quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A Última Utopia

Em 2012 irei lecionar na nova pós-graduação em Direitos Humanos que está sendo criada pela Universidade de Vila Velha, no Espírito Santo. Por conta disso, tenho reunido material para preparar os cursos que irei ministrar. Há novas reflexões acadêmicas bastante interessantes, que questionam as interpretações ortodoxas a respeito do tema.

A narrativa clássica identifica as origens dos direitos humanos na Antiguidade, nas idéias greco-romanas sobre “lei natural” e nas doutrinas medievais da Igreja Católica. Essa tradição teria sido ampliada com as grandes revoluções dos séculos XVII-XVIII (Britânica, Americana, Francesa) e se consolidado na criação do sistema ONU, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os diversos tratados associados à organização. Tal linha de raciocínio é ilustrada exemplarmente pelo vídeo abaixo:

É uma belíssima edição de imagens, mas seus pressupostos não se sustentam na análise acadêmica contemporânea, em particular o provocador livro do historiador Samuel Moyn (Universidade Columbia), “The Last Utopia – human rights in history”. Para ele, os direitos humanos só se afirmam na década de 1970, como uma reação anti-totalitária ao colapso dos ideais revolucionários do marxismo e da descolonização, e como rejeição das doutrinas de segurança nacional que impuseram ditaduras em nome da contenção ao comunismo.

Para o historiador, os direitos humanos são “a última utopia”, marcada pela desconfiança com relação ao Estado e pela atuação de organizações não-governamentais. Moyn a distingue com respeito às doutrinas anteriores porque elas não eram universais, mas aplicadas somente aos membros de uma determinada comunidade política. Eram garantias a serem estabelecidas pelo Estado, e não direitos a serem exercidos, por vezes, contra ele.

É comum que os defensores dos direitos humanos afirmem que eles são indivisíveis e que não se contradizem, mas a realidade é bem mais contraditória e conflitante. Moyn é muito perspicaz em analisar os conflitos entre as tradições liberais de direitos humanos, centradas nos indivíduos, e aquelas nacionalistas ou coletivistas, voltadas para a comunidade (nação, grupo religioso etc), como as das lutas anti-coloniais – tema, aliás, de excelente palestra realizada há algumas semanas na FGV-Rio.

Penso apenas que ele exagera na oposição entre as duas tradições. O Estado é muitas vezes parte do problema quando se trata de Direitos Humanos, mas sempre será parte inescapável da solução.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

África na Agenda Econômica do Brasil



Na semana passada fui a seminário do CEBRI sobre África no comércio exterior e nos investimentos estrangeiros do Brasil. O intercâmbio comercial entre os dois quadruplicou em dez anos, atingindo US$20 bilhões anuais. É uma quantia expressiva, mas que não chega a 10% do total brasileiro e que está muito concentrada em alguns países e produtos.Cerca de dois terços do comércio do Brasil com a África é com sete países: Nigéria, Angola, Argélia, Egito, África do Sul, Marrocos e Líbia. Cerca de 85% das importações brasileiras do continente são petróleo e derivados. As exportações para lá são mais diversificadas e 56% delas são de produtos manufaturados.

As regiões mais ricas da África são o Norte árabe e o Cone Sul, de modo que a concentração do comércio com Brasil com essas áreas não é surpresa. Contudo, chama a atenção certo descompasso entre as ambições brasileiras para o continente (sempre muito grandes) e relativa fragilidade nas bases das trocas econômicas. Por exemplo, à exceção da Nigéria e de Angola o Brasil não tem comércio expressivo com países africanos que foram fundamentais para sua formação étnica, como as nações do Golfo da Guiné a maioria das ex-colônias portuguesas.

A situação é um tanto diversa em Moçambique, por conta dos grandes investimentos que a Vale e a Petrobras têm feito no país. Mas o foco das empresas brasileiras na África continua a ser os países produtores de petróleo, muitos dos quais têm laços culturais frágeis com o Brasil, como Argélia ou Líbia. A turbulência política da Primavera Árabe lança uma série de outros problemas para a diplomacia brasileira na região.

Naturalmente, vale lembrar a lição de um dos mestres africanistas brasileiros, o embaixador Alberto da Costa e Silva: a política externa é po-lí-ti-ca, e não deve ser limitada meramente por considerações de comércio e investimentos. De fato, há dimensão na África que escapa a tais restrições, como o peso dos mais de 50 países do continente nos fóruns internacionais ou a parceria estratégica com a África do Sul em vários diálogos globais (BRICS, IBAS, BASIC). O Brasil já tem 33 embaixadas junto aos países africanos, mas a metade delas foi inaugurada somente na última década e contam com pouco pessoal e recursos.

Não obstante, é importante pensar também em maneiras de superar as limitações, como a escassez de rotas aéreas e navais ligando o Brasil à região, a fragilidade da infraestrutura local, instabilidade política e dificuldades de financiamento para o comércio exterior brasileiro com a África. No campo do crédito oficial ao exportador, só há mecanismos viáveis do BNDES com Angola (com o petróleo servindo de garantia aos empréstimos) e projeto de fazer algo parecido com Moçambique, usando minérios.Muitos dos problemas vêm do pouco que o país importa do continente, o que torna complicado estabelecer redes de transporte eficientes economicamente – os navios teriam que voltar vazios, por exemplo.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Egito: a praça, os quartéis, as mesquitas



Os protestos contra a junta militar que governa o Egito desde a queda da ditadura em fevereiro foram motivados pelas medidas autoritárias tomadas pelas Forças Armadas, como a prisão de cerca de 12 mil ativistas, tortura de vários deles, e o constantemente adiamento de eleições – as presidenciais podem ocorrer só em 2013. As manifestações desta semana resultaram em mais de mil feridos e 30 mortos, com um inédito pedido de desculpas da junta à população. Ministros civis do governo renunciaram e o secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa (ex-chanceler de Mubarak) foi convidado para o posto de premiê. Este round foi vencido pelos movimentos pró-democracia, mas o desfecho segue incerto.

A Tunísia já realizou suas eleições legislativas e o novo parlamento, comandado por um partido islâmico moderado, elaborará a constituição democrática. A situação do Egito é mais complexa, porque as Forças Armadas que governam o país desde 1952 são maiores, mais poderosas e construíram um império econômico do qual não querem abrir mão. A força partidária mais relevante, a coligação comandada pela Irmandade Muçulmana, ocasionalmente protesta contra os militares, mas compartilha com eles o adversário comum: os novos movimentos sociais como o 6 de abril, nos quais os jovens têm papel de destaque.

As eleições parlamentares do Egito estão marcadas para começar no dia 28, e foram confirmadas apesar de rumores e solicitações para que fossem adiadas por uma ou duas semanas, em função dos problemas logísticos – o próprio ministro do Interior afirma que não pode garantir a segurança pública durante as votações. A nova lei eleitoral da junta é considerada consensualmente ruim e confusa, divide os distritos do país entre proporcionais com lista fechada (dois terços) e um modelo misto no qual podem concorrer candidatos independentes. As indefinições dificultam aos mais de 40 partidos elaborar estratégias coerentes para disputar votos e prejudicam em especial as novas siglas e movimentos, ainda em processo de consolidação. Favorecem, claro, o grupo mais antigo e bem-organizado: a Irmandade Muçulmana, fundada em 1928 e com ampla rede de mobilização e serviços sociais.

Ninguém duvida que a coligação islâmica seja a vitoriosa nas eleições, a discussão é quantos votos terá – especula-se que entre 40%-60% do total. O parlamento terá a tarefa crucial de elaborar a nova constituição democrática, mas a junta militar pressiona para que vários temas fiquem como “supra-constitucionais”, isto é, fora da alçada de deliberação democrática. A mais controversa é a proposta de que o orçamento de Defesa seja secreto.



A mobilização social no Egito tem sido impressionante e reuniu uma grande frente formada tanto por ativistas de classe média como por movimentos populares, como os sindicatos – cuja longa luta contra Mubarak foi importantíssima para a queda da ditadura. Isso criou contrapesos contra as medidas da junta militar, embora não tenha conseguido evitar a repressão política. Não ajuda que o comandante do grupo, marechal Hussein Tantawi (ironizado na foto que abre o post), tenha sido por 20 anos o ministro da Defesa do antigo regime.

Nenhuma transição democrática é fácil, e a do Egito certamente será mais difícil do que a da Tunísia. Em nome da estabilidade política, terão que ser feitos acordos com os militares, provavelmente com a garantia de que continuarão a desfrutar de parcela considerável do seu atual poderio econômico. E as Forças Armadas continuarão a representar para o Ocidente as fiadoras do processo de mudança, a garantia de última instância de que os fundamentalistas não tomarão o poder, de modo semelhante ao papel que desempenharam na Turquia e na Argélia.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O Brasil de Camille



Nesta terça-feira nasceu minha primeira sobrinha, Camille. Ela é a primeira bebê da nova geração entre minha família próxima e, inevitavelmente, sua chegada me fez pensar em quanto o país mudou com relação ao nascimento de seu pai e de seu tio, entre 1978-1980. O Brasil está longe, muito longe, de ser o lugar que sonhamos, mas melhorou muito com relação a minha infância e adolescência.

Meu irmão e eu nascemos numa ditadura na qual a maioria da população era pobre, e cerca de 25% viviam na miséria. Camille chega numa democracia consolidada, embora incompleta, que aos poucos torna-se um país de classe média. A renda per capita brasileira está em torno de US$11 mil por ano, mais do que média mundial de US$9 mil. A desigualdade continua a ser um sério problema social – talvez o pior do país – mas tem caído de modo lento e constante desde a década de 1990. É um diferencial importante e ainda subvalorizado do desempenho sócio-econômico do regime democrático.



Camille um dia ouvirá nossas histórias sobre os anos difíceis de hiperinflação e provavelmente achará graça quando souber que seu pai e eu íamos para a fila do supermercado com sua falecida bisavó, para ter acesso a maior quantidade de produtos que estavam racionados. Ela certamente ouvirá como só aprendi a gostar de peixe quando a carne bovina despareceu um ano das prateleiras e vai achar difícil de acreditar que faltava água e luz quase todo mês, e que o telefone às vezes precisava de meia hora para dar sinal. Talvez se irrite com os contos de “quando eu tinha sua idade” e quem sabe fique cética quando dissermos que nos divertíamos: “Às vezes sobreviver pode ser melhor do que viver”, como diz um personagem de um dos filmes favoritos do seu pai e do seu tio.

O país e a cidade ainda são violentos e perigosos, e é claro que essas preocupações também cercarão a pequena Camille. Seu pai e eu não conhecemos outra realidade e um dia ela talvez se espante em saber que todos nós, bem como seus avós e bisavós, estivemos sob a mira de uma arma. É possível que se indigne em como deixamos a nação chegar a esse ponto, sem fazer nada, e estará coberta de razão em sua cobrança.

Seu nascimento foi saudado com câmeras digitais e postagens na Internet, em meio a uma prosperidade que a família jamais desfrutou desde que se instalou no Brasil, há 100 anos. Quando nasci, o marco foi minha madrinha chegar à maternidade com uma escritura de doação na qual me legava como herança sua linha telefônica: “O futuro do menino está garantido!”, comemorava minha avó. O de Camille é um livro aberto com mais possibilidades e escolhas do seus parentes julgariam viável há apenas uma geração. Sua chave para chegar lá não será o telefone, mas a educação, que ela precisará para navegar num oceano cada vez mais amplo de informações e dados. Mas como mestre Louis Armstrong cantava ao ver as crianças do seu tempo: “Eles aprenderão muito mais do que eu jamais soube, e penso comigo mesmo, ´Que mundo maravilhoso´”.

Conhecimento é parte importante da história, mas não só isso. Camille crescerá numa sociedade mais tolerante e aberta, mais plural do ponto de vista religioso, étnico, cultural, anos-luz à frente do país pobre e fechado de décadas atrás. Ela terá oportunidade de aprender outras línguas, viajar e estudar no exterior, abrir o mundo pelas janelas da Internet e da TV a cabo – que seu pai e eu só conhecemos quando já estávamos na universidade. Torço para que ela mergulhe na cultura brasileira, mas que não tenha medo ou insegurança em explorar o novo. Que tenha raízes, mas também radares, na bela formulação da historiadora Denise Rollemberg.

Questões Para a Comissão da Verdade



Na sexta-feira a presidente Dilma Rousseff sancionou duas leis importantes relacionadas à transparência e à memória histórica: a Criação da Comissão da Verdade (para investigar violações de direitos humanos no período 1946-1988) e a Lei de Acesso à Informação, que acaba com o sigilo eterno de documentos oficiais e estabelece normas mais abertas para sua classificação e consulta. Falei sobre o significado da nova legislação à revista britânica Economist e à rádio CBN.

Boa parte da cobertura de imprensa se concentra nas razões pelas quais o Brasil é um retardatário internacional nas duas iniciativas, que já foram implementadas em dezenas de países. Contudo, há questões em aberto para a Comissão que devem ser discutidas nos próximos meses - a previsão é que ela comece a funcionar daqui a um semestre. Destaco quatro pontos:

1) Composição. Seus sete integrantes serão escolhidos pela presidente Dilma, provavelmente de modo a refletir a amplitude das forças que defendem os direitos humanos no Brasil, com representantes de igrejas, partidos, meio acadêmico. A negociação da Comissão no Congresso foi um modelo de entendimento suprapartidário e é de esperar que os trabalhos da instituição continuem assim. Seria importante ter participantes das Forças Armadas, talvez um oficial-general da reserva. Afinal, uma das consequências menos discutidas da ditadura foi como o regime autoritário destruiu uma importante tradição da esquerda militar, vinculada aos movimentos sociais desde o início da República.

2) Modo como irá operar, sobretudo se suas audiências serão públicas (como na África do Sul) ou a porta fechadas (Argentina). O melhor modelo para o Brasil contemporâneo é de reuniões abertas. Poderíamos ter, por exemplo, programas de TV ou rádio que acompanhassem os trabalhos da Comissão. A Internet oferece novas e extraordinárias possibilidades de participação que podem ser aproveitadas.

3) Como realizará o trabalho de investigação e apuração de fatos. A maior parte de suas homólogas nos diversos países incluiu viagens a zonas remotas do interior e locais nos quais ocorreram graves violações de direitos humanos. No Peru, foram realizadas muitas entrevistas com camponeses e indígenas das regiões montanhosas mais atingidas pela violência, reunindo um acervo valioso de história oral de segmentos da população marginalizados. No Brasil, o mesmo pode ser feito em zonas como o Araguaia, ou com os posseiros atingidos pela expansão da fronteira agrícola no Centro-Oeste e Amazônia, ou ainda nas lideranças dos movimentos das favelas das grandes cidades, vítimas quase sempre esquecidas da ditadura militar.

4) O papel das empresas privadas no financiamento à repressão política ainda é assunto tabu no Brasil, pouco discutido inclusive na reflexão acadêmica. A Argentina fornece exemplos importantes, tanto no envolvimento de multinacionais estrangeiras quanto das firmas locais com o aparato de prisões ilegais e torturas.

A Comissão brasileira será menor e terá menos funções do que aquelas criadas em outros países e por isso continua a despertar críticas da Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos. Ainda assim, sua implementação é um passo importante e ela é uma iniciativa de política externa, tanto quanto de política doméstica. No mundo da Primavera Árabe e das transformações de direitos humanos na América Latina, uma nação que aspira à liderança internacional precisa afirmar compromisso com a democracia (a não ser, claro, que seja uma potência econômica como a China, ou que clame uma bandeira de legitimidade religiosa como Irã).

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Olhares do Cinema sobre a Primavera Árabe



Em outubro, no Festival do Rio, assisti a dois excelentes filmes sobre a Primavera Árabe: o documentário “Tunísia: o fim do medo” e a coletânea de curta-metragens de ficção “18 Dias no Egito”. A trajetória dos dois países está intensamente interligada. Suas ditaduras foram derubadas com poucas semanas de diferença e o mesmo ocorre agora com suas primeiras eleições legislativas livres. A tunisiana foi em outubro, a egípcia será no dia 28.

O documentário sobre a Tunísia foi dirigido por Mourad Ben Cheikh e é uma co-produção com a emissora Al-Jazeera, importantíssima como fonte de notícias críticas sobre o Norte da África e o Oriente Médio, e para criar ou fortalecer o senso de identidade pan-árabe dos países envolvidos nas revoltas democráticas.

O filme é um conjunto de entrevistas com pessoas que participaram da derrubada da ditadura de Ben Ali: uma moça que escreve um importante blog político, uma advogada que comanda uma ONG de direitos humanos, seu marido, um veterano militante comunista e uma mulher em tratamento psicológico, que monta um grande e belo painel fotográfico sobre a revolta, como modo de expurgar os efeitos nocivos do regime autoritário.

O subtítulo, “o fim do medo”, resume à perfeição o clima da produção e os depoimentos emocionam – o filme foi aplaudidíssimo pela platéia no festival. O mais impressionante foi constatar a relação entre a democratização do país e o reforço dos laços de confiança entre os cidadãos, além de sua recuperação do espaço público. Contudo, o documentário peca pelo pouco espaço dedicado aos islamistas – que já se consagraram como a principal força política da Tunísia, com 40% dos votos.




O filme egípicio é uma colaboração entre dez cineastas, cada um com seu estilo, mas há grande coesão narrativa e política entre eles, talvez pelo trabalho de organização e articulação de Sherif Arafa. Os diversos curta-metragens abordam temas como a perseguição política e a tortura sob a ditadura de Mubarak, o cotidiano dos capangas que atacaram os manifestantes pró-democracia, as reações das pessoas sem engajamento político que subitamente se viram envolvidas pelos gigantescos protestos e até episódios poéticos ou humorísticos, como o menino que quer apenas tirar uma fotografia em cima de um blindado, ou o rapaz que se apaixona platonicamente pela vizinha que participa da ocupação da Praça Tahrir.

O melhor e mais elaborado dos curtas é o que abre o filme: um grupo de pacientes internados num hospital psiquiátrico assiste espantado às notícias da revolução, enquanto percebem as mudanças na administração da instituição. Há de tudo entre eles: um coronel da polícia secreta, um islamita, um jovem rebelde, um professor desiludido, um cínico jornalista da TV oficial. Lembra a peça Marat/Sade, de Peter Weiss.

O filme egípcio não é exatamente mais pessimista do que o tunisiano, porém é um tanto mais cauteloso, no sentido em que deixa claro que há muitos outros interesses no país além dos grupos pró-democracia – partidários da ditadura, oportunistas que esperam ver para onde soprará o vento, cidadãos apáticos, assustados ou confusos. Ele não trata dos militares, presumo que o assunto ainda seja tabu numa nação com Forças Armadas tão influentes. Mas o tema será quente nas iminentes eleições. Por aqui, em breve.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Kissinger sobre a China



Secretário de Estado e Assessor de Segurança Nacional de dois presidentes (Richard Nixon e Gerald Ford, 1969-1977), o cientista político Henry Kissinger foi o principal arquiteto da aproximação entre os Estados Unidos e a China comunista, como uma maneira de pressionar a União Soviética, contra a qual os dois países tinham interesses comuns. Em seu livro mais recente, Sobre a China, Kissinger conta os bastidores dessa diplomacia triangular e procura traçar o panorama da história das relações internacionais chineses do século XIX aos dias atuais. Contudo, o resultado é decepcionante, pois Kissinger está preso a um formato de reflexão intelectual que leva em conta somente as intenções dos principais líderes políticos e dá pouca ou nenhuma atenção às grandes transformações das sociedades, ao desenvolvimento econômico e a temas como democracia e direitos humanos.

(...)


O livro torna-se mais interessante quando aborda a China após a Revolução Comunista de 1949. Kissinger examina os erros cometidos pela liderança dos Estados Unidos naquela época, mostrando como a rigidez ideológica do período os cegou para as possibilidades de explorar as divergências crescentes entre Pequim e Moscou, e atrelou Washington a uma aliança ineficaz com o regime nacionalista em Taiwan. Medos e desconfianças fizeram com que os Estados Unidos creditassem ao governo comunista chinês intenções agressivas com relação à Coréia, numa escalada que culminou com a guerra de 1950-2, que terminou num surpreendente impasse militar – ninguém esperava tal desempenho do exército chinês, desgastado após o longo embate contra japoneses e nacionalistas.

(...)

O que Kissinger tem a oferecer são anedotas – algumas delas saborosas – sobre suas negociações com líderes chineses como Mao, Zhou Enlai e Deng Xiaoping. Ele vê o primeiro como um filósofo camponês desconfiado e astuto, o segundo como um diplomata refinado, um mandarim cortês como os que serviram os imperadores. Claramente foi seu interlocutor favorito: “Mao era ávido por acelerar a história: Zhou se satisfazia em explorar suas correntes”. O terceiro é elogiado como pragmático e direto: “Ele incubia seus subordinados de inovar, depois endossava o que funcionava.” Há bons perfis dos líderes chineses da era de Deng, como o reformador heterodoxo Zhao Zyiang, o presidente Jiang Zemin e o chanceler Qian Quichen (“um dos ministros das Relações Exteriores mais habilidosos que já conheci”).


O texto completo, em minha resenha para o Amálgama.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Irã e Israel: cartas na mesa



As ameaças do governo de Israel ao Irã têm aumentado nas últimas semanas com a retórica de bombardeios aéreos caso a república islãmica continue com seu programa nuclear. Não está claro se haverá nova guerra no Oriente Médio e ao menos por enquanto o discurso israelense se encaixa numa estratégia mais ampla de pressões que envolvem também os Estados Unidos e a União Européia. Na terça-feira a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) divulgou relatório que reforça suas afirmações anteriores: o Irã avança em sua pesquisa tecnológica nuclear, inclusive na possibilidade de desenvolver bombas atômicas, mas não há indicações de que esteja empreendendo a construção dessas armas. A divulgação do relatório pela imprensa foi bem mais alarmista do que o documento em si. Para os interessados numa análise mais moderada, o melhor é ler o livro do ex-diretor da AIEA e Nobel da Paz, Mohamed El-Baradei (há edição brasileira).

Um Irã com bombas nucleares estaria protegido de invasões e intervenções militares ocidentais, como as que sofreram Iraque e Líbia – o erro do qual Kadafi mais deve se arrepender foi ter desmantelado seu programa de armas de destruição em massa após o 11 de setembro. Isso provavelmente o tornaria mais ousado em suas ações no Oriente Médio, inclusive pelo apoio a aliados como Síria, Hezbolá e Hamas. O não-reconhecimento de Israel e a negação de que o Holocausto ocorreu tornam a república islâmica ainda mais perigosa aos olhos do governo israelense que traça analogias entre a situação atual e a Europa às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

Em 1981 a força aérea de Israel realizou um bem-sucedido ataque cirúrgico contra as instalações nucleares de Osirak, que sediavam o programa atômico de Saddam Hussein. Em 2007, algo semelhante foi feito com a Síria. O Irã é um alvo bem mais difícil, pois os iranianos aprenderam com os erros dos outros e criaram um programa descentralizado, espalhado por seu país. A maior distância geográfica também dificulta a ação israelense. Mas o objetivo dos ataques não seria a destruição do programa, e simplemsente atrasá-lo em alguns anos. Isso é que tem sido feito com sucesso por operações de espionagem, como a implementação do vírus Stuxnet nos computadores iranianos e o assassinato de diversos cientistas.



O Irã é signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, que o proíbe de desenvolver armas atômicas. Israel nunca o assinou. A Coréia do Norte o fez, e depois se retirou do acordo. Ameaças de guerra e sanções econômicas não tem funcionado e há espaço para a retomada do diálogo diplomático, inclusive com propostas de relançar o acordo proposto por Brasil e Turquia, em 2010, pelo qual o governo iraniano mandaria seu urânio para ser enriquecido fora do país, a 20%, taxa suficiente para seu uso médico, mas não para a construção de bombas nucleares.

Soluções pacíficas têm sempre muitos inimigos, em particular no Oriente Médio, e as potências ocidentais e Israel rejeitaram rapidamente a proposta do Brasil e da Turquia. As pressões internacionais têm fortalecido a linha dura no Irã e há crise entre os aiatolás e o presidente Mahmoud Ahamadinejad, que corre risco de ser deposto. Por estranho que possa parecer, ele é a voz moderada nos debates. Pode-se imaginar o que viria em seu lugar.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O Último Bunga Bunga em Roma



A crise na Europa faz mais duas vítimas, com a renúncia (efetiva) do primeiro-ministro da Grécia e (anunciada) de seu homólogo da Itália. Ninguém acredita que a mudança nos governos resolverá os problemas, que são ecumênicos do ponto de vista ideológico: afetam a esquerda grega e a direita italiana. Algo semelhante ocorreu em Portugal e deve acontecer na Espanha no dia 20. Em todos esses países, a liderança política está sendo substituída por sua incapacidade de formular ou implementar soluções para a turbulência econômica. A Itália é o caso mais impressionante, porque sua descida ao abismo se dá numa situação de relativa tranquilidade financeira.

O paradoxo se explica da seguinte maneira: a Itália tem superávit primário, isto é, arrecada mais do que gasta antes de pagar os juros de sua dívida. Só que ela é imensa – maior do que a soma dos débitos da Espanha, Portugal e Irlanda. Mas como mostra o gráfico abaixo, a crise na União Européia elevou os juros no continente, ao ponto de tornar o governo italiano insolvente.



Para as autoridades regionais, Berlusconi era parte do problema e o primeiro-ministro vinha sendo submetido a cobranças humilhantes, como ter que apresentar relatórios trimestrais comprovando que vem implementando cortes de gastos públicos e restringindo benefícios sociais. Foi hostilizado nas cúpulas européias por seus colegas da Alemanha e da França. A crise econômica fez o que os escandâlos repetidos envolvendo sexo e corrupção não conseguiram: dividiram a base aliada de Berlusconi e o fizeram perder a maioria no Parlamento.

Esta é a terceira vez que Berlusconi ocupou o cargo de primeiro-ministro e ele foi o homem que por mais tempo foi chefe de governo na Itália desde a proclamação da República. Sua ascensão, em 1994, deu-se sobre os escombros de um sistema partidário desacreditado por corrupção e envolvimento com crime organizado. A morte de Berlusconi foi proclamada com alarde nas duas ocasiões anteriores em que deixou o posto, e não está claro que esta seja a última vez. As condições sociais que geraram seu fenômeno político continuam presentes. Deixa um legado de estagnação e dificuldades crônicas.

Berlusconi e Papandreou, o ex-primeiro-ministro grego, são políticos populares com ampla base de apoio. Não caíram por perder eleições, mas pelo desgaste em sua coalizão parlamentar, em função das tensões trazidas pelas pressões da União Européia por ajustes fiscais. Nos moldes do modelo proposto pelo economista Dani Rodrik (Harvard) é o “trilema” entre Estado-nacional autônomo, democracia e integração ampla à economia global. Na Reuters, Felix Salmon esboça um quadro mais matizado: a de que as contradições entre exigências internacionais e demandas sociais locais só consegue ser solucionada por líderes habilidosos e carismáticos, escassos na Europa de hoje. Salmon cita o ex-presidente Lula como modelo.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Franco



A Editora Babel lançou coleção de biografias de líderes políticos do século XX e a que mais me atraiu foi a do general e ditador espanhol Francisco Franco. O excelente livro da historiadora francesa Andrée Bachoud, professora da Universidade de Paris VII, é um panorama abrangente da política espanhola de 1900 a 1975 e retrata Franco como um governante hábil em jogar com as várias correntes conservadoras de sua nação (monarquistas, fascistas, católicos, liberais), preocupado em manter a autonomia diante de aliados ideologicamente contraditórios (Alemanha e Itália no nazi-fascismo, Estados Unidos e Europa Ocidental no pós-Segunda Guerra Mundial) e pragmático o suficiente para modernizar a economia, mas confuso diante das mudanças na Igreja Católica e na força dos regonalismos da Catalunha e do País Basco.

Franco nasceu numa família que se dedicava às Forças Armadas desde o século XVIII, mas sua juventude se deu numa Espanha abalada pela perda de Cuba, Filipinas e Porto Rico na guerra contra os EUA (1898) e governada por uma monarquia frágil e instável. Seus parentes não eram conservadores: o pai e um dos irmãos eram maçons de simpatias republicanas, mas Franco desde moço mostrou uma disposição política bem mais tradicional. No Exército, foi um cadete sem distinção, porém cedo encontrou sua vocação servindo no Marrocos espanhol, a última parcela do império colonial. Os militares que lá lutavam tinham promoções mais rápidas que aqueles que permaneciam na metrópole e Franco ascendeu rapidamente por suas provas de coragem e habilidade nas guerras contra os berberes das montanhas e foi um dos criadores e comandantes da Legião Estrangeira da Espanha. Sua ascensão ao generalato se deu com apenas 33 anos.

A Espanha foi poupada da carnificina da I Guerra Mundial, mas o país sofreu as consequências das turbulências posteriores ao conflito. Primeiro com a ditadura do general Primo de Rivera (1923-30), versão local de Mussolini. Depois com a queda da monarquia (1931) e a turbulenta Segunda República, com a polarização política que levou à guerra civil de 1936-9.

Para os padrões da época, Franco era um oficial pouco envolvido com política, mais preocupado com questões técnicas da carreira militar e com a situação no Marrocos. Ele foi um dos generais que se rebelou contra a República, em nome do anticomunismo e da defesa do catolicismo, mas não era inicialmente um dos comandantes. Mas destacou-se rapidamente por sua eficiência no campo de batalha e pela habilidade política, aglutinando as várias forças da direita e mantendo um discurso vago de restauração da monarquia. Consolidou-se como líder (“Caudilho”, foi o título que adotou) do que chamou de Movimento Nacional, e que se tornaria o partido único após a vitória contra a coligação republicana de socialistas, comunistas e anarquistas. Bachoud dá pouco espaço às descrições dos combates e às atrocidades da guerra civil, para quem se interessar numa análise mais profunda, recomendo “A Batalha pela Espanha”, de Anthony Beevor e “Lutando na Espanha”, de George Orwell.



A primeira metade da biografia cobre a ascenção de Franco ao poder, a segunda, seu longo exercício de 1939 até sua morte em 1975. Bachoud mostra a cautela e desconfiança do ditador diante de seus aliados da guerra civil, Alemanha e Itália, e sua rejeição do nazi-fascismo – o franquismo não era antissemita. Franco soube manter a neutralidade da Espanha devastada pela guerra e pela pobreza, conseguindo manter boas relações com os Aliados que precisavam de sua benevolência para operar no Mediterrâneo. Após o conflito, ele enfrentou problemas, visto pelas democracias ocidentais como um autoritarismo anacrônico e perigoso – sofreu sanções da ONU, ficou de fora do Plano Marshall e da OTAN.

Na década de 1960 o regime deu uma guinada econômica, iniciando um projeto de modernização e abertura liberal sob a égide de tecnocratas da organização católica Opus Dei. Eles foram bem-sucedidos em atrair investidores e turistas e aumentar o PIB, mas às custas de forte arrocho salarial e repressão aos trabalhadores (sindicatos independentes eram ilegais). A Espanha continuou a ser mais pobre do que outros países europeus, inclusive os que haviam passado por guerras e ditaduras, como a Itália. O liberalismo comercial também desgostou a muitos dos pilares do franquismo, em especial a Falange, o grupo fascista que advogava um nacionalismo coorporativista na gestão da economia. Suas contendas internas foram ferozes, em particular nos últimos anos do regime.

Outro problema para Franco foi como lidar com a Igreja Católica após o Concílio Vaticano II. Ele sentiu-se traído e confuso pelas novas orientações progressistas dos católicos e teve muitos problemas com os bispos da Catalunha e do País Basco, que quase sempre se posicionavam ao lado dos movimentos regionais (inclusive do ETA, que surgiu durante a ditadura) contra o centralismo de Madri. Os papas João XXIII e Paulo VI se recusavam a apoiar Franco do modo intenso de prelados conservadores como Pio XII.



Por fim, Bachoud também analisa as relações do ditador com a monarquia, que ele queria restaurar, mas só após sua morte. Franco manipulava uns contra os outros os pretendentes ao trono (chegaram a haver quatro ao mesmo tempo) e se decidiu em 1969 pelo princípe Juan Carlos, nascido durante a guerra civil e neto do último rei, Alfonso XIII. Ele era visto como mais dócil do que seu pai, Juan de Bourbon, considerado um democrata. Ilusões do Caudilho, pois o rei Juan Carlos mostrou ser um ardoroso defensor da democracia espanhola, com sua atuação decidida durante a tentativa de golpe de 1982.A biografia de Bachoud termina com a morte de Franco, sem examinar seu impacto para a transição e para a nova Espanha. É pena, pois muitos assuntos estão pendendentes, inclusive a dificuldade de lidar com o passado autoritário e investigar as atrocidades do período. Nessa linha, recomendo “The Triumph of Democracy in Spain”, de Paul Preston.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Paz (?) na Síria



No pós-Guerra Fria, as organizações regionais cresceram em importância na resolução de conflitos e na organização de missões de paz da ONU. Uma das características mais preocupantes da Primavera Árabe até este momento tem sido a incapacidade da Liga Árabe em desempenhar qualquer papel de relevo na contenção da violência ou na busca de saídas negociadas para os ditadores ameçados por rebeliões populares. Isso reflete a pouca legitimidade maior parte de seus líderes e a ausência de figuras respeitadas que pudessem exercer tal moderação. É com esse ceticismo que se encara o acordo de paz que a Liga fechou com o governo da Síria.

O acordo contempla libertação de presos políticos, diálogo com oposição e permissão para que entrem no país jornalistas e observadores de direitos humanos. São belas palavras no papel, mas não há qualquer garantia de que ele seja colocado em prática. Pouco após sua assinatura, o governo bombardeou Homs, uma das cidades onde os protestos são mais fortes. A maioria das análises resssaltou que o pacto é uma vitória política para Assad, que ganha tempo e consegue certa credibilidade internacional, como alguém disposto a negociar.

Estima-se que desde o início da revolta contra o presidente Bashar al-Assad, as autoridades tenham matado cerca de três mil pessoas. O que começou como uma rebelião pacífica torna-se cada vez mais violenta, na medida em que muitos grupos se armaram contra o regime autoritário. Há relatos de deserções significativas no Exército e o risco grande de uma guerra civil de cunho político-religioso, com facções da maioria sunita enfrentando os alauítas que dominam o Estado. Contudo, está descartada uma intervenção militar estrangeira, como a da OTAN na Líbia. A Síria ocupa posição delicada demais, na turbulenta fronteira entre Israel e Turquia e a moral da região é algo como “ruim com Assad, bem pior sem ele, e com a incerteza que se seguiria à sua deposição.”

Há medos razovelmente bem fundamentados de que em lugar do nacionalismo laico do partido B´aath se estabelecesse um regime religioso sunita, que traria fortes tensões para as diversas minorias sírias (xiitas, alauítas, cristãos, druzos) que foram cerca de um terço da população. A classe média e as elites econômicas nas principais cidades, Damasco e Aleppo, em grande medida apoiam o presidente Assad e vêem com desconfiança o ativismo político dos mais pobres, base da rebelião.

A violência na Síria já repercute nos países próximos. Milhares de refugiados fugiram para a Turquia e especula-se que o Irã tenha reagido ao medo de perder o aliado sírio estimulando ataques de separatistas curdos contra os turcos.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Angela Merkel



Há poucos livros traduzidos para o português sobre a política da Alemanha após a reunificação. “Angela Merkel – ascensão ao poder”, do cientista político e ex-deputado Gerd Lagguth é novidade importante. Ele é professor na Universidade de Bonn e pertence ao mesmo partido de Merkel, a CDU (democracia cristã). Seu livro é um perfil equilbrado de uma política que marca inovações foi a 1ª mulher e a 1ª alemã oriental a assumir o cargo da primeira-ministra, e também a pessoa mais jovem (51 anos) a ocupá-lo.

Merkel nasceu na Alemanha Oriental na primeira década do regime comunista, sob o qual viveu até 35 anos. Seu pai era um pastor protestante que havia estudado na Alemanha Ocidental, mas voltado à região natal para a difícil tarefa de encontrar um modus vivendi entre a igreja e o governo marxista. Suas atitudes até hoje são controversas, aparentemente o pastor era um homem de esquerda, simpático a certos aspectos do regime e crítico de outros. Talvez tal ambiguidade fosse necessária para sobreviver além da Cortina de Ferro, mas o fato é o que o pai de Merkel nunca foi um opositor da ditadura, como outros religiosos.

A própria Merkel teve pouco envolvimento com política até a vida adulta. Ela estudou física e química e trabalhou como cientista nesses campos, em atividades de pouco destaque, que não exigiam compromissos com o regime. Quando o muro de Berlim ruiu, Merkel surpreendeu família e amigos engajando-se de modo intenso nas novas atividades políticas. Participou da fundação de um pequeno partido, o Advento Democrático, que logo incorporou-se à CDU. Numa carreira meteórica, em um ano ela já era deputada e ministra da Juventude.

Competente, dedicada, e sem a mácula de colaboração com o regime comunista, Merkel tinha enorme potencial para carreira na Alemanha reunificada, e assim foi percebida pelo primeiro-ministro Helmuth Kohl, que apostou nela. Em seu longo governo (16 anos), Merkel foi ministra por oito. Seu maior destaque veio quando assumiu a pasta de Meio Ambiente, muito importante na Alemanha, e que ela soube usar para ganhar também projeção internacional, tanto no âmbito da União Européia quanto nas negociações das Nações Unidas.

Quando a CDU perdeu as eleições para os sociais-democratas, Merkel ascendeu dentro do partido democrata cristão, beneficiada por uma série de disputas e escândalos de corrupção que atingiram Kohl e outros dirigentes do partido. Em 2005, depois numa eleição acirrada que resultou no pior desempenho eleitoral da CDU, ela foi eleita primeira-ministra, mas tendo que administrar uma difícil coalizão com os sociais-democratas, seus principais rivais.

O subtítulo do livro de Langguth é “ascensão ao poder” e o período de Merkel à frente do governo toma cerca de 70 das mais de 450 páginas do livro. Contudo, o retrato da política ajuda a entender bastante a personalidade da primeira-ministra. Sua discrição e introspecção – é casada pela segunda vez, ambos os maridos eram cientistas, não tem filhos, seus hábitos metódicos, sua flexibilidade ideológica (é mais individualista e liberal do que a tradição da democracia cristã) e sua habilidade em formar grandes coalizões e negociar consensos.

Em 2009 a CDU dissolveu a coalizão com os sociais-democratas e se aliou aos liberais. Esse período não é abordado na biografia, que tampouco trata da atual crise econômica na UE. Mas Langguth retrata Merkel como uma diplomata talentosa, que reaproximou a Alemanha dos EUA (após tensões oriundas da guerra contra o Iraque) e colocou certa distância crítica do governo russo, parceiro fundamental na área energética. Com ambos, tem forte agenda de direitos humanos.