sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
Lula e os Presos Políticos de Cuba
Os presos políticos de Cuba enviaram um apelo ao presidente Lula para que ele interviesse em defesa de seus direitos humanos, aproveitando a visita que faz ao país. Isso não ocorreu. A viagem do mandatário brasileiro coincidiu com a morte de um dissidente, encanador por profissão, que faleceu em decorrência da greve de fome que adotou na prisão. O ex-torneiro mecânico que preside o Brasil deve ter se identificado com o drama, pois usou o mesmo método quando foi encarcerado pela ditadura militar brasileira. À parte as diferenças ideológicas, todos os regimes autoritários se parecem em sua truculência e desrespeito à dignidade básica do ser humano.
Nesta semana comecei a lecionar a segunda versão do curso sobre Ditadores Contemporâneos, agora para o MBA em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. A aula inicial foi justamente sobre Cuba, e comentei sobre os acontecimentos recentes relativos às violações de direitos humanos na ilha, como a “Primavera Negra”, a onda de prisões em massa contra os dissidentes. Mencionei o surgimento do movimento das “Damas de Branco” (foto), formado por mães e mulheres dos presos políticos e fiz a analogia com grupos semelhantes em outros países, como as Mães da Praça de Maio. Citei o escritor peruano Mario Vargas Llosa: “As mulheres são sempre as primeiras vítimas das ditaduras”. Mas talvez possam ser suas opositoras mais ferrenhas e eficazes.
Não é da política externa brasileira criticar países que violem direitos humanos, salvo raras exceções como as condenações ao golpe em Honduras e às tentativas na Venezuela e no Paraguai. Desde que as relações diplomáticas foram reestabelecidas com Cuba, durante a redemocratização do Brasil na década de 1980, nenhum presidente condenou o regime de Havana. A posição brasileira contrasta com as sanções adotadas pela União Européia após a Primavera Negra, e mesmo com as críticas efetuadas por alguns governos na Argentina e no México, embora estas tenham ocorrido como parte de uma estratégia de rejeitar a agenda diplomática terceiro-mundista e reforçar as reformas liberalizantes na economia.
Em sua visita a Cuba, o presidente Lula anunciou financiamento oficial brasileiro para reformar o porto de Mariel. Ironias da história. Trata-se do local por onde partiu uma geração inteira de emigrantes cubanos para os Estados Unidos, na década de 1980. O chamado “êxodo de Mariel” ocorreu sobretudo por razões econômicas e seus participantes hoje são parte importante da comunidade cubano-americana.
A economia de Cuba está novamente em dificuldades, sentindo os efeitos da crise internacional. A escassez de divisas levou o governo a adotar medidas que prejudicaram as empresas brasileiras, como retenção de dólares no país ou simplesmente calote de dívidas relativas a comércio exterior. Tal como na questão dos direitos humanos, o presidente Lula optou por ignorar o problema durante a visita.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
A Embraer e os Contratos de Offset
Nos últimos meses esteve em destaque a negociação da compra dos caças para a Força Aérea Brasileira, com a transferência de tecnologia. O Valor de ontem publicou a notícia do acordo que a Embraer fez com o governo da Colômbia, por meio do qual a empresa brasileira venderá ao país aeronaves Super Tucano em conjunto com um pacote de serviços tecnológicos. É um rito de passagem: o Brasil se torna ofertante em negócios desse tipo, conhecidos internacionalmente como contratos de offset.
A maior parte deles envolve aviação militar. Nesses acordos, uma empresa oferece um determinado produto acompanhado de vantagens como transferência de tecnologia, treinamento em serviços especializados ou o compromisso de adquirir produtos do país para o qual realiza a venda. O valor dessas contrapartidas com frequencia supera o das próprias mercadorias ofertadas e é um elemento importantíssimo da competição internacional na área da Defesa.
O Brasil tem longa experiência com contratos de offset, iniciada na década de 1950, quando a Aeronáutica comprou aviões em troca da aquisição de algodão brasileiro por governos estrangeiros. Muita coisa mudou desde então, é claro, e a Embraer, como ofertante, acordou com a Colômbia a modernização de aeronaves da Força Aérea do país, cooperação técnica para a instalação de um centro de certificação aeronáutica e a integração de empresas colombianas nas cadeias produtivas da firma brasileira.
Esse tipo de negociação abre novos potenciais para as políticas de Defesa e de relações exteriores do Brasil. Como a União tem golden share na Embraer (isto é, ações especiais com poder de veto sobre as decisões estratégicas da empresa) pode-se pensar na oferta de contrapartidas como um meio de estabelecer alianças e parcerias com governos estrangeiros, sobretudo em áreas sensíveis como a América do Sul. É também um modo de incentivar a ação internacional de empresas brasileiras, que podem agir em conjunto oferecendo serviços e produtos no âmbito dos pacotes de contrapartidas.
O desenvolvimento de estratégias nacionais desse tipo é fundamental também para a própria prosperidade da Embraer. O mercado de aviação é extremamente competitivo, um oligopólio dominado por firmas com forte apoio de seus Estados. Para ter um bom desempenho nesse jogo, a empresa brasileira precisa oferecer algo mais do que aviões de qualidade, e a rica experiência de cooperação internacional do Brasil é um bônus importante para ser levado em conta.
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010
Petróleo nas Malvinas
“As Malvinas são uma questão que continua a atrapalhar toda a política externa argentina”, me disse um ex-embaixador do país na ONU, em uma conversa em Buenos Aires. “Dificulta nossa agenda na Assembléia Geral das Nações Unidas, nos forçando a buscar apoio do bloco afro-asiático. Dificulta nossas relações com o Reino Unido e com a UE. E até com os EUA”. Lembrei da entrevista que o diplomata me concedeu por conta das atuais disputas, envolvendo a decisão do governo das ilhas de autorizar prospecção de petróleo em seu território.
Desde os anos 90 se fala no potencial de hidrocarbonetos das Malvinas, e mesmo antes disso o tema era sujeito a muitas especulações, em grande medida na busca de razões econômicas que justificassem a disputa por um território cuja principal atividade era a criação de ovelhas. O escritor Jorge Luís Borges certa vez descreveu a guerra pelas ilhas como “dois carecas brigando por um pente”. Com ou sem petróleo e gás natural, a alta no preço da energia ao longo dos últimos anos tornou mais vantajoso os investimentos para procurar por essas riquezas nas profundezas geladas do Atlântico Sul.
Justamente, o contexto político da década de 2000 – ascensão do nacionalismo, valorização dos hidrocarbonetos – piorou bastante as relações entre Argentina e Reino Unido pela questão das ilhas. Nos anos 90, o governo Menem adotou uma diplomacia de aproximação, optando por não discutir a questão mais candente, da soberania sobre o território, e buscar acordos de cooperação em temas mais consensuais, como visitas humanitárias que permitissem aos veteranos e parentes de militares mortos na guerra de 1982 ir até as ilhas.
O governo argentino já anunciou sua oposição aos esforços britânicos de prospecção de petróleo, e adotou uma série de restrições para empresas que queiram usar seu território para comerciar com as ilhas, e irá levar seus pleitos à ONU e à Cúpula do Grupo do Rio (isto é, aos demais países da América Latina). Nestes tempos de pré-sal, é de se esperar de que o Brasil seja mais do que simpático às demandas da nação vizinha.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
Conquistando o Inimigo
Comentei há alguns dias o filme “Invictus”, que trata de como Nelson Mandela usou o rugby para promover a integração racial na África do Sul. Por conta do curso que preparo sobre o país, fui ler “Conquistando o Inimigo” (clique no link para ler o capítulo 1), do jornalista inglês John Carlin, o livro que inspirou a produção cinematográfica. Foi uma bela surpresa: a história é ainda mais interessante do que a versão que foi para a tela grande.
O filme começa com Mandela sendo libertado da prisão após quase 30 anos confinado, ao passo que o livro de Carlin se inicia bem antes, contando como o interesse do líder pelo rugby começou quando ele ainda estava encarcerado. O esporte foi a maneira que Mandela encontrou para se aproximar do pior diretor que enfrentou na cadeia, um coronel intratável que só amolecia quando o assunto era o rugby.
Mandela não era o único lider da resistência anti-apartheid a perceber a importância política do esporte. O rugby era a principal paixão - “religião secular”, diz Carlin – da comunidade africânder, os descendentes de holandeses que formaram o núcleo duro do regime racista sul-africano. A estratégia de seus oponentes foi utilizar as denúncias de violações de direitos humanos perpretadas pelo governo como base para uma série de sanções diplomáticas que terminaram por excluir a seleção da África do Sul das disputas internacionais. O gesto teve um impacto profundo e levou muitos africânders a questionarem o que estava acontecendo de errado em seu país.
Fiquei imaginando o que teria ocorrido na América do Sul se os ativistas contrários às ditaduras militares tivessem usado os mesmos métodos, com relação ao futebol. Basta pensar em como os regimes autoritários do Brasil e da Argentina usaram o esporte – e seus respetivos triunfos nas Copas de 1970 e 1978 – e temos aí uma bela questão para o debate.
A adaptação para o cinema do livro de Carlin se concentra no relacionamento de Mandela com o capitão da equipe sul-africana de Rugby, François Pienaar. É de fato uma bela história, mas há pelo menos dois personagens que ficaram de fora e que mereciam destaque. Um deles é Morné du Plessis. Ex-capitão da seleção, ele se tornou de maneira gradual um militante anti-apartheid. Como técnico do time na Copa do Mundo de 1995, ele tomou diversas medidas para promover a integração racial, como ensiná-los a cantar “Nkosi Sekelele”, a canção xhosa de resistência que se tornou um dos novos hinos oficiais da África do Sul. No filme, a iniciativa é atribuída a Pienaar, mas na vida real a cena foi mais bela: Plessis contratou uma jovem professora universitária de idomas para treinar o time, que foi às lágrimas, emocionados pelo simbolismo e pelo papel que desempenhavam.
O outro atleta que foi excluído do filme, injustamente, foi James Small. Um jogador genial mas temperamental e explosivo, foi parar na seleção como poderia ter ido para a cadeia. Descentente de ingleses num meio majoritariamente africânder, ele sentiu na pele a discriminação racial que existia mesmo entre os brancos sul-africanos. Chegou a ser espancado por colegas de time que queriam provar a ele que no rugby não havia espaço para pessoas de sua ascendência. Small se tornou um dos maiores entusiastas de Mandela e seu desepenho foi decisivo na dramática final contra a Nova Zelândia, pois a ele coube marcar o jogador mais perigoso do time adversário.
Livro e filme têm uma perspectiva muito otimista, e um tanto ingênua, dos esforços de integração racial na África do Sul. A meu ver, é uma visão que não faz justiça à realidade conturbada do país. É possível, ou desejável, perdoar tudo? Em que medida certas iniciativas de reconciliação não são simplesmente impotência para punir os culpados? Perdoar é o mesmo que esquecer e apagar a memória dos crimes passados?
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
O Euro e o Padrão Ouro
O economista Michael Pettis é uma referência quando se discute China, e seu blog traz nesta semana um artigo muito bom no qual ele se aventura a analisar a crise da União Européia, argumentando que a Grécia e outros países problemáticos não terão como continuar a manter-se no euro. Ele compara a moeda da Europa ao padrão ouro. O texto e a analogia são bons, mas merecem ser aprofundados.
Pelo padrão ouro, os países atrelavam suas moedas a um determinado peso desse metal precioso. O sistema teve seu auge entre a segunda metade do século XIX e a Primeira Guerra Mundial e oferecia uma barganha básica e sedutora: estabilidade monetária, em troca dos governos abrirem mão de desvalorizações. O regime funcionou bem com Grã-Bretanha, França, EUA e Alemanha, mas outras nações tiveram problemas sérios e adotaram o padrão ouro de forma parcial ou temporária, tentando equilibrá-lo com prata ou deixando parte das emissões de moeda não-atreladas a ele.
Uma das dificuldades mais complexas é que, devido à sua escassez, o ouro fortalecia pressões deflacionárias. No caso de crises de balança comercial, os países precisavam compensar de algum modo, isso em geral era feito com reduções de salários e/ou desemprego em massa, o que, nos lembra o economista Barry Eichengreen, ainda era possível polticamente antes da acensão dos grandes sindicatos e do sufrágio universal. Atualmente seria inviável e mesmo na época já foi difícil, com fortes movimentos sociais contra o padrão ouro eclodindo durante a depressão das décadas de 1870/1880, em especial entre os agricultores dos EUA.
As necessidades econômicas da Primeira Guerra Mundial destruíram o padrão ouro, na medida em que os beligerantes precisavam de dinheiro, e rápido. Após o conflito, houve tentativas de restaurar o sistema que era um símbolo de estabilidade, mas isso não era mais viável. O fracasso do esforço britânico, quando Churchill era ministro da Fazenda, foi o mais expressivo desse período.
A conferência de Bretton Woods criou um outro arranjo internacional, no qual as moedas dos países desenvolvidos tinham seu valor fixado ao dólar, que por sua vez estava lastreado no ouro. Esse esquema funcionou enquanto a economia dos EUA era muito forte, mas naufragou quando os americanos passaram a enfrentar a rivalidade das empresas européias e japonesas, além de lidar com a inflação provocada pela guerra do Vietnã e pelas políticas sociais domésticas. Nixon rompeu a vinculação do dólar com o ouro em 1971, e toda a história monetária de lá para cá tem sido a busca infrutífera de um ou mais sistemas que restaurem pelo menos um pouco da estabilidade de Bretton Woods.
Os europeus tentaram vários formatos. Primeiro, as principais economias do continente atrelaram suas moedas ao mega-confiável marco alemão. Não deu certo: os italianos nunca conseguiam cumprir as obrigações, e mesmo a libra britânica enfrentou problemas sérios. A criação de um banco central e de uma moeda única para a União Européia é uma nova tentativa de lidar com o tema, que esbarra nas seguintes dificuldades: como países pequenos podem se adequar à dura disciplina fiscal do bloco e enfrentar os desequilíbrios na balança comercial com os parceiros mais poderosos, como a Alemanha?
Pettis defende que Berlim ajude a UE a pagar a conta, estimulando os prósperos consumidores alemães a comprar mais dos países vizinhos. Tenho dúvidas sérias de que isso aconteça, tendo em vista a queda recente nas exportações da Alemanha – 2009 foi o pior ano em declínio desde a década de 1950! Além disso, a traumática história alemã com respeito à hiperinflação tornou o país extremamente conservador em questões fiscais, e esse conjunto de valores e práticas passou de seu Bundesbank para o Banco Central Europeu.
Ao mesmo tempo, se os países mais fracos da UE se retirassem do euro, isso seria um duro golpe para o projeto de integração que tem sido o pilar da política externa da Alemanha e da França desde o pós-Segunda Guerra Mundial. É um dilema e tanto. Como os europeus lidarão com ele?
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
Desventuras das Nações Mais Favorecidas
Paul Blustein é um jornalista americano que foi durante muitos anos repórter do Washington Post e escreveu dois excelentes livros sobre as crises financeiras da Ásia e da Argentina. Sua nova obra mantém o ótimo nível: “Misadventures of the Most Favored Nations: clashing egos, inflated ambitions, and the greatest shambles of the world trade system”. Trata-se de uma história da Rodada Doha da OMC, que sintetiza tão bem os dramas e dilemas do comércio internacional da última década que passarei a usá-lo como bilbiografia de alguns dos cursos que leciono.
Doha foi lançada em dezembro de 2001 como um esforço para atender demandas sociais e oferecer alternativas aos países em desenvolvimento, que se viam pouco atendidos pela OMC. Essas pressões, combinadas, haviam levado ao fracasso a conferência ministerial de Seattle, em 1999, com direito a batalhas campais entre ativistas e autoridades. Doha era também resposta política aos atentados terroristas de setembro daquele ano. Mas as negociações têm sido marcadas por impasses: EUA e União Européia se mostram relutantes em reduzir seus subsídios agrícolas, e as nações em desenvolvimento manifestam cautela em abrir os mercados industriais e de serviços. E todos temem o “fator China”, com suas profundas transformações no comércio global.
Apesar dos entraves, Doha marcou avanços importantes, como a Declaração sobre Saúde Pública, que garantiu a possibilidade de licensiamento compulsório para medicamentos, de modo a combater calamidades como a epidemia de AIDS que devasta a África. E marca a nova geografia econômica, com o declínio dos centros de poder tradicionais (EUA, UE) e ascensão das potências emergentes, reunidas numa coalizão ampla e contraditória, o G-20, liderado por Brasil e Índia. O Japão desempenha papel curioso: progressivamente afastado das grandes negociações, por sua dificuldade em ceder, tem sido reconvocado como uma espécie de contrapeso à China.
Blustein conta muitas histórias de bastidores, nas quais se destacam a inconstância das posições dos Estados Unidos e o profissionalismo e competência dos negociadores da UE e do Brasil. Os americanos caíram nas contradições entre o discurso pró-abertura e suas práticas protecionistas, exacerbadas com a Lei Agrícola de 2002. A instabilidade administrativa do governo Bush levou a mudanças bruscas nos principais negociadores, alguns dos quais mantiveram péssimas relações com seus colegas estrangeiros. No caso europeu, a maior dificuldade é conciliar os interesses dos 27 membros da UE, embora Blustein pinte o retratado de uma França dominante, com poder de veto sobre os demais países do bloco.
Blustein é só elogios aos três chanceleres brasileiros retratados no livro – Luiz Felipe Lampreia, Celso Lafer e Celso Amorim – e mesmo há outros políticos do país, como José Serra, por sua ação na questão dos medicamentos. Os elogios não deixaram o autor cego e ele aponta com precisão as dificuldades de manter a aliança Brasil e Índia, pelos interesses muito diversos em agricultura. Também questiona o pleito brasileiro de liderança brasileira do mundo em desenvolvimento, chamando a atenção para como muitas nações africanas têm uma perspectiva diversa, preferindo acordos de acesso preferencial aos mercados dos EUA e da UE às longas negociações na OMC.
Blustein se mostra cético diante do formato das grandes rodadas: será que ainda fazem sentido num mundo de centenas de acordos de livre comércio bilaterais ou regionais (vide gráfico acima), que na prática vão além do que decide a OMC?
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010
A Grécia e a Crise da UE
Num primeiro momento, a crise econômica internacional atingiu as empresas européias, agora a turbulência chegou aos governos. A Grécia está à beira de decretar moratória de sua dívida pública e há riscos de que a situação se espalhe para os outros “PIIGS” (Portugal, Itália, Irlanda e Espanha). Ontem a União Européia anunciou o compromisso retórico de ajudar os gregos, mas sem medidas concretas. O mercado financeiro reagiu mal e o euro caiu.
PIIGS é uma brincadeira, talvez de mau gosto, com a palavra inglesa para “porcos”, e a sigla designa os países europeus cujo desempenho econômico tem se destacado por problemas crônicos, particularmente no que diz respeito ao equilíbrio fiscal. São, por assim dizer, uma espécie de anti-BRICs. A crise na Grécia vem de longe e foi exacerbada pela conjunção dos problemas internacionais com o aumento descontrolado dos gastos públicos – o Parlamento grego, por exemplo, dobrou o número de funcionários nos últimos anos, no que foi provavelmente o maior trem da alegria no país desde os tempos de Sócrates e Platão.
A Grécia representa apenas 3% do PIB da União Européia, mas seu caso está sendo examinado como um laboratório sobre como o bloco lidará com crises semelhantes, que provavelmente ocorrerão no futuro próximo. Além dos PIIGS, os combalidos países bálticos são fortes candidatos à falência. Dada a enorme fragmentação institucional da Europa, a maioria dos observadores está cética quanto à possibilidade de uma ação rápida e coordenada que ofereça uma saída aos problemas atuais.
Há relutância do bloco em intervir com muito dinheiro, pelo chamado problema do “risco moral”. A expressão vem do mercado de seguros e descreve o incentivo não-intencional a um comportamento irresponsável. Em bom português: se a União Européia socorrer a Grécia de maneira muito fácil, estimulará outros países a agir de modo descuidado com as finanças públicas, na expectativa de que serão resgatados da mesma maneira. Mas se a UE não intervir, os riscos de disseminação da crise e desvalorização expressiva do euro são grandes.
Alguns comentaristas acreditam que o pacote de ajuda à Grécia deveria vir do FMI. O problema é que o Fundo é comandado por Dominique Strauss-Kahn, o principal rival do presidente francês Sarkozy. A declaração da cúpula da UE anuncia um “papel consultivo” para o FMI, o que na prática deve signficar pouca participação.
A União Européia não é, evidentemente, a única região do mundo desenvolvido a passar por problemas fiscais, como mostra o gráfico acima. Nos EUA, a crise já atingiu os governos subnacionais: 43 dos 50 estados enfrentam problemas desse tipo. A piada corrente é que como a Califórnia é governada por um austríaco, poderia se candidatar ao auxílio da UE...
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
Transformações no Irã
Hoje termino de lecionar o curso sobre Ditadores Contemporâneos na Casa do Saber, e o principal tema da aula será o Irã. Acabo de ler um excelente panorama sobre a história recente do país, “Iran´s Long Reach”, de Suzanne Maloney, uma ex-diplomata americana que agora é pesquisadora da Brookings Institution.
Seu livro se concentra nos desdobramentos das décadas de 1990 e 2000 e nos conflitos da estrutura dual de poder no Irã – representada acima, num infográfico do Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos. Basicamente, trata-se das tensões entre as autoridades teocráticas (o Líder Supremo e o Conselho dos Guardiões) e da influência dos presidentes eleitos pelo voto popular, embora em contexto de censura e fortes restrições às liberdades de associação.
Após a longa guerra contra o Iraque (1980-1988), o governo iraniano iniciou um programa de ajuste econômico que resultou impopular e deu origem a um grupo de descontentes entre a elite política do país. Liderados por Mohammad Khatami, eleito presidente em 1997, os reformistas empreenderam diversas iniciativas de abertura política e cultural.
As mudanças na conjuntura internacional abortaram esse período promissor. Após o 11 de setembro de 2001, o Irã assistiu aos EUA e seus aliados invadirem dois de seus vizinhos, Afeganistão e Iraque, e intervirem militarmente num terceiro, o Paquistão. O sentimento de cerco e insegurança ajudou bastante a fomentar a reação conservadora, que culminou com a ascensão de Mahmoud Ahmadinejad à presidência, em 2005, e sua aceleração do programa nuclear, que começou ainda nos tempos do xá.
Ironicamente, os Estados Unidos derrubaram dois inimigos ferozes do Irã, as ditaduras sunitas de Saddam Hussein e dos Talibãs. E o crescimento da influência xiita no Líbano (Hezbolá) e na Palestina (Hamas) tornou o Irã a principal potência regional, o grande beneficiário da política externa de George Bush.
Ahmadinejad também deve sua proeminência aos fatores domésticos, em particular às dificuldades econômicas e à inquietação dos grupos conservadores com as reformas dos anos 90. Apesar da alta no preço do petróleo, a maioria dos iranianos é pobre e a história pessoal de Ahmadinejad, oriundo de uma família de poucos recursos, constrasta com a criação privilegiada de diversos de seus oponentes, inclusive os reformistas democráticos. A repressão cultural em seu governo aumentou bastante, sobretudo na vigilância às roupas usadas pelas mulheres e na interrupção policial do circuito de festas clandestinas que acontece em Teerã e outras grandes cidades.
O tamanho da cisão no país pode ser medido pela Revolução Verde que eclodiu em junho de 2009, durante a disputa presidencial. As acusações de fraude na reeleição de Ahmadinejad são muito fortes, assim como é inegável a virulência da repressão, com prisões ilegais, torturas e assassinatos. As divisões na própria elite chamam a atenção – infelizmente, tema não coberto pelo livro - como protestos de setores das Forças Armadas e dos clérigos da cidade sagrada de Qom.
Para onde vai o Irã?
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
Admirável Mundo Novo
Passei o fim de semana na Academia Militar das Agulhas Negras, dando a aula de encerramento da pós-graduação que a Universidade Candido Mendes montou em parceria com o Exército. Desta vez o tema dos debates foi economia política internacional, falei um pouco sobre a história das organizações multilaterais na área (FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio) e outro tanto sobre a conjuntura econômica atual e o tipo de política pública que os chamados grandes países emergentes têm adotado.
A imagem que mais impressionou aos alunos - uma mistura de oficiais do Exército com funcionários das indústrias automobilísticas sediadas no sul do estado do Rio de Janeiro - foi a que abre este post. Trata-se de um infográfico publicado pelo Wall Street Journal no fim de 2009, e que mostra de maneira clara a transformação ocorrida nas 25 maiores empresas globais ao longo da última década.
De 1999 para 2009, o topo da pirâmide econômica internacional registrou duas alterações significativas: a ascensão das empresas oriundas dos países emergentes (China, Brasil, Austrália) e o relativo declínio daquelas sediadas nas nações desenvolvidas (EUA, Reino Unido, Alemanha). Os alunos ficaram particularmente impressionados com a ausência de firmas francesas de ambas as listas. Além da mudança geográfica, o perfil das maiores empresas também mudou: diminuíram aquelas voltadas para a tecnologia da informação (reflexo do estouro da bolha da Nasdaq) e cresceram as que investem em energia e finanças.
Conversamos bastante sobre as diferentes estratégias adotadas pelos principais países, e as melhores discussões se concentraram nos esforços dos Tigres Asiáticos, com a criação de burocracias altamente qualificadas e a integração entre empresas, universidades e Estado na promoção do desenvolvimento econômico e da inovação tecnológica. Citei bastante o caso de São José dos Campos, mostrando a capacidade brasileira de criar pólos assim, e relatei exemplos internacionais de integração entre grandes e pequenas empresas, com auxílio governamental, visando à sua internacionalização.
O fim de semana foi de duas festas muito boas e extremamente significativas para mim. A primeira foi a confraternização na Academia Militar para comemorar o fim do curso, que marca já três anos do trabalho que realizo naquela instituição. A segunda foi uma festa para celebrar o primeiro aniversário do Centro de Estudos sobre Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. O dinamismo da vida acadêmica no campo das RIs tem sido surpreendente, e a meu ver está vinculado à ascensão do Brasil como um ator mundial relevante. Mas também tem muito a ver com os excelentes colegas que estão construindo a área: jovens, ágeis, qualificados, entusiasmados. Fazer parte deste grupo é extremamente gratificante. Ah, sim: o bolo de morango também estava ótimo.
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
Invictus
Dou os toques finais num curso que lecionarei para jornalistas que cobrirão a Copa do Mundo na África do Sul. Por conta disso, tenho examinado ou revisto bastante material sobre o país, e por um acaso feliz na semana passada estreou nos cinemas brasileiros "Invictus", filme que narra como o presidente Nelson Mandela usou o esporte nos esforços para integrar racialmente a África do Sul, logo após a queda do apartheid.
"Invictus" é dirigido por Clint Eastwood - olha ele aqui de novo - um dos heróis deste blog, e é baseado numa história real. Quem conhece a obra de Eastwood não se espanta pela escolha do tema, pois o diretor há muito explora a questão dos ódios raciais em seus filmes. Aliás, "Invictus" reedita e sempre bem-sucedida parceria de Eastwood com Morgan Freeman, que interpreta de maneira brilhante Mandela, caracterizando à perfeição sua postura corporal e sotaque.
O enredo: Mandela está no início de seu governo e precisa enfrentar uma série de problemas sérios: o medo da população branca de que sua vitória represente a vingança contra as atrocidades perpretadas durante o apartheid, a calamitosa situação econômica do país e o aumento do crime. Nesse contexto, ele enxerga na desacreditada seleção nacional de rugby a possibilidade de um símbolo importante.
Nas divisões raciais que predominavam na África do Sul, o rugby era principalmente um esporte de brancos - a seleção nacional tinha apenas um jogador negro - e a população com outras cores de pele preferia, de modo geral, o futebol. Mas como a África do Sul sediaria a Copa do Mundo de Rugby em 1995, um ano após a posse de Mandela, o presidente apostou que o time poderia se tornar a representação da união nacional da qual o país tanto precisava.
Isso foi conseguido por meio de um intenso trabalho político, muito bem narrado no filme, que mostra as negociações de Mandela com a confederação esportiva nacional, para que mantivesse as cores e emblemas oficiais do time, um processo de sedução carismática dos jogadores, convencendo-os de sua importância para a África do Sul, e excursões e atividades sociais da equipe para identificá-la com a população negra e pobre.
Cerca de 2/3 do filme são dedicados a essas questões, apenas a parte final é um tanto tediosa, pois repete os habituais clichês dos dramas esportivos de "unidos venceremos" - a seleção sul-africana foi a campeã da Copa do Mundo. O roteiro também peca por um certo esquematismo nas relações raciais entre os personagens principais, as tensões étnicas na África do Sul continuam muito fortes e mal resolvidas, como era de se esperar após quase 50 anos de apartheid.
Ainda assim, "Invictus" vale a pipoca, quando mais não seja pela oportunidade de conhecer um pouco mais sobre um país que tem tanto a dizer ao Brasil, e que sediará, novamente, uma competição internacional esportiva.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
Gran Torino
Somente no fim de semana passado assisti a “Gran Torino”, de Clint Eastwood. O filme é um belo e trágico faroeste contemporâneo, ambientado em Detroit, cujo tema principal é o declínio: de uma cidade, da indústria do automóvel, e de uma cultura machista e individualista que apenas levou à violência sem sentido e ao isolamento emocional.
Eastwood, além de dirigir, interpreta o protagonista, Walt Kowalski, no que anunciou ser sua despedida como ator. Ele é um veterano da Guerra da Coréia, e de 50 anos como operário na Ford, que envelhece amargamente enquanto vê sua antiga vizinhança de classe trabalhadora branca (polonesa, italiana, irlandesa) degradar-se num gueto habitado por negros e imigrantes asiáticos e latino-americanos. O filho vende carros japoneses, que Walt odeia, e ele apega-se patrioticamente a seu velho Gran Torino, da década de 1970.
A rotina de solidão do personagem é interrompida quando ele se torna amigo, de forma inesperada, de um casal de vizinhos, adolescentes cuja família imigrou do Vietnã. Os dois estão ameaçados por uma gangue das redondezas e Walt tentará ajudá-los, com seu estilo cowboy, apenas para constatar que seus velhos métodos resultam inúteis e trágicos diante da escala da violência e da degradação social contemporâneas.
O domínio da narrativa por parte de Eastwood é absoluto, e adorei a maneira como ele caracteriza Walt sem necessidade de usar a palavra. Aprendemos muito sobre o personagem pela maneira como sua casa perfeita, seu gramado meticulosamente cuidado e sua obssessão com ferramentas e “home improvement” constrastam com o abandono e depredação dos arredores. Sua vistosa bandeira americana na varanda é um símbolo de seu patriotismo, mas os esteriótipos raciais agressivos que ele cospe contra todos a sua volta lembram as limitações e contradições da versão do sonho americano que ele esposa.
Boa parte do filme é dedicada à amizade de Walt com seu vizinho, Thao, um adolescente tímido a quem ele tenta ensinar um código de comportamento machista e agressivo, inteiramente contrário ao temperamento do rapaz e nitroglicerina pura no ambiente de ódios raciais da vizinhança. As mulheres do filme – a irmã de Thao, Sue, e sua mãe e avó – são muito mais corajosas e seguras de si, esforçando-se para fazer com que as tradições culturais sejam cumpridas e até desafiando as gangues.
Walt, como seu Gran Torino, é uma relíquia, um símbolo de um passado cujos últimos traços estão a desaparecer. O roteiro tem uma espécie de respeito irônico pelo personagem, que em muitos pontos se parece com os cowboys que Eastwood interpretou tantas vezes – homens corajosos e solitários, desconfiados das instituições, que querem levar a justiça e a ordem a regiões turbulentas. Mas a Detroit de hoje é muito mais sombria e perigosa do que o Velho Oeste.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
A Crise do BC na Argentina
A renúncia do presidente do Banco Central da Argentina, Martin Redrado, pode encerrar sua disputa pessoal com Cristina Kirchner (enquanto escrevo ainda não está claro se o governo a aceitará agora, ou se esperará uma decisão da comissão do Congresso que analisa o caso), mas permanecem os focos do conflito: a persistência da inflação e dos problemas cambiais. As disputas ocorrem em meio a um debate mais amplo, de escala mundial, sobre o papel dos bancos centrais na crise atual.
Na década de 1990, nos esforços para combater a hiperinflação e conquistar um pouco de credibilidade junto ao mercado financeiro, o governo argentino promulgou leis dando autonomia ao Banco Central e estabelecendo a paridade entre o peso e o dólar. As doutrinas ortodoxas da época afirmavam que a macroeconomia era importante demais para ficar na mão dos políticos e da instabilidade das conjunturas eleitoriais, e que portanto deveriam ser insuladas dessas pressões.
Os críticos observavam que essas medidas tiravam dos governos instrumentos fundamentais para a gestão da economia. Confrontadas com uma crise, as autoridades poderiam se ver sem medidas para enfrentá-la, e os problemas seriam mais sérios na América Latina, tão sujeita aos altos e baixos das turbulências globais. Foi o caso em 1998-2002, quando o turbilhão asiático repercutiu brutalmente no Cone Sul e reduziu o PIB argentino em 20% nesse período, implodindo a paridade entre câmbio/dólar. A impossibilidade de ajustar o câmbio contribuiu muito para a catástrofe. A relação dos presidentes argentinos com os titulares dos bancos centrais têm sido péssima, com inúmeros conflitos.
A Argentina da década de 2000 foi bem-sucedida em retomar o crescimento, mas a política econômica dos Kirchners enfrenta diversos problemas sérios. A inflação voltou a ser uma das mais altas do mundo, agravada por uma crise de confiança resultante da manipulação dos índices oficiais. A moratória e renegociação da dívida externa deixaram os investidores externos desconfiados, os problemas ficais levaram o governo a estatizar fundos de pensão para fazer caixa e entrar num conflito amargo e intenso com o agronegócio, que culminou com uma derrota no Congresso e cisão da coalizão oficialista.
Redrado foi nomeado presidente do Banco Central em 2004, por Nestor Kirchner, e foi um aliado do casal em sua gestão da economia, embora tenha sido um protegido de Menem e Cavallo, adepto do radicalismo liberal dos anos 90. O conflito atual explodiu quando a presidente Cristina ordenou que Redrado disponibilizasse cerca de U$6, 6 bilhões das reservas internacionais do país para pagar dívidas com organismos multilaterais e credores privados. Por lei, a decisão precisava ser aprovada pelo Congresso, no qual o governo enfrenta forte oposição. Redrado se negou a cumprir a ordem e Cristina o demitu por um decreto de emergência, anulado pela Justiça. Seguiu-se uma batalha que incluiu a mobilização da polícia para impedir Redrado de entrar no Banco.
Para seu lugar, Cristina Kirchner nomeou Miguel Pesce, um economista da União Cívica Radical que entrou no governo junto com o vice-presidente Julio Cobos. Este, está brigado com Cristina desde a crise com o agronegócio. Impressão minha ou teremos mais tempestadaes à frente?
O conflito na Argentina ocorre numa conjuntura de crise internacional no qual a autonomia dos bancos centrais tem sido questionada, em particular por suas falhas como reguladores. Obama nomeou o presidente do Fed, Ben Bernanke, para mais um mandato, mas analistas apontam para a entrada dos bancos centrais numa “era da improvisação”, em meio às indefinições da turbulência atual.
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