sexta-feira, 29 de abril de 2011

Dilma: a política externa dos 120 primeiros dias



Na terça-feira participei de mesa redonda sobre os 120 dias do governo Dilma Rousseff no Laboratório de Estudos Políticos da Fundação Getúlio Vargas. Falei sobre as mudanças na política externa, ressaltando três pontos: os esforços para retomar boas relações com os Estados Unidos, a nova ênfase no tema dos direitos humanos e a construção de um estilo próprio de diplomacia presidencial. Já comentei bastante a respeito do primeiro aspecto aqui no blog, portanto me concentrarei nos outros dois.

Dilma é a primeira chefe de Estado do Brasil a ter sido torturada e suas declarações sobre valorizar os direitos humanos na agenda diplomática criaram a expectativa de transformações significativas nesse campo, o mais frágil da política externa brasileira, sobretudo quando se trata de lidar com violações de liberdades civis e políticas. Opinei que podemos esperar ações de destaque relativas à memória das lutas contra as ditaduras no Cone Sul e discurso mais crítico com respeito a países vulneráveis como o Irã, mas que não acredito numa mudança abrangente.

Afinal, na visita de Obama ao Brasil e na viagem de Dilma à China, os direitos humanos estiveram ausentes, apesar da persistência das atrocidades cometidas pelo aparato de segurança dos Estados Unidos em suas guerras e das novas revelações do Wikileaks sobre a amplitute das torturas na base de Guantánamo. Com o dado novo de que na avaliação do governo americano, cerca de 40% dos quase 800 presos na instituição não oferecem perigo aos EUA. A situação também é grave na China, onde desde as Olimpíadas e dos protestos em Xinjiang e no Tibete, ocorreu uma onda repressiva que é a pior desde os massacres da Praça da Paz Celestial. A prisão do Nobel da Paz Liu Xiaobobo e do artista plástico Ai Weiwei são somente a ponta do iceberg da violência política chinesa.

Apesar do silêncio oficial brasileiro nos dois encontros de cúpula, na quarta-feira o chanceler Antônio Patriota falou no Senado sobre a necessidade de não tratar os direitos humanos como um responsabilidade exclusiva dos países em desenvolvimento, ressaltando que as nações ricas são também violadoras expressivas. Concordo com ele, e há também o racismo e a xenofobia cada vez mais presentes na Europa. Mas o discurso do ministro foi mais no sentido de não pressionar em demasia os regimes autoritários nos países do sul global, posição tradicional brasileira.

Outro ponto da minha palestra foi a rejeição do governo do Brasil à solicitação da Organização dos Estados Americanos para interromper as obras da usina de Belo Monte, no Pará, por conta das violações de direitos humanos da população indígena. Embora eu discorde de alguns pontos das orientações da OEA, todo o projeto sofre de um sério déficit democrático, marcado pelos interesses econômicos habituais do desenvolvimentismo brasileiro, com suas alianças entre o Estado e os grandes grupos empresariais e a pouca atenção dada aos setores mais pobres da população e aos temas do meio ambiente. Só que a sociedade – e o mundo – mudaram e hoje há muito mais sensibilidade social para esse tipo de discussão. Acredito que veremos bons debates, mas dependerá da capacidade dos movimentos sócio-ambientais em articular coalizões com outros segmentos da opinião pública.

Por fim, abordei a diplomacia presidencial de Dilma, frisando que ela tem brilho próprio, pela conjunção de sua história pessoal como vítima de tortura, o perfil gerencial-tecnocrata e por representar o Brasil no bom momento econômico vivido pelo país. Por sua trajetória de vida, pode falar a diversos públicos – imaginem, por exemplo, o impacto de discursos em que fale de sua experiência na ditadura para uma platéia como a dos países árabes onde ocorreram revoltas democráticas, ou em que examine as políticas públicas que coordenou como chefe da Casa Civil perante nações latino-americanas ou africanas, ávidas por medidas semelhantes. Não é por acaso que a revista Time a incluiu na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo, à frente até de Hilary Clinton.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Adiós Muchachos



Sergio Ramírez foi um dos líderes da Revolução Sandinista na Nicarágua, e desempenhou o cargo de vice-presidente entre 1984 e 1990. Nestas excepcionais memórias, cuja publicação em espanhol é de 1999, faz balanço agridoce do idealismo e dos tempos de violência que permearam sua geração. E conclui que valeu a pena, com ressalvas: “O grande paradoxo foi que, no final das contas, o sandinismo deixou como herança o que não se propôs a deixar: a democracia. E não pôde legar o que se propôs: o fim do atraso, da pobreza, da marginalização.”

O livro de Ramírez não está estruturado de maneira cronológica, segue as idas e vindas de suas lembranças. Colocando-as na ordem do calendário, a narrativa estende-se pelas décadas de 1960-1990. O autor era escritor e jornalista na Nicarágua governada pela ditadura da família Somoza, com passagens no exílio na Costa Rica e na Alemanha Ocidental. Ingressou na Frente Sandinista de Libertação Nacional e foi figura-chave na mobilização política que culminou com a derrubada de Somoza, em 1979.





O movimento contou com apoio externo da Costa Rica, Panamá, México, Venezuela e, sobretudo, Cuba. Segundo Ramírez, Fidel Castro foi essencial para mediar as discórdias entre as várias tendências do sandinismo, mantendo-as unidas no combate à ditadura. Alertou os líderes para a necessidade de incorporar outros setores da oposição a Somoza, como empresários e católicos: “Não é que Fidel não quisesse o socialismo na Nicarágua: pensava num socialismo diferente do de Cuba. E talvez visse ali um novo campo de experimentação para que não fossem repetidos erros que, em Cuba, ele não poderia jamais reconhecer nem corrigir.”


Para ler o resto da resenha, visite o site Amálgama.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Os Protestos na Síria



Não escrevo sobre as revoltas árabes há algumas semanas. O cenário é marcado pela decisão do presidente do Iêmen em renunciar, a persistência do impasse político-militar na Líbia e o aumento dos protestos na Síria, que começam a despontar como uma ameaça real ao regime do partido Ba´ath.

O partido foi fundado no pós Segunda Guerra Mundial como uma mistura de nacionalismo pan-árabe com ideais sociais vagamente socialistas. A principal base de apoio eram as minorias religiosas, o teórico mais importante do Baath era cristão e com o tempo os alauítas – uma seita do xiismo – ascenderam à liderança partidária, reproduzindo a posição proeminente que tinham na polícia e nas Forças Armadas, desde a época do protetorado francês sobre o país.

O Ba´ath governa a Síria desde a década de 1950 e a maior parte desse período foi sob a família Assad. Começando pelo pai, Hafez, um oficial da Força Aérea que dominou o país com mão-de-ferro, esmagando uma rebelião da Irmandade Muçulmana em Hama, em 1982, ao custo de 20 mil mortos e da destruição de boa parte da cidade. Ele envolveu a Síria em duas guerras desastrosas com Israel (1967 e 1973), num longo envolvimento na guerra civil do Líbano e numa aliança com o Irã contra o inimigo comum, o Iraque.

O atual presidente, Bashar al-Assad, é filho de Hafez, mas não era o herdeiro políico do pai. O posto cabia a seu irmão, que morreu num acidente. O imprevisto forçou Bashar a abandonar a carreira de médico oftamologista na Inglaterra e assumir o negócio da família: governar a Síria. As leis tiveram que ser alteradas, pois à época de sua nomeação para presidente (1999) ele tinha apenas 35 anos e era jovem demais para o cargo.

Bashar talvez fosse o mais popular entre a atual leva de autocratas nos países árabes, em grande medida porque era visto como alguém de fora do sistema corrupto do Baath, que poderia reformar o país. Em termos econômicos, promoveu a liberalização e abertura, mas nada tão diferente do que foi feito no Egito de Mubarak e até na Líbia dos últimos 10 anos. Não houve reformas políticas significativas – a minoria alauíta que governa o país sabe o quanto é vulnerável diante de qualquer movimento de oposição que possa conquistar o apoio dos sunitas.

O atual ciclo de protestos na Síria começou exatamente das pequenas cidades sunitas, com slogans e exemplos das demais revoltas árabes, e até o momento não conseguiu se consolidar nas maiores metrópoles do país, Damasco e Alepo. O jovem Assad responde com uma mistura de concessões (como abolir a Lei de Emergência, que lhe dá poderes ditatoriais) e repressão, com centenas de mortos. Contudo, não estamos mais no tempo de seu pai, onde era possível arrasar uma cidade como Hama para se manter no poder.

A sobrevivência do regime Ba´ath é incerta, bem mais do que, digamos, a monarquia da minoria sunita no Bahrein. As relações externas de Assad foram marcadas por tentativas um tanto frustradas de diálogos com inimigos tradicionais como Estados Unidos, Israel e Turquia. Nenhum dos governantes desses países o considera como um pilar indispensável da estabilidade e muitos acreditam que um regime baseado na maioria religiosa síria teria mais força para fazer concessões, sem ter o peso das derrotas militares do Ba´ath, como a perda das Colinas de Golã.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Um Copo de Cólera



Nesta semana o mais importante filantropo americano no Paquistão e no Afeganistão, Greg Mortenson (foto), foi acusado pelo jornalista Jon Krakauer e pelo programa “60 Minutos” de ser uma fraude, tendo mentido sobre suas atividades de caridade e desviado doações. A controvérisa é feroz, porque os dois lados envolvidos têm muito prestígio. Mortenson vendeu cerca de 5 milhões de exemplares de seus livros, foi duas vezes indicado ao Nobel da Paz e recebeu até parte do dinheiro que o presidente Barack Obama ganhou do prêmio.

A história que rendeu a Mortenson tanta admiração é aquele narra em seu livro “A Terceira Xícara de Chá”. Ele era enfermeiro e alpinista amador e um dia se perdeu ao tentar escalar o K2, uma das montanhas mais altas do mundo. Terminou numa aldeia paquistanesa no sopé do Himalaia, habitada pelos baluchis, um povo de origem tibetana. Eles cuidaram com hospitalidade e afeto do estrangeiro desorientado e o encontro mudou sua vida, pois chocado com a extrema pobreza local, ele passou a se dedicar a construir escolas na região e em áreas vizinhas, como o Afeganistão. Sua mensagem, simples, é que a solidariedade e a cooperação internacional derrubam as barreiras culturais e o ódio e são o melhor antídoto ao fundamentalismo e ao terrorismo.

O livro é bem escrito e cativante e tocou em várias cordas sensíveis do público americano. Mortenson é filho de missionários e passou parte da infância na África. Sua narrativa é cheia de respeito pelos “bons selvagens” baluchis, não-corrompidos pela civilização, que lhe ensinam a importância de ter tempo para “a terceira xícara de chá”, ou seja, construir relações sólidas e carinhosas com amigos e família. Mortenson é ajudado ao ajudar e as lições que aprende com os baluchis o levam a reestruturar sua vida, trocando uma carreira instável pela fundação de uma associação filantrópica dedicada às escolas, e superando amores infelizes por um casamento fruto de um amor à primeira vista.



Todos gostam de um final feliz e a história de Mortenson parecia uma exceção em meio ao caldeirão de ódio e incompreensão que domina as relações entre EUA, Afeganistão e Paquistão. As denúncias de Krakauer e do 60 minutos são graves. Eles afirmam que o alpinista nunca teria ficado perdido na aldeia baluchi, que não foi preso pelos Talibãs, que construiu muito menos escolas do que afirma e que teria desviado para si mesmo cerca de 60% do que arrecadou com doações, para financiar gastos luxosos como um avião privado. Mortenson publicou defesa tímida e hesitante, que desapontou seus muitos admiradores.

Para além do drama pessoal do alpinista e filantropo, é possível fazer uma interpretação política da polêmica. Primeiro, ela revela as frágeis bases do pensamento a respeito da cooperação internacional dos Estados Unidos na “guerra contra o terror”. Como afirma Rebecca Winthrop, da Brookings, “boas intenções não são o suficiente” e o projeto preconizado por Mortenson têm falhas sérias, em especial pela dificuldade de acompanhar o trabalho e treinamento dos professores, e o desempenho dos alunos.

Em segundo, destaca a avidez da cultura de celebridades globais dedicadas às boas causas, e a decepção resultante quando os ídolos fracassam. A armadilha do personalismo: indíviduos são fragéis, contraditórios, suscetíveis a todo tipo de erro e de pressão. Mortenson motivou muitas pessoas a fazerem o bem, mesmo que suas próprias razões sejam, aparentemente, bem mais sombrias. Talvez quem esteja certo seja o velho mestre Machado de Assis: “o vício é muitas vezes o estrume da virtude, o que não impede a virtude de ser uma flor cândida e bela.”

quarta-feira, 20 de abril de 2011

A Campanha Permanente



Nosso país
sempre teve interferência
nas grandes conferências
da paz universal
É o gigante
Da América Latina
Uruguai e Paraguai
Bolívia, Chile e Argentina

“Conferência de São Francisco”, samba enredo da Prazer da Serrinha, carnaval carioca de 1946

Campanha Permanente: o Brasil e a reforma do Conselho de Segurança da ONU”, do diplomata João Augusto Costa Vargas, organiza e sistematiza em livro os argumentos do Itamaraty em defesa do papel de maior destaque que o governo brasileiro almeja ter na instituição. Como o tema ganhou enorme projeção na política externa, é uma leitura importante para entender decisões recentes da chancelaria.

O pleito brasileiro precede a criação da ONU. Na antiga Liga das Nações (1919-1945), o Brasil sonhava com um lugar no conselho permanente, que refletia as ambições multilaterais crescentes do país após a participação na Segunda Conferência da Haia e nas negociações do Tratado de Versalhes. Era um desejo fora de sintonia com o poder nacional à época, e as constantes rebeliões militares da década de 1920 tornaram o governo do presidente Arthur Bernades ávido por sucessos externos. Ao ver barrada sua pretensão na Liga, o Brasil retirou-se da instituição.

A participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, a aliança com os Estados Unidos, e a crise da Argentina naquele período fizeram o governo brasileiro acreditar que teriam vaga permanente no Conselho de Segurança quando a ONU foi criada. Isso não ocorreu, entre outras razões porque Stálin acreditava que o Brasil sempre votaria com os EUA.

Nas primeiras duas décadas das Nações Unidas o governo brasileiro foi bastante ativo no Conselho. Mas entre 1968-1988 o Brasil optou por ficar de fora da instituição, desgostoso com sua paralisia diante das principais crises da Guerra Fria e temendo o desgaste que poderia vir por ter que tomar posições em temas polêmicos, como os que envolviam o império português na África. O jogo mudou no pós-Guerra Fria, quando o Conselho de Segurança assumiu papel mais ativo em missões de paz (mais numerosas e de maior escopo) e em novos temas como combate ao terrorismo, enfrentamento da AIDS, adpatação às mudanças climáticas e até como lidar com problemas sociais de mulheres e de crianças.



Vargas argumenta que a principal motivação do Brasil na “campanha permanente” é obter influência mais profunda sobre o gerenciamento da nova ordem internacional, e que a busca de prestígio é uma razão secundária. Ele classifica os pontos mais importantes do discurso brasileiro em quatro itens: 1) reformar o Conselho é vital para legitimá-lo diante da comunidade internacional, tornando-o representativo das novas potências emergentes; 2) Para o público doméstico brasileiro, a estratégia é convencer a opinião pública de que estar no Conselho favorece os interesses nacionais, por meio da definição da agenda de segurança global 3)o Brasil precisa integrar a instituição por conta de suas credenciais de poder, de confiabilidade e tradição diplomática de resolução pacífica de conflitos; 4) o Brasil no Conselho fortaleceria a América Latina na ONU.

O Conselho tem cinco membros permanentes, com direito a veto: EUA, Reino Unido, França, China e Rússia. Em 1965, o número de integrantes não-permanentes, que exercem mandatos de dois anos, foi ampliado de seis para dez, por pressão do bloco afro-asiático, que crescia em meio à descolonização. Em 1971 Taiwan foi substituída pelo governo comunista como legítimo representante da China. Em 1991, a Rússia herdou o posto que pertenceu à extinta URSS. Essas foram as reformas que ocorreram no Conselho desde sua criação em 1945.

Nos últimos 20 anos houve uma série de iniciativas para mudar a instituição (proposta Razali, Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças, G-4, Consenso de Ezulwini). O Brasil alinhou-se com Alemanha, Índia e Japão no G-4, defendendo em 2005 a criação de dez novas vagas, sendo quatro em caráter permanente, sem direito a veto nos primeiros 15 anos – depois haveria uma conferência para discutir o assunto. Os principais obstáculos à reforma estão nas rivalidades regionais (por exemplo, a recusa da China em admitir Japão e Índia), mas também há desentendimentos entre os emergentes - a África quer a ampliação com direito a veto para os novos membros.

Eventual mudança no Conselho irá demorar a ocorrer e os debates sobre a política externa brasileira para a ONU ainda são muito frágeis. Além de discutir as chances do Brasil, é preciso examinar as propostas e interesses do país no órgão, e a visão de como a atuação no Conselho de Segurança se relaciona com os esforços brasileiros em outras instâncias das Nações Unidas, como a Assembléia Geral, os Conselhos de Direitos Humanos (Genebra) e Econômico e Social (Nova York) e programas e agências como a FAO, cuja diretoria-geral é disputada por um candidato nacional. O livro de Vargas é ótimo início para a conversa.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O Congresso Cubano: socialismo em tempos de escassez


Menos Estado, mais mercado e mudança gradual na liderança foram as principais decisões anunciadas no VI Congresso do Partido Comunista de Cuba, que começou no sábado e termina amanhã. Raúl Castro afirmou que cortará gastos com políticas sociais, autorizará a abertura de mais pequenas empresas privadas e limitará a 10 anos a permanência nos cargos mais elevados do governo, com o objetivo de tornar mais jovem a cúpula cubana. Com 79 anos, ele deve permanecer como chefe do Estado pelo menos até 2013, e pelas novas regras poderá ocupar o posto até 2018, caso ainda tenha condições de saúde.

As leis cubanas não estipulam a periodicidade dos congressos do partido, mas desde a década de 1970 eles costumam acontecer no máximo a cada seis anos. Só que desta vez o intervalo foi de 14 anos, devido à incerteza causada pelo afastamento de Fidel Castro e pelos conflitos políticos internos que culminaram na exoneração da jovem geração de tecnocratas que ele havia promovido. O governo cubano sob Raúl está mais conservador, privilegiando veteranos do Exército e do Partido. A situação econômica piorou, pois a crise nos Estados Unidos e na Europa fez diminuir as duas principais fontes de divisas da ilha – remessas de emigrantes e turismo.

São tempos difíceis para Cuba e o governo teve a prudência de aproveitar uma ocasião de celebração histórica para realizar o VI Congresso, pois ele aconteceu logo após as comemorações dos 50 anos da vitória contra a tentativa de invasão organizada pelos Estados Unidos na Baía dos Porcos. A data é também o aniversário de cinco décadas da proclamação do caráter socialista da Revolução, anunciado por Fidel poucos dias antes do ataque americano. O simbolismo é lebrar as glórias do passado, para tornar menos amargos os remédios propostos no presente.

O discurso de Raúl no VI Congresso foi bastante crítico ao Partido, sobretudo no que toca à condução da economia: “Dois mais dois são quatro. Nunca cinco, muito menos seis ou sete, como às vezes fingimos.” O chefe de Estado reclamou a dificuldade da burocracia em implementar reformas e modernizar o aparato produtivo do país. No entanto, suas decisões reforçam esses impasses, pois anunciou o adiamento por prazo indefinido da demissão de 500 mil funcionários públicos, que havia comunicado meses atrás. Os planos são de transformá-los em pequenos empreendedores e fazendeiros, aliviando o peso da folha de pagamento estatal.

Raúl não fez promessas de liberalização política, mas elogiou a mediação da Igreja Católica e do governo da Espanha nas negociações que culminaram na libertação de 52 presos políticos. A Igreja foi autorizada a abrir seu primeiro seminário desde a Revolução. Tem havido um pouco mais de espaço para o debate crítico ao governo, mas dissidentes continuam a ser perseguidos e agredidos.

A cúpula do Partido tem entre 70 e 80 anos, de modo que esta é provavelmente sua última década no poder. As decisões do VI Congresso apontam para uma reforma bastante restrita, na qual a preocupação dos líderes é manter o controle, até o fim, da transição para uma geração mais jovem de dirigentes. Querem mudanças graduais, mas num contexto econômico difícil, de escassez e corte de benefícios sociais.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Políticas do Véu: Ataturk, Khomeini, Sarkozy



O corpo das mulheres com frequência é campo de batalha para disputas religiosas. No dia 11 a Assembléia Nacional da França aprovou lei banindo dos espaços públicos (inclusive ruas, praças e parques) véus que cobrem o rosto, como o niqab e a burca. A decisão se soma à legislação mais antiga, como a medida de 2004 que proíbe nas escolas os véus menores, que ocultam os cabelos. O presidente francês Nicholas Sarkozy se junta a Kemal Ataturk, fundador da República da Turquia, e ao aiatolá Khomeini, líder da Revolução Islâmica do Irã, como parte do rol de governantes que trataram a moda feminina como questão de Estado.

Ataturk expulsou os exércitos estrangeiros que haviam ocupado a Turquia nos anos caóticos do fim da Primeira Guerra Mundial. Depôs o sultão, aboliu o califado, mudou o alfabeto, mandou os homens trocarem o fez tradicional pelos chapéus ocidentais e proibiu as mulheres de usarem o véu em prédios governamentais. Mas desde 2002 o país é governado por um partido islâmico, e a esposa do primeiro-ministro ostente orgulhosa o véu que simboliza seu compromisso com a religião.

Khomeini viveu sob os regimes modernizantes xá no Irã, do partido Baath no Iraque por um certo tempo, na própria França. A Revolução de 1979 foi uma coalizão entre ativistas islâmicos, militantes da esquerda e liberais, mas logo ficou claro para onde pendia o pêndulo do poder. A imposição à força do véu foi um trauma para toda uma geração de mulheres que se julgava livre e até hoje seu uso é obrigatório, embora com menos exigências do que no período revolucionário mais violento.

A França tem cerca de 5 milhões de habitantes muçulmanos e o governo estima que entre 400 e 2 mil mulheres usem niqabs e burcas no país. O número não encheria nem um modesto estádio de futebol, mas nova lei se explica no contexto de um conflito cultural e político mais amplo. O partido de Sarkozy, a conservadora UMP, perde terreno para a Frente Nacional, de extrema-direita, que encontrou uma líder dinâmica em Marine Le Pen (filha de Jean-Marie, que foi o segundo colocado nas eleições presidenciais de 2002). As pesquisas lhe dão vitória sobre Sarkozy no primeiro turno das próximas disputas.

Como em toda a Europa, a conjugação de medos da crise econômica e do extremismo religioso é um chamariz para políticos que exploram a xenofobia. A Suíça, por exemplo, proibiu recentemente a construção de minaretes – as torres das quais se faz o chamado para orações nas mesquitas. Sarkozy expulsou os ciganos da França em 2010 e pouco depois seu partido realizou uma controversa conferência sobre “o papel do Islã na sociedade”. O presidente criticou o multiculturalismo como fracasso, afirmando que imigrantes devem se integrar à sociedade francesa. Ele próprio é filho de pai húngaro e casado com uma italiana.

Há duas objeções básicas à lei do véu. A primeira é aquela que, fundada nos princípios liberais, nega ao Estado o direito de intervir em decisões da vida íntima das pessoas, como a escolha da roupa. O que vestimos é uma forma de nos expressarmos, uma afirmação da identidade, tanto como aquilo que escrevemos ou que falamos. A segunda questiona se é possível implementá-la. Os sindicatos dos policiais dizem que não. Seus representantes afirmam que prender muitas mulheres em bairros muçulmanos provocaria enorme perturbação da ordem pública, e há problemas práticos de identificação – a legislação não autoriza a polícia a tirar os véus das mulheres, apenas a conduzi-las até uma delegacia e multá-las em 150 euros.

A opinião pública francesa aprova a nova lei por maioria esmagadora, entre 70% e 80% segundo as pesquisas. O governo a justifica com base no caráter laico da República. Esta, em suas muitas encarnações, foi marcada por conflitos com muçulmanos e budistas nas colônias afro-asiáticas, perseguições antissemitas e fortes movimentos políticos católicos, de direita e de esquerda. É um bocado de religião para um discurso de laicidade.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Os Kirchner e as Muitas Vidas do Peronismo



Ninguém organiza um funeral político tão bem quanto os peronistas. Em outubro de 2010, a morte de Néstor Kirchner, ex-presidente da Argentina, deputado, líder do Partido Justicialista e secretário-geral da União das Nações Sul-Americanas, foi comoção pública sem paralelo com o falecimento de ex-governantes. Eleito com pouco mais de um quinto dos votos, em 2003, foi o mandatário com o menor percentual eleitoral da história argentina. No entanto, continuava a ser uma figura muito importante na presidência de sua esposa, Cristina – um “co-governo” como às vezes era chamado o arranjo entre os dois membros do casal. Sua proximidade com o poder deu a sua morte um caráter distinto, quase como a perda de um chefe de Estado.

O drama da presidente-viúva aumentou sua aprovação em 20%, alçando-a para pouco mais da metade da aprovação, mas a solidariedade da população não está garantida até as eleições de 2011. Os anos Kirchner têm sido de turbulência e conflitos na Argentina e o país ainda busca um modelo econômico pós-crise. A história do casal confunde-se com a das muitas vidas do peronismo e com as mudanças do próprio país.


Esse é o início do artigo que publiquei nesta edição da revista Insight-Inteligência. Click no link para abrir o texto integral.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Humala e a Carta ao Povo Peruano



No domingo ocorreu o primeiro turno das eleições presidenciais no Peru e o vencedor com 28,7% foi o tenente-coronel da reserva Ollanta Humala (foto), que em dez anos de ativismo político transformou-se de um militar inspirado em Hugo Chávez para o defensor de uma proposta de reforma social bastante próxima à de Lula. Em segundo lugar, com 22,7%, ficou Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori, atualmente preso por corrupção e organização de esquadrões da morte. Ela ficou cerca de 1% à frente do terceiro colocado, o economista Pedro Pablo Kuczynski, que trabalhou em Wall Street e no FMI. O ex-presidente Alejandro Toledo amargou o quarto lugar. Os resultados mostram a contradição peruana de excelente desempenho econômico – foi o país que mais cresceu na América do Sul na década de 2000 – com a fragilidade do sistema político, sobretudo dos partidos tradicionais. O governo de Alan García sequer apresentou candidato oficial.

O escritor peruano Mario Vargas Llosa, liberal na política, que perdeu a disputa presidencial para Fujimori, comparou optar entre Humala e Keiko como “ter que escolher entre a Aids e o câncer”. É boa frase de efeito, mas trata-se, afinal, da comparação ente uma doença grave, porém com cura, e outra que está além disso. O envolvimento de Humala com Chávez, e as atividades extremistas de sua família (seu irmão, também oficial do Exército, liberou uma tentativa de golpe contra Fujimori e o pai comanda um movimento nacionalista com rompantes xenófobos) provaram-se nocivos para sua ascensão política. Durante a presidência de Toledo, Humala foi enviado para um exílo dourado como adido militar na França e na Coréia do Sul. Perdeu as últimas eleições presidenciais para García, mas obtendo ótima votação, sobretudo no Trapézio Andino, a região mais pobre do país.

A derrota foi boa conselheira e Humala mudou a linha política. Contratou publicitários e ativistas do PT, que construíram uma campanha semelhante a de “Lula paz e amor” em 2002. O militar peruano trocou os uniformes camuflados e as camisas vermelhas por paletós e discretas blusas azuis – tradicionalmente, a cor dos partidos conservadores na Europa. Divulgou uma “Carta ao Povo Peruano” preconizando o compromisso com uma estratégia gradual de mudança, centrada na ampliação do mercado consumidor doméstico. Naturalmente, pode-se questionar a sinceridade de suas convicções, ou a capacidade de implementá-las diante da instabilidade política do Peru. Mas a transformação da retórica é, em si mesma, signficativa e mostra que o modelo Lula superou a alternativa bolivariana de Chávez como projeto de mudança na América do Sul, mesmo nas nações mais pobres.



Humala segue com alta rejeição, mas esse também é o problema de sua adversária, Keiko Fujimori – na foto acima, com o pai. O ex-ditador ainda é admirado por muitos peruanos, que valorizam o sucesso de sua campanha contra o Sendero Luminoso e o Tupac Amaru, e celebram seu bem-sucedido plano econômico que derrotou a hiperinflação. Mas a implementação de um regime autoritário em 1992, a criação de grandes esquemas de corrupção e a violência política de seu governo foram imperdoáveis para muitos. Sua prisão e condenação foi expressiva vitória para a frágil democracia peruana.

Se a imagem de Fujimori pai é controversa, Keiko tem outra carta para lançar: apresentar-se como a principal defensora de políticas econômicas liberais, com o argumento de que foram elas que garantiram o alto crescimento do país nos anos 2000, a obtenção do grau de investimento e o acordo de livre comércio com os Estados Unidos. Tentará explorar ao máximo o medo que muitos sentem de Humala como alguém que, sob a máscara da moderação, colocaria em prática o modelo chavista. O segundo turno será no dia 5 de junho e até lá veremos uma disputa acirrada no Peru.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

De Realengo a Columbine



O carioca é antes de tudo um forte. Em 20 anos vivemos quase todas as formas de violência nesta cidade: arrastões, chacinas, ataques terroristas de traficantes, confrontos entre Forças Armadas e bandidos. Mas o massacre de ontem, no qual um rapaz entrou na escola onde havia estudado, matou 12 crianças e feriu outra dúzia, inagura um gênero na história dos crimes do Rio de Janeiro. Introduz na cidade o tipo de tragédia que nos acostumamos a associar aos Estados Unidos, e em menor grau a outros países desenvolvidos, como Alemanha e Finlândia (ver quadro abaixo, publicado na edição desta sexta do jornal Valor Econômico). A distância de Realengo a Columbine é menor do que imaginávamos.

O perfil psicológico esboçado para o assassino contém a mistura de solidão, rejeição e fragilidade de laços pessoais presentes nos casos que ocorreram em outros países. Por coincidência, ontem eu conversava com diplomatas estrangeiros sobre a pertinência de aplicar no exterior a experiência das Unidades de Polícia Pacificadoras do Rio, e à medida que trocávamos idéias, ficou claro o quanto os brasileiros também precisamos da cooperação internacional para nos ajudar a lidar com esse tipo de tragédia.



No calor do momento, surgem duas propostas: leis de desarmamento e reforço da segurança nas escolas. Todo crime particularmente brutal gera um debate intenso, mas fugaz, sobre possíveis reações do governo, mas raramente sai algo de proveitoso dessa explosão. Acredito que uma nova lei de desarmamento, ou talvez a realização de outro referendo sobre o tema, poderia ajudar no combate às mortes por arma de fogo que ocorrem por motivos fúteis, como brigas domésticas ou disputas entre vizinhos. Mas um caso como o da escola é tão extremo que o assassino dificilmente seria impedido por uma legislação mais rigorosa, simplesmente conseguiria a arma de maneira ilegal.

A discussão sobre segurança nas escolas tem o mérito de atender a uma demanda antiga de muitos professores em escolas públicas, que com frequência são vítimas de agressões por parte de alunos, pais de estudantes ou criminosos que agem nas comunidades em que trabalham. Mas é preciso atentar também para as tensões psicológicas. Os depoimentos sobre o rapaz que cometeu o massacre mostram que dezenas de pessoas haviam percebido que ele era profundamente perturbado e um dos colegas até havia comentado, irônico, que um dia ele iria matar muita gente. Só que ninguém o ajudou. Escola, igreja, comunidade, em nenhuma parte ele conseguiu quem pudesse, de algum modo, conter os monstros que cresciam dentro dele.

O massacre de ontem chocou pela extensão, mas crimes semelhantes haviam ocorrido recentemente no Brasil, em universidades e cinemas. A experiência internacional recomenda cautela extrema pelos próximos meses, pois parece haver um efeito demonstrativo: a altíssima visibilidade obtida por tragédias assim inspira outras pessoas perturbadas a agir do mesmo modo. A imprensa poderia tomar algumas medidas para ajudar, como não divulgar a fotografia do assassino. Esse tipo de exposição apenas estimula bandidos desse tipo.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Moyano e o Bloqueio ao Clarín



As crises são o oxigênio da carreira política dos Kirchner e à medida que se aproximam as eleições presidenciais na Argentina, é de se esperar que surjam novos conflitos para reforçar a liderança de Cristina sobre o sempre fragmentado partido peronista. A atual rodada de contendas é a etapa mais recente das disputas entre a presidente e a imprensa, em particular o Grupo Clarín. Sindicalistas liderados por Hugo Moyano (foto), cabeça da Central Geral dos Trabalhadores e um dos principais aliados do governo, estabeleram na semana passada um bloqueio para impedir a distribuição dos jornais desse conglomerado de mídia, que de ex-apoiadores dos Kirchner transformou-se em um de seus principais críticos. Moyano havia feito o mesmo em 2009 e o estopim desta vez foi a publicação de denúncias de corrupção contra o líder sindical.

O enfrentamento do governo com o Clarín já resultou numa nova lei de imprensa, feita sob medida para prejudicar os interesses do grupo e dificultar a posse conjunta de jornais, rádios e canais de TV. Em seguida os Kirchner alteraram a legislação sobre filhos de desaparecidos políticos, tornando obrigatórios os testes de DNA para pessoas que as associações de direitos humanos acreditem terem sido roubadas quando bebês – isso porque suspeita-se que o casal de gêmeos que os donos do Clarín adotaram durante a ditadura possam se enquadrar nessa categoria.

O peronismo tem longa história de conflitos com os meios de comunicação, a quem seus ativistas acusam de defender apenas as perspectivas da “oligarquia”, a tradicional elite agrária do país. Perón teve um secretário de imprensa que recebia os repórteres com um revólver em cima da mesa. Os Kirchner não foram tão longe, mas com frequência lançam ataques genérios à mídia, sobretudo quando esta denuncia casos de corrupção no governo ou critica o modo como a Casa Rosada conduz as crises políticas, tais como o enfrentamento com o agronegócio, a manipulação dos índices de inflação ou a disputa com o Uruguai pela construção das fábricas de celulose, que por anos fechou pontes entre os dois países.

A presidente Cristina tem afirmado que o bloqueio à circulação dos jornais do Clarín é uma ação legítima empreendida por movimentos sociais, e não uma decisão do governo contra a liberdade de imprensa. Na realidade, a CGT de Moyano é um dos pilares do apoio ao peronismo e tradicionalmente foi usada pelos líderes do partido para executar represálias contra seus oponentes, como nos choques entre Perón e a Igreja Católica, na década de 1950. E mesmo que os sindicatos agissem de modo autônomo com relação à Casa Rosada, caberia as autoridades reprimir o bloqueio ilegal. Afinal, é legítimo que pessoas deixem de comprar jornais dos quais discordem, ou que considerem ruim, bem como perfeitamente aceitável que tentam convencer outros a fazer o mesmo. Mas o uso da violência e da força para impedir sua distribuição é absolutamente inaceitável em qualquer circunstãncia, e apenas demonstra o tamanho da crise política e da corrosão das instituições na Argentina contemporânea.

Como costuma acontecer nesses casos, junto à polarização política há espaço para ótimos negócios: um vídeo mostrou um líder sindical exigindo dinheiro do Grupo Clarín, para não paralizar a distribuição de seus jornais. O homem foi preso por extorsão.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

A Guerra Civil na Costa do Marfim



A Costa do Marfim já foi a jóia da coroa da África pós-colonial, mas na semana passada tornou-se cenário de mais uma guerra civil no continente – ela se junta aos conflitos existentes na Líbia, Congo e Somália. O cerne da disputa é a recusa do presidente Laurente Gbagbo (à esquerda, na foto acima) em reconhecer a derrota eleitoral para seu oponente Alassane Ouattara (à direita), que representa grupos étnicos e religiosos tradicionalmente discriminados no país. Tropas leais a Ouattara dominam quase todo o país, mas o presidente Gbagbo resiste em Abidjan, a cidade mais importante.

Crises semelhantes ocorreram nos últimos anos no Quênia e no Zimbábue, onde a oposição ganhou nas ruas mas acabou aceitando governos de “unidade nacional”. Em termos práticos, resignou-se ao controle de alguns ministérios e órgãos públicos, temerosa de um conflito armado amplo. Na Costa do Marfim, a instransigência é maior, quando mais não seja porque Ouattara tenta ser presidente há 10 anos, sendo constantemente impedido por manobras jurídicas ou políticas de caráter duvidoso. Por ironia, Gbagbo ascendeu à presidência pela primeira vez, em 2000, liderando uma revolta provocada pelas mesmas razões.

Após a independência, a Costa do Marfim foi governada por mais de trinta anos por Félix Houphouët-Boigny, habilidoso fazendeiro de cacau com laços familiares com a aristocracia local. Estabeleceu um regime autoritário, mas que nos anos 60 e 70 teve bem-sucedidas políticas econômicas, baseadas no incentivo à agricultura comercial privada no cacau, café e frutas, e em cooperação internacional com a França. Na época, a Costa do Marfim crescia a 7% por ao ano, uma das taxas mais elevadas do mundo. Mas com o tempo, os vícios comuns às ditaduras triunfaram, com muita corrupção e gastos inúteis e dispendiosos, como a transformação em capital do vilarejo natal do presidente, Yamoussoukro, que virou uma espécie de Versalhes africana.

Após a morte de Houphouët-Boigny, seus sucessores exploraram as rivalidades étnicas e religiosas entre o norte islâmico e o sul cristão para conquistarem e manterem o poder, mesmo que às custas de guerra civil e conflito armado, que ocorreram entre 2002-7, sob o governo de Gbagbo. Ouattara tem interessante biografia: é um tecnocrata que trabalhou muitos anos no FMI e tem fortes ligações com os EUA com a União Européia, mas simultaneamente é um muçulmano nortista, representante dos grupos tradicionalmente excluídos da elite da Costa do Marfim. Sua mãe é de Burkina Faso, e até recentemente isso o qualificava como "estrangeiro" nas leis eleitorais, mas é um dado importante num país no qual 25% da população é imigrante ou filha deles. Iniciou a carreira política como assessor de Houphouët-Boigny, quando o velho ditador tentou reformar as combalidas finanças públicas nacionais.



A guerra civil era iminente desde novembro, quando o presidente Gbagbo recusou-se a aceitar a derrota eleitoral. Os conflitos têm sido ferozes, com atrocidades cometidas por ambos os lados. A maior até agora foi o massacre de 800 pessoas na cidade de Douékué. Ainda não está claro quem foi o responsável, mas as suspeitas iniciais caem sobre as tropas de Ouattara. Estima-se que um milhão de pessoas tenham fugido da Costa do Marfim, indo para os países vizinhos, que em geral são muito pobres e enfrentam, eles mesmos, o desafio de reconstrução pós-bélica, como na Libéria.

Houve reação internacional ao impasse na Costa do Marfim, porém mais tíbia do que o que ocorre na Líbia. Há uma força de paz da ONU no país, apoiada por um contingente francês, mas ambas fizeram pouco mais do que garantir enclaves seguros para os ocidentais em Abidjan. EUA e União Européia implementaram sanções econômicas contra o regime de Gbagbo, bastante dependente dos mercados externos para o agronegócio. Mas a União Africana tem relutado em intervenções mais expressivas, seja pelas boas relações que muitos de seus membros mantém com o governo da Costa do Marfim, seja pelo medo de que no futuro esse tipo de instrumento possa ser usado contra eles. A situação é especialmente sensível na Nigéria, que no próximo sábado terá eleições.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

O Brasil e a Crise em Portugal



A viagem de Dilma e Lula a Portugal foi relegada para segundo plano em função da morte do ex-vice-presidente José de Alencar. É compreensível, mas foi uma pena, porque perdeu-se boa oportunidade para debater as relações entre o Brasil e sua antiga metrópole colonial, num momento em que a economia lusitana enfrenta uma crise séria que pode resultar em moratória, e que lembra muito as situações difíceis vividos pelos brasileiros nas décadas de 1989-90.

Portugal tem longa história de instabilidade financeira. De 1800 até hoje foram oito moratórias e a gestão da dívida pública foi um dos fatores decisivos para a instalação de António Salazar como ditador do país por mais de 40 anos. Atualmente, os portugueses compartilham com irlandeses, italianos, gregos e espanhóis a condição de economias problemáticas na União Européia, com a dificuldade de ajustar-se ao euro e em controlar os gastos públicos – a dívida portuguesa é de aproximadamente 100% do PIB. O gráfico abaixo o situa com relação aos outros “PIIGS”.



Sem a posssibilidade de desvalorizar o euro, os custos do ajuste tornam-se ainda maiores e incluem o receituário tradicional de redução de salários do funcionalismo, privatizações e cortes em serviços públicos. São receitas amargas que criaram impasses políticos em Portugal. Em um ano o parlamento recusou quatro pacotes econômicos e há poucos dias o primeiro-ministro socialista José Sócrates renunciou após outro fracasso. Os partidos não foram capazes de articular um pacto nacional para superar a crise e o que aparece no horizonte é a possibilidade de recorrer a um auxílio internacional de emergência, combinando fundos da União Européia e do FMI.

O governo português solicitou ajuda ao Brasil, pedindo as autoridades brasileiras que comprassem títulos da dívida pública lusitana, num esforço de convencer os mercados financeiros da seriedade do compromisso de Lisboa com as reformas econômicas (Hugo Chávez fez algo assim quando Néstor Kirchner renegociou a dívida externa da Argentina). A presidente Dilma declinou, observando que as leis brasileiras só permitem ao Banco Central comprar papéis internacionais de classificação AAA, e as agências de risco já rebaixaram Portugal para patamares inferiores. Realpolitik. Estamos longe do tempo (anos 1950) em que um chanceler brasileiro dizia que as relações entre os dois países não eram políticas, mas “um caso de família”.

Dilma ofereceu possibilidade retórica de compras condicionadas à oferta de “garantias reais”. Discurso para evitar mais constrangimentos ao demissionário premiê Socrátes, que foi até vaiado na cerimônia em que a Universidade de Coimbra deu o título de doutor honoris causa a Lula. O mais provável é que estatais brasileiras aproveitem o processo de privatização português, da mesma maneira que empresas públicas européias investiram quando foi o Brasil a privatizar, nos anos 90.

A imprensa internacional tem sido hostil a Portugal, ironizando e ridicularizando a situação do país. O Wall Street Journal destacou a péssima qualidade da educação, com indicadores inferiores aos de algumas nações da América Latina. O Financial Times foi mais longe, sugerindo que Portugal deveria tornar-se uma colônia brasileira.

Embora me agrade a hipótese de um suprimento de pastéis de Belém isento de tarifas alfandegárias, acredito que o julgamento da mídia tem sido severo demais com relação a Portugal. Assim como a Grécia e a Espanha, é um país que fez uma transição rápida para a democracia, bastante bem-sucedida para os padrões internacionais. E os portugueses, ainda mais do que os outros, viveram tradicionalmente um dilema em sua política externa, entre voltar-se para o Atlântico (América, África) ou olhar para uma Europa onde se sentiam sempre em risco de serem engolidos e menosprezados. Desde a Revolução dos Cravos (1974) e o fim do império colonial, a cartada européia prevaleceu. A melhor esperança para Portugal é que sua moratória traria consequências sérias para a Espanha, o maior credor e uma economia importante para a UE. Aí reside a principal razão pela qual é necessária ação internacional para impedir a quebra financeira do Estado lusitano.