos fundamentalistas no Paquistão após os atentados de 11 de setembro e a longa guerra no Afeganistão.

Indianos e americanos têm fortes afinidades – democracias multiculturais e a coexistência de um Estado laico com intensos sentimentos religiosos – mas durante muito tempo tiveram relações diplomáticas ruins. A Índia se tornou independente com a agenda externa voltada para o “não-alinhamento”, mas na prática foi bastante próxima à União Soviética e a diversos regimes marxistas no mundo em desenvolvimento. Os Estados Unidos, por sua vez, se tornaram aliados de dois rivais indianos – primeiro, do Paquistão, e na década de 1970, da China.



Índia e China foram à guerra nos anos 60, por uma fronteira mal definida no Himalaia (os chineses venceram, mas a área continua em disputa) e persistem tensões pela repressão comunista aos budistas no Tibete – muitos se exilaram junto aos indianos. As relações econômicas estão excelentes e o amplo fluxo de comércio e investimentos fez com que Pequim e Nova Délhi mantivessem os conflitos em segundo plano. Mas estão lá.

O dinamismo econômico indiano, a partir da década de 1990, também tornou o país importante para os EUA. Muitas empresas americanas terceirizam serviços de tecnologia da informação para firmas na Índia, há uma grande e influente comunidade indiana nos Estados Unidos e um país de um bilhão de habitantes superando a pobreza e ingressando na classe média é um paraíso para comerciantes e investidores.

O elemento mais relevante da aproximação entre os dois países foi a assinatura de um acordo de cooperação nuclear entre ambos, apesar da Índia nunca ter se submetido aos regimes de controle de armas atômicas.

O Paquistão é oficialmente aliado dos Estados Unidos, mas o controle do Estado paquistanês sobre seus territórios montanhosos de fronteira, e sobre parcelas importantes de seus próprios serviços de inteligência e Forças Armadas é tênue. As redes terroristas (Al Qaeda, Talibãs) continuavam ativas no país e realizando ataques contra a OTAN no Afeganistão e atentados de grande porte, como os que atingiram a cidade de Mumbai, o centro da economia indiana. Além da persistência da questão da Cachemira. Com aliados desse tipo, não estranha que o governo americano procure relações mais sólidas com a Índia.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Batalha Cambial em Seul



A cúpula do G-20 financeiro, que ocorre nesta semana em Seul, está marcada pela dificuldade de cooperação internacional, com semelhanças perturbadoras com os impasses políticos da década de 1930. O cerne do problema é a relutância dos principais motores econômicos mundiais – Estados Unidos e China – em ajustar suas taxas de câmbio de modo a valorizar suas moedas e tentar corrigir os graves desequilíbrios no comércio e no fluxo de capitais globais. A persistir essa situação, a tendência é o aumento do protecionismo.

O governo dos Estados Unidos anunciou há poucos dias um novo pacote de incentivo à economia, cujo elemento central é o estímulo ao crédito, por meio da redução de taxas de juros e outros instrumentos. A orientação do banco central americano repete o risco de uma nova bolha oriunda de muito dinheiro fácil circulando, a exemplo do que aconteceu com a crise das hipotecas. E é má notícia para as relações internacionais, porque pressiona o dólar para um valor ainda mais baixo e impulsiona capitais especulativos para os países emergentes, onde as taxas de juro são mais altas.

O Brasil é um caso típico. O afluxo de fluxos financeiros estrangeiros apreciou muito o real, dificultando bastante a competitividade dos exportadores (sobretudo na indústria) e a própria situação dos produtores locais, que precisam enfrentam rivais externos que se beneficiam do câmbio favorável, de menor carga tributária etc. A ação brasileira tem sido referencial para outros emergentes: medidas para diminuir a entrada dos capitais estrangeiros, como aumento do imposto sobre operações financeiras, críticas aos Estados Unidos e alerta para a necessidade iminente de controles de capitais.



A proposta apresentada pelos EUA dividiu o G-20. Basicamente, o governo americano quer que os países com os maiores desequilíbrios comerciais e financeiros assumam compromissos de mudar suas políticas. Pelos termos do rascunho, os critérios utilizados afetariam sobretudo a China (grande superavitária) e deixariam de fora a Alemanha, pelo truque de usar indicadores regionais da União Européia. Outros superavitários incluem exportadores de commodities, como Arábia Saudita e Rússia.

Dito de outra maneira, os Estados Unidos querem que os demais países façam sacrifícios, ao mesmo tempo em que seguem com políticas domésticas que prejudicam as nações emergentes. Daí a crítica de seus principais parceiros e o provável impasse em Seul.

O acontecimento mais surpreendente da semana foi a declaração clamando pelo retorno do padrão-ouro como modo de organizar o sistema monetário internacional, feita em artigo assinado pelo presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick. O ouro foi a âncora da estabilidade econômica global do século XIX, mas as experiências das guerras mundiais e da Depressão foram no sentido de que ele havia se tornado rígido demais para o mundo contemporâneo. O argumento de Zoellick é que ouro voltou a ser um referencial importante de solidez num mundo de intensas mudanças financeiras. Não me convenceu, mas estou curioso para acompanhar o debate.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Fervendo o Chá



O Movimento do Chá conseguiu um impressionante desempenho nas eleições americanas - elegeu um terço de seus candidatos à Câmara e metade ao Senado. Isso o tornou uma força política fundamental nas disputas internas do Partido Republicano, embora o nível de radicalização do movimento faça com que seja improvável que ele emplaque um nome na disputa à Presidência, em 2012. Ando um tanto crítico à cobertura da imprensa sobre o movimento, que tende a destacar seus aspectos mais pitorescos (e são muitos). Um bom antídoto é o livro "Boiling Mad: inside Tea Party America", de Kate Zernike, repórter do New York Times que cobre o grupo desde seu início.

Comecemos pelo nome, que tem confundido muitos brasileiros. Tea Party é uma referência à "festa do chá de Boston", uma rebelião anti-impostos e controle governamental nos anos finais da colonização britânica nos EUA. Por tabela, um símbolo da liberdade econômica frente ao autoritarismo do Estado. O nome voltou ao debate contemporâneo nos primeiros dias da presidência de Barack Obama por meio de uma emocionada aparição na TV do jornalista Rick Santelli (abaixo), que afirmou que os Estados Unidos precisavam de outro tea party, desta vez contra o aumento da ação governamental na economia - os pacotes de ajuda ao setor financeiro e à indústria, a reforma da saúde etc. O discurso galvanizou o descontentamento e a ansiedade de muitos americanos, que começaram a se organizar localmente para protestar contra as medidas.



A principal bandeira do movimento do chá é o repúdio ao aumento da ação governamental, estimulado pelo medo do declínio econômico dos Estados Unidos e pela leitura revisionista da história, que culpa reformas sociais da Era Progressista, do New Deal e da década de 1960 pelos problemas atuais do país. As características demográficas do grupo são claras: o membro típico é um homem branco de meia idade e situado na alta classe média. Contudo, a rejeição a Obama passa também pelo desencanto com os Republicanos, em especial pelo governo George W. Bush, encarado com desgosto pelo mau desempenho e pela disparada na dívida pública. Uma das entrevistadas de Zernike sintetiza a estratégia do movimento: para se livrarem dos Democratas, precisam antes tomar o controle dos Republicanos. O ideário não é criar um terceiro partido.

Os membros do Tea Party se inspiraram nos movimentos sociais de esquerda e aplicam com sucesso vários de seus métodos para as causas conservadoras, sobretudo o uso das novas mídias sociais e das ferramentas de organização comunitária. Isso ficou bem exposto no comício que realizaram em Washington, que pretendeu ecoar a célebre marcha sobre a capital liderada por Martin Luther King Jr. A imprensa tem sido fundamental para o Tea Party, desde seu batismo por Santelli até o apoio do apresentador da Fow News Glenn Beck, que falou em montar grupos "12 de setembro", para restaurar o espírito de unidade nacional que vigorou após os atentados. Outros padrinhos e madrinhas do movimento incluem os milionários irmãos Koch e a política republicana Sarah Palin.



Muitos temas dividem o movimento: política externa (intervencionistas do tipo "guerra ao Irã" x isolacionistas "tragam os garotos de volta para casa"), questões religiosas e de sexualidade como aborto e casamento gay (há uma ala conservadora e outra libertária, que preconiza o máximo de liberdade individual). O assunto mais explosivo são as relações raciais. O conservadorismo do movimento do chá é bastante crítico às ações que o governo dos EUA promoveu para combater a segregação e o racismo, e isso é especialmente forte no Sul, que virou o mais aguerrido bastião dos Republicanos. O resultado tem sido um intenso mal-estar com Obama e manifestações extremistas que afirmam que o presidente é socialista, muçulmano, africano ou as três coisas juntas.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O Mundo Segundo Dilma



A política externa não foi um tema de discussão relevante na eleição presidencial brasileira, mas será importante para o governo Dilma. A economia internacional é cada vez mais relevante para o Brasil, pelo peso crescente do comércio exterior no PIB, pelas discussões sobre a guerra cambial e a reorganização do sistema financeiro internacional (G-20, Basiléia 3 etc). Além disso, o país articula iniciativas com as outras potências emergentes e precisa permanecer atento para as crises e conflitos na América do Sul, algumas das quais envolvem nações das quais depende sua segurança energética (Bolívia e Paraguai). O que se pode esperar da diplomacia brasileira sob Dilma?

Durante a campanha, a revista “Política Externa” enviou aos principais candidatos perguntas sobre sua plataforma diplomática. José Serra não respondeu – omissão curiosa, pois é uma publicação com muitos intelectuais do PSDB entre seus principais colaboradores. Marina Silva destacou pontos ligados a Meio Ambiente e Direitos Humanos. E Dilma apresentou opiniões que basicamente mantêm as diretrizes atuais. Perfis da presidente eleita com freqüência destacam sua pouca experiência internacional e concluem que dará menos ênfase à diplomacia presidencial e se afastará de negociações controversas, como os esforços de mediação da crise iraniana.

Contudo, as próprias transformações do Brasil apontam para mudanças. As indicações são de uma política externa mais complexa, menos centrada na Presidência e no Itamaraty e mais ramificada por outros órgãos do governo: ministérios econômicos, Defesa, área social, BNDES, empresas controladas pelo Estado, como a Petrobras, ou aquelas nas quais ele possui golden share, como Vale e Embraer. É a conseqüência inevitável da combinação de crescimento econômico, estabilidade política e maior engajamento nas redes globais de comércio e investimento.

Quem melhor capturou este novo quadro foi o jornalista David Rothkopft, da revista Foreign Policy. Em ótimo texto, ele chama a atenção para a necessidade dos Estados Unidos pararem de tratar o Brasil dentro do contexto de uma política geral para a América Latina, e abordarem o país numa esfera mais ampla, como um interlocutor para os principais temas internacionais, sobretudo em assuntos ligados à economia. Dito de outro modo: política externa é cada vez mais relevante para o Brasil, independentemente do interesse pessoal mais ou menos intenso do chefe de Estado.

Além disso, há outro ponto que tem sido deixado de lado pela maioria das análises: o modo como a diplomacia de perfil globalista de Lula reforçou a identidade de esquerda do governo, por sua ênfase em cooperação sul-sul e parcerias com potências emergentes. Haverá expectativas e cobranças do PT e de outros partidos progressistas da coligação para que essa linha diplomática continue ou se aprofunde, sobretudo diante dos impasses da liderança dos EUA e da União Européia, devido às suas crises atuais.

Também estou curioso para ver como duas mulheres e presidentes latino-americanas enfrentarão um desafio parecido: provar que têm capacidade de liderança própria. A relação Argentina-Brasil sob Cristina-Dilma promete, inclusive pela força da história de vida da mandatária brasileira para o vizinho que tanto sofreu com ditaduras militares.

Por fim: comecei a twittar. Leitores do blog são muito bem-vindos para acompanhar minhas digressões e comentários, no:

www.twitter.com/msantoro1978

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A Derrota de Obama



Nas eleições de meio de mandato realizadas ontem nos EUA, os Republicanos reconquistaram a maioria na Câmara dos Deputados e venceram os democratas em 10 estados, principalmente no Meio Oeste e no Sul, passando a ter maioria dos governos estaduais. O Movimento do Chá, em sua estréia eleitoral, elegeu dois senadores (Flórida e Kentucky) e uma governadora (Carolina do Sul), mas seus candidatos mais expressivos (como Christine O´Donnell) sofreram derrotas no Nordeste, reforçando as dúvidas sobre sua viabilidade em atrair os moderados. No geral, foi uma vitória expressiva da oposição e um claro recado de descontentamento da população americana para o presidente Obama e os Democratas, com foco na rejeição ao modo como conduzem a economia e também como crítica à sua reforma da saúde.

Comecemos pela economia. Obama implementou grandes pacotes de ajuda governamental para o setor financeiro e para a indústria automobilística. É verossímil apostar que tais medidas impediram uma catástrofe ainda maior, mas os benefícios para as pessoas comuns foram muito reduzidos. O gráfico abaixo mostra que, mesmo diante da lenta recuperação do crescimento, a taxa de desemprego continua praticamente a mesma. Desempenho muito inferior a crises anteriores. Em torno de 10%, cerca do dobro do que é habitual nos Estados Unidos. Algumas pesquisas mais recentes que analisei afirmam que há 6 candidatos para cada nova vaga de emprego aberta no país, evidentemente isso é um terrível golpe na perspectiva da maioria voltar a ter um mínimo de segurança e estabilidade.



A reforma na saúde foi a mais importante iniciativa governamental na área social desde a década de 1960, mas ainda assim teve falhas sérias. Ponto principal: o Estado obriga os cidadãos a ter seguros privados, mais ou menos subsidiados conforme faixa de renda. Mas diante de tantas falhas nos mecanismos de regulação, quem garante que as empresas privadas de saúde irão atender com eficácia aos novos consumidores? Ser forçado a fazer algo com boas chances de dar errado não torna ninguém fã do presidente, de modo compreensível. Também há muito ressentimento com o modo como os Democratas aproveitaram sua maioria legislativa para aprovar a reforma sem participação dos Republicanos. A exclusão de uma oposição que representa parcela significativa da população foi controversa, e acabou se mostrando um erro sério para Obama.

A derrota de ontem é um revés importante para o presidente. Naturalmente, em dois anos é possível reverter o quadro e se reeleger: Clinton fez exatamente isso entre 1994 e 1996, amparado pelo ótimo desempenho da economia. Mas diante da persistência da crise, e das guerras sem fim na Ásia, a situação de Obama é bem mais complicada. Sua melhor chance está nos conflitos internos entre os Republicanos, em particular as disputas entre os moderados e o Movimento do Chá.