segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
Desventuras das Nações Mais Favorecidas
Paul Blustein é um jornalista americano que foi durante muitos anos repórter do Washington Post e escreveu dois excelentes livros sobre as crises financeiras da Ásia e da Argentina. Sua nova obra mantém o ótimo nível: “Misadventures of the Most Favored Nations: clashing egos, inflated ambitions, and the greatest shambles of the world trade system”. Trata-se de uma história da Rodada Doha da OMC, que sintetiza tão bem os dramas e dilemas do comércio internacional da última década que passarei a usá-lo como bilbiografia de alguns dos cursos que leciono.
Doha foi lançada em dezembro de 2001 como um esforço para atender demandas sociais e oferecer alternativas aos países em desenvolvimento, que se viam pouco atendidos pela OMC. Essas pressões, combinadas, haviam levado ao fracasso a conferência ministerial de Seattle, em 1999, com direito a batalhas campais entre ativistas e autoridades. Doha era também resposta política aos atentados terroristas de setembro daquele ano. Mas as negociações têm sido marcadas por impasses: EUA e União Européia se mostram relutantes em reduzir seus subsídios agrícolas, e as nações em desenvolvimento manifestam cautela em abrir os mercados industriais e de serviços. E todos temem o “fator China”, com suas profundas transformações no comércio global.
Apesar dos entraves, Doha marcou avanços importantes, como a Declaração sobre Saúde Pública, que garantiu a possibilidade de licensiamento compulsório para medicamentos, de modo a combater calamidades como a epidemia de AIDS que devasta a África. E marca a nova geografia econômica, com o declínio dos centros de poder tradicionais (EUA, UE) e ascensão das potências emergentes, reunidas numa coalizão ampla e contraditória, o G-20, liderado por Brasil e Índia. O Japão desempenha papel curioso: progressivamente afastado das grandes negociações, por sua dificuldade em ceder, tem sido reconvocado como uma espécie de contrapeso à China.
Blustein conta muitas histórias de bastidores, nas quais se destacam a inconstância das posições dos Estados Unidos e o profissionalismo e competência dos negociadores da UE e do Brasil. Os americanos caíram nas contradições entre o discurso pró-abertura e suas práticas protecionistas, exacerbadas com a Lei Agrícola de 2002. A instabilidade administrativa do governo Bush levou a mudanças bruscas nos principais negociadores, alguns dos quais mantiveram péssimas relações com seus colegas estrangeiros. No caso europeu, a maior dificuldade é conciliar os interesses dos 27 membros da UE, embora Blustein pinte o retratado de uma França dominante, com poder de veto sobre os demais países do bloco.
Blustein é só elogios aos três chanceleres brasileiros retratados no livro – Luiz Felipe Lampreia, Celso Lafer e Celso Amorim – e mesmo há outros políticos do país, como José Serra, por sua ação na questão dos medicamentos. Os elogios não deixaram o autor cego e ele aponta com precisão as dificuldades de manter a aliança Brasil e Índia, pelos interesses muito diversos em agricultura. Também questiona o pleito brasileiro de liderança brasileira do mundo em desenvolvimento, chamando a atenção para como muitas nações africanas têm uma perspectiva diversa, preferindo acordos de acesso preferencial aos mercados dos EUA e da UE às longas negociações na OMC.
Blustein se mostra cético diante do formato das grandes rodadas: será que ainda fazem sentido num mundo de centenas de acordos de livre comércio bilaterais ou regionais (vide gráfico acima), que na prática vão além do que decide a OMC?
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4 comentários:
Eu tenho os dois livros do Blustein sobre as crises financeiras dos anos 90, são excelentes... Recomendo qualquer obra desse autor.
Meu caro:
Por favor! Por qué sempre tem os gráficos mais interessantes! É muito legal! Houve algum TLC que foi roto? A série mostra um crescimento sempre positivo.
Beijos da Argentina
Patricio Iglesias
Anônimo,
Devem ser os dois que citei: Vexame e And The Money Kept Rolling in (and Out).
Salve, Patricio.
Sim, a Venezuela sob Chávez rompeu o TLC que tinha com o México e a Colômbia, e se retirou da Comunidade Andina. São os únicos exemplos que me vêm à mente.
abraços
Maurício:
Devorei este livro todo no carnaval em Alter do Chão no Pará! Não dava vontade de parar de ler... é quase tão viciante quanto um thriller. E realmente a visão sobre as posições do Brasil são bem lúcidas.
O que eu mais achei interessante é a avaliação dele sobre a quase inocuidade dos acordos bilaterais do Zoellick, encarados como uma forma de "mostrar serviço". Talvez faltasse ele explorar a questão da propriedade intelectual nesses acordos, pois como me alertou o Mafra, todos eles enfiam goela abaixo do acordante a posição americana sobre o tema e imobilizam políticas como as adotadas no Brasil e Tailândia para quebra de patentes por conta da AIDS
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