sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Para 2011



Embora este seja, basicamente, um blog de análises políticas e acadêmicas sobre relações internacionais, até agora a vida universitária tinha ocupado um espaço marginal na minha vida. Era aquilo que eu fazia fora do horário comercial, quando dava expediente em ONGs ou no serviço público. Isso agora vai mudar. Ontem foi meu último dia de trabalho no funcionalismo e a partir da próxima semana, me dedicarei profissionalmente somente à academia, na coordenação de uma série de projetos na Fundação Getúlio Vargas e no Curso Clio. Decisão óbvia: colocar no centro da minha vida aquilo que mais me faz feliz. A felicidade é uma arte marcial.

Já trabalho com as duas instituições há vários anos e nelas estão amigos queridíssimos e alunos fantásticos – confesso que a fronteira entre as duas categorias sempre foi muito tênue, e é assim que gosto que ela seja. De modo que conviver de modo ainda mais intenso com essa equipe é um dos fatores que mais tem me entusiasmado.

À medida que os projetos forem sendo implementados, comentarei mais sobre eles por aqui. Por agora, basta dizer que terei pela frente alguns excelentes cursos de pós-graduação, quase todos ligados à temática internacional, e uma série de publicações planejadas para 2011. Vai ser um ano de trabalho duro, mas espero que muito gratificante.

Feliz ano novo a todos vocês. Continuamos nossa conversa ao longo do próximo ano.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A Radicalização da Venezuela



Durante muito tempo, os defensores de Hugo Chávez alegavam que ele podia ter práticas questionáveis, mas representava a maioria da população da Venezuela, que o havia consagrado em diversas vitórias eleitorais expressivas. Contudo, o quadro político venezuelano tornou-se mais sombrio. Nas últimas legislações legislativas, a oposição obteve mais de 50% dos votos, mas ficou com pouco mais de 1/3 das vagas na Assembléia Nacional, em função da mudança na lei eleitoral, para beneficiar o governo. Ainda assim, seria o suficiente para dificultar a vida do presidente e bloquear indicações de juízes, por exemplo. A nova Assembléia toma posse em janeiro, mas antes disso Chávez reagiu conseguindo novas leis que o autorizam a governar por decreto, por um ano e meio.

O presidente alegou que precisa dos poderes extras para responder de maneira rápida e efetiva às chuvas catastróficas que deixaram cerca de 140 mil pessoas desabrigadas na Venezuela. Como não choveu por tanto tempo nem na Macondo de García Márquez, nem no Dilúvio bíblico, a oposição teme que seja simplesmente uma manobra para passar à margem da nova Assembléia – mesmo que o governo tenha quase 2/3 dos votos nela.

Além do poder de governar por decreto, Chávez conseguiu a aprovação de outra lei polêmica, criando as “comunas” – unidades administrativas que atravessam as divisões habituais entre cidades e províncias, e estão vinculadas diretamente à Presidência da República. O projeto já vem de algum tempo. Foi apresentado na reforma constitucional de 2007, derrotado no referendo e agora voltou na forma da nova lei. Já há mais de 200 comunas em implementação no país. Elas são descritas não só em termos de definição geográfica, mas também por terem um sistema político socialista. Ou seja: são um modo de adotar a agenda política chavista mesmo em áreas governadas pela oposição.

Pode sobrar até para o Country Club de Caracas, o último bastião da elite tradicional da Venezuela. A instituição está na mira do governo para ser desapropriada. Chávez quer transformar o campo de golfe do clube em área para abrigar os refugiados da chuva.

As novas medidas apontam para ainda mais concentração de poderes em Chávez, num momento político delicado, de crescimento da oposição, problemas na economia e já no início da movimentação para a próxima eleição presidencial, daqui a dois anos. Os bolivarianos não querem correr riscos e aumentam as ferramentas à sua disposição para manter o controle da Venezuela – mesmo que a maioria do eleitorado prefira outros candidatos.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Leituras sobre a Bolívia



Aproveitei o feriado para esvaziar a cabeceira de literatura acadêmica, em especial sobre a Bolívia, por conta de estar terminando um artigo a respeito do país. Há dois lançamentos recentes que ajudam a entender o longo processo de lutas e transformações sociais, das quais os anos recentes são uma etapa importante, mas de modo algum a única. O primeiro é “Revoluções de Independências e Nacionalismos nas Américas: Peru e Bolívia”, quarto volume de uma excelente coleção organizada pelos historiadores Marco Pamplona e Maria Elisa Mader. O segundo é “A Potência Plebéia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia”, coletânea de artigos do sociólogo e vice-presidente boliviano Álvaro Garcia Linera.

O livro de Pamplona e Mader traz dois excelentes artigos, de Herbert Klein e Antonio Mitre, sobre a formação e desenvolvimento do Estado boliviano no século XIX. A região que hoje conhecemos como Bolívia oscilou no império espanhol entre ser parte do Vice-Reinado do Peru (capital Lima) e do Vice-Reinado do Prata (capital Buenos Aires), e era conhecida como Alto Peru ou Audiência de Charcas. Quando estouraram as guerras de independência, os locais se viram presos num emaranhado de batalhas. Sofreram quatro invasões dos exércitos recrutados por Buenos Aires, e outras tantas das tropas realistas que atacavam desde Lima. O comportamento predatório desses soldados contribuiu para reforçar os sentimentos autonomistas das elites locais, vinculadas à mineração da Prata, que não queriam ser governadas por pessoas de fora da área.

Ao final, o Alto Peru foi subjugado pelas tropas de Bolívar, que a princípio queria que o território fizesse parte de uma grande confederação que reuniria os atuais países andinos. Quando isso não foi possível, o Libertador acabou consentindo (um tanto a contragosto) que a Bolívia se tornasse um país independente tanto do Peru quanto da Argentina. O nome lhe homenageava, para tentar adoçar a pílula. O poder ficou com um de seus mais hábeis generais, Andrés de Santa Cruz, mas que anos depois tentou reverter a situação e fundir Bolívia e Peru num só país, sob seu comando.

O preço pela independência da Bolívia foi alto. As guerras devastaram a indústria da mineração, que levou décadas para se recuperar. Além disso, a economia boliviana era muito dependente do comércio com os territórios vizinhos do império espanhol, que ao tornarem-se países autônomos impuseram tarifas elevadas. A guerra do Pacífico lhe custou o litoral, agravando ainda mais a situação.



O livro de García Linera concentra-se na análise das lutas sociais bolivianas no século XX. É uma história riquíssima, que inclui uma guerra (do Chaco, contra o Paraguai), a Revolução de 1952, o crescimento do movimento dos mineiros e a ascensão de uma série de correntes indigenistas nos últimos 30 anos – o katarismo, a guerrilha comandada por Felipe Quispe (da qual García Linera participou) e finalmente a articulação entre esses grupos e outros movimentos sociais de base, que levou à fundação do MAS e à vitória de Evo Morales para a presidência.

Linera ascendeu politicamente como um intérprete dos novos movimentos sociais, alguém que desde sua posição de acadêmico de classe média podia explicá-los a um público de massa, pela televisão. Tornou-se vice de Evo como segunda opção – a primeira seria um empresário, nos moldes do que Lula fez no Brasil, mas não foi possível encontrar alguém com esse perfil. Tem sido um ator importante nas mudanças aceleradas das duas últimas décadas na Bolívia, cuja história ainda está por ser escrita.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Villa Soldati, Cidade e Democracia



A imprensa brasileira pouco comentou, mas ao longo da última semana ocorre um dos mais graves conflitos sociais da Argentina pós-crise. Em Buenos Aires, no bairro de Villa Soldati, moradores atacaram imigrantes bolivianos e paraguaios que haviam ocupado um conjunto habitacional em construção. Três pessoas morreram e muitas outras ficaram feridas. Villa Soldati é uma zona de classe média baixa, netos e filhos de italianos pobres, agredindo a nova pobreza recém-chegada à Argentina. Versão portenha do ótimo filme de Scorsese sobre as gangues da Nova York do século XIX.

Os brasileiros estamos acostumados a níveis cotidianos de violência que chocariam os visigodos, e talvez por isso não tenhamos percebido a importância do que aconteceu em Buenos Aires (ademais, reflexos de problemas de segurança mais amplos). Trata-se de um embate que será crucial nos próximos anos: a luta pela democracia em cidades que são, cada vez mais, nós de conexão das grandes redes globais. Que incluem levas de imigrantes, em muitos casos com outras cores de pele ou religiões diferentes, e com menos direitos do que os moradores nativos. Os riscos de xenofobia e o aumento do racismo não estão restritos às metrópoles da América do Norte e da Europa, conflitos sociais desse tipo eclodiram também na África do Sul, no México e, agora, na Argentina. Podem estourar em São Paulo ou Santiago do Chile.

Esses temas ganham cada vez mais força também na minha agenda acadêmica. Na sexta-feira fiz parte de uma banca de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A ótima tese discutia a gestão democrática da cidade, a partir de uma crítica do Estatuto da Cidade, por meio de autores marxistas. O argumento era que os regimes democráticos não conseguem assegurar uma boa cidade, porque deixam intacta a estrutura econômica injusta.

Na minha arguição, ponderei que a tese era dura demais com a democracia e que os temas urbanos tinham sido uma questão central para os movimentos sociais desde meados do século XIX, com a luta por habitação, saneamento e boas condições de vida nas cidades. Destaquei o caso da "Viena Vermelha" do entreguerras, onde os sociais-democratas construíram o mais importante embrião do Estado de Bem-Estar Social. Ou de como campanhas que à primeira vista não estão ligadas à cidade, como a dos direitos civis nos EUA, manifestam-se no ambiente urbano, nos conflitos pelo fim da segregação racial no transporte coletivo, por exemplo.

No mundo contemporâneo, a demanda democrática mais radical a ser feita é a da cidadania global, afirmaram Toni Negri e Michael Hardt. Essa é a utopia, o sonho além do horizonte.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Uma Guerrilha sem Fins?



"As FARC - uma guerrilha sem fins?", do sociólogo francês Daniel Pecaut é uma pequena jóia que em 150 páginas, traça um panorama histórico competente do conflito colombiano e em seu terço final realiza uma estupenda análise de conjuntura dos anos de Uribe no poder, com um diagnóstico que desafia as concepções simplistas da Colômbia: a guerrilha está quase derrotada, mas o remédio amargo usado para isso, o concluio enfre Forças Armadas e paramilitares, pode ser um veneno ainda pior. E alerta que os efeitos trágicos do conflito armado resultaram em concentração de renda e aumento da pobreza, mesmo diante dos bons índices de crescimento econômico. É, em suma, a melhor obra em português sobre esse tema.

Embora o título do livro possa indicar um panfleto contra a guerrilha, a análise de Pecaut é matizada e bem embasada na história colombiana. Ele examina o surgimento das FARC a partir dos grupos de autodefesas camponeses durante La Violencia, a guerra civil entre conservadores e liberais nas décadas de 1940-50. Em 1958 os dois partidos fizeram um pacto de governabilidade, mas resolveram atacar os últimos bastiões de resistência rural, que haviam se radicalizado politicamente. Desse conflito nasceram as FARC.

Pecaut chama a atenção para o forte vínculo das FARC com o mundo camponês colombiano, e sua dificuldade para se articular politicamente nas cidades. Até a década de 1980 as FARC eram um pequeno grupo guerrilheiro operando na periferia do país, em disputa com diversos outros (ELN, EPL, M-19, Quintin Lame). Num dos processos de paz, tentaram criar um partido, a União Patriótica, que começou a despontar como opção de esquerda, e foi dizimado com o assassinato de cerca de três mil de seus militantes e dirigentes.



A partir daí a guerrilha adotou o caminho sem volta da militarização, que encontrou terreno fértil para crescer nos anos 90, em meio à crise econômica e política, que incluiu o envolvimento de um presidente com o tráfico de drogas. Que, aliás, também teve importância crescente para as FARCs, em conjunto com a renda obtida por sequestros e pela extorsão de empresas que operam em zonas controladas pela guerrilha. Curiosamente, as FARC nunca tiveram grandes patrocinadores externos, ao contrário do ELN, muito próximo do regime cubano.

Uribe foi eleito presidente no clima de medo do auge do poder da guerrilha, e executou uma competente reestruturação das Forças Armadas, que pela primeira vez têm os recursos (financeiros, humanos e tecnológicos) necessários para combater as FARC. Mas a ação do Estado quase sempre ocorreu em parceria com os paramilitares, que fazem o trabalho de sujo de atuar como esquadrões da morte e ocupam as terras abandonadas pelos guerrilheiros, explorando-as economicamente. Os resultados têm sido extremamente nocivos para a Colômbia: uma "reforma agrária às avessas", que transformou os paras nos maiores proprietários rurais do país, a criação de levas de "desplazados", refugiados internos que fogem para as cidades ou nações vizinhas, e um enorme nível de corrupção na chamada "parapolítica", que envolve esses grupos e a elite colombiana.

A ofensiva (para)militar bem-sucedida contra as FARC fizeram com que a guerrilha adotasse duas estratégias para tentar sobreviver: a "troca humanitária" e a busca de apoio internacional, sobretudo por meio do presidente da Venezuela, Hugo Chávez. A primeira diz respeito ao sequestro de reféns políticos (a senadora Ingrid Betancourt é a mais famosa, mas de modo algum a única) para uso nas barganhas com o governo. A segunda vem da estratégia "bolivariana" que a guerrilha adotou nos anos 90, apresentando um vago programa reformista na tentativa de obter ajuda externa que a ajudasse a legitimar-se como um ator no jogo político colombiano.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A Liberdade Segundo Jonathan Franzen



Os Berglunds eram a família modelo num pacato subúrbio residencial do estado de Minnesota, sempre dispostos a ajudar os vizinhos e com dois filhos inteligentes e saudáveis. É certo que havia alguns questionamentos – por que Patty, a esposa,nunca visitava seus pais em Nova York? – mas eram questões menores. De repente, não mais do que de repente, as coisas saíram de controle. Talvez o 11 de setembro possa ser o marco, mas os atentados dificilmente explicam a saída de casa do filho caçula, Joey, ou a freqüência com que Patty passou a beber. E o que diabos representa para a família o músico-alternativo-que-virou-superstar, Richard Katz, o grande amigo de juventude de Walter, o marido? A mudança dos Berglund para Washington, DC, foi o prelúdio do desastre, mas ainda assim ninguém entendeu o perfil que o New York Times publicou do gentil Walter, associando-o à devastação do carvão e chamando-o de “notório arrogante.”

Freedom”, de Jonathan Franzen, é um romance sobre excessos – de liberdade, de dinheiro, de opções e como todas essas possibilidades acabam fazendo com que as pessoas se percam em meio às dificuldades da vida contemporânea nos Estados Unidos. Como seu best seller anterior, “As Correções”, é também uma crônica das desventuras de um casal de classe média por sua crise de meia idade. A novidade é que Franzen está mais político, satirizando o clima de “o vencedor leva tudo” que tomou conta da sociedade americana, e elaborando tramas a partir das negociatas no Iraque. Eu havia gostado das “Correções”, e “Freedom” é ainda melhor.



A trama acompanha a trajetória de quatro personagens: Walter, Patty, Joey e Richard, com olhares momentâneos sobre seus vizinhos, amigos, amantes, parentes e fãs. O que os quatro têm em comum é o desejo de mudar de vida, mas a permanente insatisfação com as escolhas que realizam. Walter abandona a empresa na qual trabalhou por muitos anos para tocar uma fundação filantrópica ambiental, de credenciais questionáveis. Patty se sente frustrada com sua rotina de dona de casa e lamenta os erros que cometeu. Joey vive as ansiedades da adolescência e do início da vida adulta, principalmente as tentações do dinheiro, ao ser apresentado à milionária família de seu colega de quarto. O personagem mais interessante, sem dúvida, é Richard. Sua carreira boêmia e errática sofre um baque violento quando ele se torna um sucesso de público. Mas talvez ser bem-sucedido não seja o que ele procure.

O romance consegue ser engraçado e amargo ao mesmo tempo, com passagens inesquecíveis, como Richard criticando a pose dos roqueiros, Joey refletindo sobre a importância da música em sua vida ou a relação de amizade, carinho, rivalidade e ressentimento que une e separa Richard e Walter, desde os dias da faculdade. Há também problemas, em especial uma certa agressividade que com freqüência aparece nas descrições dos personagens femininos. Mas é muito bom encontrar um romance que me emocione e me faça pensar.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Holbrooke



Richard Holbrooke, talvez o melhor diplomata dos Estados Unidos, morreu nesta semana. Marcado pelo trauma do Vietnã, teve o ponto alto de sua carreira como o negociador da paz na Bósnia e falhou em seu último posto, ao lidar com Afeganistão e Paquistão. Além disso, foi importante na criação e consolidação da revista Foreign Policy (reação ao conservadorismo da mais tradicional Foreign Affairs durante a guerra do Vietnã) e teve lucrativa carreira como banqueiro de investimentos. Sua trajetória ilustra a oscilação do poder americano nos últimos 40 anos, com o declínio na década de 1970, a ressurgência nos anos 90 e a inquietação atual com as crises na Ásia Meridional e a ascensão de novas potências.

Holbrooke decidiu entrar para a carreira diplomática ainda no ensino médio, após ouvir um discurso inspirador de Dean Rusk, um político que tornou-se Secretário de Estado no governo Kennedy. Holbrooke era bem o homem da “Nova Fronteira” de JFK, servindo na África como diretor do Peace Corps no Marrocos, mas vivendo também o lado sombrio do idealismo, em longos anos de serviço no Vietnã, acompanhando o aprofundamento da tragédia no país.

De volta a Washington, trabalhou na equipe que preparou o longo estudo sobre o envolvimento americano na guerra. Anos depois os documentos seriam vazados para a imprensa por um de seus colegas, Daniel Ellsberg, e ficaram conhecidos como “Pentagon Papers” (pois é, essas coisas aconteciam mesmo antes do Wikileaks).
Holbrooke escolheu o caminho público em suas críticas ao Vietnã, lecionando em Princeton, escrevendo artigos para revistas e editando com sucesso a Foreign Policy. Foi sua guinada de burocrata para político, pois dali em diante ele virou um emissário de confiança de todos os presidentes democratas, servindo como embaixador e em altos postos no Departamento de Estado, embora nunca tenha obtido o status ministerial.

Ele era descrito com freqüência como um homem de temperamento difícil, muito vaidoso e ocasionalmente arrogante e agressivo. Os defeitos tiveram lá sua utilidade, em especial na década de 1990, quando ele intimidou diversos presidentes e políticos nos Bálcãs, trancou-se com os principais negociadores por três semanas e saiu com um importante acordo de paz de Dayton, que encerrou a guerra na Bósnia. Foi o auge dos Estados Unidos como o “honest broker”, a nação capaz de garantir a estabilidade mundial no turbulento mundo do pós-Guerra Fria.

As complexidades da situação no Afeganistão e no Paquistão estão provavelmente além da capacidade individual de qualquer um, e a sucessão de guerra, terrorismo, violência e instabilidade faz com que a região seja considerada como a mais perigosa do planeta. Um final inglório para uma carreira extraordinária.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O Haiti não é Aqui



A ocupação policial-militar dos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, começou bem mas rapidamente demonstrou os problemas da política de segurança, em especial as dificuldades quase insuperáveis de se realizar grandes operações sem que haja uma reforma na polícia. Os criminosos fugiram do cerco às favelas. Os moradores denunciam roubos e agressões por parte das autoridades que ocupam as comunidades. A resposta governamental foi colocar a ocupação sob controle do Exército, no que o general que chefia a missão classificou como uma "Força de Paz", semelhante àquela que ocorre no Haiti. É uma analogia perigosa: o país caribenho é um dos mais pobres do planeta, com apenas a sombra de um Estado. A cidade do Rio de Janeiro é uma das regiões mais ricas de uma nação emergente, de renda média.

O Rio tem serviços públicos (federais, estaduais, municipais) razoavelmente eficientes nos bairros de classe média e alta. A polícia não arromba casas em Ipanema, o lixo não está acumulado no Leblon, as milícias não ocupam as ruas do Jardim Botânico. A questão aqui não é construir um Estado, como no Haiti, mas sim expandi-lo e aperfeiçoá-lo para os significativos bolsões de pobreza que existem na cidade.




O Exército brasileiro foi bem-sucedido no Haiti em controlar as quadrilhas criminosas que dominavam as maiores favelas da capital Porto Príncipe, criando as condições de segurança para que as ONGs e fundações filantrópicas pudessem implementar seus projetos de cooperação social. Os militares estrangeiros tiveram que realizar essa tarefa pela fragilidade da polícia haitiana. É um tanto mais difícil aceitar essa necessidade no Rio de Janeiro, que tem quase 50 mil policiais, sem contar as forças federais.

A operação no Alemão demonstrou a necessidade da intervenção pontual e limitada das Forças Armadas, para dissuadir a ação dos bandidos e vencer, pela aplicação da força bélica, as barreiras físicas que os traficantes construíram para deter incursões policiais. Uma ocupação militar de longo ou médio prazo numa favela carioca é um risco grande para corrupção da tropa - os soldados são tão mal pagos quanto seus colegas na polícia.

Além disso é construída sobre um conjunto de paradoxos e contradições - os militares garantirão a segurança até a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora. Isso significa usar o Exército porque a polícia não é confiável, com o objetivo de instalar de modo definitivo na favela a mesma polícia não-confiável. A melhor iniciativa até agora foi o projeto lançado pelo jornal o Globo de usar as mídias sociais para dar voz à população das comunidades pobres, de modo a aumentar a fiscalização sobre as ações do Estado e poder denunciar também os grupos armados ilegais.

No Haiti, seis anos de missão de paz garantiram certo nível de estabilidade e segurança (pelo menos até o terremoto devastador do início deste ano), mas falharam em promover o desenvolvimento econômico e a (re)construção da infraestrutura. Tomara que a operação no Alemão siga um caminho diferente, senão o que teremos será mais do mesmo, com o Exército no lugar da polícia nas manchetes do noticiário criminal.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Até o Fim da Terra



Meu ritmo acadêmico neste fim de ano anda tranqüilo e tenho aproveitado para ler romances, em especial de autores do Oriente Médio. Já comentei aqui sobre Amós Oz e agora é a vez de David Grossman, cujo “A Mulher Foge” está em praticamente todas as listas dos melhores livros do ano, com sua mistura épica de guerra e amor.

O romance conta a história de Ora, uma mulher que resolve vagar pelo interior de Israel enquanto seu caçula, Ofer, serve o Exército na guerra do Líbano, em 2006. Ela acredita que se não puder ser contactada pelos militares, isso de algum modo protegerá o rapaz de morrer em combate. Ela é acompanhada em sua jornada por um ex-amante com quem pouco falava nas últimas décadas, mas que é o pai de seu filho, embora ela tenha se casado com outro homem.

A narrativa do triângulo amoroso é contada com grande sensibilidade, num prólogo inesquecível. Os três se conheceram adolescentes, isolados num hospital durante a Guerra dos Seis Dias (1967). Eles se tornam amigos inseparáveis, ainda que os dois rapazes disputem o amor de Ora. A história tem um desfecho trágico quando, no conflito do Yom Kippur (1973), Avram é capturado pelos egípcios e destruído psicologicamente pelas severas torturas que sofre na prisão. Apesar do apoio que o casal lhe dá, ele não consegue se recuperar e tem contatos apenas esporádicos com eles.



A jornada de Ora e Avram é, evidentemente, um acerto de contas com o passado, na medida em que a mulher recria com palavras a infância e juventude de Ofer, tentando compensar o pai pelos anos que perdeu da vida do filho. Difícil dizer o que é apenas ficção: Grossman escreveu o romance quando seu próprio caçula servia no Líbano, e ele morreu nas últimas horas da guerra, quando seu blindado foi destruído por um míssil disparado pelo Hezbolá. Os dois aparecem lado a lado na foto que abre este post.

Grossman despontou como escritor como um crítico da ocupação israelense da Cisjordânia e o modo como o conflito corrói as duas sociedades é belamente explorado neste romance. Na passagem que dá título à edição em inglês (To the End of the Land), Ora pede a um taxista árabe, velho amigo da família, que a conduza “até onde acaba o país”. Sua resposta: “Para mim, já acabou faz tempo”. Igualmente tocante é o despertar da identidade judaica de Ofer, ainda criança, quando decide que se chamará John e será inglês, povo que segundo ele “não tem inimigos”, ao passo que “todos querem matar os judeus, nossos feriados são todos sobre isso!”.

Há muita injustiça e violência na América Latina, mas somos amadores na arte de odiar. São necessários muitos séculos, talvez milênios, para aperfeiçoá-la ao ponto em que ela existe hoje no Oriente Médio. Não são dilemas políticos aptos a serem resolvidos de maneira racional, mas se há alguma esperança está na capacidade de empatia e compreensão, e a literatura é uma aposta tão boa quanto qualquer outra na aptidão humana por entender os sentimentos alheios.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A Alemanha e a Crise do Euro



A crise financeira que atingiu Grécia e Irlanda e ameaça derrubar Portugal e Espanha chegou a um ponto no qual se começa a discutir a sério a possibilidade de alguns desses países saírem do euro. Segunda maior exportadora do mundo, atrás apenas da China, a Alemanha não tem incentivos para desvalorizar o euro. Perderia muito com a depreciação da moeda. No entanto, isso é necessário para as economias mais frágeis, que precisam desse estímulo para melhorar sua competitividade diante de rivais como os chineses e os americanos, que se beneficiam do câmbio favorável.

A Alemanha Ocidental, depois da Segunda Guerra Mundial, foi liderada por uma série de estadistas que priorizaram o projeto de integração europeu, colocando freios institucionais à autonomia germânica. Entendiam claramente que era o preço a pagar pela história sombria do país, a garantia que precisavam dar aos parceiros de continente de que a nova Alemanha abandonara os projetos de expansão imperial e estava comprometida com a paz e a prosperidade da Europa. Como nos lembra Barry Eichengreen, para entender o euro é preciso compreender a história política da região. Talvez mais até do que a economia.

A expansão da integração européia, em particular a criação do euro, foi condição para que os outros países aceitassem a reunificação da Alemanha. A barganha funcionou bem durante 20 anos, com o novo Estado funcionando como uma locomotiva econômica para as nações do antigo bloco comunista, fomentando o desenvolvimento com seus investimentos. Mas esse acordo deixou de ser tão interessante no momento de crise. Não há mais adversários ideológicos externos, como o comunismo, para impulsionar os europeus a esquecerem suas divergências e focarem no bem comum.

A nova geração de políticos alemães – a premiê Angela Merkel é a primeira oriunda da antiga Alemanha Oriental a governar o país – tem mostrado pouca disposição para a causa européia, e uma perspectiva bastante voltada para os problemas domésticos. A proposta germânica tem sido a de um regime fiscal europeu que seja mais severo, e fiscalize com rigor as finanças públicas dos países da UE. “Teremos que pagar por toda a Europa?”, perguntou a manchete de um jornal popular.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Wikileaks



O início da divulgação pelo site Wikileaks de cerca de 250 mil documentos diplomáticos confidenciais dos Estados Unidos é uma fofoca deliciosa sobre os bastidores da política internacional, mas com poucas novidades. Alguém está surpreso em saber que Berlusconi promove festas selvagens, que há corrupção de larga escala no governo Karzai ou que Sarkozy é autoritário? É, no entanto, muito divertido ouvir os sisudos diplomatas americanos compararem a relação Putin-Medvedev a de Batman e Robin, ou a já clássica descrição de um casamento no Daguestão.

A reação das autoridades mundiais, em particular nos Estados Unidos, foi violenta e extrema, com o surgimento de uma acusação de estupro contra o fundador do site, acompanhada por um mandado de prisão emitido pela Interpol. Medo do quê mais o Wikileaks pode divulgar... O que há de pior nas mensagens é a constatação de como os diplomatas americanos têm cruzado a fronteira da espionagem com freqüência perturbadora. Com o agravante de que os documentos divulgados até agora não são top secret, em geral são despachos rotineiros de embaixadores para seus ministérios. Não houve, por exemplo, nenhum texto produzido exclusivamente para chefes de Estado ou escalões superiores restritos.

Houve boa quantidade de documentos relativos ao Brasil, o que mostra a importância crescente do país para os Estados Unidos. Os temas envolvem críticas ao combate brasileiro ao terrorismo (avaliações negativas do governo, mas elogiosas da Polícia Federal e das ações do Ministério da Fazenda na repressão a crimes financeiros), acompanhamento do papel de “potência emergente” (negociações com o Irã, aproximação com a França).



O que mais chamou a atenção da imprensa brasileira, sem dúvida, foram os despachos do então representante americano em Brasília, Clifford Sobel, relatando conversas nas quais o ministro da Defesa, Nelson Jobim, critica o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Jobim teria revelado ao diplomata estrangeiro o câncer de Evo Morales, dito a Sobel que Guimarães “odeia os Estados Unidos” e conquistado a admiração do interlocutor, que o classificou para seus superiores em Washington como um dos melhores e mais confiáveis líderes brasileiros.

No entanto, em outros documentos publicados pela Wikileaks, Sobel se mostra muito crítico à política nacional de defesa, pelo que ele avalia ser uma ênfase exagerada na “independência”. Entusiasmo com Jobim à parte, o embaixador percebe que as Forças Armadas brasileiras examinam com desconfiança os Estados Unidos, preocupam-se com influência estrangeira na Amazônia e buscam autonomia tecnológica por meio de parcerias com outras potências.

Em outras palavras, as rusgas Jobim-Guimarães são disputas burocráticas entre um Ministério da Defesa cada vez mais assertivo nas relações internacionais, que briga pelo espaço tradicional do Itamaraty. O ministro buscou relação mais próxima com o embaixador americano para ganhar vantagem sobre o rival, mas é falso procurar uma suposta oposição entre “Defesa pró-EUA” e “MRE anti-americano”.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Uma Certa Paz



O israelense Amós Oz está rapidamente se tornando um dos meus escritores favoritos. Começou quando li “A Caixa Preta”, uma história de amor devastadora sob o pano de fundo da ascensão do nacionalismo religioso. E continua agora com o lançamento no Brasil de seu romance “Uma Certa Paz”. Publicado pela primeira vez em 1982, é um triângulo amoroso ambientado às vésperas da Guerra dos Seis Dias, com protagonistas que representam o conflito entre a geração dos fundadores da Israel e seus filhos, para quem os ideais trabalhistas dos pais não servem mais como bússola, num mundo que se tornou estreito demais para o anseio por liberdade.

O protagonista do romance é Ionatan, uma espécie de rapaz-modelo da primeira geração a crescer em Israel. Seu pai é o secretário-geral do kibutz (fazenda coletiva) onde mora, e Ionatan sempre fez o que se esperava dele. Serviu lealmente ao Exército nas guerras, casou-se com uma colega de organização e trabalha com dedicação nas atividades agrícolas. Mas Ionatan se sente angustiado com as regras rígidas que regulam sua vida, e deseja com intensidade e urgência algo que ele não sabe bem o que é. Seu casamento é vazio de amor, a rotina lhe entedia e ele sente vontade de partir e conhecer o mundo.




O elemento que detona a decisão de Ionatan é a chegada ao kibutz de Azaria, um jovem excêntrico e um tanto desajustado, uma espécie de proto-hippie que traz em si algo do idealismo dos fundadores de Israel. Ele se esforça para se integrar à comunidade da fazenda e se apaixona por Rimona, a esposa de Ionatan, que corresponde a seu amor.

O pano de fundo político do romance é a tensão crescente entre Israel, Egito e Síria, que eclodiu em 1967 na Guerra dos Seis Dias. O pai de Ionatan, Iulek, é um líder respeitado, que foi ministro no governo de Ben Gurion e é um interlocutor, ainda que crítico, do primeiro-ministro Levi Eskhol, que faz algumas aparições na trama.

domingo, 28 de novembro de 2010

A Longa Marcha da República



As polícias e as Forças Armadas ocuparam o Complexo do Alemão em poucas horas, sem confronto violento, mas os traficantes não se entregaram, nem foram presos, o que faz crer que estão escondidos nas casas dos moradores (provavelmente mantendo muitos como reféns) ou abrigados nas matas das redondezas.

Caiu o mito do crime organizado todo-poderoso. O que vimos foi uma rede de compadres, arrogante, autoritária, cheia de bravatas, que desmoronou diante da reação rápida e decidida do poder público, com cenas humilhantes como a do traficante que urinou nas calças ao ser detido. Torço para tenhamos uma solução pacífica, com a captura dos bandidos.

A imagem mais marcante deste domingo foi o hasteamento da bandeira brasileira (e não a das unidades policiais de elite, como era habitual nas operações de invasão de favelas) no alto do complexo, simbolizando a (re)conquista do território pelo Estado. Mais uma foto para a iconografia bélica que tomou conta da cidade, numa semana que certa imprensa comparou ao desembarque Aliado na Normandia. Por esta lógica, este momento seria talvez como os soviéticos erguendo seu estandarte no Reichtag, durante a conquista de Berlim...

Mas o que vivemos no Rio - insisto no ponto - não é uma guerra. Nem sequer um conflito civil, de fundo religioso ou étnico. Os xiitas não tomaram o Alemão, os hutus não conquistaram Vila Cruzeiro. Trata-se de uma operação policial, com auxílio militar, para eliminar o controle de quadrilhas criminosas sobre bairros pobres. A linguagem bélica tem muitos usos e abusos, em especial legitimar atos autoritários do poder público contra a população mais vulnerável.

Todos os episódios marcantes da violência no Rio geraram um impulso de renovação e reforma, que murchou após poucas semanas de entusiasmo midiático. Isso ocorreu depois das chacinas dos anos 90 e de crimes chocantes como o sequestro do ônibus 174,o assassinato do jornalista Tim Lopes e o do menino João Hélio etc. Há consenso que são necesssárias transformações profundas no aparato legal-repressivo: um código prisional, um regime mais restritivo aos chefes criminosos, monitoramento de advogados e parentes de presos que agem como pombos-correios... Ainda não se fala na reforma da polícia - por exemplo, criação de uma força de ciclo único, que fundisse a PM e a Civil. Sou cético quanto à chance de algo assim avançar.

O Alemão havia sido palco de um grande conflito há quase quatro anos, no início do governo Cabral. Aquela operação fracassada acabou sendo o incentivo para outras iniciativas, que acabaram resultando nas UPPs. A tendência é expandir essa experiência para além das 13 comunidades nas quais foram implementadas e a ocupação do Alemão é o primeiro passo para a UPP nesse complexo de favelas.

O Alemão agora tem Estado, oxalá possa em breve ter também a República, entendendo por essa expressão aquilo que todos os outros brasileiros queremos e merecemos: império das leis, democracia, bens públicos básicos (educação, saúde, segurança). Implementá-la nas favelas requer o uso da força, para desalojar as quadrilhas criminosas que as controlam.

Louvemos o Estado de Direito Democrático: Forças Armadas e polícias são nossos instrumentos, a serviço dos cidadãos. O que vimos nestes dias é aquilo que deve ser normal em qualquer país decente - pessoas aplaudindo os agentes da lei, oferecendo-lhes água e ajuda, pedindo para tirar fotografias a seu lado. Estamos, felizmente, bem distantes do que via quando fui repórter, e testemunhava hostilidade ou indiferença da população a essas instituições. Tomara que tudo isso fique para trás, do mesmo modo como o país superou o descalabro econômico da hiperinflação e começa a avançar sobre a pobreza.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Terrorismo no Rio



Vivo no Rio de Janeiro há mais de 30 anos e já vi um impressionante catálogo da violência: chacinas, arrastões, atentados a prédios públicos, ataques aleatórios à propriedade privada, epidemias de sequestros, proliferação de grupos armados ilegais e o desenvolvimento de uma cultura da morte e da agressão junto a uma geração de jovens que cresceram em meio à crise de segurança pública da cidade. Mas nada se compara ao que experimento nesta semana, com os sucessivos atos terroristas lançados (aparentemente) por uma coligação das facções do tráfico de drogas, em represália à instalação das Unidades de Polícia Pacificadora em 13 das principais favelas cariocas.

O terrorismo é o uso da violência em massa contra alvos civis com o propósito de difundir o medo para alcançar objetivos determinados. A maior parte dos atentados ocorre em resposta a ocupações militares estrangeiras, mas também há casos de atentados perpretados pelo crime organizado, visando a deter a repressão governamental contra suas atividades. Isso ocorreu na Colômbia da década de 1990, quando Pablo Escobar e outros traficantes lançaram ataques desse tipo, entre outras razões para tentar impedir as autoridades colombianas de deportá-los para os EUA. As ações de uma facção mafiosa em São Paulo, há quatro anos, também se enquadram nessa categoria, bem como os atentados da máfia italiana contra a Operação Mãos Limpas.



O mesmo vale para o Rio, embora a metáfora mais usada por estes dias seja a de "guerra civil". As comparações bélicas são perfeitamente compreensíveis, quando vemos imagens como a dos blindados da Marinha, acompanhados por fuzileiros navais, ocupando uma das favelas que se tornaram refúgio para os bandidos que fugiram das comunidades onde foram instaladas as UPPs. Ou quando assistimos aos repórteres de televisão transmitindo com coletes à prova de balas, como correspondentes no Afeganistão. A própria escala da ação dos criminosos - a TV mostrou centenas deles correndo das tropas policiais e militares - reforça a imagem da guerra.

Contudo, um conflito civil pressupõe grupos que disputam o Estado, que tem projetos políticos distintos para a sociedade. Não é o caso. O que temos no Rio são quadrilhas criminosas querendo a continuidade de sua situação de impunidade e reagindo a uma política pública que, embora com defeitos, eliminou o controle territorial de grupos armados ilegais sob vários bairros pobres, onde vivem cerca de 200 mil pessoas. O tráfico não tem organização política, quando muito adota um vago discurso demagógico de denúncia das injustiças sociais.

As imagens das Forças Armadas ocupando favelas perigosas têm um apelo poderosíssimo para a população do Rio de Janeiro. Os militares brasileiros provaram que sabem realizar esse tipo de operação, com a experiência adquirida no Haiti. Há inclusive uma brigada do Exército especializada nessas situações. Mas todos os oficiais com quem conversei sobre o assunto, no Exército e na Marinha, são extremamente cautelosos quanto ao envolvimento das Forças Armadas, em caráter permanente, nesse tipo de missão. Temem o efeito corruptor do tráfico e o desvio da missão dos militares. Em geral, esses oficiais afirmam que as intervenções devem se limitar a ocasiões especiais, como grandes eventos esportivos e convenções internacionais.

Me parece, no entanto, que a pacificação do Complexo do Alemão será um desses casos. A existência de uma grande quantidade de traficantes armados e de obstáculos físicos como barricadas torna necessário o emprego de uma força que provavelmente as polícias não são capazes de colocar em prática. E a própria presença dos militares é um elemento poderoso de dissuação aos criminosos. Novamente, a analogia com o Haiti é muito forte, em especial a ocupação de Cité Soleil, o equivalente ao complexo do Alemão em Porto Príncipe.

Décadas de insegurança tornaram a população do Rio sedenta por demonstrações de força governamental, e ansiosa por míticos banhos de sangue que eliminem os bandidos da cidade. Traficantes são cruéis, mas em geral não são burros. Nenhum líder de quadrilha vai esperar ser aniquiliado pela cavalaria blindada. A tendência é que, ao serem ameaçados de cerco, migrem para a região metropolitana e para o interior do estado, como aliás já tem ocorrido. O xadrez da segurança vai continuar, mas ao menos desta vez parecem ser os bandidos que estão em xeque.

P.S. - O Google divulgou um mapa atualizado da violência no Rio, e o coloquei neste post em substituição à imagem anterior.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Guerra do Google



A América Central já deu ao mundo a "Guerra do Futebol" entre Honduras e El Salvador, agora corre o risco de presentear a crônica bélica com a primeira "Guerra do Google", entre Nicarágua e Costa Rica, com o inusitado extra de que este país não possui Forças Armadas. O incidente faz parte de um contexto mais amplo: a eclosão de diversas disputas territoriais na América Latina e uma sucessão de crises na América Central e Caribe (Cuba, Haiti, Jamaica, Honduras, Guiana).

Nicarágua e Costa Rica têm um velho contencioso de fronteiras com relação ao rio San Juan, que separa os dois países, e de uma ilha nesse curso fluvial. No início de novembro, o governo da Nicarágua começou a dragar o rio, ocupando um território que segundo o Google Maps, fazia parte do país. As autoridades da Costa Rica protestaram e a empresa mudou a representação da fronteira, mas soldados armados das duas nações se dirigiram para a região em disputa - no caso costarriqueno, são apenas policiais, pois seu Exército foi abolido na década de 1940.

O rio San Juan não é exatamente o jardim do Éden, mas a polarização do conflito interessa aos dois presidentes envolvidos, que podem usar a onda nacionalista para lidar com problemas de popularidade. O nicaraguense, Daniel Ortega, mobilizou seus parceiros da ALBA e conseguiu uma fonte importante de apoio na Organização dos Estados Americanos (OEA). A costarriquenha, Laura Chinchilla, está no cargo há apenas 6 meses e tenta afirmar sua liderança conservadora diante do peso do antecessor progressista, Oscar Arias, que governou o país várias vezes e ganhou o Nobel da Paz por sua mediação das guerras civis da América Central, na década de 1980.

A Costa Rica recorreu à OEA que iniciou os procedimentos de praxe nesse tipo de conflito: reuniões extraordinárias, missões de bons ofícios do secretário-geral (o hábil político chileno José Miguel Insulza) e o esforço para acalmar a situação. No entanto, há dois fatores que podem agravar a disputa.

O primeiro é a atuação instransigente do bloco da ALBA, votando contra ou se abstendo na votação da OEA que recomendou a retirada das tropas dos dois países da zona em disputa. É a primeira vez em décadas que a organização passa por uma divisão desse tipo, se não me falha a memória, a última havia sido a suspensão de Cuba, nos anos 60.

O segundo é a presença de 300 mil imigrantes da Nicarágua na Costa Rica. Muitos fugiram para o país vizinho durante a Revolução Sandinista e a guerra civil, outros migraram em busca de trabalho e melhores condições de vida. O risco de xenofobia e violência contra esse grupo é grande, e aqueles que conhecem a história da "Guerra do Futebol" devem estar lembrados de que a causa do conflito foi a presença de muitos camponeses salvadorenhos em Honduras, em busca de terra, e as tensões sociais e econômicas que resultaram disso.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Azeredo da Silveira: depoimento



Nasceu guerreiro, nasceu lutando.
João Guimarães Rosa, falando do amigo Antônio Azeredo da Silveira

O Brasil, em razão de fatores objetivos, tem um destino de grandeza ainda relativa em nossos dias, ao qual não terá como se furtar, e isso lhe impõe a obrigação de encarar seu papel no mundo em termos prospectivos fundalmentamente ambiciosos. Digo ambição no sentido de vastidão de interesses e escopo de atuação, e não no desejo de hegemonia ou de preponderância.

O papel de uma chancelaria é por o país à frente do seu tempo.
Azeredo da Silveira

A Editora da FGV lançou na semana passada "Azeredo da Silveira: um depoimento", organizado por meu amigo Matias Spektor. Trata-se de uma série de longas entrevistas que o ex-chanceler do presidente Ernesto Geisel deu ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da FGV, do qual sou professor. O depoimento foi dado entre 1979 e 1982 às professoras Maria Regina Soares de Lima e Monica Hirst - fui assistente daquela e orientando de doutorado desta. Silveira foi o mais importante ministro brasileiro das Relações Exteriores desde o barão do Rio Branco, e sua busca de um "pragmatismo ecumênico e responsável" foi a face internacional do projeto Brasil-Potência, uma influência fortíssima na atual diplomacia de "potência emergente".

Silveira era um diplomata de carreira que ocupou postos de relevo a partir da década de 1960, entre os quais se destacaram sua atuação nas negociações econômicas e políticas da ONU, em Genebra (comércio, desenvolvimento, não-proliferação nuclear) e os anos em que serviu como embaixador na Argentina, no período conturbado das ditaduras de Onganía e Lanusse, e do segundo peronismo. Geisel o escolheu como chanceler justamente porque queria alguém que destravasse as relações entre Brasília e Buenos Aires, perturbadas pela oposição argentina ao projeto brasileiro de construir a usina de Itaipu, em parceria com o Paraguai.

À frente do Itamaraty entre 1974 e 1979, Silveira comandou impressionante renovação diplomática e conceitual, no sentido em que mudou a maneira pela qual se pensava política externa. Reestabeleceu relações com a China comunista (haviam sido rompidas depois do golpe de 1964), parou com o apoio a Portugal na África, reconhecendo os novos regimes marxistas das ex-colônias lusitanas no continente, firmou um ousado acordo de cooperação nuclear com a Alemanha Ocidental, aproximou-se dos países árabes no contexto dos choques do petróleo e procurou resolver tensões entre o Brasil e os vizinhos sul-americanos, como o Peru, que então vivia sob uma ditadura militar de esquerda.

Com os EUA, Silveira a princípio encontrou um parceiro em Henry Kissinger (a relação é o tema do excelente livro anterior do Matias), com quem estabeleceu um entendimento de alto nível. Mas quando os republicanos (Nixon e Ford) foram substituídos pelo democrata Jimmy Carter, os conflitos se agravaram em torno da oposição americana ao acordo nuclear entre Brasil e Alemanha, e pela decisão de Carter de transformar a ditadura brasileira no símbolo de sua nova política de defesa dos direitos humanos na América Latina. Geisel reagiu denunciando o acordo de cooperação militar com os Estados Unidos, que vinha dos anos 50.

Com frequência se diz que a diplomacia de Geisel foi "terceiro-mundista", mas essa é uma interpretação errônea. Silveira preferia falar em "universalização da política externa" e dedicou intensa atenção às grandes potências, procurando estabelecer parcerias com Grã-Bretanha, França, Itália, Alemanha e Japão como modo de reduzir a dependência brasileira dos Estados Unidos - o ponto foi especialmente pronunciado na questão nuclear.

Também é fascinante observar o jogo entre política e economia. O chanceler observou que certos bons negócios na África - como os acordos com a Nigéria - só foram possíveis quando o Brasil se afastou do colonialismo português e do regime racista da África do Sul. A carta comercial foi igualmente útil para convencer os militares da importância de se reaproximar da China comunista, embora Silveira reconheça que isso era apenas um pretexto, pois seu real objetivo era demonstrar que a diplomacia brasileira era capaz de posições autônomas diante dos grandes temas globais. O chanceler criticava bastante a imprensa nacional (em especial o Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil) por seu provincianismo intelectual e sua falta de percepção da realidade internacional.

Silveira foi um grande operador, mas não era um intelectual que colocasse seu pensamento em discursos memoráveis, livros e artigos. Daí a enorme importância deste depoimento para todos os que se interessam pela política externa brasileira.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Ascensão e Crítica do Novo Jornalismo



Meu amigo Luiz está sempre me enviando textos interessantes por email e nesta semana me enviou esta reflexão sobre Ryzsard Kapuscinki (o branquelo na foto acima), mago do jornalismo internacional que tem sido muito criticado recentemente, porque foi descoberto que várias de suas reportagens continham elementos ficcionais. Problema, aliás, que ocorre com freqüência entre os expoentes do Novo Jornalismo.

O movimento começou nos anos 60, quando um grupo de jornalistas americanos extremamente talentosos – Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, Michael Herr, Norman Mailer, entre outros – começou a usar técnicas narrativas de ficção para escrever reportagens longas, em especial em revistas ou em livros. Acreditavam que os métodos tradicionais do jornalismo não eram mais capazes de dar conta das transformações velozes e radicais pelas quais o mundo passava naquela década turbulenta.

Houve precursores importantes do Novo Jornalismo nos anos 40 e 50, como a extraordinária reportagem de John Hershey sobre os efeitos da bomba atômica em Hiroshima, o “romance de não-ficção” de Truman Capote a respeito do assassinato de uma família no interior dos EUA ou o relato do argentino Rodolfo Walsh sobre o fuzilamento ilegal de ativistas peronistas pela ditadura militar de seu país. Os textos de velhos mestres do jornalismo brasileiro, como Joel Silveira e Antônio Callado, também poder ser classificados nesse grupo. A diferença é que os expoentes dos anos 60 eram mais ousados em termos formais e menos escrupulosos em respeitar os cânones do jornalismo. Com todas as letras: inventavam cenas, criavam personagens a partir do amálgama de duas ou três pessoas reais, elaboravam diálogos e situações.

O Novo Jornalismo sempre foi atravessado por controvérsias, que podem ser resumidas em duas críticas gerais: 1) A de que não há nada de inovador no que seus praticantes fazem, é simplesmente a boa e velha reportagem num formato um pouco mais literário; 2) A de que sua mistura de ficção e jornalismo deturpa os fatos e é ruim para informar os leitores.

As duas objeções têm valor. Gosto mais do rótulo “jornalismo literário”, porque ele é mais abrangente e captura um tipo de escritor que existia bem antes da explosão do gênero nos anos 60 (Euclides da Cunha cobrindo a guerra de Canudos, por exemplo) e abarca também ótimos repórteres contemporâneos (Mark Bowden, de “Falcão Negro em Perigo” ou o Thomas Friedman de “De Beirute a Jerusalém”).

Aliás, “jornalismo literário” é o título da excelente coleção editada pela Companhia das Letras, que reúne muitos dos mestres listados neste post, tanto brasileiros quanto estrangeiros. A igualmente ótima coleção "jornalismo de guerra", da Objetiva, também publica vários desses escritores.

Quanto à veracidade das narrativas, há que se ter certo cuidado. Leio autores como Kapuscinki ou Herr muito mais pelo seu valor literário, bela beleza do estilo e força das descrições do que em busca de análises factuais precisas. Tudo tem sua importância. Confesso, no entanto, certa nostalgia do bom e velho hábito jornalístico de checar informações, apurar com cuidado. Nesta época de mídias instantâneas, é uma qualidade ainda mais necessária.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

De Thomas Jefferson a Michael Moore



Assisti ao DVD de “Capitalismo: uma história de amor”, o documentário mais recente de Michael Moore. Superficialmente, é um filme com as características que o fazem adorado ou detestado: um panfleto ácido e bem-humorado com lógica conspiratória, que explica a crise econômica dos EUA como o resultado de um complô das elites empresariais, financeiras e governamentais, propondo como alternativa a mobilização popular para retomar o sonho americano. Mas o documentário pode ser interpretado de outro modo, como a manifestação mais recente de um padrão recorrente na história dos EUA, desde os tempos de Thomas Jefferson - a desconfiança que os defensores da democracia mantêm das grandes organizações econômicas. Moore repete, talvez sem perceber, argumentos presentes nos debates mais controversos do início da República, como a polêmica que opôs Jefferson aos federalistas pela criação do Banco dos Estados Unidos.

O banco foi idealizado por Alexander Hamilton, secretário do Tesouro. Seria de propriedade privada, mas negociaria com a dívida pública e estimularia o desenvolvimento econômico. O modelo era o Banco da Inglaterra, a bem-sucedida instituição que financiou de forma brilhante a expansão do império britânico. Mas Jefferson e seus seguidores acreditavam que o banco significaria a captura do Estado por parte de grandes interesses privados, que sem supervisão adequada desviariam os recursos públicos para seus próprios fins. Qualquer semelhança com os debates sobre a atuação do Tesouro, do Fed e do Congresso nos recentes mega pacotes de ajuda financeira não é mera coincidência.

Jefferson desconfiava de grandes burocracias e preconizava a importância de pequenos fazendeiros, autônomos e com espírito crítico, para fiscalizar a ação do Estado. Moore é um filho da prosperidade do século XX, seu modelo, como retratado no filme, é a sólida situação que sua família viveu durante sua juventude, com um pai que trabalhava na General Motors e um pacote de benefícios generosos, entre privados (plano de saúde) e públicos. Em suma, algo mais próximo ao Estado de Bem-Estar Social do que da utopia agrária de Jefferson.



O paraíso de classe média de Moore também está bastante distante da experiência contemporânea dos Estados Unidos. Nos últimos trinta anos, o país se tornou o mais desigual entre as nações desenvolvidas, como analisado em recente livro de Paul Pierson e Jacob Hacker. O 1% mais rico saltou de 8% da renda (1979) para cerca de 25% (2009). São os piores índices desde a Depressão da década de 1930. Os profissionais com menor qualificação tiveram piora considerável da renda. Em grande medida, a transformação reflete a guinada da economia industrial para serviços, como tecnologia da informação e finanças, que exigem instrução mais avançada, mas a concentração de renda também foi agravada por políticas públicas que beneficiaram os ricos, como redução de impostos.

Pierson é um dos mais respeitados especialistas na crise do Estado de Bem-Estar, na Europa e em sua versão mais modesta, dos EUA. É curioso, no entanto, que ele trate tão pouco do aspecto internacional. Será coincidência que as desigualdades sociais tenham aumentado tanto nos Estados Unidos quando a Guerra Fria acabou? A rivalidade com o comunismo e o medo da URSS foi um fator fundamental para o estabelecimento das grandes coalizões políticas das décadas de 1940-1970, que implementaram as abrangentes políticas sociais do período. Essa aliança foi rompida e nos EUA muitos conservadores inclusive repudiam as reformas do New Deal e dos anos 60.

No filme de Moore há o lamento do cineasta de que o socialismo nunca tenha sido uma ideologia política forte nos EUA. Na Europa, claro, a história foi outra, o que ajuda a explicar a permanência de boa parte dos Estados de Bem Estar naquele continente. Moore trata pouco das causas do caso americano, mas aos interessados recomendo “The Broken Covenant”, de Robert Bellah. Suas hipóteses: a fragmentação étnica dos trabalhadores americanos, dificultando a ação coletiva, e uma cultura política de matriz puritana, centrada nas virtudes do espírito individual de iniciativa, e cética diante de projetos coletivistas e de amparo governamental.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A História do Mundo em Seis Copos



Ganhei de presente de uma amiga (obrigado, Carol!) o ótimo “Uma História do Mundo em Seis Copos”. Escrito pelo jornalista Tom Standage, editor de negócios da Economist, é uma mistura esperta de gastronomia, economia e política. Standage associa cada tipo de bebida a uma sociedade e/ou época: cerveja (Mesopotâmia), vinho (Grécia e Roma Antigas), destilados (colônias européias na América do Norte e Caribe), café (Iluminismo europeu), chá (expansão do império britânico no século XIX) e coca-cola (EUA no século XX). Ele argumenta que, para além de suprirem necessidades físicas, essas bebidas atendem a outras demandas: sociabilidade, estímulos, sinais de sofisticação e riqueza e até proteções à saúde pública.

Afinal, lembra Standage, durante boa parte da história foi difícil manter a água limpa e isenta de contaminação – e, na realidade, o problema ainda é sério, persiste em muitos países em desenvolvimento. Nessas circunstâncias, bebidas fermentadas ou destiladas ajudavam a combater doenças, por agir contra os germes na água.

A humanidade aprendeu a fabricar bebidas alcoólicas muito cedo, ainda na pré-história. Segundo Standage, a prática começou quase junto ao cultivo de cereais, com a cerveja feita a partir do trigo, nas planícies da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates.



O vinho também teve início na Antiguidade, mas a princípio era um tanto caro, reservado para as elites por conta do preço. Na Grécia, a bebida se tornou o centro de um ritual festivo, o simpósio, no qual amigos se reuniam para beber e debater temas filosóficos. O mais famoso, claro, é aquele retratado no “Banquete”, de Platão, em que Sócrates discute o amor. Cultivar vinhas era símbolo de prestígio e uma maneira importante de mensurar a riqueza. O status social elevado associado ao vinho permanece até hoje, com um verniz de sofisticação que falta, digamos, à cerveja.

Os destilados surgiram no Renascimento, por conta dos avanços na química – ainda que misturados ao misticismo da alquimia e à busca de uma “água da vida” de propriedades mágicas e curativas. Tiveram papel de destaque na colonização das Américas, sobretudo o rum, feito a partir do melaço da cana-de-açúcar. Era um item importante no comércio exterior colonial, e fundamental para manter as pessoas aquecidas nos invernos do Norte. Standage menciona apenas o universo anglo-saxão, mas a cachaça teve uma importância semelhante no Brasil, durante o mesmo período, em especial como moeda de troca no tráfico de escravos com a África.

Se o rum traz a marca da associação com a escravidão, o café é o símbolo da liberdade intelectual do Iluminismo e da Era das Revoluções. Bebida estimulante que não provoca a intoxicação, ideal para alimentar trocas de idéias e discussões políticas – e os cafés de Londres e Paris foram centros desse tipo de atividade. Como lembra Standage, a queda da Bastilha nasceu de um comício num desses estabelecimentos.

O chá tem uma história igualmente vinculada a acontecimentos políticos. Nos séculos XVIII e XIX era o principal produto que o Ocidente importava da China. Com o tempo os britânicos descobriram que o ópio era uma boa maneira de pagar pela mercadoria, mas como o governo chinês não gostou da idéia de comprar grandes quantidades de drogas pesadas, teve que ser forçado a fazê-lo, por meio de guerras. Mas logos os britânicos aprenderam a cultivar o chá na Índia, que haviam recém-incorporado a seu império. E, naturalmente, os impostos sobre o chá foram importantes para deflagrar a Revolução Americana. Bebida complicada.



Por fim, Standage analisa a Coca Cola como símbolo do “Século Americano”, e da difusão do American Way of Life pelo mundo, no rastro dos soldados que lutaram as guerras da nova superpotência, e impulsionada pelas modernas técnicas de publicidade e comercialização.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A Cartada Indiana dos EUA



Nesta semana, Barack Obama declarou em discurso no parlamento indiano que a Índia deveria fazer parte do Conselho de Segurança da ONU e que o país não era mais uma “potência emergente”, porque já havia emergido. O afago de Obama tem pouca conseqüência prática, mas importa como símbolo. O apoio dos Estados Unidos à Índia é uma guinada relativamente recente na política internacional, da década de 1990 para cá. As duas nações superaram a desconfiança mútua da época da Guerra Fria, basicamente por três razões: o medo da ascensão da China, interesses econômicos e a preocupação com a influência dos fundamentalistas no Paquistão após os atentados de 11 de setembro e a longa guerra no Afeganistão.

Indianos e americanos têm fortes afinidades – democracias multiculturais e a coexistência de um Estado laico com intensos sentimentos religiosos – mas durante muito tempo tiveram relações diplomáticas ruins. A Índia se tornou independente com a agenda externa voltada para o “não-alinhamento”, mas na prática foi bastante próxima à União Soviética e a diversos regimes marxistas no mundo em desenvolvimento. Os Estados Unidos, por sua vez, se tornaram aliados de dois rivais indianos – primeiro, do Paquistão, e na década de 1970, da China.



Índia e China foram à guerra nos anos 60, por uma fronteira mal definida no Himalaia (os chineses venceram, mas a área continua em disputa) e persistem tensões pela repressão comunista aos budistas no Tibete – muitos se exilaram junto aos indianos. As relações econômicas estão excelentes e o amplo fluxo de comércio e investimentos fez com que Pequim e Nova Délhi mantivessem os conflitos em segundo plano. Mas estão lá.

O dinamismo econômico indiano, a partir da década de 1990, também tornou o país importante para os EUA. Muitas empresas americanas terceirizam serviços de tecnologia da informação para firmas na Índia, há uma grande e influente comunidade indiana nos Estados Unidos e um país de um bilhão de habitantes superando a pobreza e ingressando na classe média é um paraíso para comerciantes e investidores.

O elemento mais relevante da aproximação entre os dois países foi a assinatura de um acordo de cooperação nuclear entre ambos, apesar da Índia nunca ter se submetido aos regimes de controle de armas atômicas.

O Paquistão é oficialmente aliado dos Estados Unidos, mas o controle do Estado paquistanês sobre seus territórios montanhosos de fronteira, e sobre parcelas importantes de seus próprios serviços de inteligência e Forças Armadas é tênue. As redes terroristas (Al Qaeda, Talibãs) continuavam ativas no país e realizando ataques contra a OTAN no Afeganistão e atentados de grande porte, como os que atingiram a cidade de Mumbai, o centro da economia indiana. Além da persistência da questão da Cachemira. Com aliados desse tipo, não estranha que o governo americano procure relações mais sólidas com a Índia.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Batalha Cambial em Seul



A cúpula do G-20 financeiro, que ocorre nesta semana em Seul, está marcada pela dificuldade de cooperação internacional, com semelhanças perturbadoras com os impasses políticos da década de 1930. O cerne do problema é a relutância dos principais motores econômicos mundiais – Estados Unidos e China – em ajustar suas taxas de câmbio de modo a valorizar suas moedas e tentar corrigir os graves desequilíbrios no comércio e no fluxo de capitais globais. A persistir essa situação, a tendência é o aumento do protecionismo.

O governo dos Estados Unidos anunciou há poucos dias um novo pacote de incentivo à economia, cujo elemento central é o estímulo ao crédito, por meio da redução de taxas de juros e outros instrumentos. A orientação do banco central americano repete o risco de uma nova bolha oriunda de muito dinheiro fácil circulando, a exemplo do que aconteceu com a crise das hipotecas. E é má notícia para as relações internacionais, porque pressiona o dólar para um valor ainda mais baixo e impulsiona capitais especulativos para os países emergentes, onde as taxas de juro são mais altas.

O Brasil é um caso típico. O afluxo de fluxos financeiros estrangeiros apreciou muito o real, dificultando bastante a competitividade dos exportadores (sobretudo na indústria) e a própria situação dos produtores locais, que precisam enfrentam rivais externos que se beneficiam do câmbio favorável, de menor carga tributária etc. A ação brasileira tem sido referencial para outros emergentes: medidas para diminuir a entrada dos capitais estrangeiros, como aumento do imposto sobre operações financeiras, críticas aos Estados Unidos e alerta para a necessidade iminente de controles de capitais.



A proposta apresentada pelos EUA dividiu o G-20. Basicamente, o governo americano quer que os países com os maiores desequilíbrios comerciais e financeiros assumam compromissos de mudar suas políticas. Pelos termos do rascunho, os critérios utilizados afetariam sobretudo a China (grande superavitária) e deixariam de fora a Alemanha, pelo truque de usar indicadores regionais da União Européia. Outros superavitários incluem exportadores de commodities, como Arábia Saudita e Rússia.

Dito de outra maneira, os Estados Unidos querem que os demais países façam sacrifícios, ao mesmo tempo em que seguem com políticas domésticas que prejudicam as nações emergentes. Daí a crítica de seus principais parceiros e o provável impasse em Seul.

O acontecimento mais surpreendente da semana foi a declaração clamando pelo retorno do padrão-ouro como modo de organizar o sistema monetário internacional, feita em artigo assinado pelo presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick. O ouro foi a âncora da estabilidade econômica global do século XIX, mas as experiências das guerras mundiais e da Depressão foram no sentido de que ele havia se tornado rígido demais para o mundo contemporâneo. O argumento de Zoellick é que ouro voltou a ser um referencial importante de solidez num mundo de intensas mudanças financeiras. Não me convenceu, mas estou curioso para acompanhar o debate.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Fervendo o Chá



O Movimento do Chá conseguiu um impressionante desempenho nas eleições americanas - elegeu um terço de seus candidatos à Câmara e metade ao Senado. Isso o tornou uma força política fundamental nas disputas internas do Partido Republicano, embora o nível de radicalização do movimento faça com que seja improvável que ele emplaque um nome na disputa à Presidência, em 2012. Ando um tanto crítico à cobertura da imprensa sobre o movimento, que tende a destacar seus aspectos mais pitorescos (e são muitos). Um bom antídoto é o livro "Boiling Mad: inside Tea Party America", de Kate Zernike, repórter do New York Times que cobre o grupo desde seu início.

Comecemos pelo nome, que tem confundido muitos brasileiros. Tea Party é uma referência à "festa do chá de Boston", uma rebelião anti-impostos e controle governamental nos anos finais da colonização britânica nos EUA. Por tabela, um símbolo da liberdade econômica frente ao autoritarismo do Estado. O nome voltou ao debate contemporâneo nos primeiros dias da presidência de Barack Obama por meio de uma emocionada aparição na TV do jornalista Rick Santelli (abaixo), que afirmou que os Estados Unidos precisavam de outro tea party, desta vez contra o aumento da ação governamental na economia - os pacotes de ajuda ao setor financeiro e à indústria, a reforma da saúde etc. O discurso galvanizou o descontentamento e a ansiedade de muitos americanos, que começaram a se organizar localmente para protestar contra as medidas.



A principal bandeira do movimento do chá é o repúdio ao aumento da ação governamental, estimulado pelo medo do declínio econômico dos Estados Unidos e pela leitura revisionista da história, que culpa reformas sociais da Era Progressista, do New Deal e da década de 1960 pelos problemas atuais do país. As características demográficas do grupo são claras: o membro típico é um homem branco de meia idade e situado na alta classe média. Contudo, a rejeição a Obama passa também pelo desencanto com os Republicanos, em especial pelo governo George W. Bush, encarado com desgosto pelo mau desempenho e pela disparada na dívida pública. Uma das entrevistadas de Zernike sintetiza a estratégia do movimento: para se livrarem dos Democratas, precisam antes tomar o controle dos Republicanos. O ideário não é criar um terceiro partido.

Os membros do Tea Party se inspiraram nos movimentos sociais de esquerda e aplicam com sucesso vários de seus métodos para as causas conservadoras, sobretudo o uso das novas mídias sociais e das ferramentas de organização comunitária. Isso ficou bem exposto no comício que realizaram em Washington, que pretendeu ecoar a célebre marcha sobre a capital liderada por Martin Luther King Jr. A imprensa tem sido fundamental para o Tea Party, desde seu batismo por Santelli até o apoio do apresentador da Fow News Glenn Beck, que falou em montar grupos "12 de setembro", para restaurar o espírito de unidade nacional que vigorou após os atentados. Outros padrinhos e madrinhas do movimento incluem os milionários irmãos Koch e a política republicana Sarah Palin.



Muitos temas dividem o movimento: política externa (intervencionistas do tipo "guerra ao Irã" x isolacionistas "tragam os garotos de volta para casa"), questões religiosas e de sexualidade como aborto e casamento gay (há uma ala conservadora e outra libertária, que preconiza o máximo de liberdade individual). O assunto mais explosivo são as relações raciais. O conservadorismo do movimento do chá é bastante crítico às ações que o governo dos EUA promoveu para combater a segregação e o racismo, e isso é especialmente forte no Sul, que virou o mais aguerrido bastião dos Republicanos. O resultado tem sido um intenso mal-estar com Obama e manifestações extremistas que afirmam que o presidente é socialista, muçulmano, africano ou as três coisas juntas.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O Mundo Segundo Dilma



A política externa não foi um tema de discussão relevante na eleição presidencial brasileira, mas será importante para o governo Dilma. A economia internacional é cada vez mais relevante para o Brasil, pelo peso crescente do comércio exterior no PIB, pelas discussões sobre a guerra cambial e a reorganização do sistema financeiro internacional (G-20, Basiléia 3 etc). Além disso, o país articula iniciativas com as outras potências emergentes e precisa permanecer atento para as crises e conflitos na América do Sul, algumas das quais envolvem nações das quais depende sua segurança energética (Bolívia e Paraguai). O que se pode esperar da diplomacia brasileira sob Dilma?

Durante a campanha, a revista “Política Externa” enviou aos principais candidatos perguntas sobre sua plataforma diplomática. José Serra não respondeu – omissão curiosa, pois é uma publicação com muitos intelectuais do PSDB entre seus principais colaboradores. Marina Silva destacou pontos ligados a Meio Ambiente e Direitos Humanos. E Dilma apresentou opiniões que basicamente mantêm as diretrizes atuais. Perfis da presidente eleita com freqüência destacam sua pouca experiência internacional e concluem que dará menos ênfase à diplomacia presidencial e se afastará de negociações controversas, como os esforços de mediação da crise iraniana.

Contudo, as próprias transformações do Brasil apontam para mudanças. As indicações são de uma política externa mais complexa, menos centrada na Presidência e no Itamaraty e mais ramificada por outros órgãos do governo: ministérios econômicos, Defesa, área social, BNDES, empresas controladas pelo Estado, como a Petrobras, ou aquelas nas quais ele possui golden share, como Vale e Embraer. É a conseqüência inevitável da combinação de crescimento econômico, estabilidade política e maior engajamento nas redes globais de comércio e investimento.

Quem melhor capturou este novo quadro foi o jornalista David Rothkopft, da revista Foreign Policy. Em ótimo texto, ele chama a atenção para a necessidade dos Estados Unidos pararem de tratar o Brasil dentro do contexto de uma política geral para a América Latina, e abordarem o país numa esfera mais ampla, como um interlocutor para os principais temas internacionais, sobretudo em assuntos ligados à economia. Dito de outro modo: política externa é cada vez mais relevante para o Brasil, independentemente do interesse pessoal mais ou menos intenso do chefe de Estado.

Além disso, há outro ponto que tem sido deixado de lado pela maioria das análises: o modo como a diplomacia de perfil globalista de Lula reforçou a identidade de esquerda do governo, por sua ênfase em cooperação sul-sul e parcerias com potências emergentes. Haverá expectativas e cobranças do PT e de outros partidos progressistas da coligação para que essa linha diplomática continue ou se aprofunde, sobretudo diante dos impasses da liderança dos EUA e da União Européia, devido às suas crises atuais.

Também estou curioso para ver como duas mulheres e presidentes latino-americanas enfrentarão um desafio parecido: provar que têm capacidade de liderança própria. A relação Argentina-Brasil sob Cristina-Dilma promete, inclusive pela força da história de vida da mandatária brasileira para o vizinho que tanto sofreu com ditaduras militares.

Por fim: comecei a twittar. Leitores do blog são muito bem-vindos para acompanhar minhas digressões e comentários, no:

www.twitter.com/msantoro1978

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A Derrota de Obama



Nas eleições de meio de mandato realizadas ontem nos EUA, os Republicanos reconquistaram a maioria na Câmara dos Deputados e venceram os democratas em 10 estados, principalmente no Meio Oeste e no Sul, passando a ter maioria dos governos estaduais. O Movimento do Chá, em sua estréia eleitoral, elegeu dois senadores (Flórida e Kentucky) e uma governadora (Carolina do Sul), mas seus candidatos mais expressivos (como Christine O´Donnell) sofreram derrotas no Nordeste, reforçando as dúvidas sobre sua viabilidade em atrair os moderados. No geral, foi uma vitória expressiva da oposição e um claro recado de descontentamento da população americana para o presidente Obama e os Democratas, com foco na rejeição ao modo como conduzem a economia e também como crítica à sua reforma da saúde.

Comecemos pela economia. Obama implementou grandes pacotes de ajuda governamental para o setor financeiro e para a indústria automobilística. É verossímil apostar que tais medidas impediram uma catástrofe ainda maior, mas os benefícios para as pessoas comuns foram muito reduzidos. O gráfico abaixo mostra que, mesmo diante da lenta recuperação do crescimento, a taxa de desemprego continua praticamente a mesma. Desempenho muito inferior a crises anteriores. Em torno de 10%, cerca do dobro do que é habitual nos Estados Unidos. Algumas pesquisas mais recentes que analisei afirmam que há 6 candidatos para cada nova vaga de emprego aberta no país, evidentemente isso é um terrível golpe na perspectiva da maioria voltar a ter um mínimo de segurança e estabilidade.



A reforma na saúde foi a mais importante iniciativa governamental na área social desde a década de 1960, mas ainda assim teve falhas sérias. Ponto principal: o Estado obriga os cidadãos a ter seguros privados, mais ou menos subsidiados conforme faixa de renda. Mas diante de tantas falhas nos mecanismos de regulação, quem garante que as empresas privadas de saúde irão atender com eficácia aos novos consumidores? Ser forçado a fazer algo com boas chances de dar errado não torna ninguém fã do presidente, de modo compreensível. Também há muito ressentimento com o modo como os Democratas aproveitaram sua maioria legislativa para aprovar a reforma sem participação dos Republicanos. A exclusão de uma oposição que representa parcela significativa da população foi controversa, e acabou se mostrando um erro sério para Obama.

A derrota de ontem é um revés importante para o presidente. Naturalmente, em dois anos é possível reverter o quadro e se reeleger: Clinton fez exatamente isso entre 1994 e 1996, amparado pelo ótimo desempenho da economia. Mas diante da persistência da crise, e das guerras sem fim na Ásia, a situação de Obama é bem mais complicada. Sua melhor chance está nos conflitos internos entre os Republicanos, em particular as disputas entre os moderados e o Movimento do Chá.