sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A Venezuela (Quase) no Mercosul



Ontem a Comissão de Relações Exteriores do Senado brasileiro aprovou a entrada da Venezuela no Mercosul, como membro pleno. Falta ainda que o plenário se manifeste, e depois o processo precisa ser repetido no Congresso do Paraguai. Mas pelo correr dos acontecimentos é provável que em breve os trâmites estejam completos. O que isso significa para o bloco?

Economicamente, a Venezuela é um país muito interessante para os demais integrantes do Mercosul. Sua riqueza em hidrocarbonetos resultou em parcerias importantes para Paraguai e Uruguai e os recursos financeiros de Chávez deram uma bela ajuda à renegociação da dívida externa da Argentina, extremamente vantajosa para esse país. A Venezuela é um dos principais mercados para as exportações do Brasil e atualmente corresponde ao maior superávit da balança comercial brasileira. O fluxo é especialmente forte para empresas do Norte (Zona Franca de Manaus) e Nordeste (Pólo Petroquímico de Camaçari) que têm pressionado os parlamentares de suas regiões.

Os bons negócios em parte refletem a alta do petróleo, mais importante produto de exportação venezuelano, mas em grande medida se devem às decisões de Chávez. O presidente não conseguiu alterar a dependência econômica da Venezuela do mercado dos Estados Unidos – para onde segue a maior parte de suas vendas externas. No entanto, foi bem-sucedido em diversificar as importações, passando a comprar mais de países como Brasil, China, Argentina e Cuba.

Contudo, o comércio exterior da Venezuela sofre os altos e baixos da instabilidade política do chavismo. Os conflitos com Colômbia e México fizeram o presidente se retirar de dois importantes acordos de livre comércio – Comunidade Andina e G-3. Os empresários também sofrem com muitas restrições às operações com câmbio, burocracia excessiva, corrupção e males semelhantes. A Confederação Nacional da Indústria do Brasil tem criticado vários pontos da negociação para a entrada da Venezuela no Mercosul, pleiteando garantias mais sólidas de que o governo Chávez cumpra as obrigações estipuladas pelos acordos do bloco.

Há consenso sobre a importância econômica da Venezuela para o Mercosul, as controvérsias dizem respeito, claro, às questões políticas. O bloco tem uma cláusula democrática, isto é, os países membros precisam viver sob esse regime. Isso foi importante para evitar as aventuras do general Lino Oviedo no Paraguai. As perseguições de Chávez à imprensa, ao funcionalismo público, sua organização de milícias de apoio ao governo e suas controversas reformas no Legislativo e no Judiciário colocam em questão liberdades fundamentais na Venezuela. Mas líderes da oposição ao chavismo defendem a entrada no Mercosul, apostando que o bloco pode oferecer um fórum regional relevante para sua atuação.

O ponto é interessante. Afinal, a exclusão de Cuba da Organização dos Estados Americanos, desde a década de 1960, em nada contribuiu para a liberalização do regime da ilha. Em que medida uma Venezuela isolada do Mercosul e da Comunidade Andina não cairia na mesma situação?

Mas talvez a questão mais polêmica seja o formato de integração buscado por Chávez. Ele rejeitou no passado acordos de liberalização comercial, à semelhança do que é o Mercosul. Sua preferência tem sido pela Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA), um grupo de governos latino-americanos de esquerda com posições próximas nos fóruns multilaterais. Esse não é exatamente o perfil mercosulino, em particular se houver uma guinada conservadora na Argentina e no Brasil, possibilidade bastante concreta para as próximas eleições.

Em suma, a Venezuela se encaminha para ingressar no Mercosul. Mas será que Chávez considerará interessante permanecer no bloco?

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O escritor e a cidade: Balzac



As leituras sobre arquitetura e urbanismo também me (re)conduziram à literatura, para lançar outro olhar às relações entre escritores e suas cidades. Comecemos por Honoré de Balzac e esse magnifíco romance do aprendizado de Paris que é “O Pai Goriot”.

O protagonista é um jovem provinciano, Eugênio de Rastignac. Pobre e ambicioso, ele chega a Paris para estudar direito e vencer na vida – algo que não era particularmente fácil na França da Restauração Bourbon (1815-1830), com o clima político asfixiante e a escassez de oportunidades de ascensão social.

Enquanto rumina sonhos nos jantares miseráveis da pensão onde se hospeda, Rastignac oscila entre dois professores: os salões da alta sociedade, aos quais tem (precário) acesso por meio de uma prima, e os conselhos inescrupulosos de um colega pensionista, Vautrin. Trata-se de um dos mais fascinantes personagens de Balzac, um lider do crime organizado sempre em fuga e envolvido em conspirações. Ele foi inspirado por uma pessoa real, Eugene Vidocq, que chegou a ser chefe de polícia de Paris!

Entre bailes e intrigas, boudoirs e planos de duelo e de morte, Rastignac descobre que a distância de Vautrin às alcovas das condessas que frequenta é menor do que parece à primeira vista. E que descrições nos dá Balzac! Está tudo lá: os cassinos do Palais-Royal, o luxo dos palácios da aristocracia, o tédio estudantil na Sorbonne e as ruas sujas, enlameadas e turbulentas da Paris pré-Hausmann, que fazem Rastignac lamentar não ter carruagem. Mas também o prazer de vagar pela cidade – flaner, dizem os franceses – em meio a sua diversidade, colorido, caos: “Quem não frequentou a margem esquerda do Sena, entre a rua Santiago e a dos Santos Padres não conhece nada da vida humana”.

O Pai Goriot do título é um velho e rico comerciante de massas, louco pelas filhas que o desprezam. Um rei Lear do talharim. Rastignac se envolve com uma das moças, num amor que lhe abre portas sociais, mas também lhe rende lições dolorosas: “Entre o gabinete azul da Sra. De Restaud e a sala de visitas cor-de-rosa da Sra de Beauseant ele cursara três anos desse Direito Parisiense, de que não se fala, embora constitua uma elevada jurisprudência social que bem aprendida e bem praticada, consegue tudo.”

Dentre todas as cenas do romance, há uma passagem clássica na qual Rastignac sobe ao cemitério Père-Lachaise para enterrar um ente querido, e com ele suas últimas ilusões. Do alto da colina, mira os bairros elegantes de Paris: “Lançou àquela colméia sussurrante um olhar que parecia sugar-lhe antecipadamente o mel e proferiu esta frase suprema: Agora é entre nós dois”.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Hubris



O presidente Lula teve muitas vitórias neste ano – a rápida recuperação nacional da crise econômica, o espaço que o país conquistou no G-20, a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016. Não é à toa que sua popularidade alcançou a casa dos 80%, o que o torna provavelmente o político mais popular do planeta. Contudo, esta série impressionante de triunfos reforçou um lado sombrio em seu comportamento, que o tem levado com frequencia a tomar decisões à revelia da lei e a criticar as instituições de equilíbrio e fiscalização que são fundamentais na democracia.

São muitos os exemplos. O acordo militar com a França – o maior da história brasileira – foi firmado num churrasco entre Lula e Sarkozy, sem esperar o laudo técnico da Força Aérea, como manda a lei. Depois houve declarações constrangidas do Ministério da Defesa, mas que não conseguiram amenizar a frustração entre os militares.

Ao longo da última semana, Lula atacou em sequencia praticamente todas as instituições que fiscalizam o Poder Executivo: sobrou para o Ministério Público, para o Tribunal de Contas da União e para a imprensa, que segundo o presidente não deveria vigiar o governo, e apenas informar. Noticiar o quê? Presumo que o horóscopo, as palavras cruzadas e talvez os casamentos de celebridades. Lula poupou apenas a Controladoria-Geral da União, um órgão do Executivo cuja autoridade chefe tem status de ministro e é nomeada pelo próprio presidente.

Por falar em nomeação, por estes dias também tivemos a posse do novo ministro do Supremo Tribunal Federal, José Antônio Toffoli. Ele foi advogado pessoal de Lula, que depois o conduziu ao cargo de Advogado Geral da União, e finalmente ao STF. George W. Bush tentou fazer algo semelhante com sua representante jurídica, mas o Congresso vetou. Nos dois casos, há um sabor amargo, uma incômoda indefinição entre fronteiras privadas e públicas. “O Estado sou eu” podia soar bem na boca de Luís XIV, porém seus sucessores enfrentam situações mais complicadas. Que o diga Sarkozy, que tentou mas não conseguiu nomear seu filho de 23 anos para administrar o distrito financeiro de Paris.

A força de Lula vem não só de sua popularidade, e também da fragilidade do Legislativo. As sucessivas crises e escândalos de corrupção no Congresso deixaram a oposição com baixíssima credibilidade para cobrar respeito às leis e comportamento ético do governo. A própria cultura política brasileira não valoriza muito as instituições e privilegia a adesão a líderes carismáticos, a quem seus eleitores permitem passar por cima das regras para fazer as coisas andarem.

Um dos paradoxos mais curiosos da situação atual é que Lula termina o mandato com altísisma popularidade, mas é questionável que o PT tenha saído fortalecido no nível nacional. Dilma Roussef, a candidata à presidência, é uma militante histórica do trabalhismo, recém-convertida à sigla. A senadora Marina Silva, após anos de lealdade canina ao presidente, acabou escorraçada do PT e é tratada de forma rude por seus antigos companheiros de partido, embora seja admirada pelos militantes de base.

Acho improvável que aconteça uma transferência automática dos votos para a candidata apontada por Lula, de modo que muito do cenário para 2010 dependerá das costuras eleitorais com os partidos membros da coalizão de apoio ao presidente. Aqueles aliados que ele há poucos dias comparou implicitamente a Judas... Injustiça: o apóstolo acreditou em Cristo, antes de trai-lo, enquanto muitos dos atuais companheiros do presidente sempre deixaram claro que estão nesta pelos trinta dinheiros.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

As Guerras do Rio



Nas duas semanas desde que foi escolhida para sediar as Olimpíadas de 2016, o Rio de Janeiro sofreu dois pesados ataques do crime organizado: sabotagens nas linhas de trens urbanos e a derrubada de um helicóptero da polícia no sábado passado, em conjunto com incêndios em oito ônibus. Cerca de 25 pessoas morreram nos confrontos entre autoridades e traficantes.

O Rio de Janeiro tem 37 mil policiais, número que se mantém estável desde o início da década de 1990 e é obviamente inadequado para lidar com os novos problemas, como a expansão das milícias. Os planos do governo estadual são de aumentar o contingente para 62 mil. Os salários começam em R$1 mil, os segundos mais baixos do Brasil. Com gratificações e algum apoio do poder federal, sobem para R$1.900, ainda inadequados. O caminho para a reforma é longo.

Em 2007, um grupo de coronéis da polícia militar se articulou para cobrar elevação de salários e outras melhorias. O chamado movimento dos Barbonos (o nome da rua onde se localiza o quartel general da PM) provocou discussões e criticou duramente o governo, com instabilidade na cúpula. Em três anos houve três comandantes da polícia militar e dois chefes na civil. Outro fenômeno interessante é a multiplicação de blogs de policiais. Há um debate em curso – intenso, polêmico, pesado. Não poderia ser de forma diferente, dada a importância do tema.

A principal inovação na recente política de segurança do estado é a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em favelas da capital. Já são cinco e o projeto é construir mais 42. A idéia básica é garantir presença constante das autoridades nas comunidades pobres, melhorar a relação com a comunidade e diminuir a violência. Os especialistas acadêmicos em geral criticam a iniciativa, afirmando que é preciso haver outras políticas públicas vinculadas a ela (educação, saúde) mas aparentemente o impacto na diminuição do crime tem sido positivo. Em parte, o conflito do fim de semana seria motivado por traficantes buscando outros locais para se estabelecerem, fugindo das áreas onde já existem UPPs.

Para quem, como eu, acompanha os debates sobre segurança internacional, impressiona a semelhança da UPPs aos esforços de contrainsurgência, como os que os Estados Unidos desenvolvem no Afeganistão e no Iraque, a Colômbia contra suas guerrilhas e mesmo, até certo ponto, à missão de paz que o Brasil comanda no Haiti. O ponto comum é a necessidade do Estado garantir a proteção da população civil e neutralizar os grupos armados ilegais que a ameaçam. Curiosamente, o novo cônsul dos EUA no Rio de Janeiro serviu anteriormente no Afeganistão e visitou a UPP do morro Santa Marta há alguns dias. Diplomaticamente, não fez comparações entre as duas iniciativas.

Há muito o que o Brasil pode aprender com outras experiências internacionais, em particular de sociedades que passaram por transições de situações muito violentas (guerras civis, rebeliões) para a tentativa de estabelecer o respeito ao Estado de Direito, como na Irlanda do Norte e na África do Sul. E bastante que o Rio de Janeiro pode retirar de iniciativas brasileiras que melhoraram as polícias, como no Distrito Federal e em Minas Gerais.

Um maior envolvimento do governo federal com o tema me parece inevitável. Já era uma tendência, e a realização da Copa e das Olimpíadas, com o esforço de integração nacional no combate ao crime, torna o assunto mais urgente. Em bom tempo.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Distrito 9



“Direitos Humanos... O próprio conceito é racista!”

De um general Klingon em “Jornada nas Estrelas VI”


A ficção científica tem basicamente duas maneiras de lidar com o tema dos encontros dos humanos com raças alienígenas: 1) Existem coisas lá fora e elas querem nos destruir (Aliens, Predador, Independence Day). 2) Existem coisas lá fora e o contato com elas, assustador à primeira vista, pode nos enobrecer (ET, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, O Jogo do Exterminador). “Distrito 9” é uma brilhante obra cinematográfica que mergulha nos traumas, medos e esperanças da África do Sul para desenvolver uma variação da segunda corrente. Nela, a fricção entre espécies diferentes desperta o que há de mais monstruoso na humanidade, ainda que guarde uma tênue esperança de redenção.

O enredo é simples e criativo: uma gigantesca espaçonave alienígena encalha em cima da cidade sul-africana de Johanesburgo, com dois milhões de ETs dentro dela, de aparência semelhante a crustáceos. Os alienígenas têm uma tecnologia sofisticada, mas que ninguém consegue operar, e a maioria de suas máquinas quebrou na viagem. Chegam doentes e famintos, o governo se vê diante de uma crise de refugiados e aloca-os num grande campo, o Distrito 9, que rapidamente se torna uma grande favela, com problemas de crime, racismo, xenofobia. As autoridades contratam uma empresa privada, a Multinational United (ótimo nome!) para gerir a segurança e a companhia decide remover os ETs para longe dos humanos. Só que o funcionário encarregado da tarefa é contaminado por uma estranha substância e começa a se transformar num alienígena, ao mesmo tempo em que descobre operações secretas da empresa e começa a questionar seus preconceitos.




Produzido por Peter Jackson (da triologia Senhor dos Anéis) e dirigido pelo jovem cineasta sul-africano Neill Blomkamp o filme fala, claro do aparheid. O título remete ao Distrito 6, um famoso bairro boêmio e multirracial da Cidade do Cabo, derrubado pelo governo racista. Os personagens mais intolerantes do filme são todos africâners, da mesma etnia que construiu o regime de exclusão racial. A África do Sul contemporânea também está na história. Brancos e negros convivem de maneira aparentemente amistosa, mas os negros ocupam as posições subalternas e pagam o preço quando os chefes erram. Os recentes conflitos violentos envolvendo imigrantes de outros países africanos igualmente estão implícitos no filme. Há uma quadrilha de nigerianos que controla o crime organizado no Distrito 9 e a própria premissa do enredo não difere tanto da crise de refugiados que aconteceu com o afluxo de pessoas do Zimbábue, que fogem da ditadura de Mugabe e do colapso econômico.


Mas as situações retratadas em Distrito 9 vão além da África. O filme tem inspirações temáticas e visuais de produções como Rocobop e Cidade de Deus e diz muito aos brasileiros. A primeira hora, focada na operação de despejo dos alienígenas, parece uma gigantesca incursão policial numa favela carioca e não por acaso as legendas brasileiras usam expressões da cidade, como “BOPE” para designar uma unidade militar de elite e “caveirão” para um carro policial. A tradução é mais precisa do que aparenta: o célebre veículo é uma adaptação do Mellow Yellow, o blindado que a polícia do apartheid usava para operações contra as favelas sul-africanas.

Agora é aguardar a continuação do filme – que certamente virá.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Uma Agenda para o Rio



Na semana passada comecei o curso de formação dos gestores estaduais. Logo no segundo dia fomos recebidos pelo governador Sérgio Cabral Filho e pelo secretário de Planejamento, Sérgio Ruy Barbosa. Houve uma solenidade no Palácio Guanabara onde ambos discursaram sobre a agenda da reforma da gestão pública, com ênfase na provisão de serviços à população, na atração de investimentos para o Rio de Janeiro e na preparação para os grandes eventos esportivos que em breve acontecerão no estado. A bandeira dos Jogos Olímpicos na frente da sede do governo não deixa dúvidas sobre a importância deles para os próximos anos.

E não só no Rio de Janeiro. O tema da reforma da administração governamental como base para a implementação de políticas públicas ganhou muita força no Brasil inteiro. Na mesma semana em que comecei o trabalho por aqui, o governador mineiro Aécio Neves deu os toques finais em sua Cidade Administrativa, a obra arquitetônica que melhor simboliza seu programa de “choque de gestão” no estado. São Paulo também criou recentemente sua carreira de gestor e o tema também está presente em algumas iniciativas do setor privado, em particular aquelas lançadas pelo empresário Jorge Gerdau. Vejo essa mobilização como algo muito positivo, que mostra o nível de amadurecimento que o país alcançou após a estabilização macroeconômica. Agora é o momento de pensar adiante.

Nesse sentido, a política caminhou mais rápido do que a universidade. O campo acadêmico das políticas públicas no Brasil ainda é muito frágil. Faltam pesquisas e centros de reflexão, embora eu acredite que a área tenha tudo para se tornar o próximo boom criativo, à semelhança do que ocorreu com os cursos de relações internacionais na última década. Há uma demanda grande não só parte das três esferas de governo, mas também por ONGs, movimentos sociais, jornalistas e quaisquer profissionais que se dediquem ao tema.

Essa agenda talvez seja mais importante para o Rio de Janeiro do que para outros estados, em função da difícil história local. Ao contrário de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco ou Bahia, o Rio não tem uma identidade regional forte, o estado é uma construção recente, basicamente porque a ditadura queria neutralizar a contestação política da Guanabara fundindo-a com uma zona mais conservadora. Foram décadas de más administrações e conflitos constantes e estéreis com o poder central. Os próprios royalties do petróleo se mostraram benção duvidosa, garantindo recursos financeiros mesmo na ausência de boa gestão.

Será um longo processo de reformas, mudança de porte tão grande não acontece da noite para o dia. Os acontecimentos trágicos do fim de semana mostram a escala dos desafios que o Rio de Janeiro precisa enfrentar. Para os próximos dias, começo a escrever sobre o tema da segurança pública.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Teatro de Guerra



Ainda o Festival do Rio. O melhor filme a que vi no evento foi “Teatro de Guerra”, um documentário sobre a montagem da peça “Mãe Coragem e Seus Filhos”, de Bertold Brecht, no Central Park de Nova York, em 2006. Ou seja, simultânea aos conflitos no Afeganistão, Iraque e Líbano, que demonstraram a lamentável atualidade da obra-prima de Brecht.

A equipe envolvida na peça foi espetacular. Meryl Streep interpretou o papel-título e seus depoimentos no filme são reveladores de como essa fantástica atriz pensa a arte de representar. Kevin Kline viveu o principal personagem masculino, mas ele pouco fala no documentário. A tradução foi do premiado dramaturgo Tony Kushner (de Angels in America) e entre os consultores da montagem estava um ex-assistente de Brecht, Carl Weber.



Brecht escreveu “Mãe Coragem” quando estava exilado nos Estados Unidos, fugido do nazismo. O enredo é simples e conta a história de uma comerciante que arrasta sua carroça pelos campos de batalha da Guerra dos Trinta Anos, o selvagem conflito entre católicos e protestantes que devastou a Alemaha do século XVII. A protagonista é ao mesmo tempo aproveitadora e vítima do furor bélico: ela vende para todos os exércitos, negocia no mercado clandestino e lucra (pouco) com a situação. Mas vê seus três filhos serem tragados pelo confronto, e nem toda sua argúcia consegue impedir a destruição de sua familia.

A mensagem da peça é universal, não se limita a um conflito específico, e em geral os diretores gostam de incluir elementos visuais de diversas guerras. A versão do Central Park, por exemplo, colocou de unformes atuais a lenços do Vietnã, o que provoca um excelente efeito de desconforto no público. Posso apenas imaginar como foi a primeira encenação da peça, literalmente em meio às ruínas de Berlim, logo após a queda do III Reich.

Mãe Coragem é uma personagem dificílima de ser interpretada, por misturar de modo tão inseparável crueldade, ganância, dor e compaixão. A versão que vi da peça, com Louise Cardoso como a protagonista, não conseguiu capturar essa complexidade. A atriz era por demais bonachona e gentil. Meryl Streep é outra história e dá um show. Algumas cenas são de arrepiar, como o momento em que ela precisa fingir não reconhecer o cadáver de um dos filhos, para salvar o resto da família. Uma aula de teatro.

Outra lição inesquecível mostrada pelo filme é o depoimento de Brecht ao Comitê de Atividades Anti-Americanas do Congresso dos Estados Unidos. O dramaturgo alemão foi interrogado por sua militância comunista e em função disso resolveu sair do país. Mas transformou sua sessão numa atuação impagável, criando o personagem de um imigrante que tropeçava no inglês e era politicamente ingênuo. Na vida real, Brecht dominou o idioma ao ponto de escrever boa poesia nele, e a força política de sua obra sobreviveu aos cataclismas do século XX, pois para além de seu ativismo partidário, expressa questionamentos profundos sobre guerra, injustiças sociais e o modo como as relações de poder e dominação pervertem a sociedade.

Pena apenas que o filme não mostre a reação do público ao espetáculo. Será que os Estados Unidos estão prontos para o tipo de (auto)crítica despertado pela obra de Brecht? Para perceber que, tal como Mãe Coragem, são ao mesmo tempo aproveitadores e vítimas das guerras?

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Futuro do Mercosul



Na semana passada retornei ao Iuperj, minha alma mater, para assistir a uma palestra do embaixador da Argentina no Brasil. O tema era o futuro do Mercosul. O diplomata fez a comparação tradicional com a União Européia, lamentando que o bloco do Cone Sul não tenha mecanismos supranacionais para a resolução de conflitos. Suas observações me lembraram os debates que tive no governo federal, em particular com os colegas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e da recém-criada área internacional do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas.

O Mercosul não foi criado para ter uma estrutura institucional semelhante à da União Européia, porque isso não interessa ao Brasil. O país desfruta de um peso econômico na América do Sul muito maior do que as potências do Velho Mundo – Alemanha, França, Reino Unido - têm na Europa. O receio histórico da política externa brasileira é a formação de uma coalizão de vizinhos que possa vetar suas posições. Por isso o Mercosul funciona por meio de decisões baseadas em consensos e não em votos de maioria ou regras supranacionais. Não há qualquer indício de que esse mecanismo seja alterado no curto ou médio prazo.

Segundo ponto: quando o Mercosul foi criado, há quase 20 anos, o mundo era muito diferente. O Brasil enfrentava a crise da dívida e a ameaça da hiperinflação. A criação de um bloco regional foi uma solução de compromisso entre as correntes liberais e nacionalistas da elite política, que enxergavam a Tarifa Externa Comum (TEC) do processo de integração como um meio termo entre a abertura ao mercado internacional e o protecionismo à indústria brasileira. Com valor médio de de 11,52%, ela é elevada para os padrões da OMC. De lá para cá o país se integrou melhor à economia global, controlou o aumento de preços e assinou acordos de livre comércio com toda a América do Sul, além de um ensaio com Israel e tratados de preferências comerciais com países da África austral e com a Índia. Será que ainda interessa para o Brasil conduzir negociações externas sob o fardo da TEC e da necessidade de posições comuns com Argentina, Uruguai, Paraguai e quiçá Venezuela? Não seria melhor mecanismos mais flexíveis? É uma questão em aberto.

Outro fator importante é a mudança no equilíbrio de poder dentro da América do Sul. Em linhas gerais, a ascensão de potências médias como Venezuela, Colômbia e, em anos recentes, o Peru. O Mercosul ficou pequeno para tratar de diversas questões importantes para a região, em particular as crises de segurança da região andina. Nesse sentido, a União das Nações Sul-Americanas é um fórum mais relevante. O discurso oficial brasileiro jura de pé juntos que ela só se desenvolverá a partir de um Mercosul forte, mas acho que ninguém acredita muito nisso na chancelaria...

O embaixador argentino mencionou em sua palestra o risco de uma corrida armamentista na região e lembrou que seu país não é mais visto como uma ameça para o Brasil, destacando que as preocupações brasileiras agora se concentram na Amazônia. Tem razão, mas esqueceu de mencionar o Atlântico Sul e os receios com energia e cidadãos expatriados no Paraguai e na Bolívia. Ironicamente, o projeto de desenvolvimento do submarino nuclear foi muito influenciado pelo fiasco da Marinha argentina na Guerra das Malvinas, quando a força naval ficou praticamente paralisada pela ação de embarcações britânicas desse tipo.

Dito de outro modo, muitas decisões importantes da política externa e de defesa do Brasil nada tem a ver com o Mercosul e dizem respeito ao novo status internacional do país no resto da América do Sul e nos fóruns globais. É hora de um debate sobre o novo papel do bloco na diplomacia brasileira.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

El Alto: a cidade rebelde



Na semana passada chegou um pacote de livros sobre urbanismo que encomendei pela Amazon, e que marca o início de uma pesquisa sobre cidade e democracia na América do Sul. Quero estudar a relação de movimentos sociais e mobilizações cívicas com o espaço urbano do continente. Ainda não defini com precisão os casos que analisarei, mas a princípio penso em Buenos Aires, Bogotá, Rio de Janeiro e La Paz/El Alto. Esta última cidade é, justamente, o tema de “El Alto: rebel city”, da antropóloga Sian Lazar.

Na resenha de outro livro sobre a Bolívia, mencionei a importância crucial da descentralização política para a ascensão de movimentos sociais nos países andinos, pois foi pela participação nas administrações municipais que formaram ativistas e líderes. El Alto é um caso extremo. A cidade se expandiu muito nos últimos 20 anos e boa parte dos moradores é de origem rural e indígena, e mantém fortes vínculos com seus vilarejos natais. A proximidade de La Paz – não mais do que 20 minutos de van, num horário sem trânsito – deu às mobilizações locais o poder de influir diretamente na vida política nacional, e mesmo de isolar a capital (localizada na cratera de um vulcão extinto, a foto abaixo dá o panorama visto de El Alto), uma vez que o aeroporto está em terras alteñas.



O potencial se manifestou em diversas ocasiões, em particular no período que vai da “guerra do gás” (2003) à posse de Evo Morales na presidência (2005), quando El Alto se tornou o fiel da frágil balança que terminou por derrubar os presidentes Sanchéz de Lozada e Carlos Mesa. A repressão policial foi violentíssima e os alteños me mostraram com tristeza e orgulho cívico os locais dos principais enfrentamentos. No entanto, foram apenas os estágios mais recentes da longa mobilização que passou pelas lutas por asfaltamento de ruas, construção de infraestrutura urbana e mesmo pela curiosa relação do Estado com os movimentos sociais para a gestão de certos aspectos da vida da cidade, como o gigantesco mercado popular.



Em minha visita a El Alto, me havia chamado a atenção a enorme preponderância das mulheres no comércio local. Mais de 90% das barracas são comandadas por elas, e acreditei que seria porque os homens haviam migrado para Argentina, Brasil ou então trabalhavam em La Paz. O excelente estudo de Sian Lazar me ensinou que na realidade é uma tradição que remonta à era colonial, pela qual as mulheres assumem as funções de intermediárias entre a produção camponesa/indígena e o mercado citadino. Ela compara a própria cidade de El Alto com esse papel feminino habitual, e examina a liderança política dos alteños por sua perícia em ligar a capital ao mundo dos povos originários, num contexto em que esse universo cultural se tornava cada vez mais influente nos jogos de poder bolivianos.

Contudo, há um ponto que ela não abordou e que me fascinou em meu trabalho na cidade. Vi um nítido contraste geracional entre as mulheres adultas, vestidas à moda indígena (pollera e chápeu coco) e seus filhos crianças e adolescentes, que trajam camisas de times de futebol ou bandas de rock, com bonés. No mercado popular, circulam CDs e DVDs piratas dos produtos da indústria cultural global, de Harry Potter a Britney Spears. Ao mesmo tempo, esses rapazes e moças – que entrevistei para a pesquisa sobre juventude sul-americana – se orgulham da ascendência indígena e escrevem canções em aymara e quéchua. Mas no ritmo de hip hop, numa fusão artística fascinante, e sempre em movimento. A foto abaixo mostra um centro cultural, a “Casa de Jovens” - significado do letreiro em aymara.



Um dos rapazes que entrevistei compôs uma música sobre a sensação de se sentir um alienígena ao caminhar no Passeio El Prado, a avenida elegante do centro de La Paz. Por coincidência, terminei aquele dia por lá, em busca de livros sobre história boliviana. Para os padrões da classe média brasileira, é uma vizinhança comum, sem mais destaques. Pedi um sorvete e pensei na vida que passava apressada, indo e vindo pelas ruas da cidade.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O Nobel de Obama



O comitê que concede o prêmio Nobel da Paz tem sido responsável por grandes surpresas nos últimos anos, em particular pela concepção abrangente de sua missão, laureando trabalhos dedicados à promoção do desenvolvimento sócio-econômico entre os pobres (microcrédito) e os esforços da ONU e de Al Gore em combater a mudança climática. A escolha deste ano de premiar o presidente Barack Obama sinaliza o compromisso do Nobel com o multilateralismo e a busca de soluções pacíficas para os conflitos mundiais. E a esperança de que os Estados Unidos sejam parte da solução, e não do problema, como durante a era Bush. Obama é o primeiro presidente americano em exercício a ganhar o Nobel desde Woodrow Wilson (em 1919) mas o terceiro líder do Partido Democrata a recebê-lo nesta década, após Jimmy Carter (2002) e Al Gore (2007).

À primeira vista, o Nobel é um bônus para Obama num momento difícil, em que sua espantosa popularidade inicial foi reduzida pelas dificuldades econômicas e pelos obstáculos na reforma do sistema de saúde. Sua política externa enfrenta muitas objeções de segmentos importantes da sociedade americana, em particular por suas posições moderadas no Oriente Médio e com relação à Rússia.

Mas as atrocidades do 11 de setembro e os conflitos políticos da era Bush reforçaram a desconfiança da opinião pública americana quanto aos aliados europeus e instituições multilaterais como a ONU e nesse sentido nada garante que o Nobel ajude Obama. Pode até dificultar sua vida, indispondo-o ainda mais com os setores isolacionistas. Basta lembrar que Wilson teve a Liga das Nações rejeitada pelo Senado e deixou a presidência em amargura. Seu legado só foi reconhecido e valorizado muitos anos depois. Curiosamente, há pouco tempo a revista Foreign Policy publicou artigo com severas críticas ao Nobel da Paz, apontando seus muitos erros e omissões (Gandhi, por exemplo, nunca ganhou).

Obama vive a contradição semelhante a de Gorbatchev, a de ser muito mais popular no exterior do que entre seus próprios compatriotas. A analogia tem outros pontos em comum: a necessidade dos dois estadistas em retirar seus países de guerras desastrosas no Afeganistão (no caso de Obama, também no Iraque), de reformar uma economia repleta de problemas e o fato que ambos representavam a corrente mais inovadora do establishment político. Deve ter muita gente na velha União Soviética olhando para o presidente americano com uma sensação curiosa de Dejá Vu, e talvez de pensamentos pessimistas.

Com apenas nove meses no cargo, é muito difícil fazer qualquer previsão do sucesso ou fracasso das iniciativas diplomáticas de Obama. Mas a lista impressiona pelas ambições. O belíssimo discurso do Cairo, focado no entendimento entre culturas e religiões. O cancelamento do controverso projeto do escudo de mísseis na Europa Oriental. A recomposição das relações com os aliados da OTAN. Um importante e bem-executado tour pela África. O reconhecimento dos países emergentes da economia internacional, no G-20. Outros permanecem problemáticos: a deterioração nas relações com Israel, a crise com o Irã, agravada pelos avanços no programa nuclear e pela repressão violenta do movimento democrático, a situação complexa no Afeganistão, Paquistão e Iraque, a dificuldade de entendimentos com a Coréia do Norte, as diretrizes confusas para a América Latina.

Sem Fronteiras



Há anos acompanho o Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro com zelo religioso. A única alteração na devoção é qual das mostras merecerá minha gratidão eterna. Em 2009, a escolha recaiu em “Fronteiras e Limites”, que reuniu excelente seleção de documentários sobre temas globais. Certamente alimentarão minhas aulas pelos próximos meses. Destaco dois filmes: “Estado de Emergência”, sobre os Médicos Sem Fronteiras, e “A Batalha pelo Tribunal [Penal Internacional]”.

“Estado de Emergência” (Living in Emergency) é uma crônica realista e não-idealizada do trabalho dos MSF, a partir de duas missões da organização. Na Libéria, enfrentam o desafio de gerenciar o único hospital da capital, Monróvia, metrópole de 1 milhão de habitantes, e gerenciam postos médicos no interior, em áreas de difícil acesso. A situação é a de administrar os precários serviços de saúde numa sociedade que luta para se reconstruir após um devastador conflito bélico. Na República Democrática do Congo, as condições são ainda mais dramáticas. Lá, os MSFs operam uma clínica em plena zona de guerra, em precárias condições de segurança.



O documentário é um trabalho de edição fenomenal, que sintetizou em cerca de duas horas dois anos de filmagens. A narrativa acompanha a história de diversos médicos, com destaque para quatro deles. Três estão na Libéria: a italiana que comanda o hospital de Monróvia, um veterano cirurgião americano que abandonou a vida confortável nos EUA para tentar redescobrir sua fé na medicina e um jovem australiano inseguro e assustado, confinado no interior do país. No Congo, o protagonista é outro australiano, bem mais experiente, que se esforça para salvar a missão do fechamento iminente.

Todos os personagens são humanos, dolorosamente humanos. Saudades de casa, desconforto, estresse e problemas de comunicação entre pessoas de culturas diferentes fazem com que as missões mostradas no filme às vezes pareçam saídas de um episódio de House ou de MASH. É uma visão crítica dos MSFs, mas que olha com simpatia a organização. Há humor, também. Minha cena favorita é um menino no Congo – em meio à guerra civil - que censura um médico por fumar, alertando que é prejudicial à saúde.

“A Batalha pelo Tribunal” é um filme comprometido com o ideal daquela corte: justiça internacional para os responsáveis por genocídio, crimes contra a humanidade e atrocidades de guerra. O documentário é uma aula magna sobre a criação dessa instituição, suas regras e o complexo ambiente político no qual ela precisa operar, em constante enfrentamento para definir o que pode ser o padrão global para lidar com esse tipo de violação dos direitos humanos.



O filme está organizado a partir de alguns dos casos trabalhados pelo Tribunal: Uganda (a guerra civil contra o Exército de Resistência do Senhor), República Democrática do Congo, Sudão (o genocídio em Darfur) e a ameaça da instituição em intervir no conflito da Colômbia. Há ainda uma excelente discussão das mudanças de posições dos Estados Unidos – que de defensores dos tribunais para julgar crimes de guerra na Iugoslávia e em Ruanda passaram a opositores ferrenhos desse tipo de organização.

O documentário tem um grupo bem definido de heróis – o procurador-chefe do Tribunal, o argentino Luis Ocampo, seus assistentes e as ONGs que apóiam suas causas, e ocasionalmente os criticam. O filme é amplamente favorável a Ocampo, o que não é pouco neste momento em que ele está sob severo ataque.

Ambos os filmes se concentram nas violações de direitos humanos na África, mas senti falta de discussões sobre outros tipos de contexto. Afinal, os MSFs operam nas favelas do Rio de Janeiro, e seu fundador é agora o ministro de relações exteriores da França.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A Batalha por Nova York



O parque parecia destinado a grandes acontecimentos. Henry James e Cole Porter lhe dedicaram obras de arte. Jack Kerouac e Bob Dylan gostavam de perambular por seus bancos, matando o tempo e observando as crianças a brincar. A poucos passos da Quinta Avenida, o Washington Square Park também seria o estopim de um conflito que mudaria o urbanismo dos Estados Unidos, opondo o principal construtor de Nova York, Robert Moses, e a jornalista e ativista comunitária Jane Jacobs. A história dessa disputa – e das diferentes concepções de cidade que os dois representavam – está contada de maneira magnífica em “Wrestling with Moses”, do jornalista Anthony Flint.

Moses estava no auge do poder no início da década de 1960. Desde o New Deal ele era uma figura importante na política nova-iorquina, chegando a ocupar simultaneamente mais de 10 cargos nos governos municipal e estadual, quase todos ligados à realização de obras públicas. Ele construíra 17 parques, 13 pontes, 10 piscinas públicas gigantes, 2 túneis e mais de 1000 quilômetros de estradas. Mudou a face da cidade e se tornou o mais conhecido planejador urbano dos Estados Unidos.



Jacobs era uma jornalista respeitada nos círculos dedicados à arquitetura, mas ainda pouco conhecida. Ela migrara para Nova York vinda do cinturão do carvão e do aço na Pensilvânia e trabalhara como repórter para publicações diversas. Sua grande paixão era a própria cidade, em especial o bairro de Greenwich Village, onde morava com o marido arquiteto e três filhos pequenos.

Para Moses, Nova York era parte do problema. Superpovoada, com bairros repletos de ruas estreitas e prédios decadentes, e problemas de circulação sem fim. A solução: derrubar os cortiços e áreas pobres, recomeçando do zero para que a iniciativa privada pudesse construir prédios novos, como torres de apartamentos. Viadutos, vias expressas e pontes melhorariam o trânsito e aqueceriam combalida economia municipal, que sofria com a perda de sua base industrial. Escrevendo sobre arquitetura e planejamento urbano, Jacobs começou a criticar esse modelo, ressaltando a importância da vida comunitária, dos laços entre as pessoas nas vizinhanças tradicionais, de como o pequeno comércio era importante para dinamizar o cotidiano, fornecendo às pessoas mais do que produtos e serviços, mas também um espaço para conversar, encontrar amigos. A boa cidade não era feita do planejamento, mas fruto do convívio espontâneo e da recriação do dia a dia, de milhares de gestos simples.

Jacobs passeava com os filhos no Washington Square Park e ficou indignada com o plano de Moses de cortá-lo em dois com uma via expressa. Terminou como líder de um movimento comunitário que se opunha ao projeto, e que serviu de base para contestar toda a doutrina das grandes obras e enterrar a carreira de Moses. Como argumenta Flint, o embate prenunciou em alguns anos a turbulência dos Estados Unidos pós-1968, com os protestos contra o Vietnã e a desconfiança das autoridades após o escândalo de Watergate. Moses saiu do confronto criticado como autoritário, cheio de segredos e abrindo as portas para a corrupção (embora ele mesmo não tenha se aproveitado de dinheiro público).



O conflito serviu de estímulo para que Jacobs colocasse suas idéias em formato de livro, resultando em “Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas”, um clássico absoluto que mudou a maneira pela qual as pessoas pensam sobre urbanismo. Mas a luta foi dura e ao fim Jacobs e sua família trocaram Nova York por Toronto, no Canadá, onde seu marido foi construir hospitais, e seus filhos, escaparem do recrutamento obrigatório para o Vietnã.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Olimpíadas no Rio



Tão frequentemente descritos como pertencendo ao “país do futuro”, os brasileiros se descobriram vivendo no presente neste fim de semana (...) Muitos acreditam que o Rio, também, está em ascensão. Após anos de negligência e violência urbana, os investimentos estão retornando gradualmente... impulsionando um boom econômico e cultural.

The Guardian

No que toca ao Brasil, o país nunca esteve tão na moda. Os brasileiros sediarão a Copa do Mundo em 2014 e agora as Olimpíadas, dois anos depois. Eles fornecem a primeira letra do grupo de superpotências econômicas emergentes – os BRICs. São membros-chave do G20. Com Lula, o Brasil finalmente tem um líder que é uma reconhecida figura global... E o Brasil acaba de descobrir reservas massivas de petróleo offshore. Que país de sorte!

Financial Times


Acrescento o que até a Forbes já sabe: o Rio de Janeiro é a cidade mais feliz do mundo.

Em especial após a sexta-feira. A decisão do Comitê Olímpico Internacional em favor do Rio foi uma tremenda injeção de ânimo e auto-estima para a cidade. Ainda que, à maneira carioca, a comemoração venha acompanhada de um certo ceticismo com relação à capacidade das autoridades e do setor privado em cumprir com todas as promessas: dobrar o número de vagas nos hotéis, expandir o metrô, melhorar a infra-estrutura de transporte e a segurança pública, despoluir a Baía de Guanabara e construir ou reformar mais de 30 instalações esportivas.

Bem, agora sou uma dessas autoridades, de modo que a preparação para as Olimpíadas me interessa de perto, de pertíssimo, e espero me dedicar ao tema pelos próximos anos! A campanha oficial foi primorosa, um belo exemplo de trabalho conjunto entre as três esferas de governo. O presidente Lula esteve em um de seus melhores momentos, reforçando o argumento de que já era hora da América do Sul sediar os Jogos, e usando todo o seu prestígio para a causa – o contraste com os esforços confusos de Obama foram marcantes.



O vídeo oficial mostra o plano apresentado pelo Rio. Como sabemos os cariocas, a dispersão da cidade por uma enorme faixa de território é uma dificuldade, pois as atividades esportivas estarão espalhadas por quatro aglomerados, embora concentradas na Barra da Tijuca, onde já estão muitas das instalações construídas para o Pan-Americano de 2007. A idéia faz sentido, mas gostaria de ver mais destaque para a possibilidade de usar a zona portuária e certos setores do centro, que bem precisam de revitalização e reforma.

As Olimpíadas de 1992 foram o grande símbolo do renascimento de Barcelona e da ascensão da Espanha a um novo patamar internacional. As de 1996, consolidaram Atlanta como a capital do “novo sul” dos Estados Unidos. As de 2008, claro, foram mais um passo no caminho da China para sua restauração como potência global. Acredito que o caso brasileiro será mais parecido com o espanhol, com o bônus da Copa de 2014. Temos pela frente tantas oportunidades excelentes que dá até vertigem de imaginá-las. O país está anos-luz à frente do que conheci quando era criança, com o caos da inflação e a falta de perspectivas.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Guernica



Grande livro na praça: “Guernica: a história de um ícone do século XX”, de Gijs Van Hensbergen. A obra-prima de Pablo Picasso não é apenas uma pintura estupenda, mas um elemento importante da política da Espanha ao longo do turbulento período que vai da guerra civil da década de 1930 à redemocratização dos anos 80.

Picasso pintou Guernica em apenas cinco semanas, angustiado pelas sucessivas vitórias dos fascistas na guerra civil, e o bombardeio de seus aliados alemães à cidade basca o deixou enfurecido. Contudo, Hensbergen lembra que Guernica não foi a primeira povoação a sofrer os efeitos da guerra aérea. Ataques piores foram realizados nas rebeliões coloniais na África e no Oriente Médio. A diferença é que no conflito espanhol as vítimas eram européias.

Hensbergen lista as influências de Picasso ao pintar Guernica, mas não se detém muito no ponto. Aparentemente, o principal foram os próprios trabalhos anteriores do artista, como a série sobre touradas, e referências da arte religiosa espanhola.



O foco do autor são as repercussões políticas de Guernica. As reações iniciais foram contraditórias, mas em pouco tempo o quadro se consolidou como símbolo da arte moderna, bandeira de luta para a esquerda no contexto da luta anti-fascista. A obra estava nos Estados Unidos quando eclodiu o conflito. Picasso viveu na França durante a ocupação nazista, assustado e deprimido, mas a fama mundial o protegeu. Houve até o célebre episódio em que um oficial da Gestapo lhe perguntou se Guernica era obra sua. “Não, é sua”, respondeu o pintor.

A Guerra Fria colocou Picasso numa situação incômoda. Aderiu ao comunismo, mas da maneira romântica e anárquica que caracterizava seu temperamento. A URSS saudava sua posição política, mas considerava sua arte “degenerada”. Nos EUA, Picasso era o mestre do modernismo, no entanto era condenado por suas simpatias ideológicas. O FBI reuniu dossiê de 200 páginas sobre o artista, com informações como a de que a pomba da paz era na realidade um pássaro russo! Mas Guernica influenciou bastante a arte contemporânea americana, em especial as pinturas de Jackson Pollock.



A ditadura de Franco sobreviveu a Picasso. Contudo, a modernização econômica da Espanha a partir da década de 1960 também significou um esforço – limitado e contraditório – do regime autoritário em aceitá-lo como parte do grande patrimônio cultural do país. Mas Guernica continuou em Nova York, centro da romaria de turistas e refugiados espanhóis.

O quadro só voltou à Espanha em 1981, no centenário de nascimento de Picasso. A imprensa chamou a pintura de “o último exilado” e houve uma batalha entre Madri, Barcelona e Guernica para ficar com ele. Ao fim, foi para a capital espanhola. Ao ser pendurado, Dolores Ibaurri exclamou: “a guerra civil acabou”. Talvez tivesse razão.

O quadro ficou por anos no Museu do Prado, depois atravessou a calçada e foi para o Rainha Sofia, dedicado à arte moderna espanhola, onde ocupa o lugar simbólico de centro da coleção. Foi lá que o vi, no inverno de 2002, em meio a uma horda de turistas japonesas.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

As Armas da América Latina



Segue abaixo artigo que publiquei no site do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas:

Os países da América Latina gastam em média 2% do PIB com defesa – o menor percentual do mundo. Mas ao longo desta década, as despesas militares dos países da região aumentaram em 90%. Na ausência de guerras, o que explica um crescimento tão significativo e rápido? A resposta está no boom de commodities e nas tensões políticas, internas e externas, das nações andinas.

Chile: cobre e fronteiras

Embora Hugo Chávez seja o nome que a maioria das pessoas associa à elevação dos gastos militares, o Chile é, proporcionalmente, o país da América Latina que mais despende recursos em armamentos, por volta de 4% do PIB. Uma lei da ditadura Pinochet destina 10% das receitas da estatal exportadora de cobre para as Forças Armadas. Como o preço do minério subiu muito na última década, os militares tiveram cofres cheios.

As aquisições de armas foram motivadas pela persistência de conflitos de fronteiras entre Chile, Bolívia e Peru, que envolvem os territórios conquistados pelo primeiro país ao fim da Guerra do Pacífico, no século XIX. Apesar das disputas posteriores terem se limitado ao campo da diplomacia, ocasionalmente a retórica se torna bastante violenta.

Venezuela: petróleo e conflitos internos

A ascensão de Chávez à Presidência, em 1999, coincidiu com a alta dos preços desse recurso natural – de menos de US$20 para quase US$150, por barril, às vésperas da crise financeira de 2008. O presidente canalizou parte dos lucros para dobrar os gastos com defesa. Ele procura justificá-los como necessários para proteger a Venezuela de um ataque dos Estados Unidos e escolheu a Rússia como principal fornecedor de equipamento bélico para escapar das restrições e pressões de Washington.



Contudo, em grande medida, as novas armas atendem a objetivos de política doméstica: manter contente o segmento militar, crucial para a manutenção de Chávez no poder, e equipar as milícias que defenderiam o presidente no caso de outra tentativa de golpe, como a que sofreu em 2002.

Colômbia: aliança com os Estados Unidos

Chile e Venezuela obtiveram recursos para a compra de armas a partir da alta dos preços do cobre e do petróleo, a Colômbia recebeu as verbas diretamente dos Estados Unidos. Em 1998, os dois países assinaram o Plano Colômbia, acordo pelo qual Washington cede cerca de US$1 bilhão por ano à nação andina, tornando-a sua terceira maior beneficiária de auxílio militar, atrás apenas de Israel e do Egito. A princípio, o dinheiro deveria ser usado somente para o combate ao tráfico de drogas. Mas após os atentados de 11 de setembro de 2001 e a eleição de Álvaro Uribe para a presidência colombiana, o fluxo financeiro passou a ser utilizado também para o enfrentamento às guerrilhas e grupos paramilitares.



As Forças Armadas colombianas passaram por enorme expansão, para cerca de 200 mil pessoas – as maiores da região, após as do Brasil. Foram criadas unidades especiais para lutar contra as guerrilhas e comprada moderna frota de helicópteros para operações na selva. Os resultados se fizeram notar em uma série de ataques militares bem-sucedidos contra as FARCs. Os Estados Unidos anunciaram que ampliarão sua presença militar na Colômbia, em resposta aos choques com Chávez e também com o presidente do Equador, Rafael Correa, que negou autorização para que os EUA continuem a usar a base de Manta, em seu país.

Brasil: projeto de potência?

Embora o Brasil se orgulhe de sua tradição de resolução pacífica de conflitos, e da ausência de disputas fronteiriças sérias com os vizinhos, no governo Lula houve um aumento de mais de 50% nas despesas com as Forças Armadas e a assinatura recente do maior acordo militar da história do país, com a compra da França de aviões de caça, helicópteros e submarinos (inclusive um de propulsão nuclear), com transferência de tecnologia.



A retomada da política de defesa se explica pelas crises nas nações latino-americanas. Militares e diplomatas avaliam que o país precisa de Forças Armadas com mais capacidade de dissuadir eventuais agressores. Preocupações com a nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia, as disputas com o Paraguai por Itaipu e os receios com Chávez que, embora tenha beneficiado o Brasil com diversos projetos econômicos, é visto com desconfiança pelo apoio que concede às guerrilhas colombianas. Também causa apreensão o aumento da intervenção militar dos Estados Unidos na Amazônia.

A descoberta das gigantescas reservas petrolíferas no litoral brasileiro é outro fator importante. O controle do país sobre a área é garantido pela Convenção Internacional dos Direitos do Mar. Contudo, trata-se de um acordo diplomático que foi recusado por mais de 40 países, inclusive os Estados Unidos. Por isso, a Marinha se refere ao Atlântico Sul como a “Amazônia Azul”, região sensível e necessitada de atenção especial.

As novas compras militares consolidam o Brasil como potência regional na América Latina. A mediação diplomática bem-sucedida na Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela reforça a imagem brasileira como um fator de estabilidade e moderação em meio aos conflitos andinos. A criação do Conselho Sul-Americano de Defesa segue a mesma lógica.

Contudo, a América Latina continua a enfrentar problemas sociais sérios e o debate sobre a política de defesa na região persiste restrito aos especialistas, com pouca participação das sociedades e dos órgãos representativos, como os parlamentos. As principais beneficiárias da compra de armamentos são as grandes empresas dos Estados Unidos, da Rússia e da França e é preciso democratizar a discussão, para que as iniciativas dos governos reflitam as reais necessidades e interesses dos povos do continente.