sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Meu Reino por uma Reforma Constitucional


No século XIX, a América Latina passou por guerras civis que opuseram liberais e conservadores em temas como as relações poder central/províncias e Estado/Igreja. Ao fim de cada conflito, os vencedores promulgavam nova constituição. No século XX, direita e esquerda se enfrentaram nas urnas e com freqüência o desafio representado pelas forças de mudança social era resolvido por golpes militares. Neste início de século XXI os confrontos políticos se dão na Venezuela, na Bolívia e no Equador em batalhas por novas constituições, opondo presidentes com amplo apoio popular às instituições de mediação política: parlamentos e partidos. A conseqüência são mandatários carismáticos que recorrem a instrumentos de democracia direta, como referendos, e passam por cima dos direitos das consideráveis minorias oposicionistas, que com freqüência chegam a 40%, 45% do eleitorado.

Chávez começou a falar sobre a necessidade de nova constituição para a Venezuela na campanha presidencial de 1998 e a carta magna foi promulgada em 1999. Agora o presidente propôs 69 mudanças. As principais propostas, resumidas e analisadas em ótimo especial da BBC: 1)Aumento do mandato presidencial para sete anos e ausência de limites para reeleições; 2) Possibilidade de governar com mais poderes em situações de emergência de um ano, renováveis pelo parlamento; 3) Forças Armadas passariam a ser responsáveis por segurança doméstica, mudariam de nome (incorporando o adjetivo "bolivarianas") e teriam por inimigas o "imperialismo"; 4) Jornada de trabalho reduzida de 8 para 6 horas diárias.

O essencial da agenda é a concentração de poderes nas mãos de Chávez, incluindo as ferramentas para politizar (ainda mais) as Forças Armadas. Tem havido muita resistência por parte da sociedade venezuelana, como a marcha de 100 mil opositores em Caracas, críticas ferrenhas de ex-chavistas - como antigos ministros da Defesa e procuradores-gerais da República - e a ascensão de um movimento estudantil bastante combativo, que tem se mantido desvinculado dos partidos tradicionais.

A reforma constitucional precisa ser aprovada pela população no referendo de domingo e as pesquisas de opinião estão confusas e indicam todos os resultados: vitória do governo, derrota, empate técnico. Ontem eu conversava com um amigo que voltou há poucos dias da Venezuela, cobrindo o país para um grande jornal, e compartilhamos a preocupação de que o resultado - seja ele qual for - será por pouca margem, e dificilmente será aceito pelo lado perdedor.

Na Bolívia, a demanda por nova constituição é reivindicação dos movimentos sociais desde os anos 90, e foi promessa de campanha de Evo Morales. O presidente fez a concessão à oposição de aceitar a necessidade de 2/3 dos votos para aprovar a carta (o normal nesses casos é 50%+1), mas não esperava que fosse encontrar tanta resistência. O texto deveria ter sido votado em agosto. Há poucos dias houve aprovação irregular, num quartel de Sucre, sem presença da oposição e com muita violência de rua, resultando em centenas de feridos. De nada adiantou para o governo, porque a constituição precisa ser votada de novo, artigo a artigo, e submetida a referendo popular.

O projeto boliviano também prevê a possibilidade de reeleição ilimitada ao presidente - algo inusitado num país em que nos últimos 10 anos, nenhum completou o mandato. Isso não serve de consolo para os departamentos da Media Luna, que se opõem ao governo Morales. Pesam fatores econômicos (são mais ricos) e étnicos (são brancos). As disputas pelo controle dos lucros oriundos da exploração dos hidrocarbonetos são o cerne da questão - quanto caberá ao poder central, aos departamentos, aos municípios. Trata-se de profunda clivagem regional e étnica, comparável àquelas enfrentadas por muitos países africanos. A constituinte discute um pouco de tudo, parece o Brasil em 1988 - resolveram até atacar a FIFA.


No Equador, o modelo da reforma é próximo ao da Venezuela de Chávez. Correa foi eleito presidente sem ter nenhum deputado no Congresso. Propôs um referendo para criar uma Assembléia Constituinte, que ganhou com 80% dos votos. No novo órgão, o governo tem 80 dos 130 parlamentares e 8 meses para apresentar a nova carta. Ontem a Assembléia declarou o fechamento do Congresso oposicionista e também há muitos conflitos com a Suprema Corte (nomeada pelo Congresso). A província petrolífera de Orellana está em estado de emergência porque manifestantes ocuparam refinarias em protestos contra o desemprego.

Nos três países conheci pessoas muito envolvidas com a atual onda de mobilização política e muito entusiasmadas ao discutir - às vezes, choravam de tanta emoção. A política está nas ruas. Caso dos camelôs venezuelanos, que oferecem exemplares baratíssimos da constituição e das novas leis (foto). Ou o modo como os bolivianos incorporaram o debate constitucional ao seu cotidiano, até nas associações de moradores. É uma experiência muito rica para ser reduzida à compulsão de alguns presidentes de agir como vilões de Shakespeare, sempre em busca de poder. Meu reino por uma reforma constitucional.



Há muitas maneiras de se organizar a democracia e em países de instituições frágeis, como na América Andina, é praticamente inevitável a presença de um Poder Executivo hipertrofiado com relação ao Legislativo e ao Judiciário. Contudo, me parece que os andinos poderiam aprender muito com a experiência de outras regiões, buscando nelas inspiração para criar instrumentos de equilíbrio, negociação, consenso e continuidade nas políticas públicas. Funcionalismo público estável, com acesso por concurso, como existe no Brasil, faria bela diferença para amenizar crises, sobretudo no caso de juízes e promotores. Iniciativas africanas de resolução de conflitos étnicos, com a realização das grandes "conferências nacionais" (a África do Sul é o exemplo mais famoso) também poderiam ser de grande valia.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Caminhos da China


Os melhores livros sobre relações internacionais quase sempre são escritos por jornalistas. A inquietação e curiosidade que caracterizam bons repórteres ajudam mais no entendimento de sociedades estrangeiras do que a rigidez de modelos teóricos abstratos, que com freqüência buscam em outros países apenas a confirmação de uma tese definida de antemão. “Caminhos da China – a vida de cinco estudantes, da Revolução Cultural aos dias de hoje” é uma excelente análise escrita pelo americano John Pomfret, que foi chefe da sucursal chinesa do Washington Post e também cobriu o país para a Associated Press.

Pomfret cursava estudos asiáticos em Stanford quando surgiu a oportunidade de fazer um intercâmbio na China, em 1981. O país havia iniciado as reformas econômicas e a sociedade apenas despertava da violência e do pesadelo da Revolução Cultural, a feroz disputa pelo poder entre Mao e a velha guarda do Partido Comunista. Os colegas de Pomfret na universidade haviam passado fome, sido torturados, enviados para trabalhos forçados no campo e ficado anos sem estudar, por conta do fechamento das escolas e universidades. Com a reabertura do ensino superior, dedicaram-se com paixão ao estudo e tinham pelos estrangeiros – sobretudo americanos e europeus – mistura de fascínio, medo, curiosidade e desprezo. Havia algo em seus amigos chineses que os permitiu seguir adiante: personalidade forte diante das injustiças, capacidade de adaptação e negociação, misturas de passividade e resistência ou simplesmente o instinto de sobrevivência política de como escapar das turbulências totalitárias.



Zhou Lianchun queria se tornar um intelectual, mas problemas políticos e um casamento desastroso o empurraram para o mundo empresarial, onde ele se tornou razoalvemente bem-sucedido com uma fábrica de processamento de urina para retirada de enzimas (!). Guan Yongxing abandonou a perspectiva de uma boa carreira em Pequim para dedicar-se a um marido muito amado e também ascendeu socialmente. Wu Xiaoqing virou um respeitado professor na mesma universidade em que seus pais lecionaram, e onde foram assassinados na Revolução Cultural, desenvolvendo uma estranha e por vezes deprimente relação com o Partido Comunista. Song Liming envolveu-se com o movimento pela democracia e se exilou na Itália, onde se destacou como jornalista especializado numa das novas paixões chinesas – futebol. Ye Hao seguiu carreira no Partido, destacando-se como líder regional, reformador econômico e político corrupto.

No panorama traçado por Pomfret, todos os seus amigos deixaram para trás a pobreza extrema em que cresceram como meninos camponeses e se tornaram parte da nova elite chinesa. Do ponto de vista dos valores morais, a história de sucesso é mais limitada. Somente Guan Yongxing e Song Liming viveram de acordo com um código de ética claro, o comportamento dos outros é bastante ambíguo e não raro, repulsivo.

O tom geral do livro de Pomfret é sombrio, ressaltando os aspectos negativos da China – a enorme corrupção, o autoritarismo, a desconfiança e as trapaças nas relações pessoais e a febre de consumo temperada pela busca de compensações espirituais para o vazio moral de uma geração que não sabe mais em que acreditar, e que descobriu que o conforto material não lhe trouxe a felicidade. Há ótimas informações sobre vários temas e momentos decisivos da nova China: a liberalização nos costumes, inclusive sexuais, as tensões políticas, os problemas ambientais, a epidemia de SARS e o conflito de gerações – com os filhos ultra-mimados de seus colegas tentando descobrir seu lugar no mundo.

É ótimo ser leitor de Pomfret, mas não gostaria de ser seu amigo. É um tanto chocante como expõe a intimidade de seus colegas, revelando detalhes muito particulares de suas vidas. Ele não menciona se pediu sua autorização ou mesmo se lhes contou que escrevia um livro. A bem da verdade, Pomfret também mostra bastante seu lado desagradável e às vezes se retrata como um gringo à cata de prostitutas chinesas, ou um sujeito que bajula os chefes e os mandarins comunistas. Se você quer educação e bons modos, compre um manual de etiqueta.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

16 Dias contra a Violência de Gênero


Entre 25 de novembro e 10 de dezembro, pessoas em todo o mundo realizam a campanha “16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres”. A data se explica porque nesse período se comemoram vários fatos importantes na história das lutas pelos direitos femininos.

Esta é uma época particularmente oportuna para a campanha devido à barbárie registrada em nosso país, no caso da adolescente paraense presa durante um mês numa cela com mais de 20 homens. O episódio ilustra o coração das trevas da ausência do Estado de Direito no Brasil, do total descaso das autoridades pelos pobres. Mas também revela o que pode melhorar: nos últimos dias, pela primeira vez em minha vida, vi o país inteiro indignado e revoltado pela dignidade de um ser humano, uma moça miserável do interior. Por alguns momentos, a sociedade rejeitou os piores aspectos do Brasil e quis que o país fosse diferente.

Infelizmente, relatório da Pastoral Carcerária apresentado à Organização dos Estados Americanos informa que o caso da jovem paraense não é isolado, foram observadas situações semelhantes em outras cinco regiões brasileiras. O relatório foi divulgado antes do caso do Pará, mas só depois do fato a imprensa se interessou pelo tema.

Também temos motivos para celebrar. Como a Lei Maria da Penha, que está em vigor desde 2006. Ela trata dos casos de violência de gênero e se aplica não só às mulheres. Foi criada por uma recomendação da OEA e pela pressão dos movimentos feministas, que demandavam legislação específica para crimes de agressões domésticas. O nome da lei homenageia uma mulher que ficou paraplégica após agressões do ex-marido e passou 19 anos lutando por sua condenação na justiça.

Você deve ter observado a freqüência de citações à OEA e isto não é à toa. A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um dos mais importantes instrumentos do sistema internacional de proteção a essas garantias e suas sentenças realmente tem influência e poder. O governo brasileiro perdeu um caso na Corte, envolvendo más condições na prisão de Urso Branco, em Rondônia. As autoridades brasileiras sentem bastante receio de novas condenações e levam a sério as recomendações da OEA.

Isso ilustra uma tendência mais ampla. Desde a II Guerra Mundial se construiu um amplo sistema internacional de proteção aos direitos humanos, centrado na ONU mas que também abrange organizações regionais como OEA, Mercosul, União Européia. Esses acordos tornaram os indivíduos sujeitos do direitos internacional e deram às pessoas a possibilidade de recorrer a tribunais no exterior para se proteger de suas próprias autoridades. Resultado das experiências traumáticas do século XX e uma arma, ainda que frágil, para fazer as mudanças avançarem na América Latina.



Os direitos das mulheres estão entre os protagonistas dos debates internacionais sobre temas sociais e os movimentos feministas são muito articulados no plano global. Para quem lê inglês, recomendo visitar o blog da campanha dos “16 dias” mantido pelo site britânico Open Democracy. Conta com depoimentos e histórias de todo o planeta.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

A Democracia na América Latina



Há poucos dias o Latinobarômetro divulgou seu relatório anual sobre a democracia na América Latina. O resultado: os cidadãos mais satisfeitos com esse regime político estão nos regimes de forte tradição democrática, Costa Rica e Uruguai (83% e 75%). Em seguida, estão os governos mais à esquerda: Venezuela, Bolívia, Equador (entre 65% e 67%). A Argentina está com 63%, taxa baixa para seus padrões históricos, que em geral estiveram acima de 70%. Brasil, México, Chile, Colômbia e Peru estão todos em situação ruim - menos da metade (43%-48%) consideram a democracia o melhor sistema. Nos países da América Central e o Paraguai esse percentual sequer chega a 40%.



Em sua análise do relatório, a Economist afirmou que ele é "um alerta para os reformadores": as pessoas no continente não acreditam que o mercado irá lhes trazer a prosperidade e confiam no Estado para distribuir renda e prestar serviços sociais básicos. Dificilmente essa avaliação surpreende quem conhece a região, mas a revista faz uma observação interessante sobre o porquê do descontentamento: "Crescimento econômico e democracia melhoraram as vidas de muitos latino-americanos. Mas por sua vez isso parece ter elevado suas expectativas, ao invés de fazê-los mais satisfeitos com a situação de suas nações. ´Depois de quatro anos de crescimento as pessoas querem uma fatia maior do bolo´, diz a [diretora do Latinobarômetro] sra. Lagos."

E elas acham que o bolo não está muito gostoso. Só 21% dos entrevistados consideram que seus países passam por bom momento econômico e apenas 30% crêem que irá melhorar. No que toca aos problemas sociais, as preocupações principais são desemprego (18%) e crime (17%). Em geral os dois vêm juntos, mas na Venezuela se destaca o crime e na Bolívia e Equador, o desemprego.

Apenas 35% acreditam que as privatizações foram benéficas para seus países, mas 52% vêem a economia de mercado como o melhor sistema econômico. O percentual é quase o mesmo dos que acham que o Estado pode resolver muitos ou a maioria dos problemas (55%) o que aponta para uma população bastante centrista, avessa à fórmulas que puxem para um ou outro lado. Preocupa o baixo índice de participação em organizações políticas: apenas 15% em média, com poucos países subindo acima dos 20%.

O estudo do Latinobarômetro tem conclusões parecidas com aquele que o PNUD realizou em 2004 sobre a democracia na América Latina - participei de um seminário organizado pela instituição em Brasília para discutir aquele texto e as discussões se parecem muito com o que ocorre hoje. Basicamente, o contraste entre uma situação macroeconômica bastante boa e o desencanto dos cidadãos com seus sistemas políticos e econômicos, que são percebidos como distantes das pessoas comuns. O PNUD falava na necessidade de passar de "uma democracia de eleitores para uma de cidadãos". Em outras palavras, que houvesse mais envolvimento com os assuntos públicos.

Acredito que é justamente isso que explica o ótimo resultado obtido no Latinobarômetro por Venezuela, Equador e Bolívia. Estive nos três países entre 2004 e 2007 e não considero nenhum como modelo em termos de administração e políticas públicas. Mas há neles lições fascinantes sobre mobilização social, participação e sentimento bastante difundido entre os mais pobres de que finalmente o Estado faz algo por eles. Será que o preço disso é o alto nível de conflito político? Não creio. As circunstâncias na América Andina é que são diferentes, com o colapso de sistemas partidários e ascensão de lideranças carismáticas, que aspiram a falar diretamente à população - a Bolívia é a exceção, pois Evo Morales tem sólida base social.

Há tempos escrevi pequeno artigo sobre "o descompasso da América da Sul" em que tratei da distância "entre sociedades que se tornaram mais abertas e participativas e os sistemas político-partidários que não foram capazes de acompanhar o ritmo da transformação.". Concluía dizendo que "As recentes crises colocam dois desafios às democracias sul-americanas. O primeiro é a construção de instituições capazes de absorver os novos atores sociais e integrá-los ao jogo político. O segundo é a necessidade de fortalecer o Estado. Em sociedades marcadas por imensas desigualdades e graves problemas sociais, é urgente o aumento da capacidade governamental em responder de maneira eficiente às demandas por melhores condições de vida (...) Sem transformações efetivas, a democracia corre o risco de ser encarada pela população como mera encenação entre as elites de sempre."

O texto já tem dois anos e meio, mas continuo a pensar assim.

A imagem do post é de Mirko Ilic e mostra o regime político dos meus sonhos: a liberdade num caso de amor com a justiça.

sábado, 24 de novembro de 2007

O Parlamento do Mercosul



Passei os últimos dias em Brasília, no seminário “O Parlamento do Mercosul e os Direitos Humanos”. Ajudei a organizar o evento – entre outras 15 milhões de ocupações profissionais, coordeno o Grupo de Trabalho sobre Mercosul do Comitê de Direitos Humanos e Política Externa, que realizou o debate em parceria com o Parlasul e com o Congresso Nacional do Brasil.

Fizemos dois dias de discussões de alto nível, com parlamentares, representantes de órgãos públicos, acadêmicos e ativistas de direitos humanos. Vocês podem acompanhar os debates pela TV Câmara, que gravou todo o evento e o exibirá em sua programação. Garanto que o nível das apresentações foi muito mais elevado do que aquilo que se vê habitualmente nos canais a cabo – é covardia fazer comparações com a televisão aberta.

Revisamos todo o processo de formação do Parlamento do Mercosul, com os deputados e consultores contando como foram as negociações com os presidentes do bloco e entre os parlamentares, para se chegar a um modelo comum de regimento interno. Discutimos os mecanismos de participação da sociedade, cogitamos fórmulas para organizar as eleições para a instituição e avaliamos as políticas regionais de direitos humanos para diversas áreas, como saúde, direitos das mulheres e migrações internacionais. Me surpreendi em ver como há iniciativas interessantes em curso, que precisam ser melhor conhecidas.

Minha palestra tratou da questão da juventude no Mercosul. Apresentei um pouco da experiência da pesquisa na qual estou envolvido e usei os exemplos para debater o potencial do Parlamento do Mercosul. Ressaltei que é necessário maior harmonização entre as políticas públicas dos países do bloco (inclusive no que diz respeito aos métodos de coleta de estatísticas) e afirmei que não é mais possível pensar nos grandes temas sociais do Mercosul de maneira isolada para cada país. Problemas e soluções só fazem sentido no plano regional. Expressei a esperança de que o Parlasul possa contribuir para essa aproximação, mas frisei que é necessário que ele estabeleça uma assessoria técnica competente, capaz de realizar pesquisas e análises sobre a integração regional. Só assim o Parlasul terá relevância política e visibilidade para a opinião pública.

O ponto provocou polêmica – algumas pessoas julgam que o Parlamento não deveria se dedicar à produção de informações, que ficaria melhor sob condução da sociedade. Contudo, tenho a ótima experiência de trabalhar com o excelente instituto de pesquisa vinculado ao Parlamento do Canadá e vejo como faz falta aos Congressos latino-americanos uma organização semelhante, capaz de apoiar a ação parlamentar. Muitas vezes boas intençõe se perdem na falta de boas informações e ficam reduzidas a clichês. Acredito que isso será ainda mais importante no caso do Parlasul pelos pouquíssimos poderes dos quais ele dispõe, ao menos em sua fase inicial. O Parlamento terá que inventar um papel para si mesmo.

Também destaquei que é preciso ter cuidado para não repetir estruturas que já existem em outros órgãos internacionais. Citei o exemplo do Relatório sobre Direitos Humanos no Mercosul que o Parlamento quer realizar, que se parece muito com os que já existem no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Afirmei que o ideal seria que os processos se reforçassem mutuamente, e não que competissem entre si por recursos (tempo, verbas, interesse) escassos.

Outro bom ponto de discussão foi a questão da representação. Os membros do Parlasul devem falar em nome da população do bloco e não de cada Estado. A idéia é excelente, mas como contrariar toda a tradição política existente nos diversos países? E como conciliar com as carreiras parlamentares? Por exemplo, se um político é eleito pelo estado de São Paulo ou pela província de Buenos Aires, como seus eleitores reagirão se ele tomar decisões que favoreçam outra região, em nome da redução das assimetrias do bloco?

As controvérsias não têm respostas simples, mas para um jovem acadêmico foi um privilégio estar presente à criação de uma instituição que pode vir a ter um papel tão importante na política da América do Sul.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

O Jardim do Vizinho



Mestre Idelber postou o link para artigo do jornal La Nación sobre a ascensão do Brasil ao status de grande potência. O texto está muito comentado na blogosfera brasileira (chequem Pedro Doria e o Hermenauta) que oferecem ótimas sínteses do artigo. Portanto, vou apenas dar a contribuição do meu testemunho.

Quando morei na Argentina, realizei entrevistas com pessoas que haviam ocupado cargos de ministros, embaixadores e outras altas posições numa série de governos do país vizinho, em particular o período de Carlos Menem (1989-1999). Todos me diziam a mesma coisa: a de que o Brasil estava no caminho de se transformar numa grande potência, porque havia feito as escolhas corretas e perseguido políticas públicas coerentes, em particular nas áreas do desenvolvimento econômico e da política externa. Em contraste, criticavam a Argentina por sua extrema instabilidade e pelas constantes mudanças de rumo.

A comparação não é novidade para os especialistas na comparação entre os dois países. A quem se interessa pelo assunto, recomendo o soberbo livro "Ideas and Institutions: developmentalism in Brazil and Argentina", da minha querida mestra Katryn Sikkink, que aliás conheci em Buenos Aires. O início é uma obra-prima: a autora comenta a visita que fez ao Memorial JK em Brasília (que ela compara ao túmulo de Napoleão) com sua experiência de pesquisa no modesto centro de estudos dedicado a Arturo Frondizi. O ex-presidente argentino entre 1958-1962 teve programa muito semelhante ao nosso Juscelino, mas foi derrubado por um golpe militar ao qual se seguiram anos de turbulência e crise.

O que deu certo no Brasil? Basicamente, aqui houve desde a Revolução de 1930 um esforço consciente em criar uma elite no funcionalismo público dedicada aos temas econômicos mais importantes. Começou de maneira hesitante com o DASP e depois resultou na criação da Petrobras, do BNDES, e no fortalecimento do processo de treinamento nas Forças Armadas, no Ministério da Fazenda e no Itamaraty. Esse corpo permanente de tecnocratas manteve um alto grau de continuidade, mesmo nas transições (sempre muito negociadas) entre democracias e ditadura.

No fim dos anos 1950 o PIB do Brasil era apenas levemente superior ao da Argentina. Hoje, é cerca de quatro vezes maior. O crescimento da economia brasileira foi acelerado e constante, enquanto a Argentina seguiu um ciclo instável de stop-and-go, muito motivado por suas repetidas crises políticas. Afinal, foram 6 golpes militares entre 1930 e 1976, fora diversas insurreições mal-sucedidadas, guerrilhas, a guerra das Malvinas e a quase-guerra com o Chile. Não há prosperidade que resista. Alguns falam do "milagre do sudesenvolvimento argentino" e a maioria trata com nostalgia da era de ouro do início do século XX, quando a renda per capita do país era mais alta do que a da Espanha ou a da Itália. O célebre economista sueco Gunnar Myrdal chegou a dizer que só existiam quatro tipos de países: desenvolvidos, em desenvolvimento, Japão e Argentina.

Contudo, os argentinos ignoram algumas das continuidades negativas da política brasileira, como a incapacidade de enfrentar o tema da desigualdade social e a ausência de investimentos na educação básica, embora os brasileiros tenhamos um bom sistema de pós-graduação universitária. Ao passo que a Argentina montou uma rede invejável de escolas públicas desde o século XIX, e um sistema de universidades que já foi o orgulho do continente, apesar de estar em crise desde a década de 1960.

O interessante é que com todas as dificuldades, a qualidade de vida da Argentina (medida pelo Índice de Desenvolvimento Humano) continua a melhor da América Latina. Depois temos Uruguai e Chile. O Brasil-potência, como a Rússia do Czar, não transforma sua influência internacional num bom padrão de moradia, saúde ou educação. Será que o Brasil-Arábia Saudita conseguirá melhorar nesses aspectos?

Em geral eu comentava com meus entrevistados argentinos que era preciso levar em conta o lado sombrio do Brasil, e que a sociedade daqui não era exatamente modelo de desenvolvimento social para ninguém. Ainda que o jardim do vizinho sempre seja mais verde. O ideal, claro, seria uma síntese das virtudes dos dois países. Quem sabe um dia?

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Burgueses e Boêmios



Neste longo feriadão – 6 dias para nós, cariocas – assisti ao ótimo musical “Rent”. O filme é uma adaptação do espetáculo da Broadway e no Brasil não foi exibido nos cinemas, sendo lançado direto em vídeo. Basicamente, conta um ano na vida de um grupo de aspirantes a artistas que vivem no East Village de Nova York. “Rent” celebra a cultura boêmia de criatividade, ruptura dos padrões e da vanguarda artística, mesmo que isso singnifique pouca grana. Se o enredo lhe parece familiar, não estranhe: há muitas citações à ópera La Bohéme que trata mais ou menos da mesma coisa, só que na Paris do século XIX.

Rent é um barato, com canções muito bonitas – destaque para o tema de abertura, “Seasons of Love”, e para “Light my Candle”, o grande momento da personagem interpretada por Rosario Dawson. Os atores estão visivelmente entusiasmados com os papéis e é o tipo de show que os americanos sabem fazer tão bem. Só que lá pelas tantas fiquei um tanto incomodado com a contradição: um musical da Broadway, totalmente mainstream, que louva exatamente o oposto do que esse mundo representa. Ok, nada de tão diferente dos industriosos burgueses europeus que ouviam as óperas de Puccini sobre artistas sem dinheiro, gueixas japonesas ou qualquer exotismo que os distraíssem da rotina da semana. Mas ainda assim, contradição.

Estamos além da mera válvula de escape ou da hipocrisia e a melhor análise que conheço é o brilhante ensaio de David Brooks, “Bubos no Paraíso – a nova classe alta e como chegou lá”. Brooks é um jornalista de currículo impressionante que inclui New York Times, Wall Street Journal, New Yorker, Washington Post, Newsweek e Weekly Standard.

Seu livro é um comentário bem-humorado e irônico sobre a nova elite americana, que ele afirma ser uma mistura de “burgueses e boêmios” (Bubos), fruto da contracultura dos anos 60 e da expansão do ensino universitário meritocrático, aberto ao talento. Muito instruída do ponto de vista formal, ela levou à economia da informação valores mais libertários e questionadores do sistema, mesmo quando ganham milhões – pense em Bill Gates, Steven Spielberg, o que seja. Aliás, também se comenta o mesmo em outros países. Na França Luc Boltanski escreveu obra parecida sobre "Le Nouvel Espirit du Capitalisme".

Uma das canções mais divertidas de Rent é, justamente, La Vie Bohéme, que parece uma daquelas list songs de Cole Porter, com a enumeração do que consiste o estilo boêmio. Engraçado comparar com a descrição de Brooks, porque os itens coincidem em diversos pontos, da preferência por alimentos orgânicos ao dramaturgo tcheco Vaclav Havel. Aliás, a área de Nova York onde se passa Rent deixou de ser um reduto de artistas pobres há 10 anos e virou uma zona para profissionais sofisticados e ricos, muito na linha do que Brooks descreve.

No fim das contas, diz Brooks, os Bubos são muito moderados politicamente e detestam a polarização partidária. Bem, o livro foi publicado em 2000 e muita coisa mudou após os atentados do ano seguinte. Sobretudo, Brooks contou um lado da história – a ascensão da nova elite – mas não abordou o quadro de desigualdades sociais crescentes que deixou tantos americanos para trás e tornou amargo e virulento o debate político do país. Na realidade, muito do crescimento dos republicanos se deve à conquista desse eleitorado, como os brancos pobres do sul dos EUA, que até os anos 1960 eram majoritariamente democratas.

domingo, 18 de novembro de 2007

Do Rei para Chávez: "Por que não te calas, bicho?"



SANTIAGO DO CHILE - Mais um escândalo envolve o presidente da Venezuela. Durante o Festival Iberoamericano da Canção, Hugo Chávez discutiu com o rei do Brasil, Roberto Carlos. O artista brasileiro se indignou com a performance do mandatário venezuelano, que cantava o bolero "Reeleja-me mucho".

"Isso é ruim demais. Me lembra os piores momentos do Pato do João Gilberto, durante a bossa nova", disse o rei. Roberto Carlos também se mostrou irritado com o autoritarismo crescente do governo Chávez: "Detalhes tão pequenos da Reforma Constitucional são coisas muito grandes para esquecer."

Chávez reagiu chamando o rei Roberto de "papagaio dos EUA" e "arauto do imperialismo, desde os tempos em que defendia a guitarra elétrica na MPB". Além disso, "Todos sabem que ele é um reaça, que sequer admite virar o volante do carro para a esquerda. Só o gira para direita, na companhia de Bush, Aznar e Uribe!". O presidente venezuelano questionou a legitimidade do artista brasileiro: "Quem o elegeu rei? O povo venezuelano votou em mim várias vezes. Até o Juan Carlos da Espanha foi eleito rei, ainda que com um só voto, o de Franco."

Roberto Carlos rejeitou as comparações com o chefe de Estado espanhol: "Primeiro, neste continente só há espaço para dois reis, que somos eu e Pelé. Segundo, na minha concepção a Espanha perdeu a batalha de Ayacucho em 1824, e com ela as colônias na América, e o direito do seu monarca se intrometer em nossos assuntos. Eu e o Erasmo vamos até fazer uma música sobre isso, depois que eu acabar uma balada romântica sobre a transformação do PFL em Democratas."


Ele aproveitou para mandar um recado a Chávez: "Seu tempo passará. Já vi isso acontecer com outros ritmos latinos, como a lambada, a dança proibida, o axé e o sertanejo. A glória deste mundo é passageira", filosofa o rei.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Inés da Minha Alma


Este ótimo romance de Isabel Allende conta a história de uma heroína chilena esquecida: Inés Suárez, uma das poucas mulheres a participar da conquista do país, no século XVI. Allende narra a epopéia em primeira pessoa, como autobiografia que Inés escreve, à beira da morte, para sua filha adotiva. O resultado é um painel fascinante, de aventura e paixão, dos primeiros anos da presença espanhola na América.

Inés é uma mulher do campo, rude e com pouca instrução, mas inteligente, observadora e habilidosa – na cozinha, na costura e na cama. Ela se casa com um galanteador fanfarrão, que parece um personagem de Jorge Amado, observa o diplomata indiano (e aficcionado pela América Latina) Rengaraj Viswanathan, em cujo blog li a resenha que me despertou o interesse por este romance. O marido a engana repetidamente e acaba por partir para a América, mas não sem antes ensiná-la a ser uma grande amante. Anos mais tarde, ela se cansa da falta de notícias e embarca para o Novo Mundo. Menos por amor e mais pelo descontentamento com o tédio e a falta de perspectivas de sua vida.

Na América, Inés passa rapidamente pelo que hoje são Venezuela, Colômbia e Panamá, e acaba na Cidade dos Reis – a Lima do conquistador Francisco Pizarro, uma sociedade de imensas riquezas, mas também de corrupção e violência. Mas é lá que ela conhece Pedro de Valdivia, militar veterano das guerras do Imperador Carlos V em Flandres e na Itália. Os dois se apaixonam e Inés se lança ao grande sonho de Pedro: a conquista do Chile, que no passado fora o limite austral do império Inca.

Isabel Allende é estupenda contadora de histórias e recria de modo bastante verossímil os detalhes do alvorecer da dominação colonial espanhola – a violência, o luxo desmedido, a ânsia de mando, os choques e trocas entre as culturas européias e os povos indígenas. As batalhas são descritas com exatidão de arrepiar, seja o célebre saque de Roma, sejam as campanhas dos conquistadores espanhóis contra os mapuche chilenos. Índios devotados à guerra que não se dobraram nem diante dos Incas, e logo aprendem as táticas da guerra moderna européia e passar a utilizá-las contra os invasores, com eficácia arrasadora.

Em muitos aspectos este romance se parece a “Desmundo”, de Ana Miranda, que também narra em primeira pessoa a saga de uma mulher européia nos primeiros anos da colonização do Brasil. Só que a heroína de Ana é uma órfã branca enviada de Portugal para povoar a terra com descendentes de europeus, sua história é de uma vítima constante e a metáfora que predomina é a da colonização como estupro. Inés é uma mulher ativa, senhora do próprio destino, protagonista do nascimento de uma nova colônia.

O único “senão” da forma escolhida por Allende é que a autora se sente incomodada com os aspectos mais brutais da conquista do Chile e às vezes força a mão para transferir esses sentimentos a sua heroina, fazendo que ela se manifeste criticamente aos castigos mais cruéis impostos aos índios. Gostei mais do método que Ian McEwan usou em “Na Praia” - um narrador distante e irônico que nos mostra como certos hábitos do passado são hoje ridículos, inaceitáveis e trouxeram tanto sofrimento inútil.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Guerra e Cooperação para o Desenvolvimento



Há uma revolução silenciosa ocorrendo no campo da cooperação internacional para o desenvolvimento: o impacto que as guerras vêm tendo na criação de novos instrumentos e agências estatais dedicadas ao tema. O principal campo de testes tem sido o Afeganistão, mas algo semelhante também ocorre no Iraque, na medida em que as condições de segurança permitem. A idéia básica é simples: a força militar, sozinha, não garante a vitória. Para estabelecer um mínimo de estabilidade política e confiança da população civil, é preciso oferecer algum tipo de compensação em termos de serviços públicos e emprego.

José Luis Fiori tratou disso em artigo recente ("Eleições e Escolhas Estratégicas", Valor, 07/11/2007). O texto só está disponível para assinantes, mas reproduzo o trecho principal, que diz respeito ao debate presidencial nos EUA: "E o que é mais interessante: quase todos os candidatos propõem a criação de “corpos”, brigadas ou agencias civis, encarregadas de reconstruir e administrar os territórios e os governos incorporados ou atingidos pelo poder americano, ao redor do mundo. Uma proposta que lembra muito as instituições e os servidores encarregados de administrar o império britânico: os “imperial builders”, da Rainha Vitória."

Há sem dúvidas semelhanças e muitos historiadores britânicos - como Niall Ferguson - comparam a Grã-Bretanha favoravelmente aos EUA, simplesmente porque a primeira tinha uma elite que fazia do serviço ao Império sua razão de ser. Não há nada parecido nos Estados Unidos em termos de talento, habilidade e dedicação ao célebre Serviço Colonial Indiano, que empregou homens brilhantes como Rudyard Kipling, Richard Burton e, em seus escritórios londrinos, John Stuart Mill e John Maynard Keynes. Fora outros gênios que serviram na Ásia e Oriente Médio, como Thomas Edward Lawrence e George Orwell.

Na medida em que decisões cruciais da política externa americana cada vez mais acontecem em lugares remotos como o Curdistão ou Cabul, tem aumentado as preocupações entre os líderes políticos sobre a incapacidade do país em lidar com tantos problemas de falta de informação e de profissionais especializados em questões de desenvolvimento, assistência social ou propaganda política para outros povos. Max Boot escreve em interessante artigo para o NY Times sobre a necessidade de (re)criar agências dedicadas a esse tema e dar-lhes autonomia diante do Pentágono e do Departamento de Estado.

Os casos mais interessantes em andamento são o uso de antropólogos na guerra do Afeganistão e a criação do Comando Africano pelas Forças Armadas dos EUA. O primeiro exemplo só chocará aqueles que desconhencem a história das ciências sociais. A antropologia nasceu dos serviços coloniais, e surgiu como uma ferramenta que visava ao domínio daquelas populações. Claro que depois ela se tornou outra coisa, mas sempre pode ser utilizada para seu velho propósito. Às vezes isso rende obras-primas, como "O Cristântemo e a Espada", clássico de Margaret Mead sobre a cultura japonesa escrito para o Exército americano durante a II Guerra Mundial.

A segunda situação merece explicação. As Forças Armadas dos Estados Unidos tem uma série de comandos internacionais, cada um responsável por uma região do planeta - a América Latina, por exemplo, está a cargo do Comando Sul. Até este ano, a África não tinha uma estrutura própria e o continente estava fragmentado entre os comandos "Europa", "Central" e "Pacífico".



O novo Comando Africano está sob a chefia de um general negro, evidentemente, mas sua criação é muito interessante por diversas razões. Primeiro, ilustra a importância crescente da África para a política internacional, basicamente como fonte de energia (petróleo, gás, bicombustíveis), minérios e matérias-primas. Mas também como ameaça de segurança para os EUA e Europa, tanto pela ação de grupos terroristas (Egito, Somália, Sudão) como possível local de origem de correntes emigratórias indesejáveis (fluxos de refugiados) e mesmo de epidemias.

Segundo, o novo Comando Africano tem um caráter diferente dos demais: é muito mais voltado para temas sociais e de desenvolvimento. Sua vice-chefe, por exemplo, é uma experiente diplomata de carreira. Também há a expectativa de que ele seja uma espécie de campo de testes para o trabalho conjunto de várias agências do governo americano dedicadas a esses assuntos.

O Brasil tem interessante política de cooperação para o desenvolvimento, que usa poucas verbas e é bastante concentrada na questão da capacitação de técnicos estrangeiros. Há muitos problemas de coordenação entre os diversos ministérios, mas especialmente entre o Itamaraty e as Forças Armadas. É uma vergonha que nossa diplomacia ainda não conte com um departamento especializado em temas militares, basicamente por conta de feridas não-cicatrizadas da época da ditadura. Esse insulamento burocrático vem impedindo que nosso país aperfeiçoe iniciativas muito importantes, como aquelas que o Exército vem desenvolvendo no Haiti, e que já estão se tornando referências internacionais, inclusive para as Forças Armadas dos EUA.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Leões e Cordeiros


Robert Redford tem longo e fértil envolvimento com a política. Há muito é um dos principais defensores do cinema independente nos EUA e com freqüência se envolve em projetos que fazem a diferença, como este “Leões e Cordeiros”, que sob sua direção é um dos filmes mais inteligentes e questionadores que vi em muito tempo sobre a política americana.

O filme conta três histórias simultaneamente: um jovem senador republicano em ascensão (Tom Cruise) dá entrevista exclusiva a jornalista veterana (Meryl Streep) com revelações sobre a nova estratégia a ser seguida na guerra do Afeganistão; dois oficiais do Exército executam o plano mas se vêem numa situação desesperadora devido aos azares do combate; um professor universitário (Redford) tenta convencer um estudante promissor, mas relapso, a mudar de atitude – citando o exemplo de brilhante dupla de ex-alunos, justamente os militares em dificuldades na Ásia.

Curioso como a TV americana está colonizando o cinema, no melhor sentido – Leões e Cordeiros deve muito ao excelente seriado The West Wing. Histórias simultâneas, tempo real, diálogos ágeis e o hábito deveras saudável de tratar Todas as opiniões políticas como legítimas e válidas, sem dar sermão no espectador. E fazendo-o parar e pensar.

O senador interpretado por Cruise é uma espécie de Kennedy do Partido Republicano, a face mais jovem que é encarada como possibilidade de renovação. Ele precisa deixar sua marca e aposta suas fichas numa nova estratégia que pode virar o jogo no Afeganistão. Tem relação complexa com a repórter vivida por Streep, que chama sua atenção para os paralelos entre o que ele propõe e o que foi feito na fase final da guerra do Vietnã. Irônica e questionadora, os diálogos entre os dois são espertíssimos:

“Você foi a primeira a me chamar de ´o futuro do Partido Republicano´ “
“Dada a situação atual do seu partido, como você sabe se não foi pejorativo?”
“Porque tive 77% dos votos.”



A seção dos dois militares é a mais fraca, na realidade está no filme como algo que une as outras histórias. O professor de Ciência Política (finalmente o ofício ganhou representação glamourosa, dá-lhe Redford!) lembra do desejo dos dois em assumir um compromisso com a sociedade, em se esforçar para mudar o mundo e usa-os para inquietar o aluno em que ele identifica tanto potencial, mas que está se deixando levar pela apatia e pela preguiça.

O professor discorda da guerra e acha que os dois erraram em se alistar, mas respeita a decisão e admira seu envolvimento. O estudante, em contraste, se diz decepcionado com a política americana e acha que não vale a pena se meter nela, prefere usufruir da alta qualidade de vida que pode desfrutar no padrão confortável da classe média dos EUA. A conversa entre ambos me lembram muito, mas muito mesmo, do que vejo em sala de aula.

O que torna o filme tão interessante é o fato de que as motivações dos personagens são justas, mas eles cometem erros, têm suas pequenas e grandes fraquezas e muitas vezes o resultado de suas ações é bastante diferente da intenção nobre que as inspirou. Ao fim, a questão central de “Leões e Cordeiros” é responsabilidade. Qual o papel que cada um de nós – políticos, jornalistas, acadêmicos, militares, estudantes – temos diante da sociedade. Acima de tudo, o filme de Redford nos faz um apelo: vamos parar por instantes e refletir sobre o que estamos fazendo de nossas vidas, se estamos desenvolvendo ao máximo nosso potencial e contribuindo para que o mundo seja um lugar melhor. Ou, ao menos, para que os piores não triunfem a partir de nossa apatia.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Fim de Tese


Completei minha tese de doutorado no sábado. O processo final foi rápido: apenas oito meses de redação. Precedidos, claro, por três anos de leituras e pesquisa. Se essa primeira etapa de trabalho é bem executada, o resto é organizar as fichas e apresentar as informações.

Supõe-se que uma tese deva contribuir à teoria e inovar numa área específica de pensamento. Bonitas ambições, além do escopo do meu trabalho. Meu objetivo é mais simples: entender as guinadas da política externa argentina dos últimos 20 anos no que diz respeito às suas relações com Brasil e Estados Unidos. Aprendi muito durante a pesquisa e gostei do resultado. Acredito que quem ler meu texto descobrirá uma coisa ou duas sobre nosso vizinho e se interessará em conhecer mais. Não creio que seja um trabalho inovador, apenas reforça algumas tendências contemporâneas um tanto marginais na academia brasileira, como a necessidade de estudar mais a fundo as dinâmicas políticas internas (inclusive a ascensão de movimentos sociais e os debates sobre identidade cultural) para entender a formulação da agenda diplomática.

Hoje deixei os dois últimos capítulos da tese no IUPERJ, para que meu orientador possa lê-los, avaliá-los e me indicar mudanças e correções. A princípio farei minha defesa em março de 2008, após as férias de verão. A data é mais adequada para os horários dos professores e também me permite um bom tempo para os ajustes finais.

O término da tese marca o fim de uma jornada muito importante que ocupou meus últimos quatro anos. Entrei para o doutorado com muitas dúvidas se era a melhor opção, o que acabou me decidindo foi a facilidade que o IUPERJ dá a seus mestrandos de prosseguir na especialização profissional. Pensei, ora bolas, em algum momento vou querer concluir o curso, por que não agora? Se ficar cansado, tranco matrícula. Não fiquei, evidentemente. Às vezes ouço histórias de terror de doutorandos, mas para mim esta é uma época de aprendizado alegre, do convívio fraterno com os amigos e do enorme estímulo por parte dos professores.

É possível que às vezes eu frustre meus mestres pela minha relutância em me dedicar integralmente à vida acadêmica. Afinal, já recusei diversas ofertas de cargos como professor e até convites para coordenar cursos de pós-graduação. Tenho claro para mim de que não é o que desejo, ao menos neste momento. Meu horizonte é trabalhar com políticas públicas e cooperação para o desenvolvimento, ainda que sempre queria tempo para lecionar.

Na semana passada estive em Brasília a convite da Secretaria Nacional de Juventude e da Organização Internacional do Trabalho, para uma excelente oficina sobre jovens e políticas de emprego. Coordenei uma mesa de debates e conversei muito com técnicos do governo e do sistema ONU, representantes de ONGs e movimentos sociais. É bom ver que os dados de nossa pesquisa sobre juventude na América do Sul estão tendo acolhida interessada, entusiasmada mesmo, por parte de tantas pessoas dedicadas ao tema. Agora mergulharei de cabeça na redação do relatório final do projeto, que precisa ficar ponto em três semanas.

Um pequeno episódio da viagem ficou comigo como exemplo das limitações do meu ofício. Tarde da noite no aeroporto do Rio de Janeiro, esperava o vôo para Brasília lendo o relatório brasileiro da nossa pesquisa sobre juventude. Estava cansado e tenso pelo acúmulo de trabalho, quando um menino se aproximou e pediu para engraxar meus sapatos. Duvido que tivesse mais de 8 anos. Negro, claro. Agradeci, mas recusei. Ele então se ofereceu para me vender pulseiras: “Elas ficam lá fora, porque o guarda não me deixa entrar com elas”. Disse não, novamente – quantas vezes o garoto ouve a expressão num só dia? Ele então se afastou em sua solidão, rumo à chuva, rumo à noite. Na minha pasta, trazia um romance francês, presente da minha mãe, sobre as angústias da alta burguesia parisiense. Botei o livro de lado e voltei ao relatório sobre juventude brasileira, com raiva e frustração.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Princesas


si la vida te da más de cinco razones para seguir
si la vida te da más de 5 rincones para dormir
si la vida te da más de 5 millones para morir

se fuerza la máquina de noche y de día
se fuerza la máquina de noche y de día
si la vida te da más de 5 cabrones para aguantar
si la vida te da más de 5 lecciones para no seguir

se fuerza la máquina de noche y de día
se fuerza la máquina de noche y de día


Tenho uma dívida com o cineasta espanhol Fernando León de Aranoa. Sempre reluto em assistir a seus dramas sociais. Os temas me interessam, mas são pesados e fico indeciso por semanas até finalmente vê-los e me maravilhar com a poesia e sensibilidade com que retrata os problemas das pessoas pobres. Foi assim com “Segunda-Feira ao Sol”, talvez o melhor filme contemporâneo sobre desemprego. E repeti a dose com “Princesas”, excelente história sobre prostituição, imigração, mas acima de tudo, amizade.

A capa do DVD traz uma crítica que afirma que León tem “o mesmo estilo de Almodóvar”. Bobagem para atrair espectadores. Ao contrário do diretor de “Carne Trêmula”, seus filmes têm sentimentos contidos, humor sofrido e felicidade que nunca é para sempre, apenas uma trégua na vida. “Princesas” é protagonizado por duas mulheres muito diferentes. Cayetana (interpretada por Candela Peña) é uma espanhola de classe média, que por razões que não sabemos, trabalha como prostituta. Lida com suas dificuldades contruindo fantasias sobre princesas e utopias de dias perfeitos, mais ou menos como sua mãe viúva enfrenta a solidão enviando flores para si mesma e fingindo ter um admirador secreto. Quem tira Cayetana de seu castelo é Zulema (a atriz porto-riquenha Micaela Nevárez), imigrante ilegal da República Dominicana. Mais jovem, muito bonita, ela também é prostituta e sobrevive na Espanha com saudades do país natal e do filho pequeno que deixou para trás. Uma série de acasos as aproxima e a necessidade de apoio mútuo as torna grandes amigas.

voy calle abajo, voy calle arriba
no me rebajo ni por la vida
me llaman calle y ése es mi orgullo
yo sé que un día llegará, yo sé que un día vendrá mi suerte
un día me vendrá a buscar, a la salida un hombre bueno
pa toa la vida y sin pagar, mi corazón no es de alquilar


Como em “Segunda-Feira ao Sol”, León utiliza um grupo de personagens em cenas cotidianas que dão o panorama de um tema social. Em “Princesas”, isso acontece com dois grandes blocos: as prostitutas e os imigrantes. As primeiras são mostradas na rua, à busca de clientes, ou num salão de cabelereiro, que rende muitas das melhores cenas do filme. As amigas de Cayetana estão inquietas com o aumento da competição, pois as imigrantes ilegais cobram mais barato e atraem os homens com sua beleza exótica.



Os diálogos são ótimos, quase uma paródia de uma reunião de conselho diretor de empresa. O mundo dos imigrantes entra através de Zulema, e dos restaurantes étnicos, dos quartos de aluguel onde se revezam várias famílias, da angústia de não ter papéis e estar sempre à mercê das autoridades.

me llaman calle, de esquina a esquina
me llaman calle bala perdida, así me disparó la vida
me llaman calle del desengaño, calle fracaso, calle perdida
me llaman calle la sin futuro
me llaman calle la sin salida


A prostituição é o supra-sumo da mercantilização do ser humano e não por acaso o dinheiro é um importante personagem do filme. Cayetana tem uma obssessão quase fica com notas e moedas e a todo o tempo é mostrada manuseando-as, e anotando seus ganhos num caderno. Ela economiza para um implante de silicone que, acredita, a tornará mais competitiva no mercado. Os celulares também aparecem muito, como uma ferramenta de trabalho particularmente incômoda.

Um ponto alto, altíssimo do filme, é a excelente trilha sonora composta por Manu Chao, com as canções “Cinco Razones” e “Me Llaman Calle”. Os ritmos mestiços e a poesia cortante de suas letras funcionam à perfeição para a história de Cayetana e Zulema, alternando drama, humor, garra e o desejo romântico de encontrar um homem que as espere à saída do trabalho, e que não pague. Os trechos em itálico são dessas canções.

O maior mérito de “Princesas” é se concentrar no aspecto humano, da amizade entre as duas mulheres, e raramente ter enfoques moralistas sobre a prostituição – embora isso aconteça no final, que não me agradou. Críticas pontuais ao trabalho de um excelente cineasta, que preciso acompanhar com mais atenção.

sábado, 10 de novembro de 2007

Deus é brasileiro. O Diabo também.



Fui surpreendido, como todos, pela descoberta das gigantescas reservas de petróleo e gás no litoral. Nas expectativas mais pessimistas, elas aumentam o estoque petrolífero brasileiro em 30%. Nas projeções mais otimistas, colocariam o país no mesmo patamar da Venezuela. Em qualquer caso, as implicações são imensas: elevam o Brasil da autosuficiência para a condição de exportador de hidrocarbonetos, numa conjuntura de imensa valorização do petróleo.

O anúncio da descoberta foi feito em meio à crise de abastecimento energético. Astrólogos acreditam em coincidências. Cientistas políticos, não. Embora utilizemos ferramentas analíticas com mais ou menos o mesmo nível de precisão de Saturno na casa da Lua. É claro que o governo deu recado aos investidores e à opinião pública: a de que o crescimento econômico continuará, apesar das dificuldades atuais.

As perspectivas brasileiras são fascinantes: exportador de biocombustíveis e de petróleo, enorme potencial hidrelético (a ser ampliado pelas novas usinas no Rio Madeira), pesquisas na área nuclear (incluindo o submarino). Poucos países têm tanta segurança energética. No porte do Brasil, só a Rússia, pois EUA, Índia e China são extremamente deficitários em energia e dependem das importações que com freqüência vêm de regiões instáveis. E ainda vamos sediar a Copa do Mundo, liderar a OMC, participar como convidados do G-8 e da OCDE e eventulamente virar membros do Conselho de Segurança da ONU. Deus é brasileiro.

As reservas recém-descobertas seguem o padrão nacional: estão em águas muito profundas, de acesso difícil e caro. Isso significa que levará alguns anos até que sejam viáveis economicamente. A Petrobras estima que apenas em 2012, provavelmente levará mais. Em qualquer caso, significa que o atual governo, e seu sucessor, continuarão a enfrentar o problema de escassez de energia, sobretudo a de gás, com tudo que isso representa para a tensão com a Bolívia.

Mas o que me preocupa, no médio prazo, é como o Brasil gastará as enormes riquezas recém-descobertas. Se me permitem a paráfrase do grande filósofo político Paulinho da Viola, encontrar uma Venezuela ou uma Arábia Saudita no litoral é vendaval. Países petrolíferos quase sempre são exemplos de desperdício, corrupção, gastos inúteis e projetos faraônicos.

Outros países da América Latina entraram na euforia de reservas de petróleo que pareciam imensas e ao fim, não eram. Paraguai e Bolívia foram à guerra por causa de miragem do tipo. O México dos anos 70 implementou uma política econômica tão desastrosa por conta da esperança petrolífera que teve que decretar moratória da dívida externa poucos anos depois.

Claro, o Brasil não é um emirado do Oriente Médio e aqui há uma sociedade civil muito mais articulada e mobilizada. Graças a Deus, porque precisaremos muito dela para a fiscalização e o deabate sobre o que este país fará com os petrodólares que fluirão para cá daqui a alguns anos.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Invenção do Desenho


Se os discípulos de Alberto Costa e Silva somos poucos, nosso pequeno número é mais ilustrativo do estado atual da cultura brasileira do que do talento do mestre. Como não se maravilhar diante de seus estupendos livros sobre a África? Não falo de A Enxada e a Lança, cujo tamanho pode assustar, mas dos volumes elegantes de Um Rio Chamado Atlântico, Das Mãos do Oleiro ou a incrível biografia do traficante de escravos Francisco Félix de Souza, o Chachá. E ainda o extraordinário perfil do poeta Castro Alves. E para quem prefere a política às belas-letras, o importante papel que o embaixador desempenhou na formulação da diplomacia africana do Brasil, dos anos 1960 aos 1980. Com este prólogo, fácil entender meu entusiasmo por sua autobiografia dos anos de juventude, Invenção do desenho – ficções da memória.

Em livro que se lê como romance, temos a vida de Costa e Silva de 1945 a 1961. Começa com o adolescente presenciando a queda do Estado Novo e termina com o autor nos seus trinta anos, diplomata a servir no Portugal de Salazar e a viajar pela África onde explodem os movimentos de libertação colonial. O pano de fundo íntimo são as dores de família – a loucura mansa do pai, a morte da mãe, o divórcio da irmã, a tuberculose que atinge o protagonista e, acima de tudo, a formação cultural pelas leituras intensas e depois pelas viagens do início da carreira diplomática.



Costa e Silva escreve numa prosa clara, de emoções contidas, mas poderosas. Tomemos como exemplo o parágrafo em que a relação do pai, já louco, quando o filho publicou o primeiro artigo em jornal:

Havia meses, ele deixara de ler. Não o via mais de óculos. Nem tomar um papel para o rabisco de lápis. Meninote de 15 anos, nunca mais lhe pedira que me fizesse desenhos. Com o jornal na mão, diante dele, senti nas veias o remorso de haver crescido. E me sentei em seu colo.

A vida intelectual e cultural do Rio de Janeiro descrito por Costa e Silva ainda guarda muito da capital da Belle Époque, com ranço do positivismo e dos pequenos círculos de amigos e revistas literárias tecidas por mansos funcionários públicos, no tédio das horas vazias nas repartições. O melhor é sua amizade com Guimarães Rosa, que começava a despontar – o boato no Itamaraty era que o embaixador Rosa escrevia um romance interminável sobre bandidos no sertão – e anedotas sobre Manuel Bandeira, Lygia Fagundes Telles, Raul Bopp, Josué Montello, Afrânio Coutinho.

Os relatos sobre o ingresso no Itamaraty são semelhantes aos de muitos diplomatas, meus alunos no Clio talvez se consolem em saber que o concurso de admissão era bem mais difícil – uma das perguntas da prova de cultura geral era dissertar sobre Wagner e, em seguida, abordar o bumba-meu-boi.

Costa e Silva começou na carreira num momento em que a política externava começava a renovar-se, com o lançamento da Operação Pan-Americana por JK. Há ótimas observações sobre esse presidente e também a respeito de Jânio Quadros, que é retratado como um louco inteligentíssimo, capaz de fascinar os ouvintes e ao mesmo tempo sumir na noite de Lisboa atrás de uma corista, ou de tentar visitar a cidade incógnito, já como chefe de Estado eleito do Brasil. Disserta muito sobre Salazar (foto), o crescimento da oposição democrática e o fascínio que despertava na maioria dos brasileiros, inclusive JK.



O principal relato de Costa e Silva na política é a ambigüidade da posição brasileira com relação à descolonização africana. O Brasil queria apoiá-la, mas era tolhido pela proximidade que mantinha com Portugal. Há uma ótima passagem na qual o autor e outros jovens diplomatas criticam essa abordagem com JK, que lhes dá uma aula de realpolitik: o presidente lhes chama a atenção para o fato de que quase todas as famílias brasileiras tinham parentes portugueses e olhariam com hostilidade ações contra o país, ao passo que poucos eleitores conseguiriam apontar Angola no mapa, embora pudessem ser simpáticos à causa da independência do país.

Isso não impediu a diplomacia brasileira de acompanhar com interesse o que se passava na África e Costa e Silva narra de maneira emocionante suas viagens por Egito, Etiópia, Gana, Nigéria, Togo, Daomé e Angola. Os primeiros passos da sua brilhante trajetória intelectual como estudioso da história e das culturas do continente.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Tudo é Iluminado



Não assisti a Uma Vida Iluminada quando o filme foi exibido nos cinemas, mas gostei muito de vê-lo em vídeo. A história é a adaptação do romance Everything is Illuminated, do americano Jonathan Foer – a má tradução para o português rouba o sentido das aventuras dos personagens.

Foer é também o protagonista da trama. Desde criança, ele é um colecionador, que recolhe pequenos objetos pertencentes a seus parentes, numa ânsia aparentemente irracional de preservar a memória da família, judeus que emigraram da Ucrânia para os EUA. Já adulto, decide viajar ao país natal do avô, em busca de uma misteriosa mulher que o teria ajudado a fugir dos nazistas.

Na Ucrânia, Foer contrata os serviços de um homem idoso e seu neto, ambos chamados Alex, que têm uma empresa dedicada a receber turistas americanos em busca das raízes judaicas. Na realidade, a história é narrada por Alex Neto, personagem em tudo semelhante a Borat por seu humor escatológico, anti-semitismo e grosseria cultural. Esse é o ponto fraco do filme: a trama correria muito bem sem precisar apelar para os esteriótipos americanos que enxergam como bárbaros todos aqueles que moram à leste de Viena.

À medida que os personagens se embrenham pelo interior ucraniano em busca da aldeia do avô de Foer, a história ganha em drama humano. Por que Alex avô está tão inquieto e sonhador? Por que ninguém nos arredores parece conhecer o vilarejo que os três procuram? Não me cabe responder a essas perguntas, mas adianto que o resultado é uma bela fábula sobre memória, identidade e culpa, e de como é possível tratar com sensibilidade e criatividade um tema tão repleto de clichês como o Holocausto.

O que me motivou a ver o filme por estes dias foi uma experiência que ocorreu com meu irmão, que aproveitou sua viagem à Itália para buscar a aldeia natal de nosso avô – Fuscaldo, na região da Calábria. Eu havia passado junto a ela quanto estudei no país, há sete anos, mas não tive nenhuma epifania ou revelação. Vovô emigrou da Itália quando criança e sempre achei que suas raízes, como as minhas, estavam muito mais pelo centro do Rio de Janeiro do que em qualquer lugar do Velho Mundo.



Genealogias sentimentais à parte, a jornada do meu irmão é bonita, ainda que eu não compartilhe do seu desejo de busca das raízes.

Breve curiosidade: o irmão de Jonathan também é escritor. Chama-se Franklin Foer e é autor do excelente “Como o Futebol Explica o Mundo”, que também tem um capítulo ambientado na Ucrânia, sobre choque cultural e racismo dos jogadores africanos no país. Que família! Vovô Foer deve estar orgulhoso da prole.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A Palavra É... Democracia


As reformas políticas de Chávez cada vez concentram mais poder em suas mãos e levam a acusações de que ele estaria implementando uma ditadura na Venezuela. A teoria democrática fornece ferramentas que ajudam a compreender as apreensões sobre o que acontece no país. Quando nós, cientistas políticos, dizemos que um país é democrático, levamos em conta uma série de fatores, sendo os mais importantes:

- A liderança política é escolhida através de eleições limpas, de sufrágio secreto e universal (isto é, todos os adultos votam).
- Há liberdade de expressão, de imprensa e de organização política.
- Os poderes que constituem o Estado são independentes.
- Vigora o império da lei e a garantia dos direitos humanos.
- O exercício da vontade da maioria convive com o respeito aos direitos das minorias.

Como se percebe, a democracia vem em graus e muitos regimes democráticos convivem com práticas autoritárias e corruptas. Nem sempre é fácil determinar quando um país é uma ditadura – tanques na rua e tortura, como no Paquistão ou na China são respostas fáceis, mas muitas nações vivem em zona cinzenta, nas quais as leis formais são até razoáveis, mas na prática são desrespeitadas. Como avaliar, por exemplo, o México do auge do domínio do PRI? Vargas Llosa o ironizava como "a ditadura perfeita", justamente por não parecer uma. E os casos bizarros, como a Suíça, na qual as mulheres só ganharam direito a voto nos anos 1970, mas que obviamente é um país no qual se respeitam as liberdades básicas?

Para tentar lidar com a questão, muitas organizações e pesquisadores criaram índices e rankings para “medir a democracia” em escala global. Uso a expressão entre aspas porque tais experiências ainda são muito sujeitas ao subjetivismo e à imprecisão. Por exemplo, o que é mais importante: liberdade de imprensa ou independência do Judiciário?

Com estas ressalvas em mente, analisemos o caso da Venezuela. Hugo Chávez está há quase dez anos no poder e tem sido acusado de violar quase todas as características listadas acima – só escapa o aspecto eleitoral.

Seu modo de governar é bastante plebiscitário, ou seja, usa seu carisma e a força do cargo para passar por cima das instituições e partidos e propor medidas diretamente à população. Ganha essas votações por pequenas margens – em geral tem contra si cerca de 45% do eleitorado. Eliminou o Senado, nomeou homens de sua confiança para a Suprema Corte e tirou da ar uma emissora de TV que lhe fazia oposição e apoiou a tentativa de golpe para depô-lo. Além disso há pressões sobre o funcionalismo público, que não tem garantias de estabilidade.

A Repórteres Sem Fronteiras classifica a Venezuela em 114o lugar em seu índice de liberdade de imprensa. É uma péssima classificação – mas está melhor na lista do que Peru (117), Índia (120), Colômbia (126), México (136) e Rússia (144).

Outra classificação muito usada é a da Freedom House, ONG americana fundada por Eleanor Roosevelt. A instituição afirma que a Venezuela é um país “parcialmente livre”, categoria que ela divide na América Latina com Paraguai, Equador, Bolívia e Colômbia.

A Freedom House avalia como “livres” países que RSF olha com muita desconfiança, como México. Gostaria de saber no que as turbulências da Bolívia e Equador são piores do que as eleições fraudadas no México ou a repressão política em Oaxaca.

O Brasil recebe a mesma avaliação do que o Canadá - "livre" - embora qualquer morador, digamos, do Complexo do Alemão se espantaria ao saber que para Freedom House ele vive tão leve e solto como um ricaço em Montréal.

Dito de outro modo, democracia é um assunto complicado e sujeito a todo tipo de manipulação retórica, de duplos padrões de julgamento (aos amigos tudo, aos inimigos, o rigor da análise) e mesmo de desconhecimento das realidades locais. Além disso, em países muito desiguais, é o caso de se perguntar como fica a questão para cada classe social.

Mas que reeleição perpétua é uma porcaria, isso é.

domingo, 4 de novembro de 2007

Chávezwood


Meu amigo Leonardo me chamou a atenção para reportagem na BBC sobre a Villa del Cine, o estúdio de cinema criado por Chávez para produzir filmes sobre a América Latina. A produção de estréia é “Miranda Regresa”, sobre uma das mais extraordinárias personalidades da história do continente: Francisco de Miranda, um dos grandes precursores da independência dos países sul-americanos. Intelectual iluminista, conspirador liberal, mulherengo, aventureiro. Napoleão o comparou a Dom Quixote, a imperatriz Catarina da Rússia o tomou como amante, San Martin, Danton, Alexander Hamilton e Thomas Paine foram seus amigos. Lutou pela Espanha contra os mouros na África e os ingleses no Caribe, foi marechal dos exércitos da Revolução Francesa, voltou à América e serviu como general junto a Bolívar. As fotos que ilustram os posts são do filme.

O que nós, brasileiros, sabemos sobre uma vida tão fantástica?

Nada.



O outro projeto da Viila del Cine também promete: uma biografia de Toussaint L´Ouverture, dirigida pelo ator americano Danny Glover. O astro de máquina mortífera tem compromisso na luta anti-racismo, que se traduziu em filmes sobre o apartheid. Natural que queria filmar a vida de um líderes da revolta negra no Haiti – que já rendeu o belíssimo romance “O Reino Deste Mundo”, do cubano Alejo Carpentier e o poema de Aimé Cesaire. Chávez deu US$18 milhões a Glover para o filme – o dinheiro veio da venda de títulos da dívida externa argentina, que o presidente comprou para ajudar aquele país no momento da renegociação do débito.

E de Bolívar, nada? Claro que sim. Também há o projeto de adaptar o romance de Garcia Márquez sobre os amargos dias finais do Libertador, “O General em seu Labirinto”.

Convenhamos: vocês conhecem outra produtora de cinema que tenha um catálogo tão apetitoso de projetos em andamento? A "Lulawood" da Petrobras e do BNDES andam mais ocupados financiando pastiches das novelas da Globo e o próximo melodrama envolvendo apresentadoras de programas infantis, duendes, golfinhos ou outra experiência destinada a provar a inexistência de cérebros nas platéias brasileiras.

Vivemos num continente com uma rica história e cultura, e vários dos momentos mais marcantes não chegam às telas. Abaixo, listo algumas situações que gostaria de ver transformadas em filmes latino-americanos:

1)Um épico sobre a Guerra da Tríplice Aliança, narrado pela perspectiva das quatro nações que lutaram o conflito. A rigor, o tema é tão vasto que ficaria melhor como uma série de TV.

2)Cinebiografias de Bolívar e San Martin.

3)Ascensão e queda de Perón.

4)A saga do arquiduque austríaco Maximiliano, que numa manobra de Napoleão III virou imperador do México, até ser deposto e fuzilado por seus oponentes.

5)A história contemporânea do Brasil através do samba, da MPB e do rock. Digamos, da Era Vargas aos anos 1980.

6)As transformações na Igreja latino-americana, da Conferência de Medellín à ascensão de João Paulo II.

7)Uma história sobre o movimento da reforma universitária da Argentina, contada atráves de estudantes de vários países, com a repercussão sobre cada um.

8)Adaptações cinematográficas de clássicos da literatura latino-americana, como “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez, e “Conversa na Catedral”, de Mario Vargas Llosa.

E vocês? Quais sugerem?

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Bolívia: de volta às negociações


Em 70 anos a Bolívia nacionalizou os hidrocarbonetos três vezes. Em geral as decisões eram revertidas poucos anos depois, devido à falta de investimentos e de técnicos especializados. Parecia que a situação de Evo Morales caminhava no mesmo sentido, por seus problemas no abastecimento de óleo diesel (após a estatal YPFB ter comprado as duas refinarias da Petrobras no país) e pela escassez de recursos finaceiros. Mas eis que o Brasil se vê novamente à beira de uma crise de abastecimento de energia. Hora de voltar a negociar.

O Sergio Leo conta a história em sua coluna do Valor desta segunda, reproduzida em seu site. E analisa: "Em La Paz, observadores internacionais apontam o forte impacto que teria o anúncio de um acordo entre o governo Morales e a estatal brasileira para aumento de investimentos no país: todas as outras companhias petroleiras suspenderam decisões, para assistir ao que acontecerá com a brasileira, que deverá estabelecer uma espécie de marco para proteção aos investimentos no setor."

Na terça-feira, a Petrobras precisou abastecer emergencialmente termelétricas e diminuiu em 17% o fornecimento de gás para o Rio de Janeiro e São Paulo, prejudicando indústrias (algumas) e postos de gasolina (muitos).

O que acontece? A economia cresce às taxas mais altas desde os anos 1970 e o sistema de abastecimento energético não consegue dar conta do recado. O ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras, Ildo Sauer, pediu demissão em setembro e escreveu: "Limpamos e reestruturamos totalmente as verdadeiras cavalariças em que tinha se convertido o plano emergencial de geração termoelétrica a gás natural elaborado pelo governo FHC no desespero vão de tentar evitar o apagão de energia elétrica”.

Pelo visto, as cavalriças continuam sujas. E o Brasil depende das importações do gás natural da Bolívia e todo o processo está conturbado desde a nacionalização de 2005, quando o governo Evo Morales assumiu controle acionário (50% +1) das operações bolivianas da Petrobras, e aumentou os impostos de 50% para 80%. A empresa interrompeu os investimentos no país e o quê está em discussão agora é a retomada do fluxo, em trocas de garantias de Morales.

A distribuição dos recursos energéticos na América Latina estimula a integração regional do setor: as maiores reservas estão na Venezuela e Bolívia, países com pouca demanda interna. Podemos ter um ciclo virtuoso no continente, com os dois países fornecendo a energia necessária para Argentina, Brasil e Chile. A questão é superar desavenças políticas (como os atritos chavistas e a disputa pelo mar entre chilenos e bolivianos) e acordar o preço justo a ser pago pela exploração dessas riquezas.

Não será um processo fácil nem barato. Com o barril de petróleo acima de US$95, qualquer fonte de energia alternativa, como o gás natural, será muito valorizada. E hoje em dia, ao contrário do que ocorria no passado, tais acordos econômicos precisam ser negociados não apenas entre elites, mas levando em conta a força de movimentos populares. As novas regras do jogo estão dadas de forma cristalina na foto do post: pichação que vi em Buenos Aires, em plena Avenida de Maio.

A integração européia começou pelo carvão e pelo aço, dois recursos naturais que foram disputados em inúmeras guerras. Nenhum governo latino-americano abrirá mão do controle sobre os hidrocarbonetos, mas uma organização internacional que gerencie os conflitos - eventualmente no âmbito de um processo já existente, como a Unasul - pode ser um belo primeiro passo.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Um Bom Ano



“E assim, se passaram doze meses...” Parece letra de tango, e de repente pode ser, porque faz exatamente um ano que abri a janela da foto acima, em meus primeiros momentos em Buenos Aires. Mais do que viagem de estudos, foi uma experiência de felicidade prolongada. Os leitores mais antigos devem tê-la acompanhado pelos Conspiradores.

Tudo começou em 2004, quando saí de uma sessão de Memórias del Saqueo num cinema de Buenos Aires e disse a mim mesmo: Quero entender este país. O projeto de passar uma temporada na Argentina foi muito bem recebido pelos meus professores no IUPERJ, mas nem tanto pelos colegas. Chegaram a perguntar se eu havia brigado com a direção do instituto, pois achavam que essa era a única razão pela qual eu faria o trabalho de campo na América Latina, e não na Europa ou nos Estados Unidos.

O que aprendi na temporada argentina?

Primeiro, a pesquisa foi fundamental para a tese. Revi várias hipóteses, fiz entrevistas com líderes políticos e diplomáticos, li estudos e pesquisas que não estão disponíveis no Brasil.

Segundo, a experiência impactou diretamente nas minhas aulas. Refiz programas, incluí autores, chamei a atenção dos estudantes para debates que correm no mundo hispânico.

Terceiro – e mais importante no longo prazo – foi um distanciamento bem-vindo da perspectiva brasileira e abertura para outros horizontes. A gente precisa dar um passo para trás se quiser pensar (e criticar) o próprio país.

Este foi sem dúvida meu ano mais latino-americano. Além da temporada argentina, com seus desobramentos em Buenos Aires, Mendoza e Paragônia, estive no Uruguai, na Bolívia, no Paraguai e ainda fui ao congresso sobre o continente no Canadá. A maior parte dessas iniciativas se deu por conta da pesquisa sobre juventude na América do Sul, que entrou em sua fase finalíssima – e dificilmente eu teria sido lotado nessa maravilha se não fosse pela experiência na Argentina.

O projeto é espetacular e me deu a chance de entrar em contato com uma realidade que me é totalmente estranha, de conversar com os músicos de hip hop nas favelas bolivianas ou chupar tangerina com os camponeses paraguaios em seus vilarejos. Para além das distâncias sociais, culturais e geográficas, há uma humanidade comum que trascende todas as diferenças e marca de maneira muito forte quem a experimentou.

Planos?

Muitos, muitos mesmo.

Comecei a escrever o último capítulo da tese de doutorado. Acredito que termino o texto neste mês e já conversei com meu orientador sobre realizar a defesa em março de 2008.

Planejo meu horário e resolvi cortar parte das minhas turmas no cursinho. Quero mais tempo livre, uma rotina menos corrida.

Com certeza quero passar por outras experiências internacionais e me dedicar a temas de políticas públicas e desenvolvimento. Além do trabalho na área de cooperação, acredito que isso virá através de um pós-doutorado e tenho visto programas excelentes. Além dos que descobri no Canadá, Oxford e Princeton lançaram um programa conjunto para a formação de Líderes Globais. De dar água na boca.