domingo, 24 de junho de 2012

Fins e Começos

Criei este blog há cinco anos, quando voltei de uma temporada de estudos e pesquisa na Argentina. Agora chegou o momento de terminar com ele. O motivo é bom e nobre. Estou me juntando à equipe da Anistia Internacional, como assessor de política externa e direitos humanos, no recém-criado escritório do Brasil.

É um emprego de tempo integral e além dele continuarei a trabalhar como professor universitário. Portanto, é preciso cortar algumas atividades. Não quero, no entanto, interromper nossa conversa. Convido todos vocês a continuar me acompanhando via Twitter, onde estou na conta @msantoro1978.

Chequem também os sites e redes sociais da Anistia, como o blog e a conta no Twitter (@AnistiaOnline).

Abraços e até sempre!

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Os Conflitos por Terra e o Impeachment de Lugo

Está em curso no Paraguai um golpe de Estado travestido de processo de impeachment. A oposição contra o presidente Fernando Lugo usa seu controle do Congresso para tentar apoderar-se do cargo e estar no poder para manejar as eleições de 2013. O pretexto utilizado são conflitos agrários nos quais o mandatário não teve responsabilidade direta. Falei ontem à Globo News a respeito do tema, este texto aprofunda minha entrevista.

O Paraguai ainda é um país de forte caráter rural, que na última década teve significativa expansão do agronegócio, sobretudo soja e algodão. Empresas brasileiras estão muito presentes nesse setor. O processo aprofundou a concentração de terras, que tem piorado desde as manipulações da longa ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), que distribuiu propriedades para seus aliados. Muitos pequenos camponeses perderam seus sítios e fazendas e engrossaram as fileiras de um ativo movimento de sem-terras, uma das bases de apoio a Lugo.

O presidente tem falado em reforma agrária, mas não tem feito movimentos significativos para implementá-la, às voltas com um Congresso dominado pelos conservadores e com as pressões brasileiras para proteger os interesses do agronegócio. Na semana passada, houve um conflito entre polícia e sem-terras numa fazenda pertencente a um ex-senador do Partido Colorado - grupo que governou o país por 70 anos, até a vitória do atual mandatário. Morreram 18 pessoas, de ambos os lados, e caíram o Ministro do Interior e o chefe de polícia. É esse massacre de Curuguaty que a oposição cita como pretexto para o impeachment de Lugo.

O presidente foi eleito à frente de uma frágil e heterogênea coalizão de partidos e movimentos sociais. Seu principal aliado, o Partido Liberal, passou para a oposição, embora mantenha a vice-presidência. Se Lugo sofrer impeachment, a sigla se apossa da chefia do Estado. O presidente teve apenas um voto de apoio na Câmara dos Deputados e tudo indica que a situação no Senado será semelhante.

Lugo sofreu desgaste junto à sua base pelos escândalos sexuais de seu envolvimento amoroso com mulheres quando era padre e bispo. Enfrenta também um câncer, há dois anos. Ainda assim, os movimentos sociais paraguaios reagirarm prontamente à ameaça contra o presidente, já organizam protestos em frente ao Congresso e caravanas de camponeses rumam para a capital Assunção. É uma situação tensa que pode degenerar em conflito armado.

A Unasul enviou às pressas uma missão de alto-nível formada pelos ministros de Relações Exteriores do bloco, num esforço de mediar a crise. Em momento de impactos regionais da crise global e uma sucessão de conflitos na Argentina, Peru e Venezuela, ninguém precisa de mais instabilidade na América do Sul. A pressão internacional tem sido decisiva nas crises paraguaias e conseguiu impedir outra tentativa de golpe de Estado na década de 1990. É um bom sinal que as Forças Armadas estejam calmas e se atendo a seu papel constitucional.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Argentina: uma economia mais difícil com uma política mais complicada

Em outubro de 2011 Cristina Fernández de Kirchner foi reeleita presidente da Argentina com 54% dos votos – o maior percentual desde o retorno da democracia. Na mesma eleição, seu partido conquistou maioria na Câmara dos Deputados e no Senado. Feito notável para sua corrente política, que ascendeu das margens do peronismo em 2003, quando seu marido chegou à Casa Rosada com menos de 25% do eleitorado.

Contudo, o que parecia ser uma consagração e a promessa de estabilidade tem se mostrado o início de um período turbulento, marcado pelo que o analista Rosendo Fraga definiu como uma “economia mais difícil com uma política mais complicada”. Os pontos mais ásperos dos novos conflitos são a nacionalização da petrolífera YPF, que estava sob controle da espanhola Repsol e a política de restrição à compra de dólares.

O resto, no artigo que escrevi para a Revista Pittacos.

domingo, 17 de junho de 2012

Golpe e Eleições no Egito

Na semana passada, a Suprema Corte do Egito ordenou a dissolução do Parlamento e a junta militar que governa o país decretou medidas que restringem a possibilidade de manifestações contra o regime (como a possibilidade de prender ativistas por bloquear o trânsito). O novo Legislativo será nomeado pelas Forças Armadas e irá elaborar a Constituição do país. Ambas as iniciativas aconteceram às vésperas do 2º turno das eleições presidenciais que opõem o ex-primeiro-ministro da ditadura e um representante da Irmandade Muçulmana e significam o esforço das Forças Armadas em controlar a transição política, limitando os poderes dos partidos islâmicos que despontam como os principais grupos do país. É um golpe de Estado judicial.

Os diversos partidos religiosos formavam cerca de dois terços do Parlamento. A Irmandade Muçulmana, o maior deles, tem longa e contraditória relação com os militares que governam o Egito desde 1952. Já foram aliados, inimigos e nos últimos anos da ditadura Mubarak ensaiaram um pacto de não-agressão e um certo nível de colaboração, embora a entidade não pudesse, oficialmente, participar da política. A força que ela ganhou com a queda do regime levou a uma disputa feroz pelo poder.

O Egito tem um poder judiciário considerado razoavelmente independemente, mas isso não se aplica aos tribunais superiores, cujos juízes são indicações políticas do governo. Não é surpresa, portanto, que a Suprema Corte tenha ordenado a dissolução do Parlamento. Foi alegada uma obscura razão técnica, a respeito de artigos ambíguos na lei eleitoral, mas considera-se que o real objetivo é afastar os partidos islãmicos do Legislativo, que entre outras tarefas irá elaborar a nova Constituição do país.

Enquanto escrevo, ainda não há o anúncio do vencedor das eleições. As análises sobre a conjuntura política do Egito estão bastante sombrias, com estudiosos prevendo a deflagração de conflitos violentos pelo poder, inclusive uma guerra civil. É uma possibilidade bastante alta. Somando a ela os riscos das eleições na Líbia e a persistência da brutalidade na Síria e no Iêmen, temos o Oriente Médio mergulhado numa gravíssima situação, em meio à crise na Europa e nos Estados Unidos.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Getúlio Vargas: ascensão ao poder

O jornalista Lira Neto publicou o primeiro volume dos três de sua biografia de Getúlio Vargas. “Getúlio – Dos Anos de Formação à Conquista do Poder” cobre o período de 1882 à Revolução de 1930 e traça um retrato excepcional do homem e de sua época, usando diários, cartas, livros de memórias e a imprensa da época. Esforço rico, análogo ao que Robert Caro faz por Lyndon Johnson nos Estados Unidos. Acompanhamos a educação de Vargas no ambiente rústico e violento da fronteira gaúcha no início do século XX, entre lembranças das guerras platinas e a vivência de duas guerras civis, a influência intelectual do positivismo, sua breve passagem pelo Exército e sua ascensão na máquina política da República Velha.

Vargas nasceu numa família de militares e de criadores de gado. Seu pai foi à guerra do Paraguai como soldado voluntário e voltou capitão, sendo promovido a general honorário pelo marechal Floriano Peixoto por sua liderança na repressão à rebelião federalista, no início da República. Vargas quis seguir seus passos, mas se entediou com a vida dos quartéis, que largou no fim da adolescência, quando ainda estava na escola preparatória para a academia de oficiais. Optou pela tradicional carreira do Direito, e já na faculdade se destacou como líder estudantil e jovem quadro da estrutura partidária comandada com mão de ferro pelo veterano Borges de Medeiros.

Lira Neto retrata um Vargas de muitas qualidades: inteligente (a abrangência de suas leituras e a solidez de seu preparo intelectual impressionam), sério, dedicado, mas ao mesmo tempo bonachão, simpático, habilidoso em dialogar e negociar. Características raras em sua família: seus irmãos estavam constantemente em problemas com a lei, por brigas, violência e corrupção na pequena cidade de São Borja, que dominavam. Vargas usava sua influência junto a Borges de Medeiros para ajudá-los, mas foi construindo sua carreira por méritos próprios: promotor, advogado, deputado estadual e federal. Ele participava dos jogos tradicionais de clientelismo, fraude e manipulação, mas não parece ter roubado para si mesmo, vivia frugalmente com a esposa e os filhos.

Vargas passou as décadas de 1900 e 1910 como uma personalidade local na política gaúcha, mas nos conturbados anos 1920 tornou-se alguém de projeção nacional, primeiro como o grande articulador dos interesses do Rio Grande do Sul junto ao governo federal, no momento de crise do pacto do café com leite (São Paulo e Minas Gerais) da República Velha, da eclosão das rebeliões tenentistas e do crescimento da inquietação social do país. Ele chegou a ser ministro da Fazenda do presidente Washington Luís, mas por breve período – logo largou o cargo para assumir o governo do Rio Grande do Sul.

Vargas foi uma figura chave para pacificar o estado, negociando a trégua – e posteriormente aliança – entre a oligarquia liderada por Borges de Medeiros e os setores liberiais comandados por homens como Assis Brasil e Batista Luzardo. Vargas incorpou muitas de suas demandas de modernização econômica e promoção da indústria, primeiro no âmbito estadual, mais tarde no plano federal.

A segunda metade do livro é dedicada a narrar em detalhes as articulações políticas e militares que culminaram no desafio de Vargas ao pacto do café com leite, sua campanha eleitoral à presidência e a Revolução que o levou ao poder após sua derrota pelo voto – apesar das fraudes maciças, os dados que Lira Neto apresenta indicam que ele teria perdido mesmo numa disputa limpa. O resumo da ópera: o sistema tradicional da República Velha estava em ruínas e Vargas triunfou porque construiu uma coalizão de apoio entre os descontentes com o regime: lideranças regionais excluídas (Rio Grande do Sul, parte do Nordeste), grupos de classe média, dissidentes em São Paulo e Minas Gerais, e os tenentes revoltosos da década de 1920. A crise de 1929 foi o último prego no caixão do governo.

Vargas hesitou para assumir o papel e fez jogo duplo ou triplo com todos os envolvidos, numa narrativa que se lê como um romance de espionagem. Os personagens são fascinantes e Lira Neto apresenta jovens impetuosos que virariam líderes importantes do Brasil, como João Neves da Fontoura, Oswaldo Aranha, Luís Carlos Prestes.

Do ponto de vista ideológico, o retrato é de um Vargas cético diante do liberalismo e defensor de práticas oriundas do positivismo: um Estado forte e centralizador, capaz de agir com destaque na economia. Encampou as bandeiras de Assis Brasil e dos tenentes pelo voto secreto e por eleições limpas - mas deixou-as para trás quando tornou-se ditador. À espera dos próximos volumes, com a expectativa de que sejam tão bons quanto este.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O Pacote de Socorro à Espanha

No sábado a Espanha pediu socorro financeiro de até $100 bilhões de euros para a União Européia, para tentar salvar seus bancos, cuja situação preocupa o continente. O PIB espanhol é de mais de um trilhão de dólares, maior do que a soma dos outros suplicantes – Grécia, Portugal, Irlanda. As reações iniciais ao pacote são de ceticismo. A quantia é considerada razoável, mas o receituário é basicamente o das mesmas reformas de austeridade que têm sido implementadas sem maiores resultados nos países do sul da Europa (embora pareçam ter melhor desempenho nas nações bálticas).

O cerco se aperta com a nova tentativa da Grécia em formar um governo, no próximo domingo. Com os Estados Unidos em dificuldades pelas eleições e com um presidente em minoria na Câmara, e os BRICS em redução do crescimento econômico, o foco das expectativas e temores se volta para a Alemanha.

A primeira-ministra Angela Merkel continua com a postura de rejeitar pacotes de resgate, mas ao fim de muitas súplicas acabar aceitando uma versão reduzida deles, atreladas a duras condicionalidades relativas ao corte de despesas públicas e algumas reformas econômicas. Contudo, há um difícil contraste político entre grandes acordos de ajudas econômicas para os bancos e outras instituições financeiras, e a precarização de serviços públicos e benefícios para a classe média e os pobres. Em sociedades organizadas e mobilizadas como as da Europa Ocidental, o resultado é uma leva de manifestações e protestos que tem derrubado diversos governos no continente.

A situação da Espanha é dramática, com o desemprego beirando 25% e ultrapassando 50% entre os jovens. O Partido Popular (conservador) venceu as eleições nacionais, desalojando os socialistas que estavam no poder quando a crise começou. Mas já está com dificuldades nas urnas, perdendo eleições nas regiões mais ricas como a Catalunha e em núcleos industriais importantes, como o País Basco. Contexto complicado para pensar o aprofundamento da austeridade. É preciso ao menos algum crescimento para enfrentar as pressões sociais.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O Retorno do PRI e a Democracia no México

No dia 1 de julho ocorrerão as eleições presidenciais no México e segundo as pesquisas o vitorioso deve ser Enrique Peña Nieto, candidato do PRI - o todo-poderoso partido surgido do pacto político entre os senhores da guerra da Revolução de 1910, que governou o país entre 1929 e 2000 numa mistura de fraude, manipulação, clientelismo e corrupção. Nos dois últimos mandatos os presidentes foram do Partido da Ação Nacional, uma sigla conservadora formada a partir de empresários e da Igreja Católica, que também já fraudou em grande escala as eleições de 2006. Chama a atenção a fragilidade da democracia mexicana, que ainda não realizou o que a maioria das nações da América Latina conseguiu: o revezamento pacífico de esquerda e direita no poder.

Peña Nieto é um candidato que se esforça para seguir posições abrangentes e consensuais, contrariando o mínimo possível de potenciais eleitores. Sua campanha foi marcada por gafes que ilustraram seu frágil preparo intelectual. Um inesperado movimento estudantil surgiu para contestá-lo e para criticar o que afirmam ser o viés favorável da imprensa. A maioria de seus assessores é de jovens tecnocratas, mas também circulam a seu redor a velha guarda do PRI, o que levou ao curioso apelido de "bebê dinossauro" para o jovem candidato. Suas fãs têm outro: "bombom", por conta de sua boa aparência.

Em muitos sentidos, Peña Nieto representa um modelo - livre comércio com os Estados Unidos, aceitação do jogo ampliado da democracia, com mais espaço para a sociedade civil, para o Congresso, a Suprema Corte e a autonomia dos governos estaduais - do que um partido. A candidata oficial do PAN, a ex-ministra da Educação, amarga um distante terceiro lugar. O veterano esquerdista Andrés Manuel Lopez Obrador, ex-prefeito da Cidade do México, está em segundo, mas após um impressionante crescimento nas últimas semanas, parece ter chegado a seu limite.

O México atravessa uma série crise de segurança - uma "guerra às drogas" que em 6 anos matou cerca de 50 mil pessoas, e é fruto do país ter se tornado um importante mercado consumidor para os traficantes, e não apenas uma rota de passagem das drogas para os Estados Unidos. Nenhum dos candidatos parece ter soluções efetivas para lidar com o problema.

Outra dificuldade é a dependência das economias dos EUA e do Canadá, para onde seguem 80% das exportações mexicanas, e que são também as principais fontes de investimentos e de remessas de emigrantes. Como os Estados Unidos foram um dos centros da crise global, os efeitos foram duros para o México. Os últimos governos assinaram vários acordos de livre comércio com outros países, mas os esforços para diversificar as exportações não têm sido muito bem-sucedidos, pela dificuldade de competir com a China como plataforma de exportação de manufaturados para as nações desenvolvidas.

Com tudo isso, o México tem um papel de liderança na América Latina bem menor do que poderíamos pensar, dado o tamanho de sua economia e de sua população. Não ajuda a eterna história de rivalidade e desconfiança com o outro gigante da região, o Brasil. E até alguns dogmas de sua política externa, como uma doutrina anti-intervenção tão rigorosa que rejeita até a participação em missões de paz da ONU.

Um dos intelectuais mexicanos mais expressivos, o sociólogo e ex-chanceler Jorge Castañeda, argumentou em livro recente que a história, costumes e cultura do país dificultam a construção da democracia e levaram a uma sociedade atomizada, autoritária e propensa ao conformismo e à aceitação da corrupção. Contudo, ele observa que a modernização econômica e política do México tem promovido transformações importantes e positivas. Concordo com alguns pontos do livro de Castañeda, outros me parecem muito pessimistas e exagerados.

E, sobretudo, penso que faltou ao sociólogo um olhar sobre a outra tradição mexicana: a de mobilização política, contestação cultural e rebelião social dos movimentos da reforma liberal do século XIX, da Revolução de 1910, da explosão estudantil de 1968 e das articulações indígenas de Chiapas e Oaxaca. A via para um México moderno passa pela riqueza de seus movimentos sociais, que tanto inspiraram a América Latina no passado.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Putin, o Homem sem Rosto

Continuando os posts sobre Rússia, por conta do curso que irei lecionar em breve li a nova biografia "Putin - a face oculta do novo czar", da jornalista russo Masha Gessen. O título internacional do livro, "Man Without a Face", resume melhor as intenções da autora: é uma assustadora narrativa da destruição do frágil experimento da democracia pós-soviética, que se lê como uma versão para o mundo real de um dos romances distópicos de George Orwell.

Putin é um filho tardio - talvez adotado - de um casal de veteranos do cerco de Leningrado, um dos momentos mais trágicos da Segunda Guerra Mundial. Cresceu como um jovem mimado, ainda em que um cenário de privações e escassez. Seus "luxos" eram itens como relógios de pulso. Ele não se mostrou particularmente inteligente, mas desde a adolescência revelou grande concentração e energia, mesmo que com um temperamento explosivo e propenso a brigas.

Ingressou na KGB provavelmente ainda durante a faculdade de Direito. Sua carreira na instituição foi pouco glamourosa: serviu em funções burocráticas na União Soviética e por alguns anos em um posto sem destaque na Alemanha Oriental, na provinciana cidade de Dresden.

Ao retornar para a URSS no fim da década de 1980, Putin era tenente-coronel da KGB e sorte e oportunidade lhe colocaram num posto-chave nos conturbados anos de transição democrática: representante da instituição na Universidade de Leningrado, onde um dos professores, o carismático Anatoly Sobchak, tornou-se o primeiro prefeito eleito da cidade, e Putin virou um de seus principais assessores. Dali rumou para um cargo semelhante junto ao presidente Boris Ieltsin, estabelecendo-se como seu homem de confiança e sucessor, já no contexto da severa crise econômica e política dos anos 90.

Gessen retrata Putin como um homem simples, oportunista e desconfiado, sem grandes pretenções ideológicas ou carisma. O retrato das instituições de segurança que o formaram, e cujo aparato ele promoveu sem cessar na Rússia pós-URSS. Ele acredita em governo forte, centralizado e ordem - características que julga incompatíveis com a democracia.

A autora enumera como Putin destruiu as fragilíssimas liberdades políticas que existiam na Rússia: o Estado passou a controlar as redes de TV, e a intimidar (ou mesmo assassinar) repórteres de jornais, revistas e sites. Governadores passaram a ser nomeados pelo Kremlin e partidos de oposição tiveram seus registros negados, sob alegação de desrespeito a uma complexa legislação eleitoral. Muitos foram presos, em processos por corrupção - endêmica e largamente praticada por todos os atores políticos. Empresários em desavença com o regime foram encarcerados e suas firmas expropriadas em benefício dos aliados do Kremlin - incluindo o homem mais rico do país, o magnata do petróleo Mikhail Khodorkovsky.

Os capítulos mais chocantes do livro tratam dos massacres cometidos pelo governo russo nas duas guerras da Chechênia e na orquestração de supostos atentados terroristas, que mataram centenas de pessooas para que Putin pudesse aparecer como o salvador da pátria, que combateria os inimigos com mão dura. Há também uma longa lista dos desafetos que teriam mortos sob ordem do presidente ou de seus aliados, como o ex-agente da polícia secreta Alexander Litvinenko e a jornalista Anna Politkovskaya.

Só nos trechos finais do livro Gessen se permite algum otimismo, narrando a ascensão do novo movimento democrático na Rússia, que ao longo do último ano organizou as maiores manifestações no país desde o fim da URSS. Elas não foram capazes de impedir uma nova eleição de Putin como presidente, mas ao menos dão algum alento na perspectiva de que algum dia as coisas possam mudar para melhor.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

A Rússia Após a União Soviética

No dia 13, Eduardo Achilles Mello e eu começaremos a lecionar na Casa do Saber do Rio de Janeiro o curso “Rússia Após a União Soviética”. Em dezembro passado completaram-se 20 anos do fim da URSS, me maio aos maiores protestos políticos russos desde a queda do regime comunista. Esse será nosso ponto de partida para uma avaliação do que aconteceu no país nessas duas décadas.

Serão quatro aulas, abordando a transição para a economia de mercado, a ascensão de Vladmir Putin e do Estado rentista-petrolífero, as conturbadas relações com as potências ocidentais e o difícil acerto de contas com a memória histórica da Revolução de 1917 e os altos e baixos do movimento pró-democracia.

Já existe boa leva de livros sobre a Rússia pós-soviética, inclusive por autores brasileiros. A narrativa habitual é mais ou menos a seguinte: após os anos caóticos do colapso da URSS, Putin emergiu como o líder capaz de estabilizar o país, amparado pela aliança com o aparato de segurança da polícia secreta e nas rendas petrolíferas do boom dos hidrocarbonetos da década de 2000. Ele afastou os grandes empresários pós-privatização da política, assumiu o controle da mídia (sobretudo da TV) e centralizou o Estado, passando a nomear ocupantes de cargos como os governadores estaduais.

A Rússia passou a ser considerada uma potência emergente, uma integrante dos BRICS, mas essa classificação é bastante controversa. Ela pode muito bem ser vista como uma superpotência que caiu de nível, e que tem procurado manter os últimos resquícios de sua antiga e enorme área de influência – Cáucaso (duas guerras na Chechênia, uma na Geórgia), Síria, Ásia Central, e os jogos de poder com a OTAN e a União Européia nos países bálticos e na Ucrânia.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

O Massacre de Houla e a Virada do Jogo na Síria

Ontem gravei entrevista para o programa Sem Fronteiras, da Globo News, que irá ao ar na noite desta quinta-feira – reprisa ao longo da semana. Falei a respeito do massacre de Houla e de como ele representa uma virada do jogo político no conflito da Síria.

Há 14 meses a ditadura de Bashar al-Assad enfrenta uma rebelião, incluindo grupos armados como os do Exército Livre da Síria. Cerca de 13 mil pessoas já foram mortas, a maioria pelo governo. Rússia e China vetaram no Conselho de Segurança da ONU resoluções que exigiriam a renúncia de Assad, mas há embargos internacionais contra seu governo e uma missão de observadores das Nações Unidas para monitorar um cessar-fogo e um acordo de paz mediado pelo ex-secretário-geral da instituição, Kofi Annan.

Essa negociação nunca foi respeitada e a presença da ONU não conseguiu deter ou mesmo diminuir a violência. O massacre de Houla foi a gota d´água na aposta que as Nações Unidas poderiam ter feito a diferença. A cidade foi cercada pelas Forças Armadas da Síria e a mílicia dos Fantasmas (Shabiha) executou cerca de 120 pessoas – a maioria crianças e idosos.

O massacre foi o pior do conflito até este momento, e já resultou em protestos contra Assad até entre grupos que estavam relutantes em se juntar à rebelião, como os comerciantes sunitas de Damasco. Governos dos Estados Unidos, na União Européia, Turquia, Canadá e Austrália expulsaram diplomatas sírios em represália e mesmo a Rússia apoiou uma condenação da carnificina no Conselho de Segurança.

A Síria ocupa uma posição geográfica muito delicada, entre Líbano, Israel, Turquia, Iraque e Irã, e numa vizinhança tão turbulenta ninguém quer arriscar uma intervenção como a que a OTAN realizou na Libia. Os riscos são muito elevados, inclusive de um vazio de poder que tornasse o país um campo fértil para terroristas ou grupos islâmicos radicais.

Contudo, há muitos relatos de que a oposição armada já vem sendo suprida apoio dos Estados Unidos, França e Turquia e o cenário para os próximos meses é de que esses grupos aumentem o controle territorial que já exercem em cidades como Homs e Hama.

O regime autoritário da Síria está baseado em vários pilares: o Partido Baath, as Forças Armadas e o grupo de famílias alauítas reunidos em torno dos Assad. É bastante plausível uma solução na qual os demais elementos que dão apoio à ditadura aceitem um acordo que signifique a renúncia do ditador em troca de sua permanência no poder. Algo assim foi feito no Egito e no Iêmen.

Pós Escrito: minha entrevista ao Sem Fronteiras, da Globo News

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O Haiti Após o Terremoto

Este excelente livro de Paul Farmer faz um balanço da sequência de catástrofes humanitárias que assolaram o Haiti nos últimos 5 anos – furacões, tempestades tropicais, epidemia de cólera e um grande terromoto que talvez tenham matado 200 mil pessoas – e discute as falhas nas políticas de saúde pública, (re)construção da infraestrutura e geração de emprego, em meio a desdobramentos positivos na segurança e na estabilização política. É um debate que interessa muito ao Brasil, pela liderança que o país exerce desde 2004 na missão de paz da ONU no país.

Farmer é médico, professor de Harvard, e engajado em organizações de ajuda internacional, co-fundador da iniciativa Partners for Health, que tem exercido tarefas importantes em saúde pública em países como Haiti, Ruanda e Rússia. Seu parceiro na empreitada foi outro médico, Jim Kim, nomeado há poucas semanas presidente do Banco Mundial. Farmer também ocupou cargos em instituições globais, servindo como vice de Bill Clinton quando este foi representante especial da ONU para o Haiti. Conhecer suas perspectivas é importante para entender esse novo enfoque que liga medicina e políticas para o desenvolvimento.

A presença de Farmer no Haiti tem várias décadas e vem de uma razão familiar – ele é casado com uma haitiana. Juntos com profissionais de vários países eles criaram hospitais e clínicas no país, apoiaram instituições haitianas e fizeram parcerias com outras, no exterior. Em seu livro, ele narra a melhora da situação após a instalação da missão de paz e elogia a atuação dos militares e diplomatas brasileiros, cumprimentando-os por sua dedicação, capacidade de diálogo, e de improvisação diante das dificuldades burocráticas. Também há muitas referências positivas aos esforços de profissionais dos Estados Unidos, Canadá, Cuba e, claro, dos próprios haitianos.

O terremoto de janeiro de 2010 encerrou esse período de melhora. O Haiti é um dos países mais densamente povoados do mundo e a maioria das habitações é muito precária. O impacto do tremor foi devastador. A capital, Porto Príncipe, ficou destruída, assim como a maioria dos prédios públicos, incluindo o Palácio Presidencial – o governo passou a funcionar numa delegacia. Farmer relata os desafios assustadores das equipes de saúde: lidar com centenas de milhares de feridos em condições muito, muito precárias de infraestrutura, segurança e em meio a traumas emocionais. Muitos haviam perdido amigos e parentes, outros estavam machucados.

Devido à falta de moradia, os desabrigados tiveram que ser instalados em tendas, em campos improvisados que deveriam ser temporários. A maioria continua até hoje. Condições de saúde e higiene são ruins, e a insegurança é enorme, em particular com relação a mulheres, vítimas de violência sexual. As promessas de ajuda internacional para reconstruir o país não foram cumpridas, a maior parte do dinheiro nunca chegou e grandes parcelas foram para pagar os salários da burocracia humanitária. Contudo, o apoio externo foi crucial: a chegada de profissionais estrangeiros, de um navio-hospital da Marinha dos EUA, e a ida de pacientes haitianos para a América do Norte, para serem tratados por lá.

Farmer defende posições que já ouvi de diplomatas brasileiros – a de que um estratégia de desenvolvimento bem-sucedida parao Haiti deveria priorizar o fortalecimento do Estado, a única instituição capaz de executar projetos em todo o país. Ele chama a atenção para a necessidade de reflorestar o país, de modo a permitir a retomada de uma agricultura produtiva, e frisa o tamanho da precariedade da infraestrutura, em particular das habitações e das estradas. Há um excelente capítulo no qual Farmer compara o Haiti com Ruanda, cuja liderança política pós-genocídio foi muito bem-sucedida nas tarefas de reconstrução e crescimento.

O médico elogia bastante a capacidade da população haitiana em sobreviver às múltiplas catástrofes – naturais e políticas que abalaram o país. Dá o que pensar diante da política migratória brasileira, de restringir vistos para haitianos que queiram vir para cá.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Um Voto pelo Egito

Na quarta e na quinta o Egito realizou a 1ª eleição presidencial livre de sua história de muitos milênios. Com cerca de 25% de toda a população árabe, é uma votação com grandes consequências para o Norte da África e para o Oriente Médio. Os resultados, porém, são preocupantes e apontam para um instável sistema político tripolar entre um presidente relativamente fraco, um parlamento dominado por uma coalizão de partidos islâmicos e as influentes Forças Armadas como o poder por trás do trono, fiadoras da estabilidade do país para as potências ocidentais.

A junta militar que governa o Egito desde a queda do regime autoritário vetou as candidaturas dos líderes mais expressivos, como o dirigente da Irmandade Muçulmana, Khayrat El-Shater, e o ex-chefe do serviço de inteligência, Omar Suleiman. As pesquisas eleitorais egípcias foram realizadas em condições precárias, sob censura e não são confiáveis, mas apontam para quatro favoritos entre os 11 candidatos: dois representam os remanescentes da ditadura Mubarak (“felools”) e os outros, as principais correntes da Irmandade Muçulmana. Provavelmente haverá 2º turno em junho.

Pelo lado do antigo regime, concorrem o general da Força Aérea Ahmed Shafiq, ex-primeiro-ministro de Mubarak, e Amr Moussa, ex-chanceler do ditador e posteriormente secretário-geral da Liga Árabe – cargo que exercia quando começaram as revoltas democráticas. O único episódio mais tenso da eleição foi uma agressão contra Shafiq – manifestantes anti-ditadura jogaram sapatos nele.

A Irmandade Muçulmana havia prometido que não iria disputar a presidência, mas rompeu com esse compromisso. Como a junta vetou seu líder, o grupo lançou Mohamed Morsi. Ele não é considerado um homem carismático ou inspirador, mas sua campanha foi conduzida de modo eficiente e profissional – talvez a melhor executada das eleições. O azarão da Irmandade é Abdel Fotouh, um ex-dirigente da organização que acabou expulso dela após anos de divergências com os colegas. Era bem mais crítico à ditadura do que a maioria deles, que firmaram uma série de pactos políticos com Mubarak. F tem sido criticado por ter montado uma coalizão entre islâmicos e liberais considerada insustentável no médio prazo.

Mubarak havia governado longas décadas sob uma Lei de Emergência revogada após a queda do regime e as funções do futuro presidente só serão definidas com a elaboração da nova Constituição. A Irmandade tem cerca de 50% do parlamento, e outros grupos islâmicos, mais 25%. Seja quem for o vencedor da eleição presidencial, terá que negociar com essa aliança. E, claro, independemente dos votos, as Forças Armadas continuarão a ser a instituição mais poderosa, rica e influente do país.

O Egito não é um país rico em petróleo ou minérios, mas continua a ser chave na política global por muitas razões: sua localização geográfica, a influência sobre a Faixa de Gaza e o Hamas, o tratado de paz com Israel, a presença do Canal de Suez e sua gigantesca capacidade de ter impacto sobre os acontecimentos nos demais países árabes. E tudo isso em meio a muitos, muitos problemas econômicos.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Rio+20 na Política (Externa) Brasileira

When environmental issues entered the United Nations´ agenda, with Stockholm conference (1972), Brazil lived under a military dictatorship that considered ecological themes as rich countries´ hypocrisy, supposedly afraid of fast Brazilian economic growth or interested in the exploitation of the natural resources of the Amazon. These views changed with the return of democracy and the beginning of dynamic social movements dedicated to the environment and big transformations in public policy. However, Rio+20 will be held among serious controversy in Brazil over development and sustainability.

The new environmental conscience was symbolized with the mobilization around the tragedy of Cubatão, the city in São Paulo´s industrial belt that was for many years the most polluted in the world, with severe consequences to the health of its inhabitants. The admiration achieved by the labor leader of Amazon´s rubber extractors, Chico Mendes, was also representative of the new mood, even if it was not enough to prevent his murder by powerful landowners.

(...)

Brazilian foreign policy has ambitious goals to promote the image of the country as a rising power. Since the 1990s, this idea includes an active role in environmental debates and Brazil see itself as a honest broker between rich and poor nations, solving conflicts and framing complex deals such as the agreements of Rio 92 and the Durban conference on climate change. Nevertheless, we may argue that Brazilian environmental policy is more progressive in its foreign face than in its domestic one.

O resto, no artigo que escrevi para o site "La Parole des Jeunes à Rio+20".

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Monarquias na Primavera Árabe

Na semana passada estive em Minas Gerais para participar da XXIX Semana de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Dei uma palestra a respeito das monarquias na Primavera Árabe, discutindo por que essa forma de regime político tem se mostrado tão resistente às rebeliões no Norte da África e no Oriente Médio. Os países que enfrentam maiores turbulências são quase todos repúblicas (Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Iêmen) com a exceção do Bahrein.

É um quadro surpreendente. Farouk, o último rei do Egito, dizia na década de 1940 que no futuro só haveria cinco monarcas: os do baralho e o do Reino Unido. De fato, em poucos anos Farouk perdeu o trono, assim como seus colegas na Líbia e Iraque. Sua irmã, a imperatriz do Irã, também foi destronada. As teorias que procuram explicar a democratização se concentram em fatores como renda e educação e pouco ou nada dizem sobre repúblicas e democracias. Como entender o que ocorre com os reis na Primavera Árabe?

Em seus componentes essenciais, as rebeliões atuais pleiteiam maior participação política para a população e a melhoria da condição econômica, sobretudo dos empregos para os jovens. Presidentes-ditadores correm muitos riscos com eleições livres: se seus oponentes tiverem mais votos do que eles, acabou seu período à frente do país. Os monarcas têm maior espaço de manobra. Irão permancer como chefes de Estado qualquer que seja o resultado das eleições e podem negociar que poderes serão entregues para os líderes do governo (primeiro-ministro, parlamento etc).

Os reis árabes não são como a rainha Elizabeth II. Eles governam, e não apenas reinam. É uma situação mais parecida com a dos imperadores brasileiros do século XIX, e sua gradação entre momentos mais autoritários sobre Pedro I até a postura bem mais liberal do Segundo Reinado. Os monarcas árabes oscilam entre o despotismo da Arábia Saudita e do Bahrein ao reformismo do Marrocos e do Catar. A Jordânia é um caso intermediário, com idas e vindas de um complexo processo de abertura, e o Kuweit tem características semelhantes.

Mas em todos casos, os reis árabes concentram o que no Brasil do século XIX seria chamado o Poder Moderador com outras atribuições-chave do Estado nas esferas do Executivo, Legislativo, Judiciário e vida religiosa. Alguns monarcas são defensores das minorias religiosas, como o rei do Marrocos (um de seus principais assessores é judeu), vendo nelas aliados fiéis, que só podem contar com o trono para sua proteção. Outros são defensores da ortodoxia religiosa, como os monarcas sunitas da Arábia e do Bahrein – nesse último caso, em fortíssimo conflito contra a maioria xiita da ilha.

As rainhas também desempenham papel importante, como exemplos de comportamento feminino que representam uma abertura controlada das tradições. As soberanas do Marrocos e da Jordânia são modernas, elegantes. Não usam véus, são altamente instruídas – a rainha marroquina (acima) é engenheira de telecomunicações e trabalhou numa multinacional antes de desposar o rei.

Historicamente, muitas potências ocidentais (sobretudo EUA e Reino Unido) consideraram monarcas e aristocratas como aliados preferenciais no Oriente Médio, por enxergarem neles a possibilidade de sistemas mais estáveis e conservadores, na comparação com líderes republicanos que usavam seu carisma para prometer amplas reformas sociais, no Egito, Iraque, Síria e Líbia. Assim, os britânicos criaram coroas para a família Hashemita na Arábia, na Jordânia e no Iraque. Os americanos apoiaram a Casa de Saud e a dinastia Al-Khalifa, Contudo, muitos reis eram tão refratários às mudanças que acabaram sendo depostos por populações sedentas por transformações. Os monarcas atuais parecem ter aprendido ao menos algo com os erros dos antecessores.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Crise na Europa: Fase 2

Com as recentes eleições na Alemanha, França e Grécia a crise européia entrou em sua segunda – e mais turbulenta fase. Os eleitores rejeitam as medidas de austeridade e os pacotes de socorro internacionais, os extremos ideológicos crescem em força política. Meu palpite é que o resultado será a adoção de medidas de nacionalismo econômico e a saída grega do euro, seguida eventualmente de outros países na periferia européia.

Me baseio no excelente modelo criado pelo economista turco Dani Rodrik, segundo a qual na época atual os países vivem um trilema segundo o qual não podem ter ao mesmo tempo: a) Economia aberta; b) Estado-Nação autônomo; c) Democracia.

Apesar do crescimento do extremismo ideológico na Europa, golpes de Estado autoritários (ainda) não estão no radar. Talvez entrem no futuro. A alternativa B – um governo de tecnocratas indicados pela Comissão Européia em Bruxelas – não funcionou na Grécia, embora pareça ir melhor na Itália. Resta a opção A – fechar a economia e tentar blindar a sociedade das turbulências globais ou da competição externa, em particular da China. Qualquer um familiarizado com a história do século XX sabe que isso aconteceu em larga escala nos períodos que antecederam as guerras mundiais, com consequências trágicas, em particular na década de 1930: queda no comércio global, aprofundamento da Depressão etc.

O cenário eleitoral da Europa aponta, ao menos no curto prazo, para essa escolha. Mais protecionismo, um relaxamento das regras conjuntas da União e mais autonomia para cada país buscar sua própria saída da crise. Na França e Grécia, os resultados eleitorais foram claramente condenatórios das políticas de austeridade, ainda que um tanto ambíguos sobre a agenda que desejam que seja colocada no lugar (aqui minha entrevista sobre o tema, para a revista Carta Capital). Na Alemanha, mais uma derrota do partido da chanceler Angela Merkel, agora no maior estado alemão, mostram a rejeição da população a seu discurso de austeridade e aos custos de auxiliar as economias mais frágeis da UE.

Não há soluções à vista para a crise européia. No caso da Grécia, uma provável saída do euro acarretaria desvalorização brutal, queda no poder aquisitivo da população e seria acompanhada de moratória de parte considerável da dívida. Algo semelhante ao que houve na Argentina em 2001-2, mas sem a saída de um boom de commodities para reerguer a economia.

Talvez o apocalipse grego aponte medidas que sejam tomadas em maior ou menor grau por outras economias européias. Quaisquer sugestões, encaminhem para Bruxelas.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O Brasil e a Criação da ONU

Eugênio Vargas Garcia é um diplomata que tem escrito importantes livros sobre a história da política externa brasileira, como “O Brasil e a Liga das Nações”. Seu recém-lançado “O Sexto Membro Permanente – o Brasil e a criação da ONU” preenche uma lacuna nos estudos sobre as relações internacionais do país e mostra como muitas das questões levantadas na década de 1940 continuam a orientar os debates sobre a participação brasileira nos fóruns multilaterais, sobretudo no contraste entre grandes expectativas e suas frustrações.

O Brasil foi o único país da América Latina a enviar tropas para combater na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, e na época tinha uma política externa de alinhamento com os Estados Unidos nas grandes questões de política internacional, em troca do apoio de Washington nos objetivos regionais sul-americanos. Durante o conflito militar o Brasil teve importância estratégica, com a instalação de bases militares dos EUA no Nordeste, fundamentais para a invasão do Norte da África, apoio logístico às cadeias de suprimento dos Aliados e fornecimento de matérias-primas inclusive na área nuclear. A expectativa da liderança política brasileira era exercer um papel de destaque na ordem pós-bélica e desde o início o país esteve muito engajado na formação da ONU e sua principal ambição tornou-se uma vaga como membro permanente no Conselho de Segurança.

Havia um descompasso entre esse objetivo e a frágil condição sócio-econômica de um país subdesenvolvido, rural, com metade das exportações dependendo de café e algodão. Havia também a contradição com os ideiais democráticos dos Aliados e a permanência do regime autoritário que Getúlio Vargas havia implementado em 1937, e que começava a ruir com as tensões oriundas da guerra. E os conflitos regonais, em particular com um Argentina mais rica e poderosa, que insistia na neutralidade e chocava-se constantemente com os Estados Unidos. Um diplomata britânico observou: “O Brasil não é de maneira alguma o representante da América Latina, mas sua vaidade e enfado são certamente de uma grande escala.”

Garcia mostra com clareza as disputas pelo poder dentro do Brasil. Vargas afastou seu habilidoso chanceler Osvaldo Aranha, que exerceu o cargo entre 1938-1944, mas que era visto como muito pró-democracia, e nomeia como interino um diplomata de carreira, Pedro Leão Velloso, mais conhecido por dar nome a um tipoo de sopa do que por sua perícia como negociador. Mas Vargas queria um chanceler fraco, que não lhe fizesse sombra, embora até amigos do presidente lhe chamassem a atenção para os defeitos de Velloso nas conferências que criaram a ONU (Dumbarton Oaks e São Francisco), notando sua falta de experiência em fóruns parlamentares. O New York Times ironizava sua pouca disposição a se pronunciar, afirmando que seu discurso mais longo teve 25 palavras.

O Brasil falhou, claro, em obter o assento permanente no Conselho de Segurança e também foi contra a introdução do poder de veto às grandes potências, mas aceitou-o como necessário para fechar o acordo. Contudo, os diplomatas brasileiros – em conjunto com os colegas latino-americanos – forma bem-sucedidos em introduzir na Carta da ONU princípios importantes de Direito Internacional, que estavam ausentes dos esboços originais. A revista Time considerou o documento “uma Carta escrita para um mundo de poder, temperada por um pouco de razão.”

A delegação brasileira também inovou em temas sociais e humanitários, sobretudo pela ação da cientista e pioneira do feminismo Bertha Lutz, que era parte do grupo. Chama a atenção, no entanto, a desconexão entre política externa e política de Defesa. Apesar das menções elogiosas à Força Expedicionária, os militares brasileiros estiveram pouco envolvidos nos debates internos sobre as posições do país da ONU.

“Convém que a nossa atitude de solidariedade com os Estados Unidos não desatenda à circunstância de sermos vizinhos imediatos e amigos da República Argentina”, observou Leão Velloso. De fato, o Brasil agiu com tato para evitar o isolamento de Buenos Aires e procurou mediar as divergências do que era então uma ditatura militar com o governo americano.

Vargas foi derrubado por um golpe pouco após a criação da ONU e achou que o Brasil perdeu com o resultado: “Fomos inteiramente esquecidos e recusados na partilha dos despojos”. Voltaria à presidência na década de 1950 com uma agenda mais nacionalista e crítica dos Estados Unidos, mas alguns dos problemas foram consequências de suas próprias decisões, como o afastamento de Aranha, que voltaria às Nações Unidas no governo Dutra e seria o 1º presidente de sua Assembléia Geral, dando ao Brasil o direito de abrir anualmente a reunião (conto um pouco dessa história em entrevista à Rádio da Câmara dos Deputados).

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Obama e os Direitos dos Homossexuais nos Estados Unidos

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser”, já trovava Luís de Camões. Barack Obama tornou-se o primeiro presidente dos Estados Unidos a apoiar publicamente o casamento gay. A declaração foi feita em reação a uma decisão do estado da Carolina do Norte de proibir esse tipo de enlace. Atualmente, ele só é permitido em seis dos 50 estados americanos, e no Distrito de Columbia (na capital, Washington, e arredores). Em fevereiro um tribunal federal decretou inconstitucional a proibição na Califórnia e agora se especula se a Suprema Corte tomará posição a respeito. Os direitos dos homossexuais entraram com força no debate políticos dos EUA a partir de 1969 e na década passada o casamento entre pessoas do mesmo sexo começou a ser legalizado.

A Suprema Corte tem legado ambivalente com relação aos direitos dos gays. Só de meados da década de 1990 em diante suas sentenças passaram a proibir que a homossexualidade fosse tratada como crime e passasse a ser encarada como parte do direito à privacidade. O entendimento do tribunal é que não cabe ao Estado se pronunciar sobre relações sexuais consentidas entre adultos e também houve várias decisões proibindo discriminação contra gays. Contudo, elas convivem com casos nos quais a Suprema Corte acatou a exclusão de homosseuxais de organizações como os escoteiros, sob alegação de que sua presença iria contra os objetivos da instituição.

Os próprios conservadores entre os ministros da Suprema Corte estão divididos com relação ao casamento gay. A corrente majoritária defende que é uma decisão que cabe aos governos estaduais, mas há uma tendência dos libertários em afirmar o direito individual à escolha de um parceiro sexual, e ao reconhecimento pelo poder público dessa decisão.

Políticos e tribunais seguem as transformações na opinião pública e desde 2011 a maioria (53%) dos americanos é favorável ao casamento gay. É uma guinada notável com relação a apenas 27% em 1996. Contudo, há fortes divisões segundo identificação partidária e idade. Os democratas apoiam o tema bem mais do que os republicanos (69% contra 28%) e os jovens bem mais do que os idosos (70% e 39%).

Não por acaso, são os políticos democratas os que mais têm se empenhado pela aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo e Obama segue os passos bem-sucedidos do governador de Nova York, Andrew Cuomo, que o legalizou em junho de 2011. Três meses depois, o presidente tomou outra decisão importante, autorizando gays assumidos a servir nas Forças Armadas – desde 1993, vigorava a política “Não pergunte, não conte”, pela qual os militares não eram obrigados a declarar sua orientação sexual, mas não podiam manifestá-la caso fosse homossexual.

Os efeitos do apoio de Obama devem ser benéficos para sua campanha à reeleição, (re)mobilizando os jovens que foram importantes para sua vitória em 2008, e estão desapontados com os parcos resultados econômicos de seu governo.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Estados Unidos e América Latina: novos (des)equilíbrios

Na quinta-feira passada fui palestrante na VI Rodada Latino-Americana do Laboratório de Estudos da América Latina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Falei a respeito das relações entre a região e os Estados Unidos nestes tempos em que os equíbrios de poder mudam em detrimento dos países desenvolvidos e favorecem os emergentes.

A América Latina representa cerca de 20% do comércio exterior dos Estados Unidos e esse número cresceu pouco mais de 3% entre 1996 e 2009 (gráficos abaixo). É menos do que se poderia esperar, visto que nesse período houve a assinatura de diversos acordos de livre comércio com a região. Além disso, 60% do total está concentrado no intercâmbio com o México, e metade do restante fica com Brasil, Colômbia e Venezuela.

Ainda assim, podemos argumentar que a América Latina está se tornando mais importante para os Estados Unidos, porque o país está vendo dimunuírem suas fatias dos mercados na Europa, Ásia e até no vizinho Canadá.

Da perspectiva latino-americana, o cenário é oposto. A região depende cada vez menos do comércio com os Estados Unidos. Ao longo da década de 2000 as exportações para lá caíram de 57% para 40%, e as importações, de 50% para 30%. A grande responsável por esse declínio percentual é a China, que chegou até mesmo a se tornar o principal parceiro econômico de países latino-americanos como Brasil e Chile. Ela também já é o 3º maior investidor, atrás apenas dos Estados Unidos e da Holanda. Os gráficos abaixo contam essa história:

As assimetrias entre Estados Unidos e América Latina continuam enormes, mas diminuíram. A região está mais próspera, virou uma área de renda média, com bolsões de pobreza na América Central, Bolívia e Paraguai. Há problemas sociais sérios, como desigualdades (as maiores do mundo), violência e Estados ineficazes e corruptos.

Embora se possa questionar a sustentabilidade do crescimento – ainda muito dependente dos ciclos das commodities – ele possibilita uma inserção internacional mais assertiva, como se manifesta no ressurgimento do nacionalismo, em particular quando aplicado ao controle dos recursos naturais pelo Estado. É uma visão política bastante diferente do liberalismo que esteve em voga na década de 1990.

A agenda externa dos Estados Unidos pós-11 de setembro foi pouco significativa para a maioria dos países latino-americanos, com exceção da Colômbia, que tem seu próprio problema interno de terrorismo. As nações da região se queixam do desinteresse de Washington por suas dificuldades e têm se posicionado contrariamente às principais abordagens americanas para o continente, como a guerra contra as drogas e a tentativa de manter Cuba isolada dos organizações hemisféricas.

Os Estados Unidos tratam o Brasil cada vez mais como um interlocutor para temas globais, acima de ser uma nação-chave na América Latina. Mas ambos os países parecem não saber o que querem um ou do outro, para além de constantes queixas pelas suas divergências internacionais, sobretudo no Oriente Médio. A política externa brasileira também tem o desafio de conviver com um desequilíbrio de poder crescente a favor do Brasil na região. A identidade internacional do país têm pendido para o lado da potência emergente ou BRICS, esforçando-se para se afastar da imagem de instabilidade e turbulência de muitos dos vizinhos.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Da Ditadura à Democracia

No dia 11 de maio começa meu próximo curso na Casa da Saber do Rio de Janeiro: “Da Ditadura à Democracia”. Irei discutir com os alunos três tipos de transição política: aqueles que são frutos de longas negociações e barganhas; os que acontecem de maneira súbita, com a eclosão de rebeliões majoritariamente pacíficas; os que resultam de guerras civis e intervenções estrangeiras. A idéia é usar os acontecimentos contemporâneos, da Primavera Árabe, como um estopim para examinar exemplos históricos, na Europa, América Latina e África.

Há uma considerável literatura acadêmica a respeito de transições democráticas, a maior parte dela formulada a partir dos acontecimentos na América Latina e na Europa Oriental nas décadas de 1980-90, com um ou outro caso importantes em continentes diversos, como na experiência da África do Sul, muito bem estudada. Pesquisas mais recentes, como os excelentes trabalhos de Daron Acemoglu e James Robinson, têm utilizado essas reflexões para atualizar o debate sobre a teoria da modernização e a economia institucional.

Há, por exemplo, uma forte correlação entre pressões por democracia e as expectativas crescentes de uma classe média ampliada, mais instruída, mas que não consegue encontrar empregos na quantidade suficiente para satisfazer suas novas ambições. Não é que ela tenha piorado de vida – muitos regimes autoritários foram bem sucedidos economicamente, sobretudo nas fases iniciais da industrialização. A questão é a dificuldade desses sistemas em continuar a suprir o desejo das pessoas por mais oportunidades, e a natureza de uma economia aberta, voltada para serviços e tecnologias de informação, torna essa tarefa ainda mais complicada para uma ditadura.

Democracia e desigualdade têm uma relação difícil, em geral os países com grandes abismos entre ricos e pobres ou são autoritários ou são muito instáveis, com frequentes golpes e quedas de governo. Neles, é comum que o jogo político vire questão de “tudo ou nada” e seja difícil o tipo de compromisso e barganha que caracteriza regimes democráticos. Sociedades muito desiguais que conseguiram se democratizar, como África do Sul, Brasil e Chile, o fizeram às custas de acordos políticos que deram privilégios e garantias para amplos setores de suas elites.

Outro tema do curso é se as intervenções militares estrangeiras podem ser bem-sucedidas em implementar a democracia. O assunto é controverso. Há, claro, exemplos bem-sucedidos, como a Alemanha e o Japão após a Segunda Guerra Mundial, ou a ex-Iugoslávia depois das ações da OTAN. Mas muitas outras tentativas falharam, em países como o Vietnã ou as Filipinas. Regimes democráticos bem ordenados dependem não só de boas leis e instituições, mas de uma série de consensos e arranjos informais – em última medida, de valores culturais – difíceis de serem impostos de fora.

Em suma, penso que teremos excelentes debates, com muitos exemplos contemporâneos – Tunísia, Egito, Líbia – para esquentar a conversa.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Políticas de imigração no Brasil: por uma postura coerente e cosmopolita

Blogueira Convidada: Patrícia Rangel

Doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), mestre pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Autora do livro “Barrados: um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global”, disponível para download gratuito.

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Há quatro anos, eu e um companheiro de mestrado fomos arbitrariamente detidos em Barajas (aeroporto de Madri) e impedidos de seguir viagem para Lisboa, onde participaríamos de um congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política. Foram 50 horas de detenção injustificada e maus-tratos.

Não se tratou de um caso isolado. Só no primeiro trimestre daquele ano de 2008, a polícia espanhola barrou 18 mil pessoas (entre elas, mil brasileiros). Além de se engajar no processo de aprovação da Diretiva de Retorno (um novo acordo para dificultar a permanência de estrangeiros na União Européia), o país anunciou a idéia de pagar para os imigrantes desempregados retornarem a seus países. De lá para cá, pouca coisa mudou. Muitos outros brasileiros foram submetidos a inexplicáveis maus-tratos, como as religiosas que seguiam para a Alemanha em missão evangelizadora; o músico Guinga, que perdeu dois dentes após ser agredido por um policial do posto da Polícia Nacional Espanhola no aeroporto Barajas; o padre Jeferson Flávio Mengali, que, além de ficar detido, suportou chacotas dos policiais sobre suas roupas religiosas; a física Patrícia Camargo Guimarães, que me antecedeu nesta infeliz aventura e também denunciou o abuso das autoridades que a mantiveram presa por três dias sem qualquer justificativa; entre inúmeros outros brasileiros injustiçados.

Apesar de o Ministério do Interior espanhol argumentar que aplica objetivamente as normas do espaço Schengen, relatos de pessoas rejeitadas e repatriadas apontam discriminação na aplicação de regras. As denúncias giram em torno dos mesmos temas: arbitrariedade nos critérios de ingresso, agressividade dos agentes policiais, acomodações precárias, falta de comida e tratamento humilhante. Em poucas palavra, total ausência de direitos. Zero em hospitalidade.

Recentemente, o debate foi resgatado por conta da adoção de políticas de reciprocidade, que acarretaram a negação de cidadãos espanhóis por autoridades brasileiras. O governo da presidenta Dilma Rousseff oficialmente tomou a decisão de endurecer a entrada de turistas espanhóis e oferecer a eles um tratamento nos mesmo moldes do que nos é oferecido por aquele país. Se antes não lhes era exigido praticamente nada, agora os supostos turistas deverão comprovar a posse de pelo menos 75 euros por dia de permanência em território brasileiro e reserva de hotel ou carta de convite de um residente da cidade de destino registrada em cartório.

Com a aplicação objetiva destas novas regras, estão sendo rejeitados os indivíduos que não atendam aos requisitos para entrar em nosso país, ao contrário do que costuma acontecer na outra mão desta estrada. Tudo muito bom, tudo muito bem. Louvável a postura do Itamaraty. Ao menos quando somos nós, brasileiros, as vítimas do comportamento arbitrário das autoridades de imigração e da xenofobia em países centrais. Mas e quando as posições do jogo se invertem?

No começo deste ano, o governo agiu para controlar o fluxo de imigrantes do Haiti que têm entrado no Brasil pela Amazônia, ao estabelecer um limite de cem vistos de trabalho a haitianos por mês. Paradoxalmente, o país tem atraído cada vez mais imigrantes europeus e americanos que fogem da crise econômica. Sem muito interesse em refugiados de países da Ásia Meridional e da África, bem como em imigrantes de outros países latino-americanos, o Ministério do Trabalho esboça planos para facilitar a vinda de europeus.

Voltando aos haitianos, dados do governo mostram que, até agora, entraram no país 4 mil cidadãos desta nacionalidade, número que vem sendo apontado como um intenso fluxo migratório. Chega a ser cômico argumentar que os haitianos estão “invadindo” o território brasileiro quando nem sequem se destaca o fato de que a maioria dos 51.353 estrangeiros que entraram no Brasil em 2011 são portugueses.

Não se trata, entretanto, de argumentar que não devemos permitir a entrada de europeus no país. Pelo contrário! Sou partidária da adoção de uma postura cosmopolita e hospitaleira por parte do governo brasileiro, mas que seja para todos os cidadãos do mundo. Não podemos adotar uma lógica de dois pesos e duas medidas, dificultando a entrada de nacionais de certos países e incentivando a vinda de europeus. Fazendo assim, somente estaremos reproduzindo a política de imigração racista da Espanha, tão criticada por nós, brasileiros.

Neste caminho, estaríamos reproduzindo também a recorrente migração seletiva que iniciamos logo após a abolição da escravatura com o objetivo de “embranquecer” nossa população, política evidentemente racista. Este ponto se torna especialmente problemático se observarmos a nada recente existência de grupos de características fascistas que se manifestam contra a presença de migrantes econômicos, sobretudo bolivianos, principalmente na cidade de São Paulo.

Em vez de aceitarmos nossa “natureza” e nosso destino enquanto cidadãos do mundo (como argumentava Kant), preocupamo-nos em controlar os movimentos de pessoas como prerrogativa do poder do Estado, levantando barreiras à entrada dos que desejamos manter longe e colocando nessas barreiras guardas bem treinados, armados e disciplinados para desempenhar bem seu papel. Eis um grande erro, como argumenta Seyla Benhabib, pois o sistema internacional de Estados e povos é caracterizado pela interdependência. Esse movimento deveria nos levar a transcender a perspectiva de territorialidade, não a fechar fronteiras, favorecendo disposições de um regime de soberania vestifaliano.

O que me preocupa, ademais, é a lógica “gente versus mercadoria”. A ideologia do capitalismo globalizado e dos mercados livres, adotada pela maioria dos Estados, fracassou em estabelecer a livre movimentação de pessoas e da força de trabalho, ao contrário do que aconteceu com as mercadorias. Seria coincidência o fato de a política de reciprocidade e endurecimento das regras de imigração somente agora que o Brasil é reconhecido como sexta maior economia mundial e que a Espanha se encontra em um quadro de depressão econômica?

O governo brasileiro não pode ser incoerente. Não pode defender uma postura humanitária nas questões de emigração e outra conservadora quando trata de fluxos imigratórios. Como cientista social e vítima da xenofobia européia, orgulho-me muito das progressistas manifestações brasileiras acerca da questão. Não gostaria e não suportaria ver meu país adotar em relação aos bolivianos, haitianos e paraguaios a mesma postura que Espanha e Itália adotam perante nós, latino-americanos.

Foi observando e analisando este fenômeno que terminei por escrever um livro acerca dos fluxos migratórios, com foco especial nas políticas de imigração da União Européia. O livro, intitulado “Barrados: um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global”, também traz um par de depoimentos meus sobre tão peculiar etnografia. O nome que escolhi para a obra demonstra meu descontentamento em relação às assimétricas relações travadas entre o Norte global e os povos do Sul.

Acredito que políticas destinadas ao controle da imigração ilegal e das fronteiras, não são efetivas. Além disso, alimentam a crescente xenofobia nos Estados, legitimando a culpa atribuída aos estrangeiros por todos os males sociais que emergem nesses territórios. Por fim, jogam uma pá de cal no projeto de cidadania cosmopolita idealizado por Kant há 200 anos e que, em determinados momentos da história, começou a ser colocado em prática. Barajas se tornou, para mim e para muitos outros, sinônimo de prisão. Espero que em breve, para todos e todas, Barajas volte a ser o nome de um aeroporto, porta de entrada para um mundo de experiências e oportunidades.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

As FARCs e os Sequestros

No domingo fui entrevistado na Globo News sobre o uso dos sequestros pelas FARCs, por conta do jornalista francês capturado pela guerrilha. Este texto desenvolve alguns dos pontos que abordei na televisão.

As FARCs usam fartamente o sequestro. Às vezes, por razões puramente econômicas, para extorquir dinheiro de suas vítimas. Outras vezes, por motivos políticos, prendendo deputados, policiais, militares, a ex-candidata à presidência Ingrid Betancourt. Em fevereiro, a guerrilha prometeu não mais sequestrar para cobrar resgates, e pouco depois libertou 10 prisioneiros, inclusive com mediação brasileira. Mas as FARCs mantiveram o silêncio com respeito aos sequestros políticos.

O governo colombiano estima que a guerrilha ainda tenha cerca de 100 prisioneiros, organizações da sociedade civil acreditam que o número possa ser bem maior, 450-600. As FARCs sequestraram jornalistas colombianos em algumas ocasiões, mas esta é a primeira vez que capturam um repórter estrangeiro. Rómeo Langlois é um correspondente veterano que está na Colômbia há mais de uma década e trabalha para empresas de prestígio como Le Figaro e France 24.

Langlois acompanhava o Exército colombiano numa incursão para combater o tráfico de drogas, quando a unidade em que estava foi atacada pelas FARCs, e ele foi ferido com um tiro no braço. Fez o procedimento padrão para jornalistas nesses casos: tirou capacete e colete para ser confundido com combatentes. Aparentemente, ele se entregou à gueriilha com medo de ser morto. Porta-vozes das FARCs confirmaram que estão com o jornalista, que classificaram como “prisioneiro de guerra”.

A guerrilha tem baixa credibilidade na Colômbia por uma longa história de promessas não-cumpridas e atitudes dúbias, de engajamentos em negociações ao mesmo tempo em que persistem em ataques e atentados. Sucessivas manifestações e protestos da população têm pressionado as FARCs a libertarem seus prisioneiros. Um jornalista que foi sequestrado pela guerrilha criou uma ONG, Voces del Secuestro, que organizou um mutirão de rádio – o único meio de comunicação acessível aos reféns na selva – com mensagems e palavras de apoio das famílias e amigos.

Há um alto custo político das FARCs em manter em seu poder Langlois, sobretudo por ele ser um jornalista francês, país que teve papel importante nas pressões para a libertação de Ingrid Betancourt. Difícil acreditar que possam aguentar serem colocadas na berlinda por muito tempo, em especial diante do enfraquecimento de seu poder militar.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Isto não é um Filme

Confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?

Rainer Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta

Na semana passada participei de dois debates sobre cinema e política no Oriente Médio. Na FGV, discuti com Monique Goldfeld o documentário israelense “Valsa com Bashir” (que resenhei neste blog), e no Cine Jóia, Thalita Bastos e eu falamos sobre o iraniano “Isto não é um Filme”. É uma excelente produção que nos diz muito sobre as novas possibilidades que a tecnologia dá aos artistas que precisam enfrentar ditaduras.

Jafar Panahi é um famoso cineasta iraniano que foi condenado pelas autoridades da República Islâmica a ficar 20 anos (!) sem dirigir ou escrever filmes. Ele também corre o risco de ir para a cadeia, onde esteve por um processo anterior. O governo o proibiu de deixar o país, pelo medo que se torne uma influência internacional importante contra o regime autoritário. No passado, Panahi estaria num beco sem saída, mas o avanço tecnológico o permitiu driblar a censura. Com a ajuda de um amigo, Mojtaba Mirtahmasb, uma câmera portátil, e um celular, ele realizou o documentário “Isto não é um Filme”.

As filmagens foram feitas no dia do ano novo iraniano, no elegante apartamento do cineasta, em Teerã e consistem basicamente de duas longas conversas. A primeira é entre os dois amigos. Panahi começa tentando narrar um filme que tem em mente, sobre uma moça do interior que vai à capital estudar Artes. Mas ele se emociona e desiste: “Para que contar um filme quando se pode filmá-lo”. Os dois então falam sobre o processo judicial que o cineasta enfrenta, revêm em DVD trechos de suas obras mais famosas e trocam lembranças e observações sobre a dependência dos diretores com o Estado islâmico.

A segunda conversa é entre Panahi e um rapaz pobre, o cunhado do porteiro de seu edifício, que está substituindo o parente naquele dia. Ele é do interior, vive de vários biscates e cursa o mestrado em Arte – uma trajetória bastante parecida com a da personagem do filme que o diretor queria rodar. Conta que não tem esperança de conseguir emprego fixo, mesmo quando terminar a pós-graduação e os dois lembram da noite em que o cineasta foi preso pela primeira vez.

“Isto não é um Filme” tem pontos em comum com outras belas produções iranianas, como “A Separação”, “A Onda Verde” ou “Persepolis”. É um retrato tocante das aspirações democráticas de boa parte da população do país, uma crônica das desigualdades sociais e das expectativas frustradas e uma obra de arte que emociona e faz pensar. A produção foi contrabandeada para fora do Irã em um pen drive escondido dentro de um bolo e fez sucesso internacional. O Festival de Cannes, que a exibiu pela primeira vez no exterior, abriu uma petição online pela libertação do cineasta.

A propósito: tivemos excelente debate no Cine Jóia e a gentilíssima direção local me ofereceu o espaço para outros eventos semelhantes. Penso em fazer uma seção sobre a brilhante nova geração de cineastas da Turquia, ainda pouco conhecida no Brasil. Sugestões de vocês são bem-vindas.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Futuro do Poder

O cientista político Joseph Nye Jr. sintetiza neste ótimo livro três décadas de reflexão sobre as diversas manifestações do poder nas relações internacionais, incorporando sua experiência como professor em Harvard e em funções de dirigente no Departamento de Estado, no Pentágono e no Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos. Nye chama a atenção para os aspectos mais brandos do poder, mas preconiza a combinação de todos os seus elementos para a política externa americana, em um mundo que ele vê como o de uma transição suave e limitada de influência para potências emergentes, numa era de “poder com outras nações, e não simplesmente sobre outras nações”.

(...)

Embora “poder” seja uma das palavras mais utilizadas pelos teóricos de Relações Internacionais, há surpreendemente poucas discussões sobre os diversos significados do termo. Nye utiliza três deles: 1) Mudar o comportamento de alguém (ou de um país) contra suas preferências iniciais; 2) Controlar a agenda de possibilidades a serem escolhidas por um determinado ator social; 3) Criar, moldar ou influenciar crenças, percepções e interesses.

A partir desse capítulo teórico – muito claro e bem explicado – Nye examina como três tipos de poder – militar, econômico e brando – se relacionam com essas definições. É uma discussão bastante marcada pelas guerras de contrainsurgência do pós-11 de Setembro, nas quais classificações convencionais de força mostraram-se inadequadas. Como afirma um guerrilheiro talibã citado no livro: “Vocês têm os relógios, mas nós temos o tempo”.

O resto, na resenha que escrevi para o Amálgama.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O Adversário de Obama

As primárias do Partido Republicano para escolher seu candidato à Presidência dos Estados Unidos arrastaram-se por cerca de um ano e foram lideradas por 11 pessoas diferentes. Com a desistência do ex-senador Rick Santorum no dia 10 de abril, a vitória sofrida e tardia deverá ser do empresário e ex-governador de Massachussets, Mitt Romney, cujas posições políticas moderadas foram ridicularizadas pelas alas conservadoras do partido, ouriçadas pelo fenômeno do Tea Party. À frente de um partido fragmentado, Romney tem a difícil tarefa de vencer Barack Obama na disputa pela Casa Branca. As pesquisas dão de 7 a 10 pontos percentuais de vantagem para o presidente, apesar da persistência da crise econômica.

Romney representa a corrente centrista dos republicanos, tradicional na Costa Leste dos Estados Unidos. Seu pai seguia a mesma linha política e governou o estado do Michigan, nos Grandes Lagos. A família pertence há várias gerações à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, uma denominação protestante que surgiu na década de 1820. Conhecidos como mormóns, os fiéis seguem os ensinamentos de seu profeta Joseph Smith Jr, abstêm-se do álcool e realizam intenso trabalho missionário – o próprio Romney exerceu essa função na França.

(...)

O Tea Party saiu-se bem nas eleições legislativas de 2010, com muitas declarações de apoio de deputados e senadores republicanos. Porém, o movimento sofreu sério desgaste nos conflitos envolvendo a elevação do teto da dívida pública dos Estados Unidos. Sua intransigência em aceitar acordos foi reprovada pela maioria dos eleitores, acostumados a compromissos com relação a esse tema.

Além disso, os pré-candidatos presidenciais simpáticos ao Tea Party saíram-se mal nas primárias presidenciais, demonstrando dificuldade de converter os slogans radicais do grupo em propostas de políticas públicas atraentes para os eleitores moderados que são fundamentais na conquista da Casa Branca. O dilema republicano é difícil: conciliar o fervor ideológico das bases com o centrismo necessário para ganhar uma eleição majoritária.

O resto, no artigo que escrevi para a Revista Pittacos.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A Vitória de Le Pen

O primeiro turno das eleições presidenciais da França foi realizado ontem com duas surpresas: um comparecimento eleitoral bastante acima do que era esperado (em torno de 80%) e o excelente desempenho de Marine Le Pen (foto), que com 20% teve o melhor resultado da extrema-direita na história francesa – dobrou o percentual de seu pai na última disputa. Como era previsto pelas pesquisas, o candidato socialista, François Hollande, venceu o primeiro turno com 28,3%, um pouco à frente do presidente Nicholas Sarkozy, que teve 25,8%.

Desde o princípio da crise na União Européia, os eleitores – ou as instituições internacionais – têm afastado os partidos que estavam no poder, fossem eles de centro-esquerda (Espanha, Portugal, Grécia, Reino Unido) ou de direita (Itália). Contudo, a França pode ser uma exceção. A votação de Le Pen a coloca como uma aliada decisiva para Sarkozy e ela já se anunciou como a única “oposição real” à esquerda. Como seu desempenho foi acima dos 17% que lhes creditavam as pesquisas – o mesmo havia ocorrido com seu pai em 2002 – é preciso olhar com ceticismo as sondagens que davam vitória folgada a Hollande no segundo turno, e aguardar novas investigações.

Desde o início da década de 1980, no governo de François Mitterand, o Partido Socialista da França abandonou seu programa histórico, centrado numa forte ação do Estado na economia e nas políticas redistributivas, e adotou uma ideologia mais centrista, na qual as políticas públicas estão mais presentes como maneira de compensar os desequilíbrios mais intensos do sistema. Mais ou menos na linha dos trabalhistas britânicos ou dos sociais democratas alemães, embora com maior peso ao Estado, como é tradição francesa desde os tempos de Luís XIV. Hollande é um tecnocrata, a quintessência desse programa moderado e um homem tão esforçado em aglutinar consensos que com frequência é considerado tedioso por seus próprios eleitores.

A polarização sócio-econômica na França aumentou com a crise e o país já vivenciou nos últimos anos explosões de ódio e violência na periferia das grandes cidades, onde há tensões raciais com os imigrantes e o índice de desemprego entre os jovens chega a 40%. Acreditava-se que esse seria parte do sucesso do candidato da extrema-esquerda, Jean-Luc Mélenchon, mas ele teve somente 11% dos votos, bem menos do que os 15% que lhe davam as pesquisas. Quem conseguiu canalizar a raiva e a angústia dos franceses foi Le Pen, inclusive entre os jovens, grupo que seu pai nunca conseguiu atrair. Sem dúvida, os recentes atentatos em Toulouse, cometidos por um terrorista muçulmano, contribuíram para isso.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Os Dominós Democráticos na África

Há poucas semanas escrevi neste blog sobre o golpe no Mali e uma série de colapsos democráticos na África Ocidental, envolvendo também Níger, a guerra civil na Costa do Marfim e a crise política no Senegal. Infelizmente a situação piorou, com a deposição do governo da Guiné-Bissau em mais uma intervenção militar na política africana. O país está no segundo turno da eleição presidencial, após a morte (por causas naturais) do ex-mandatário, em janeiro. O presidente interino e o principal candidato ao cargo estão desparecidos.

Mali e Senegal são – ou eram – bastiões de estabilidade na região e as crises nesses países surgiram como ilustração de uma tendência preocupante: se até eles enfrentam problemas sérios, o que dirá das outras nações. A Guiné-Bissau é um caso extremo de instabilidade. Desde a independência de Portugal, em 1975, nenhum de seus presidentes conseguiu completar o mandato. Nos últimos três anos, houve seis assassinatos de dirigentes políticos, civis e militares. É um Estado muito frágil e que se transformou em um problema de segurança internacional, pois vem sendo usado com frequência por traficantes que levam drogas da América Latina para a Europa.

A Economist publicou um excelente quadro da democracia na África – do qual foi extraído o mapa abaixo - no qual afirma que a situação das liberdades civis e políticas é um “copo meio cheio”, com avanços consideráveis no Cone Sul e em países como Tunísia, Gana e Benin. É uma interpretação válida, mas a meu ver a conjuntura é mais sombria e exige atenção aprofundada pelos desdobramentos internacionais das crises domésticas.

No Mali, o caos político resultante do golpe favoreceu os rebeldes beduínos no norte do país, que proclamaram um Estado independente. A organização sub-regional da África Ocidental, Ecowas, ameaçou com uma intervenção militar contra os golpistas, pressionando por um acordo político, mas o desfecho da crise ainda não está claro.

Os golpistas na Guiné-Bissau também enfrentam resistência da Ecowas, e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa manifestou-se duramente contra o golpe. O Brasil, aliás, acordou com os Estados Unidos patrulhas navais conjuntas próximas ao litoral do país, para combater a pirataria.

No Egito, os passos iniciais da disputa presidencial estão confusos e turbulentos, como era de se esperar. O ex-chefe da polícia política da ditadura Mubarak, general Osmar Suleiman, lidera as pesquisas e a junta militar que governa o país tem vetado as candidaturas dos principais concorrentes – inclusive a do próprio Suleiman, vista mais como uma ambição pessoal do que como a representação dos interesses das Forças Armadas.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A Batalha pelo Petróleo na Argentina

A presidente Cristina Kirchner enviou ao Congresso da Argentina um projeto de lei para tornar a empresa petrolífera YPF novamente propriedade do Estado, como ela havia sido de sua fundação em 1922 até a privatização em 1993. A decisão ilustra os constantes embates argentinos entre modelos de desenvolvimento nacionalistas e liberais e a má relação do país com os investidores externos desde a crise de 1998-2002.

A comparação com o Brasil é esclarecedora. A partir da Revolução de 1930 os diversos governos brasileiros adotaram uma estratégia de desenvolvimento na qual o Estado teve papel central. Nos anos 1990 houve inflexões liberais nesse moodelo, mas suas principais instituições permaneceram. O petróleo foi nacionalizado na década de 1950 e até hoje está sobre controle estatal, embora não mais como monopólio. A Petrobras é a maior empresa da América Latina e uma peça-chave para políticas públicas de desenvolvimento, inovação tecnológica e até incentivo à cultura.

O nacional-desenvolvimentismo na Argentina foi sempre mais frágil do que no Brasil e nunca conseguiu se estabilizar em instituições que lhe transformassem em política de Estado. Governos liberais com frequência reverteram decisões de presidentes nacionalistas e o setor petrolífero foi particularmente sensível a esse tipo de confronto. A YPF teve importante papel nos esforços argentinos de crescimento, mas nem de longe alcançou a influência e o prestígio da Petrobras.

A guinada liberal da Argentina na década de 1990 foi bem mais profunda do que a do Brasil. A YPF foi privatizada pelo presidente peronista Carlos Menem (a então deputada Cristina Kirchner, do mesmo partido, votou a favor) em sua campanha de tornar a Argentina a grande vitrine das reformas do Consenso de Washington. O Estado manteve 20% das ações da empresa.

Desde sua chegada à presidência em 2003, os Kirchner têm revertido a liberalização econômica dos anos 90 e reestatizado diversas empresas, do abastecimento de água (Suez) às Aerolíneas Argentinas. Havia tensões crescentes da Casa Rosada com a YPF, envolvendo esforços para aumentar o peso dos empresários argentinos na companhia. Houve também, claro, a renegociação da dívida externa em termos muito desfavoráveis aos credores. Isso fez com que os investidores estrangeiros ficassem relutantes com o país, temerosos das mudanças abruptas no marco regulatório. A Argentina tem recebido menos investimentos não só do que o Brasil, mas também do que a Colômbia e o Chile.

A Espanha é um dos maiores investidores estrangeiros na Argentina e desde 1999 a YPF era controlada por uma empresa espanhola, a Repsol. Pelo projeto de renacionalização, o governo argentino passará a deter 51% das ações da YPF o que significará a necessidade de acordos e negociações com os sócios privados. A Repsol anunciou que irá recorrer a tribunais internacionais para acordar uma indenização bilionária (o governo argentino ainda não disse quanto irá pagar pela nacionalização) e as autoridades espanholas criticaram a decisão argentina, classificando-a como “tiro no pé”.

Para o Brasil, o ressurgimento de uma estatal petrolífera assertiva na Argentina também trará dificuldades para a Petrobras, bastante ativa no país vizinho.

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Os últimos dias foram bastante intensos para mim em termos de entrevistas. Os links:

- Nacionalização da YPF (Globo News)

- Ofensiva de Primavera dos Talibãs (Globo News)

- Cúpula de Cartagena mostra divisão entre Estados Unidos e América Latina (Agência France Presse)