sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Conquistando o Inimigo



Comentei há alguns dias o filme “Invictus”, que trata de como Nelson Mandela usou o rugby para promover a integração racial na África do Sul. Por conta do curso que preparo sobre o país, fui ler “Conquistando o Inimigo” (clique no link para ler o capítulo 1), do jornalista inglês John Carlin, o livro que inspirou a produção cinematográfica. Foi uma bela surpresa: a história é ainda mais interessante do que a versão que foi para a tela grande.

O filme começa com Mandela sendo libertado da prisão após quase 30 anos confinado, ao passo que o livro de Carlin se inicia bem antes, contando como o interesse do líder pelo rugby começou quando ele ainda estava encarcerado. O esporte foi a maneira que Mandela encontrou para se aproximar do pior diretor que enfrentou na cadeia, um coronel intratável que só amolecia quando o assunto era o rugby.

Mandela não era o único lider da resistência anti-apartheid a perceber a importância política do esporte. O rugby era a principal paixão - “religião secular”, diz Carlin – da comunidade africânder, os descendentes de holandeses que formaram o núcleo duro do regime racista sul-africano. A estratégia de seus oponentes foi utilizar as denúncias de violações de direitos humanos perpretadas pelo governo como base para uma série de sanções diplomáticas que terminaram por excluir a seleção da África do Sul das disputas internacionais. O gesto teve um impacto profundo e levou muitos africânders a questionarem o que estava acontecendo de errado em seu país.

Fiquei imaginando o que teria ocorrido na América do Sul se os ativistas contrários às ditaduras militares tivessem usado os mesmos métodos, com relação ao futebol. Basta pensar em como os regimes autoritários do Brasil e da Argentina usaram o esporte – e seus respetivos triunfos nas Copas de 1970 e 1978 – e temos aí uma bela questão para o debate.

A adaptação para o cinema do livro de Carlin se concentra no relacionamento de Mandela com o capitão da equipe sul-africana de Rugby, François Pienaar. É de fato uma bela história, mas há pelo menos dois personagens que ficaram de fora e que mereciam destaque. Um deles é Morné du Plessis. Ex-capitão da seleção, ele se tornou de maneira gradual um militante anti-apartheid. Como técnico do time na Copa do Mundo de 1995, ele tomou diversas medidas para promover a integração racial, como ensiná-los a cantar “Nkosi Sekelele”, a canção xhosa de resistência que se tornou um dos novos hinos oficiais da África do Sul. No filme, a iniciativa é atribuída a Pienaar, mas na vida real a cena foi mais bela: Plessis contratou uma jovem professora universitária de idomas para treinar o time, que foi às lágrimas, emocionados pelo simbolismo e pelo papel que desempenhavam.

O outro atleta que foi excluído do filme, injustamente, foi James Small. Um jogador genial mas temperamental e explosivo, foi parar na seleção como poderia ter ido para a cadeia. Descentente de ingleses num meio majoritariamente africânder, ele sentiu na pele a discriminação racial que existia mesmo entre os brancos sul-africanos. Chegou a ser espancado por colegas de time que queriam provar a ele que no rugby não havia espaço para pessoas de sua ascendência. Small se tornou um dos maiores entusiastas de Mandela e seu desepenho foi decisivo na dramática final contra a Nova Zelândia, pois a ele coube marcar o jogador mais perigoso do time adversário.

Livro e filme têm uma perspectiva muito otimista, e um tanto ingênua, dos esforços de integração racial na África do Sul. A meu ver, é uma visão que não faz justiça à realidade conturbada do país. É possível, ou desejável, perdoar tudo? Em que medida certas iniciativas de reconciliação não são simplesmente impotência para punir os culpados? Perdoar é o mesmo que esquecer e apagar a memória dos crimes passados?

6 comentários:

Enzo Mayer Tessarolo disse...

Salve, Mauricio

Vi o filme e li trechos do livro recentemente, também publiquei alguns comentários sobre ele no meu blog, e tive a mesma impressão que você: ambos são um tanto simplistas na caracterização da questão racial sul-africana.

Parece, no final de Invictus, que o país não sofreria mais com problemas étnicos e que tudo, dali pra frente, aconteceria maravilhosamente. Eastwood não deve ter visto os escândalos políticos recentes e a desigualdade social que ainda persiste no pós-apartheid.

Convém ressaltar um aspecto no enredo da produção. Invictus não se encaixa no mainstream hollywoodiano, no qual os problemas africanos quase sempre são resolvidos por um branco. Nesse filme, Mandela é o grande herói (ao contrário, por exemplo, do que acontece em "Na prisão com Mandela"). Palmas para Eastwood, que poderia ter simplesmente usado Pienaar como o grande herói.

Abraços,
Enzo

Maurício Santoro disse...

Salve, Enzo.

Justíssimos seus comentários.

Apesar das minhas críticas ao Invictus, estou recomendando o filme aos meus alunos, porque suas qualidades já valem uma boa conversa.

E como você bem observou, é um dos poucos filmes sobre a África onde um personagem negro é o protagonista e toca os fatos positivos do enredo.

abraços

Enzo Mayer Tessarolo disse...

Maurício,

Esqueci de perguntar no meu primeiro comentário se você não tem nenhum livro pra indicar sobre o uso político do esporte pelas ditaduras latino-americanas, em especial a brasileira. Alguma sugestão?

Abraços,
Enzo.

Maurício Santoro disse...

Enzo,

Dê uma olhada nesse artigo, parece interessante:

http://www.darandina.ufjf.br/textos/abril_2008/artigos_pos_graduacao/o_%20gol.pdf

Rafa Rodrigues disse...

Quando estou entediada da internet sempre venho aqui, tenho certeza que vou ler coisas interessantes. De fato, nunca saí de mãos abanando.

Valeu a dica do livro e do filme, vou procurar. Tenho contato com o embaixador Alberto da Costa e Silva e ele me despertou para temas relacionados a África.

Abs em tds.

Rafaela.

Maurício Santoro disse...

Obrigado, Rafa. Os livros do Costa e Silva são todos ótimos, vá em qualquer um e voce terá uma excelente leitura.

abraços