segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Terras Sangrentas

Bloodlands – Europe between Hitler and Stalin”, do historiador Timothy Snyder (Yale) é um dos livros mais assustadores que já li. Nas terras sangrentas do título – Polônia, Países Bálticos, Ucrânia, Bielo-Rússia e a porção ocidental da Rússia - a Alemanha nazista e a URSS stalinista assassinaram cerca de 14 milhões de civis entre 1933 e 1945, e pelo menos dez milhões de soldados morreram no enfrentamento militar entre ambas. Snyder conta essa história com base em excepcional pesquisa em arquivos das nações engolfadas pelo terror.

O que tornou a região tão turbulenta é que ela foi o local onde os projetos de poder de Hitler e Stalin se chocaram. Foram o legado dos impérios alemão e russo que se esfacelaram na I Guerra Mundial. Mas como Snyder observa, os alemães venceram o conflito na frente leste e tiveram um breve gosto de governar boa parte da área em 1917-8. Hitler desejava restaurar essa zona de influência como o “espaço vital” que faria o papel de colônias agrícolas para o III Reich. Para os bolcheviques, tais terras eram o cordão de segurança que precisavam para proteger seu nascente regime dos inimigos externos e internos.

De 1933 a 1939, Stalin matou mais do que Hitler. Foram os anos da grande fome na Ucrânia, o celeiro da URSS, provocadas pela coletivização forçada da economia e pelos massacres do governo contra os camponeses que se opuseram a ela. Também foi a década do “Grande Terror”, com as condenações dos líderes comunistas que resistiam a Stalin nos processos de Moscou. O ditador matou metade dos generais do Exército Vermelho e também a cúpula da polícia secreta (que então se chamava NKVD). Os poloneses e ucranianos foram particularmente perseguidos – presos, deportados para a Ásia Central ou mortos – porque o ditador temia que eles pudessem se aliar à República da Polônia ou ao Japão, os dois inimigos externos que a URSS mais temia na década de 1930.

A Alemanha e a URSS gozaram de relações cordiais nas décadas de 1920 e 1930, não obstante a polarização ideológica nos dois países. Ambos tinham o objetivo comum de revisar a ordem mundial surgida com o Tratado de Versalhes, pilhando a Europa Oriental e os Países Bálticos. O Pacto de Não-Agressão entre Hitler e Stalin, e a partilha da Polônia em 1939 foi o capítulo final dessa colaboração, até o choque titânico entre ambas, entre 1941-1945.

Hitler também matou oponentes políticos antes de 1939, como nos expurgos contra a SA, a ala anti-capitalista do Partido Nazista. Seus assassinatos em massa se intensificaram com a Segunda Guerra Mundial. Ele e Stalin compartilhavam a meta de exterminar a elite polonesa e mataram deliberadamente líderes políticos, militares e intelectuais. O massacre mais célebre, o de Katyn, foi obra dos soviéticos, mas os nazistas organizaram extermínos comparáveis – 20% da população polonesa foi morta na guerra, o percentual mais alto entre todos os países envolvidos no conflito. Os países bálticos enfrentaram destino semelhante, ainda que em menor escala.

A Alemanha nazista esperava derrotar a URSS numa guerra-relâmpago de poucas semanas, o que não ocorreu. A ofensiva germânica foi detida diante de Leningrado, Moscou e Stalingrado e o resultado foi que o gigantesco exército invasor não tinha planos e organização logística para se manter, recorrendo à pilhagem para sobreviver. As ordens de Hitler eram para assassinar líderes comunistas e guerrilheiros, logo se expandiram para várias categorias – inclusive, evidentemente, os judeus.

Ao invadir a URSS, a Alemanha passou a controlar a maior população judaica da Europa. Até então a “solução final” era aprisioná-los em campos de trabalho no leste, com vagos planos de deportação para a África. Os milhões de judeus em território soviético exasperaram os nazistas, que temiam que eles se rebelassem e decidiram assassiná-los – a princípio em chacinas em fossas comuns, por comandos especiais da SS, depois em campos de extermínio ou de trabalhos forçados.

Snyder fecha o livro com excelente análise do cenário do pós-guerra, com as negociações de Stalin para remodelar as fronteiras da Europa Oriental, aumentando as da URSS às expensas da Polônia, e compensando esta com territórios que haviam pertencido à Alemanha (acima). O autor aborda a deportação forçada dos alemães e de outros povos nesse período, bem como as idas e vindas do anti-semitismo de Stalin – ele apoiou a criação de Israel achando que seria um golpe nos impérios colonias do Ocidente, mas mudou de idéia quando viu o tremendo impacto do sionismo nos judeus soviéticos. Morreu acusando-os de um complô para assassiná-lo.

9 comentários:

Leo Teles disse...

Nossa, bastante interessante. Deixou-me com vontade de ler o livro. Nunca entendi, alias, como a URSS conseguiu abafar o caso Holodomor com tanta força no ocidente. Fazê-lo (ou deturpar a sua história) dentro da região de sua influência até entendo, mas por cá? Em conversas gerais (normalmente quando vem o tema 'o quão grande e bondosa era a URSS'), pouquissimas pessoas conhecem o caso da 'Grande Fome Ucraniana'. Uma pena. Bela resenha! Obrigado.

Leo Teles disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maurício Santoro disse...

Caro,

o tema do sacrifício e do assassinato dos judeus soviéticos ainda é tabu na Rússia e nas outras antigas repúblicas da URSS, bem como os massacres da era stalinista. A narrativa tradicional é de que foi uma grande guerra patriótica, ignorando o peso específico que certos grupos tiveram nela - não só judeus, mas ucranianos, poloneses e os povos bálticos.

Ainda há muitos túmulos para escavar na velha URSS.

abraços

Diogo disse...

Maurício,

Estive em Londres ano passado, visitando minha irmã. A melhor amiga do ex-namorado dela, que continua nosso amigo, é lituana.

Não pode nem ouvir falar em Stalin e União Soviética - mas admitiu que a colaboração de Kaunas (era a capital do país na época, Vilnius ficava na Polônia) com os nazistas foi bastante expressiva.

Ela falou de como as moças ofereciam flores aos tanques alemães, de como as idosas lhes preparavam café, de como todos lhes desejavam boa sorte na luta vindoura.

E tudo só veio à baila na grande mídia de lá com a independência do país, em 1991. Tanto que o acesso da Lituânia à União Europeia, além de questiúnculas econômicas, foi dificultado em grande parte pela ausência de revisionismo de parte dos bálticos.

Mas, na época, ela completou, colaborou-se com os nazistas na esperança de que a Operação Barbarossa fosse bem-sucedida. O resto a gente sabe.

LmT, digamos que o Rio Grande do Sul tivesse metade da população de origem não-brasileira. E que a metade nativa gaúcha passasse fome num processo orquestrado por Brasília, que pretendia conter o nacionalismo local. Mais do que absurdo, né? Isso foi o Holodomor.

Diogo disse...

Maurício,

Estive em Londres ano passado, visitando minha irmã. A melhor amiga do ex-namorado dela, que continua nosso amigo, é lituana.

Não pode nem ouvir falar em Stalin e União Soviética - mas admitiu que a colaboração de Kaunas (era a capital do país na época, Vilnius ficava na Polônia) com os nazistas foi bastante expressiva.

Ela falou de como as moças ofereciam flores aos tanques alemães, de como as idosas lhes preparavam café, de como todos lhes desejavam boa sorte na luta vindoura.

E tudo só veio à baila na grande mídia de lá com a independência do país, em 1991. Tanto que o acesso da Lituânia à União Europeia, além de questiúnculas econômicas, foi dificultado em grande parte pela ausência de revisionismo de parte dos bálticos.

Mas, na época, ela completou, colaborou-se com os nazistas na esperança de que a Operação Barbarossa fosse bem-sucedida. O resto a gente sabe.

LmT, digamos que o Rio Grande do Sul tivesse metade da população de origem não-brasileira. E que a metade nativa gaúcha passasse fome num processo orquestrado por Brasília, que pretendia conter o nacionalismo local. Mais do que absurdo, né? Isso foi o Holodomor.

Leo Teles disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Leo Teles disse...

Maurício,

Até entendo a razão de Holodomor ter sido sufocada na ex URSS e na Rússia de hoje. A história por vezes é contada distorcida (até mesmo para nós, nos dias de hoje). O que me deixa estupefato, entretanto, é o fato de Holodomor não ser conhecido a fundo no Ocidente. Não se conhece o genocídio (crime contra a humanidade, de acordo com o Parlamento Europeu) tão a bem como, por exemplo, o extermínio judeu pelos nazistas. Até hoje não há consenso sobre que tipo de crime houve ou, PASMEM, se foram questões naturais! Entenda, não tento desmerecer um em detrimento do outro. Procuro, apenas, esclarecer quem são as personagens históricas, as ações de seus agentes transformadores e suas conseqüências.

São essas distorções históricas - omissões, talvez - que procuro entender. Será que a força 'do partido' era tão grande pelos lados de cá que conseguiram distorcer o caso? Sim, Holodomor é ensinado, mas não tanto como deveria. Será que a 'ilusão' do sonho soviético (jamais concretizado e NUNCA como se passava nas propagandas comunistas) fez com que as pessoas se tornassem cegas aos absurdos ou simplesmente as entendessem como 'males necessários'? É este o meu interesse: como funcionou a contrapropaganda soviética neste sentido. Algo que de fato me deixa estupefato.

Postos lados a lados, a URSS foi responsável por quase tantas mortes quanto Hitler. Ainda assim, alguns loucos sonham com o retorno da forte e poderosa Rússia.

Quando morava em Londres, conheci uns tantos poloneses, russos, etc. A cultura deles (em especial dos russos) é de fato impressionante, mas o que contavam de seu país é de chocar. O que me contou uma russa de seus 23-24 anos de fato era coisa de uma vida duríssima.

Como disse Diogo, sequer podem ouvir falar em retorno ao que era. A transição foi horrível, um erro grotesco da equipe de Jeffrey Sachs que não levou em conta a psicologia das massas (ele deveria reler 'civilisation and its discontent' de Freud, dentre outros), mas ainda assim o retorno ao passado os aterroriza.

O mesmo me disse umas Lituanas na Espanha. Aliás, curioso observar de umas amigas da Croácia, Servia e Bósnia como elas 'recebiam' a imagem deturpada do ‘ocidente’. Era publicidade negativa até por aquele lado. Constantemente! A coisa só melhorou recentemente, pelo que me disseram.

Enfim,é a questão do fora da Rússia que fico curioso. Até hoje a Rússia vive com [pequenos] problemas com a Ucrânia - vide o constante caso do fornecimento de gás, com cortes da Rússia pro não pagamento e o problema que isso traz de baixa de pressão para a Europa.

Diogo, não sei se a metáfora é bem válida. Por mais terrível que seja a imagem que você desenvolveu, a região citada é do Brasil. DE NOVO: CONSIDERO UMA ATITUDE COMO ESSA DESCRITA CRIMINOSA E COISA DE CADEIA. Outrossim, o caso da Ucrânia era diferente. Ela foi anexada após a revolução de 1917, que eu saiba. E considerava-se algo além do Império Soviético, com cultura, língua e hábitos próprios. Holodomor foi algo ainda mais grave do que o que descreveste.

Abraços,
Leo Teles

Maurício Santoro disse...

Salve, Diogo.

Exato, a questão lituana está bem narrada no livro, junto com o que houve nos outros bálticos, Estônia e Letônia. Essas nações tinham conseguido independência no entre-guerras, e foram brutalmente ocupadas pela URSS no fim da década de 1930. O problema é que logo descobriram que os supostos libertadores alemães eram tão ruins quanto. Piores, no caso dos judeus. É uma história trágica.

Leo, a dificuldade da Rússia em lidar com o passado soviético é mais um elemento da incapacidade do país em construir um regime democrático.

abraços

Diogo disse...

Leo Teles,

Eu só fiz uma comparação. Se está certa ou não, são outros 500.