segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O Brasil de Camille



Nesta terça-feira nasceu minha primeira sobrinha, Camille. Ela é a primeira bebê da nova geração entre minha família próxima e, inevitavelmente, sua chegada me fez pensar em quanto o país mudou com relação ao nascimento de seu pai e de seu tio, entre 1978-1980. O Brasil está longe, muito longe, de ser o lugar que sonhamos, mas melhorou muito com relação a minha infância e adolescência.

Meu irmão e eu nascemos numa ditadura na qual a maioria da população era pobre, e cerca de 25% viviam na miséria. Camille chega numa democracia consolidada, embora incompleta, que aos poucos torna-se um país de classe média. A renda per capita brasileira está em torno de US$11 mil por ano, mais do que média mundial de US$9 mil. A desigualdade continua a ser um sério problema social – talvez o pior do país – mas tem caído de modo lento e constante desde a década de 1990. É um diferencial importante e ainda subvalorizado do desempenho sócio-econômico do regime democrático.



Camille um dia ouvirá nossas histórias sobre os anos difíceis de hiperinflação e provavelmente achará graça quando souber que seu pai e eu íamos para a fila do supermercado com sua falecida bisavó, para ter acesso a maior quantidade de produtos que estavam racionados. Ela certamente ouvirá como só aprendi a gostar de peixe quando a carne bovina despareceu um ano das prateleiras e vai achar difícil de acreditar que faltava água e luz quase todo mês, e que o telefone às vezes precisava de meia hora para dar sinal. Talvez se irrite com os contos de “quando eu tinha sua idade” e quem sabe fique cética quando dissermos que nos divertíamos: “Às vezes sobreviver pode ser melhor do que viver”, como diz um personagem de um dos filmes favoritos do seu pai e do seu tio.

O país e a cidade ainda são violentos e perigosos, e é claro que essas preocupações também cercarão a pequena Camille. Seu pai e eu não conhecemos outra realidade e um dia ela talvez se espante em saber que todos nós, bem como seus avós e bisavós, estivemos sob a mira de uma arma. É possível que se indigne em como deixamos a nação chegar a esse ponto, sem fazer nada, e estará coberta de razão em sua cobrança.

Seu nascimento foi saudado com câmeras digitais e postagens na Internet, em meio a uma prosperidade que a família jamais desfrutou desde que se instalou no Brasil, há 100 anos. Quando nasci, o marco foi minha madrinha chegar à maternidade com uma escritura de doação na qual me legava como herança sua linha telefônica: “O futuro do menino está garantido!”, comemorava minha avó. O de Camille é um livro aberto com mais possibilidades e escolhas do seus parentes julgariam viável há apenas uma geração. Sua chave para chegar lá não será o telefone, mas a educação, que ela precisará para navegar num oceano cada vez mais amplo de informações e dados. Mas como mestre Louis Armstrong cantava ao ver as crianças do seu tempo: “Eles aprenderão muito mais do que eu jamais soube, e penso comigo mesmo, ´Que mundo maravilhoso´”.

Conhecimento é parte importante da história, mas não só isso. Camille crescerá numa sociedade mais tolerante e aberta, mais plural do ponto de vista religioso, étnico, cultural, anos-luz à frente do país pobre e fechado de décadas atrás. Ela terá oportunidade de aprender outras línguas, viajar e estudar no exterior, abrir o mundo pelas janelas da Internet e da TV a cabo – que seu pai e eu só conhecemos quando já estávamos na universidade. Torço para que ela mergulhe na cultura brasileira, mas que não tenha medo ou insegurança em explorar o novo. Que tenha raízes, mas também radares, na bela formulação da historiadora Denise Rollemberg.

17 comentários:

Pedro Serrano disse...

Parabéns pela chegada da sobrinha, professor!
Abraço,
Pedro Serrano.

Ana Carina disse...

Ah, Maurício, parabéns. Pela sobrinha, por tudo... Que saudades de ler seus textos... bjs

Anônimo disse...

Eu nasci em 86, mas... jura que teve isso de faltar carne bovina no mercado? O horror, o horror!

Edileuza disse...

Ihhh, agora virou titio, rsrsrs. Parabéns Maurício! Saúde pra Camille e toda família! Bjus.

Radical disse...

Parabéns pelo texto. Senti algo parecido outro dia, tentando explicar para meus filhos (de 15 e 13 anos) o que foi viver sob hiper-inflação, com apenas 5 canais de TV e sem internet.

E parabéns pela sobrinha. Que mais irmãs e primos venham, porque o Brasil ainda precisa de muita gente boa no futuro.

Monica disse...

Parabéns pela chegada da sobrinha e pela crônica...
Monica A. da Silva

Inês Gouvêa disse...

Mauricio, é grande a emoção ao ver a família crescer, renovar-se. Alegria, Felicidades a todos.

Quanto ao teu "texturizado" legado à tua sobrinha,você sintetizou o que sempre digo e acontece entre minha família. Abraço, Inês

Maurício Santoro disse...

Obrigado, pessoal. Sei que as experiências que narrei nesta crônica foram compartilhadas por muitas pessoas. Às vezes narro esses fatos aos meus alunos mais jovens (alguns nascidos na década de 1990, Deus os perdoe!) e eles não acreditam, ou pelo menos me olham com a cara de desconfiança e ceticismo...

Ainda não é o Brasil dos nossos sonhos, mas ele já melhorou muito.

abraços

INSEGNANTE CLAUDIA CORREA disse...

Parabéns meu caro ex-aluno, hoje meu mestre de ciencias políticas e titio Mauricio. Bem eu já sou vovó de um a e daqui a pouco chegará o segundo. Parabens e beijos para o papai Marcio e nonna Wanda, beijos para vc.

Marcio Cohen disse...

Mauricio-

Parabens pela sobrinha e pelo excelente texto. Estudei com meu xara Marcio no Cefet: entramos na epoca da URV e nos formamos quando a crise economica na asia e na russa ameacava chegar no Brasil.

Abracos e felicitacoes,

Marcio Cohen

Maurício Santoro disse...

Salve, Claudia.

Grazie, também respondi ao seu comentário lá no Facebook.

Caro Marcio,

Obrigado - as aventuras no CEFET são uma parte importante de toda essa história!

abraços

Christina Dhara disse...

Maurício, se vc acha que conta "coisas horríveis" à Camille, ocorridas de 1978 para cá, espere até eu contar as "coisas horríveis" dos 23 anos anteriores aos seus. Gde bj Christina Dhara

Glaucia Mara disse...

Olhando com essa perspectiva... fica facil entender.
Lembro que minha mae comprou um freezer, e todo inicio de mes ela comprava um boi inteiro, e dividia metade com minha tia. Passava o dia todo fazendo e etiquetando pacotinhos de carne. Investir em comida, era o melhor de todos os investimentos. Nao tem como explicar isso pra quem nao viveu a hiperinflaçao. Depois, em 2001, na epoca do blecaute, ela descobriu que podia desligar aquela peça de museu, que nao fazia nenhuma falta.

Fernanda França disse...

Oi Maurício,

Parabéns pela chegada da sobrinha e obrigada pelas reflexões sobre o evento.

Marc Jaguar disse...

Prezado Amigo e Mestre, Mauricio!!

Meus parabens pelo nascimento da sobrinha e tambem pela excelente reflexao contida em seu texto!
Gracas a Deus podemos testemunhar que o progresso vem sendo um fato concreto em nosso pais nas ultimas decadas. Um tijolo de cada vez, cada um deles tendo o seu papel de importancia na construcao da escada rumo a diminuicao da desiguladade social e da melhoria da qualidade de vida dos brasileiros.
Sinto-me orgulhoso ao chegar a meio seculo de existencia e poder testemunhar o tremendo choque de modernidade que nosso pais vem desfrutando. Sem duvida nenhuma, nao existe ninguem, nem governante, nem administrador e nem cientista, que possa dizer que foi o unico responsavel por tudo o que temos acesso hoje em dia.
Importante sim, eh destacar, que sao brasileiros como nos que tem trabalhado ao longo do tempo para poder proporcionar a Camille um futuro melhor e mais prospero do que nos vivenciamos antes dela chegar...isso eh evoluir...isso eh caminhar para frente!

Parabens, Titio Mauricio!! :)

Um braco!

Goncalez
(direto dos EUA) ;)

Maurício Santoro disse...

Salve, meus caros.

Fui ver a moça hoje e ela está muito bonita, com bastante fome e um tanto incomodada com a quantidade de vacinas que tem sido obrigada a tomar.

Obrigado pelos comentários e pelos abraços, estão todos sendo transimitidos para a Camille.

abraços

luizgusmao disse...

parabéns, maurício! q a camille tenha uma vida longa e proveitosa num país seguro e próspero, em meio a um povo educado, tolerante e feliz.