quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Pachakutik



Na mitologia dos índios quéchua que habitam os Andes, de quando em quando o mundo passa por um turbilhão e é virado de pernas para o ar. Pachakutik, dizem em sua língua, e não por acaso o termo batiza dois partidos políticos de base indígena. No domingo, 60% da população da Bolívia aprovou em referendo a nova Constituição, fechando um ciclo que começou na Venezuela (1999) e passou pelo Equador (2008). Nos três países, as leis básicas foram reescritas para incorporar as novas demandas de movimentos sociais. Apesar das diferenças entre os três processos, há muitos pontos em comum.

As novas Constituições fortalecem a participação do Estado na economia, em particular no que toca ao controle sobre os recursos naturais. Também são marcadas pela promessa da expansão de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais - sobretudo para os povos indígenas - estabelecendo legislação bastante avançada e progressista para os padrões internacionais.

No entanto, não seguem os modelos típicos das democracias ocidentais da América do Norte e da Europa, e são críticas às falhas dos sistemas representativos dessas regiões, adotando uma série de instrumentos de participação popular destinados a complementá-los e corrigir seus erros: conselhos comunitários, autonomias indígenas, práticas tradicionais de justiça. A natureza e composição de tais mecanismos estão entre os pontos mais controversos das cartas magnas andinas, pois não está claro como serão os mecanismos de prestação de contas dessas ferramentas e há riscos concretos de que possam se tornar instrumentos de líderes autoritários, tanto no Poder Executivo quanto em grupos de interesse organizados na sociedade civil.

Além disso, na ânsia de fortalecer as reivindicações de movimentos sociais oriundos das camadas mais pobres e discriminadas, os novos constituintes diminuíram o poder dos freios e balanços tradicionais da democracia representativa, como o Legislativo e o Judiciário. É fato que na América Latina essas instituições muitas vezes foram apenas veículos para o domínio de uma pequena elite agressiva e corrupta, mas ao reformá-las é preciso tomar cuidado para não jogar fora o bebê com a água suja do banho. A supressão de sua capacidade de equilibrar um Executivo fortalecido pode facilmente levar à demagogia de líderes que aspiram a falar diretamente com o povo, passando por cima de partidos e parlamentos. A tentativa de tantos mandatários andinos de introduzir leis permitindo reeleições perpétuas é um sinal claro do retrocesso que ameaça as jovens democracias da região.

Outro ponto polêmico - e um tanto surpreendente - é a questão do federalismo, ou antes, de sua ausência nas novas Constituições. Os grandes países latino-americanos, como Argentina, Brasil e México, adotaram com suas democratizações um considerável grau de autonomia para províncias, estados e municípios. O mesmo ocorreu na Europa, com uma série de reformas iniciadas na década de 1970, em particular em países com forte tradição regional, como Espanha, Itália e o Reino Unido. É de se esperar que algo semelhante aconteça nos Andes, cujos contrastes entre litoral, sierra e selva amazônica são enormes. Contudo, os conflitos entre provincias e poder central continuam a ser muito intensos e por vezes resvalar em risco de golpes, como se evidencia na Bolívia.

No entanto, a democracia não é uma lista de supermercado já pronta, que deve ser preenchida com escolhas em prateleiras pré-definidas. Ela é antes uma espécie de longa conversa, que nunca tem fim, e que com frequencia apresenta inovações por meio de tentativas e erros, acertos e hesitações. O pachakutik andino trará coisas boas e ruins, mas no balanço geral adiciona novas vozes ao coral democrático na América Latina. Que, esperamos, ainda terá muito o que cantar.

10 comentários:

Anônimo disse...

"A supressão de sua capacidade de equilibrar um Executivo fortalecido pode facilmente levar à demagogia de líderes que aspiram a falar diretamente com o povo, passando por cima de partidos e parlamentos".

Digamos que você está sendo um pouco otimista. Pode levar não, já levou.

Sobre a questão do federalismo, a nova Constituição da Bolívia se difere dos outros processos por dar um pouco mais de autonomia às províncias.

Patricio Iglesias disse...

Caro Maurício:
Concordo com o Marcus. O Hugo Chávez já é um símbolo da demagogia sul-americana.
Graves problemas tem a Bolívia. Espero possam dar aos povos originários o lugar merecem e termine a confrontaçäo da "Meia-Lua".
Saludos!

Patrick disse...

Maurício, esses tribunais indígenas não estão para suas populações como os tribunais de arbitragem estão para os contratos internacionais de grandes empresas?

Sergio Leo disse...

Não, Patrick, esses tribunais indígenas estão mais para os atrsados tribuanis religiosos que podem determinar o apdrejamento de adúlteros. Castigos físicos são parte dessa Justiçça "tradicional", contra todos os vanaços na discussão sobre direitos humanos. Estou errado, mestre Santoro?

Anônimo disse...

Você está certíssimo, Sérgio. Não deveríamos esperar outra coisa de quem recebe apoio do Irã e recusa a colaboração da DEA no combate ao narcotráfico.

Hugo Albuquerque disse...

Maurício Santoro,

Detesto escrever comentários muito prolixos nas caixas alheias, mas não tenho como fazer diferente em relação a tal tema. Portanto, desde já me perdoe.

Os EUA, ainda que hoje não sejam a vanguarda da Democracia mundial, foram pioneiros no desenho do moderno Estado democrático, principalmente com a introdução dos freios e contra-pesos, tão caros à civilização - o que já existia de maneira embrionária na República Romana.

Mas a inovação mesmo fica por conta da criação da instituição da Presidência, talvez para suprir o vácuo político causado pela inexistência de um Monarca. O contra-peso para isso foi a criação de uma estrutura de poder altamente descentralizada e um Judiciário forte e independente e não o estabelecimento de uma cultura parlamentar sólida - e como isso fez falta por lá nos últimos tempos, não?

Quando da indepedência dos países latino-americanos e da posterior - e tardia - republicanização do Brasil, seguiu-se o modelo estadunidense. No entanto, a estúpida maioria dos países da região falhou ao não conseguir criar um Judiciário funcional ou um federalismo decente. Portanto, o presidencialismo latino-americano acabou sendo uma cópia mal-feita do estadunidense, o que teve consequências terríveis para o futuro da região.

As democracias européias, ao contrário, foram construídas em torno da instituição parlamentar e mesmo com todas as idas e vindas, isso se mostrou muito importante nos dias atuais; enquanto os EUA são governados pela burocracia do poder executivo e por um parlamento atrofiado, as grandes questões européias são debatidas pelos representantes do povo em uma câmara. Isso se exprime em qualidade de vida. Peguemos a lista dos dez melhores países para se viver e veremos que a centralidade institucional deles está justamente no parlamento.

Essas novas constituições de Venezuela, Equador e Bolívia, apresentam características muito parecidas ao suprimirem instituições e construírem um super-executivo, fortalecendo a idéia de uma ligação entre o Líder da Nação (que acumula tanto a chefia de Estado quanto de governo) e o Povo por meio de uma "ação direta".

Claro, o Presidente jamais poderá fazer tudo ao mesmo tempo, o que implica em outras palavras que a burocracia não-eleita do executivo vai ter o poder de tomar decisões que poderiam e deveriam passar pelo crivo de debates parlamentares sob a égide da figura do líder. Isso não é bom.

Por outro lado, é positivo ver como tais Cartas trazem inovações no sentido de ampliar os direitos sociais e nutrem uma preocupação louvável com o bem-estar das minorias - ainda que essa questão dos tribunais bolivianos seja questionável. Ademais, também acho sensacional que a Lei Maior do país passe pelo crivo de uma votação popular.

E, de fato, na América Latina as grandes instituições do Estado sempre foram aparelhadas pelas classes dominantes que protagonizaram uma grande farsa. Isso criou essa doutrina entre as classes mais desfavorecidas e de grande parte da classe média que o caminho seria suprimir os judiciário e o congresso, fortalecer o executivo aumentando o controle popular sobre ele. Dadas as devidas contextualizações e proporções, é um impulso parecido com o que levou as pessoas a serem simpáticas ao absolutismo na Europa para superarem o feudalismo.

Em um primeiro momento, esse modelo trará avanços, como trouxe para a Venezuela, que hoje é um país muito melhor do era em 1998, mas certamente será um problema no futuro, na medida que não passa pela cabeça de quem está fazendo tais mudanças que se o Estado cair nas mãos dos setores mais atrasados agora será mais fácil fazer tudo voltar para trás porque o poder está mais concentrado.

Por fim, o correto mesmo seria refundar a forma de representação parlamentar e reestruturar as estruturas do judiciário.

Maurício Santoro disse...

Valha-me Deus, quantos comentários de uma só vez!

Bem, deixem-me tentar responder: para começar, de fato Chávez é um dos governantes que ultrapassou a linha, ainda que o tenha feito em 1998, antes da nova constituição da Venezuela. A questão é que incluiu em sua carta magna instrumentos para consolidar o poder - por exemplo, a eliminação do Senado e a transformação do Legislativo em unicameral, o que facilita seu rolo compressor.

A idéia de aproveitar os métodos tradicionais de justiça indígena é sedutora na teoria, mas do modo como foi implementada abre espaço para muitos abusos, inclusive castigos físicos. Um tipo de punição, por exemplo, é amarrar a vítima numa árvore enquanto é espancada. Isso parece Abu Ghraib, não um avanço democrático...

Hugo, muito obrigado por compartilhar conosco seus comentários e reflexões. Acho até que vale a pena desenvolver os fios que você levantou, em outros posts. Não sei em que medida o Congresso americano abdicou de seus poderes, me parece que houve mais uma omissão por conveniência com o governo Bush.

Mas, sem dúvida, o modelo latino-americano reproduziu muitas das piores práticas dos EUA, e as levou a novo patamar...

Abraços

Patrick disse...

Sérgio, qual a diferença entre o seu relato e o caso brasileiro? A nossa constituição não prevê que os índios são inimputáveis? Nada os impede, portanto, de promover seus próprios métodos de justiça em suas comunidades. Nunca vi ninguém fazer qualquer comentário sobre essa situação no Brasil.

Hugo Albuquerque disse...

Maurício,

Sim, houve em certa medida omissão e ela se deveu à falta de uma cultura parlamentar sólida a qual eu tinha me referido no comentário anterior.

No entanto, também é preciso lembrar que o presidencialismo estadunidense é forte, logo o chefe de Estado & de governo goza de um maior espaço de manobra institucional do que o Presidente da República brasileiro e, claro, muito maior que os chefes de governo europeus.

Eu, pessoalmente, não simpatizo com isso - tanto é que o sistema presidencialista puro deu certo em poucos lugares.

Maurício Santoro disse...

Hugo,

Embora os EUA não sejam parlamentaristas, o Congresso é muito forte, só que de um jeito diferente do que na Europa. Aliás, com seus mais de 200 anos de funcionamento é um dos parlamentos mais antigos do planeta, no Velho Mundo só o britânico tem mais tradição.

Os estudiosos com frequencia se referem ao "triângulo de ferro" das políticas públicas americanas como sendo formado pelo Congresso, pelas agências do executivo e pelos grupos de interesse.

Em termos institucionais, o presidente dos Estados Unidos tem muitos mais freios e contrapesos - mesmo que majoritário no parlamento - do que os primeiros-ministros europeus.

Patrick,

A Constituição brasileira não dá aos índios o direito de aplicar suas próprias leis nas terras que habitam, que aliás a nossa carta magna define como propriedade da União. É um sistema bem mais restritivo ao poder indígena do que a nova Constituição da Bolívia.

Abraços