quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O Choque de Samuel Huntington



Em geral a morte de cientistas políticos costuma produzir apenas obituários respeitosos e alguns elogios rasgados por parte de ex-alunos. Contudo, o falecimento recente de Samuel Huntington deu origem a uma maré de controvérsias entre muitos dos meus colegas de profissão. A razão é que poucos acadêmicos americanos encarnaram de modo tão profundo o espírito destes tempos pós-11 de setembro. E isso não é um cumprimento.

Huntington foi um dos cientistas políticos mais influentes do pós-Segunda Guerra Mundial, participante importante de vários debates universitários, em particular aqueles que diziam respeito às relações entre autoridades civis/Forças Armadas e às turbulências políticas nos países em desenvolvimento. Pessoalmente, este segundo aspecto é o que mais admiro em sua obra, "Political Order in Changing Societies"continua a ser um livro que provoca inquietações interessantes.

Na década de 1970, Huntington incomodou muita gente no Brasil ao atuar como consultor para a ditadura militar. Ele propôs aos generais brasileiros que criassem um partido para institucionalizar a transição para a democracia, mais ou menos à semelhança do PRI mexicano, embora presuma-se que sem recorrer à fraude eleitoral. Não era exatamente uma proposta popular - à época, os principais professores universitários do Brasil estavam engajados em mais espaço para a sociedade, por meio da pressão de organizações profissionais como a Ordem dos Advogados e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Muitos acharam que Huntington se meteu onde não fora chamado, e do lado errado.

Foi no pós-Guerra Fria que Huntington se tornou um intelectual conhecido do grande público, ironicamente pela publicação do que talvez seja seu livro mais frágil: "O Choque de Civilizações". O argumento central é que os conflitos contemporâneos não serão mais motivados por disputas ideológicas, mas por questões culturais, por confrontos entre grandes grupos sociais que ele chamou de "civilizações", e definiu de modo precário e questionável. Por exemplo, por que existiria uma civilização islâmica, mas não uma budista? Por que a África subsaariana não está enquadrada em nenhum caso? A América Latina de fato seria um grupo à parte, ou integraria a civilização ocidental, junto com Portugal e Espanha?

Ao fim, o argumento de Huntington se resume a afirmar que as principais ameaças para os EUA e a civilização ocidental - que Deus a proteja - são os chineses e os muçulmanos, em especial caso se aliem. O livro é de 1994, e após o 11 de setembro muitos o viram como profeta. Talvez tenha sido.

O livro derradeiro de Huntington foi "The Hispanic Challenge". Li apenas o artigo que sintetiza a obra, e achei uma diatribe contra a imigração hispânica, sobretudo mexicana, para os Estados Unidos. Alguns dos ataques são de um racismo tão rasteiro que faz a gente pensar que um sujeito que vira professor em Harvard pode publicar qualquer coisa. Por exemplo, Huntington afirma que os hispânicos ameaçam os valores culturais americanos. Mesmo que aceitemos que o rebolado de Jennifer Lopez faz revirar na tumba os Pais Fundadores, é um pouco complicado acreditar que a assimilação dos latinos será mais difícil do que foi a dos irlandeses, italianos, japoneses, africanos de várias nações ou qualquer outro grupo étnico que forma o melting pot dos EUA. Penso mesmo que a bola do sonho americano passou para os imigrantes (de qualquer país), com seu trabalho árduo, capacidade de poupar e o desejo de ver os filhos chegarem à universidade. Aí esta Obama, filho de queniano, para ilustrar isso.

A sociedade americana se tornou muito polarizada ao longo dos últimos 20 anos, e Huntington expressa esse movimento de radicalização política, embora ele tenha sido, ironicamente, um fiel militante do Partido Democrata. Ignoro como ele será analisado no futuro, mas torço para que as universidades dos Estados Unidos recuperem a capacidade de distanciamento e reflexão crítica que fez o melhor da ciência política americana. Mas acho que ainda vai demorar.

5 comentários:

Patricio Iglesias disse...

Caro Maurício:
Näo savia nada da defunçäo do Huntington. Como simple leigo, só tinha ouvido sob o "Clash of Civilizations", e näo gostei nunca da sua idéia de que a América Latina e Rússia näo säo occidentáis. Se basa, penso, numa questäo puramente económica (pra ser occidental há que ser rico) e näo no cultural. No caso (opino), os russos sariam mais occidentáis do que os norteamericanos, porque a influéncia grega foi direta e mais prolongada.
Aqui na Argentina dizemos "meter la cuchara" quando alguém diz ou trabalha onde näo é seu terreno. Veo que metió la cuchara en asuntos brasileños. JA JA JA
Demócrata? Com seu pensamento, melhor que näo tenha visto a asunçäo do Obama!
Saludos

Enzo Mayer Tessarolo disse...

Olá Maurício,

Confesso que também desconhecia o falecimento do Huntington. Foi, sem dúvida, uma perda importante para o meio político, apesar de seus últimos trabalhos (como você colocou). Acho que depois do 11 de setembro, quando se tornou o guru dos neoconservadores, ele perdeu um pouco o foco e passou a escrever teorias ainda mais simplistas do que a do "choque das civilizações".

Saudações,
Enzo

Maurício Santoro disse...

Olá, Patricio.

Realmente, se um gringo chegar no Barrio Norte de Buenos Aires e começar a bradar que a Argentina não faz parte da civilização ocidental, terá que explicar direitinho onde colocar a Itália e a Espanha...

Oi, Enzo.

Pode ser que a presença de mídia e a influência que Huntington ganhou após o 11 de setembro tenham feito ele ser picado pela "mosca azul" e o levado a dar a platéia o que ela queria...

abraços

Anônimo disse...

O mais engraçado é que a grande maioria daqueles que os estadunidenses chamam de "hispânicos" na realidade são americanos nativos, ou seja, os únicos americanos verdadeiros. São índios do México e da America Central, que falam espanhol apenas porque esta é a língua oficial de sues países, mas são claramente americanos de origem, de sangue, tais como aqueles que na América inglesa foram tão eficientemente exterminados que restaram apenas uns punhados circunscritos às reservas.
Professor de Harvard, o falecido, é? Quando lembramos que Bush filho é diplomado em Yale, podemos ver o nível verdadeiro da pretensiosa Ivy League...
João

Rodrigo disse...

Que me lembre o autor admitia dúvidas quanto à classificação precisa de áreas como a América Latina (talvez Ocidental? talvez Ameríndia? vide o Bolivarianismo, etc). Mas acho que você não tocou no ponto central que é a dificuldade de entendimento moral (não apenas econômico) entre as diferentes religiões. Pegue como exemplo os eternos conflitos entre cristãos, judeus e muçulmanos no Oriente Médio (falar que a questão é só petróleo é se esquecer que sequer católicos e evangélicos se entendem e se gostam). Se os muçulmanos ganharem um dia o poder que os EUA têm de inserir suas ideologias por aqui, e ficarmos às beiras de uma teocracia islâmica, por exemplo, como será que vai ser o diálogo? E quando o Ocidente vai lá procurando enfiar a democracia à força, isso é diálogo? Ou Choque? Acho que ainda há muito a se discutir.