segunda-feira, 4 de abril de 2011

A Guerra Civil na Costa do Marfim



A Costa do Marfim já foi a jóia da coroa da África pós-colonial, mas na semana passada tornou-se cenário de mais uma guerra civil no continente – ela se junta aos conflitos existentes na Líbia, Congo e Somália. O cerne da disputa é a recusa do presidente Laurente Gbagbo (à esquerda, na foto acima) em reconhecer a derrota eleitoral para seu oponente Alassane Ouattara (à direita), que representa grupos étnicos e religiosos tradicionalmente discriminados no país. Tropas leais a Ouattara dominam quase todo o país, mas o presidente Gbagbo resiste em Abidjan, a cidade mais importante.

Crises semelhantes ocorreram nos últimos anos no Quênia e no Zimbábue, onde a oposição ganhou nas ruas mas acabou aceitando governos de “unidade nacional”. Em termos práticos, resignou-se ao controle de alguns ministérios e órgãos públicos, temerosa de um conflito armado amplo. Na Costa do Marfim, a instransigência é maior, quando mais não seja porque Ouattara tenta ser presidente há 10 anos, sendo constantemente impedido por manobras jurídicas ou políticas de caráter duvidoso. Por ironia, Gbagbo ascendeu à presidência pela primeira vez, em 2000, liderando uma revolta provocada pelas mesmas razões.

Após a independência, a Costa do Marfim foi governada por mais de trinta anos por Félix Houphouët-Boigny, habilidoso fazendeiro de cacau com laços familiares com a aristocracia local. Estabeleceu um regime autoritário, mas que nos anos 60 e 70 teve bem-sucedidas políticas econômicas, baseadas no incentivo à agricultura comercial privada no cacau, café e frutas, e em cooperação internacional com a França. Na época, a Costa do Marfim crescia a 7% por ao ano, uma das taxas mais elevadas do mundo. Mas com o tempo, os vícios comuns às ditaduras triunfaram, com muita corrupção e gastos inúteis e dispendiosos, como a transformação em capital do vilarejo natal do presidente, Yamoussoukro, que virou uma espécie de Versalhes africana.

Após a morte de Houphouët-Boigny, seus sucessores exploraram as rivalidades étnicas e religiosas entre o norte islâmico e o sul cristão para conquistarem e manterem o poder, mesmo que às custas de guerra civil e conflito armado, que ocorreram entre 2002-7, sob o governo de Gbagbo. Ouattara tem interessante biografia: é um tecnocrata que trabalhou muitos anos no FMI e tem fortes ligações com os EUA com a União Européia, mas simultaneamente é um muçulmano nortista, representante dos grupos tradicionalmente excluídos da elite da Costa do Marfim. Sua mãe é de Burkina Faso, e até recentemente isso o qualificava como "estrangeiro" nas leis eleitorais, mas é um dado importante num país no qual 25% da população é imigrante ou filha deles. Iniciou a carreira política como assessor de Houphouët-Boigny, quando o velho ditador tentou reformar as combalidas finanças públicas nacionais.



A guerra civil era iminente desde novembro, quando o presidente Gbagbo recusou-se a aceitar a derrota eleitoral. Os conflitos têm sido ferozes, com atrocidades cometidas por ambos os lados. A maior até agora foi o massacre de 800 pessoas na cidade de Douékué. Ainda não está claro quem foi o responsável, mas as suspeitas iniciais caem sobre as tropas de Ouattara. Estima-se que um milhão de pessoas tenham fugido da Costa do Marfim, indo para os países vizinhos, que em geral são muito pobres e enfrentam, eles mesmos, o desafio de reconstrução pós-bélica, como na Libéria.

Houve reação internacional ao impasse na Costa do Marfim, porém mais tíbia do que o que ocorre na Líbia. Há uma força de paz da ONU no país, apoiada por um contingente francês, mas ambas fizeram pouco mais do que garantir enclaves seguros para os ocidentais em Abidjan. EUA e União Européia implementaram sanções econômicas contra o regime de Gbagbo, bastante dependente dos mercados externos para o agronegócio. Mas a União Africana tem relutado em intervenções mais expressivas, seja pelas boas relações que muitos de seus membros mantém com o governo da Costa do Marfim, seja pelo medo de que no futuro esse tipo de instrumento possa ser usado contra eles. A situação é especialmente sensível na Nigéria, que no próximo sábado terá eleições.

11 comentários:

Wellington Amarante disse...

Olá, Maurício!

Venho acompanhando o noticiário sobre a Costa do Marfim desde novembro, época das eleições. Porém, como você bem sabe nossa imprensa tem uma "dificuldade" imensa em coberturas internacionais, pois elas ocorrem de acordo com os grandes acontecimentos. No final do ano passado ainda se lia alguma coisa sobre a Costa do Marfim, depois com as revoltas no norte da África e agora no Oriente Médio a Costa do Marfim sumiu da pauta.

Não sei se você recorda, mas cheguei a te pedir um post sobre a Costa do Marfim, pois parecia que a situação caminharia para a resolução. Como podemos ver as coisas não foram tão simples.

Parabéns pelo texto, sempre com informação e densidade histórica.

Abraços

Severino Goes disse...

Prezado Maurício Santoro. mandei um e mail para voce. sou jornalista em Brasília e preciso entrevistá-lo.
Meu e mail é severinogoes@yahoo.com.br
por favor, me diga como posso fazerf contato com você. obrigado

Mário Machado disse...

Dr,

Os estreitos mandatos das Forças de Paz acabam as tornando espectadoras do conflito - por isso no Twitter falei em Ruanda - .

Aliás, tenho visto o "todos os meios necessários" da resolução da Líbia como uma evolução bem-vinda ao tornar mais flexivel a missão multinacional.

A tragédia se desenhava desde que ACNUR retirou seu pessoal e agora se confirma.

Trágico desfecho...

Maurício Santoro disse...

Salve, Wellington.

Lembro sim do seu pedido, mas demorei bastante até conseguir as informações necessárias, justamente porque o conflito está bem secundário na mídia internacional. No fim, o que me ajudou foram sites acadêmicos e a imprensa de língua francesa.

Caro Severino,

Já li seu email, vamos marcar uma conversa.

Salve, Mário.

"Todos os meios necessários" é o jargão da ONU para autorizar uso de força militar, é o mesmo termo usado, por exemplo, no Iraque.

No entanto, note que a resolução sobre a Líbia é bem mais restrita do que as ações da coalizão, uma vez que o documento teve que ser redigido de modo a evitar o veto de China e Rússia, bem menos entusiasmadas em depor Kadafi.

abraços

Alessandra Baldner disse...

Excelente texto, Maurício!

Infelizmente, as populações (principalmente as dos países africanos) pagam caro por alguns não quererem "largar o osso".

E caminhamos para a (r)evolução...

Maurício Santoro disse...

Salve, Alessandra.

Às vezes, marchamos rápido para a involução...

Abraços

Gabriel disse...

Olá, Mauricio, tudo bem?

Você autorizaria a reprodução desse ótimo texto no Correio da Cidadania, um jornal eletrônico de São Paulo?
Claro que em caso positivo daremos o devido crédito ao blog.

um abraço e obrigado,

Gabriel Brito,
Correio da Cidadania

Matheus Machado Hoscheidt disse...

Sou estudante de Relações Internacionais pela UFRGS e conheci o blog pelo NPTO. Virei fã desde então. Parabéns pelo trabalho!

Maurício Santoro disse...

Caro Gabriel,

Se for publicado no formato de um artigo opinativo, com minha assinatura, está totalmente autorizado. Entre em contato por email para acertarmos os detalhes, meu endereço é mauriciosantoro1978@gmail.com.

Salve, Matheus.

Que bom! Saudades do NPTO, tomara que ele retorne.

abraços

Malu disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dona Preta disse...

Olá gostaria de colocar este artigo no meu blog pode ser?

www.identidadeblack.blogspot.com

Já coloquei e não gostar me avisa que retiro. Axé da baiana