A Editora Babel lançou coleção de biografias de líderes políticos do século XX e a que mais me atraiu foi a do general e ditador espanhol Francisco Franco. O excelente livro da historiadora francesa Andrée Bachoud, professora da Universidade de Paris VII, é um panorama abrangente da política espanhola de 1900 a 1975 e retrata Franco como um governante hábil em jogar com as várias correntes conservadoras de sua nação (monarquistas, fascistas, católicos, liberais), preocupado em manter a autonomia diante de aliados ideologicamente contraditórios (Alemanha e Itália no nazi-fascismo, Estados Unidos e Europa Ocidental no pós-Segunda Guerra Mundial) e pragmático o suficiente para modernizar a economia, mas confuso diante das mudanças na Igreja Católica e na força dos regonalismos da Catalunha e do País Basco.
Franco nasceu numa família que se dedicava às Forças Armadas desde o século XVIII, mas sua juventude se deu numa Espanha abalada pela perda de Cuba, Filipinas e Porto Rico na guerra contra os EUA (1898) e governada por uma monarquia frágil e instável. Seus parentes não eram conservadores: o pai e um dos irmãos eram maçons de simpatias republicanas, mas Franco desde moço mostrou uma disposição política bem mais tradicional. No Exército, foi um cadete sem distinção, porém cedo encontrou sua vocação servindo no Marrocos espanhol, a última parcela do império colonial. Os militares que lá lutavam tinham promoções mais rápidas que aqueles que permaneciam na metrópole e Franco ascendeu rapidamente por suas provas de coragem e habilidade nas guerras contra os berberes das montanhas e foi um dos criadores e comandantes da Legião Estrangeira da Espanha. Sua ascensão ao generalato se deu com apenas 33 anos.
A Espanha foi poupada da carnificina da I Guerra Mundial, mas o país sofreu as consequências das turbulências posteriores ao conflito. Primeiro com a
ditadura do general Primo de Rivera (1923-30), versão local de Mussolini. Depois com a queda da monarquia (1931) e a turbulenta Segunda República, com a polarização política que levou à guerra civil de 1936-9.
Para os padrões da época, Franco era um oficial pouco envolvido com política, mais preocupado com questões técnicas da carreira militar e com a situação no Marrocos. Ele foi um dos generais que se rebelou contra a República, em nome do anticomunismo e da defesa do catolicismo, mas não era inicialmente um dos comandantes. Mas destacou-se rapidamente por sua eficiência no campo de batalha e pela habilidade política, aglutinando as várias forças da direita e mantendo um discurso vago de restauração da monarquia. Consolidou-se como líder (“Caudilho”, foi o título que adotou) do que chamou de Movimento Nacional, e que se tornaria o partido único após a vitória contra a coligação republicana de socialistas, comunistas e anarquistas. Bachoud dá pouco espaço às descrições dos combates e às atrocidades da guerra civil, para quem se interessar numa análise mais profunda, recomendo “
A Batalha pela Espanha”, de Anthony Beevor e “
Lutando na Espanha”, de George Orwell.
A primeira metade da biografia cobre a ascenção de Franco ao poder, a segunda, seu longo exercício de 1939 até sua morte em 1975. Bachoud mostra a cautela e desconfiança do ditador diante de seus aliados da guerra civil, Alemanha e Itália, e sua rejeição do nazi-fascismo – o franquismo não era antissemita. Franco soube manter a neutralidade da Espanha devastada pela guerra e pela pobreza, conseguindo manter boas relações com os Aliados que precisavam de sua benevolência para operar no Mediterrâneo. Após o conflito, ele enfrentou problemas, visto pelas democracias ocidentais como um autoritarismo anacrônico e perigoso – sofreu sanções da ONU, ficou de fora do Plano Marshall e da OTAN.
Na década de 1960 o regime deu uma guinada econômica, iniciando um projeto de modernização e abertura liberal sob a égide de tecnocratas da
organização católica Opus Dei. Eles foram bem-sucedidos em atrair investidores e turistas e aumentar o PIB, mas às custas de forte arrocho salarial e repressão aos trabalhadores (sindicatos independentes eram ilegais). A Espanha continuou a ser mais pobre do que outros países europeus, inclusive os que haviam passado por guerras e ditaduras, como a Itália. O liberalismo comercial também desgostou a muitos dos pilares do franquismo, em especial a Falange, o grupo fascista que advogava um nacionalismo coorporativista na gestão da economia. Suas contendas internas foram ferozes, em particular nos últimos anos do regime.
Outro problema para Franco foi como lidar com a Igreja Católica após o Concílio Vaticano II. Ele sentiu-se traído e confuso pelas novas orientações progressistas dos católicos e teve muitos problemas com os bispos da Catalunha e do País Basco, que quase sempre se posicionavam ao lado dos movimentos regionais (inclusive
do ETA, que surgiu durante a ditadura) contra o centralismo de Madri. Os papas João XXIII e Paulo VI se recusavam a apoiar Franco do modo intenso de prelados conservadores como Pio XII.
Por fim, Bachoud também analisa as relações do ditador com a monarquia, que ele queria restaurar, mas só após sua morte. Franco manipulava uns contra os outros os pretendentes ao trono (chegaram a haver quatro ao mesmo tempo) e se decidiu em 1969 pelo
princípe Juan Carlos, nascido durante a guerra civil e neto do último rei, Alfonso XIII. Ele era visto como mais dócil do que seu pai, Juan de Bourbon, considerado um democrata. Ilusões do Caudilho, pois o rei Juan Carlos mostrou ser um ardoroso defensor da democracia espanhola, com sua atuação decidida durante a tentativa de golpe de 1982.A biografia de Bachoud termina com a morte de Franco, sem examinar seu impacto para a transição e para a nova Espanha. É pena, pois muitos assuntos estão pendendentes, inclusive a dificuldade de lidar com o passado autoritário e investigar as atrocidades do período. Nessa linha, recomendo “
The Triumph of Democracy in Spain”, de Paul Preston.