sexta-feira, 23 de setembro de 2011
Comissões da Verdade
No fim da noite de quarta a Câmara dos Deputados brasileira aprovou a criação de uma Comissão da Verdade para investigar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, embora a ênfase deva ser na ditadura militar de 1964-1985. Este tipo de instrumento tornou-se comum: de meados da década de 1970 até hoje foram instaladas comissões assim em cerca de 30 países que passaram por períodos autoritários e/ou de guerra civil, sobretudo na América Latina e na África. O Brasil é das poucas exceções entre os principais países dessas regiões a nunca ter tido algo do gênero. O projeto de lei aprovado pela Câmara ainda tem que passar pelo Senado.
O ponto comum entre todas as Comissões é sua tarefa de levantar informações e esclarecer os fatos com relação a épocas de violência política. A maioria delas foi criada logo após o encerramento desses períodos, quando ainda havia muitas coisas obscuras e grande desconhecimento da sociedade sobre o que tinha ocorrido.
No Brasil, a ditadura acabou há mais de 25 anos e uma série de estudos, reportagens e relatos foi bastante eficaz em investigar o funcionamento do aparato repressivo, desde o trabalho pioneiro da Igreja Católica na década de 1970, ainda durante a ditadura. A função da Comissão hoje é acima de tudo política: dar uma resposta oficial, do Estado, aos crimes cometidos no período. Embora restem questões importantes a esclarecer, como a localização dos cadáveres dos guerrilheiros mortos no Araguaia.
Há pelo menos dois pontos controversos com relação à criação da Comissão. O primeiro é a acusação de que ela seria enviesada e levaria em conta apenas a perspectiva dos ativistas de esquerda mortos ou torturados na ditadura, mas que fecharia os olhos às atrocidades cometidas pelos grupos armados marxistas, como atentados a bombas e assassinatos. A segunda é que seria um tipo de disfarce do governo para iniciar processos judiciais contra militares e ex-autoridades do regime autoritário.
Acusações de parcialidade política foram freqüentes em todos os países nos quais houve Comissões da Verdade. Creio que o melhor que se pode afirmar é que seus trabalhos têm o mérito de provocar o debate na sociedade, e inclusive de dar voz às vítimas do terrorismo de esquerda, seja por depoimentos na própria Comissão, seja pela discussão na imprensa.
Quanto ao segundo ponto, algumas Comissões serviram de base para a instauração de processos judiciais, em particular o trabalho da equipe argentina, que foi usado no julgamento às juntas militares, em meados da década de 1980. Já na América Central, as audiências não resultaram em ações legais e seu funcionamento foi exclusivamente dedicado à memória histórica. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal negou argumentos que procuravam invalidar ou restringir a Lei de Anistia promulgada em fins da ditadura, em 1979. O projeto de lei aprovado pela Câmara torna obrigatório o depoimento de funcionários públicos – civis e militares – à Comissão, mas proíbe que ele seja usado em processos judiciais.
Um lado pouco abordado na discussão é a influência do contexto internacional, em particular na América do Sul. O Brasil tem sofrido cobranças das sociedades vizinhas e de organizações regionais, como a OEA. Afinal, o país tem ambições de liderança global que passam também por temas ligados à democracia e aos direitos humanos, a cuja defesa se comprometeu por meio de diversos tratados diplomáticos. O tempo do mundo mudou, e o Brasil é pressionado a acertar seus ponteiros com as novas tendências.
O projeto aprovado pelo Congresso foi fruto de negociações entre o governo e oposição, com emendas do DEM e do PSDB. Foi muito importante, aliás, o apoio de sete ministros e secretários dos Direitos Humanos, dos governos FHC, Lula e Dilma ao projeto (foto). A Comissão brasileira será criada com bem menos força e recursos do que as que foram instaladas em países vizinhos. O processo político, naturalmente, está só começando. Os próximos passos serão a tramitação do projeto pelo Senado, a escolha dos integrantes do órgão (que não podem ter cargos em partidos ou no governo, nem terem se envolvido diretamente nos fatos a serem investigados), a definição de seu orçamento e de seus ritmos de trabalho, e como imprensa, movimentos sociais e pesquisadores acompanharão suas atividades.
Aqui está um abaixo-assinado online de apoio à criação da Comissão.
E este é um excelente livro de política comparada que analisa mais de 20 Comissões da Verdade em diversos países.
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7 comentários:
Muito interessante postagem.
Um pontos sobre a decisão do STF: de fato, o Supremo não declarou a lei de anistia inconstitucional; mas isso não quer dizer que o Congresso não possa adotar emenda constitucional que permita a investigação de violações graves aos direitos humanos durante a ditadura e a punição de seus autores (militares ou outros); aliás a decisão do STF deixa claro que não cabe ao judiciário resolver esse tema, mas que o caminho está aberto ao legislativo. Considerando a condenação do Brasil pela corte interamericana de direitos humanos, a via da revisão constitucional parece ser a única capaz de satisfazer a sentença internacional. Todos sabem que uma emenda constitucional é improvável ao extremo, então o Brasil ficará em violação do direito internacional. A Comissão de Verdade não constitui reparação suficiente.
Nada impede que a Comissão de Verdade possa ser desenvolvida para estudar todos os casos de violação de direitos humanos, cometidas por qualquer autor (militar ou civil, pró-regime militar ou resistência ao regime). Acho, no entanto, que o argumento segndo o qual não se deve rever a anistia pois isso permitiria também considerar os crimes da esquerda é um falso argumento: os crimes que houve da parte da resistência ao regime não são em nada comparáveis (em termos de intensidade, gravidade, ou consequências) aos crimes cometidos pelo aparelho estatal; e os autores dos crimes mais graves cometidos pela resistência ao regime já estão mortos. Essa falsa equivalência moral entre os dois grupos me parece não só equivocada, como um argumento de má fé daqueles que o evocam.
A falta de infraestrutura da Comissão é, sem dúvida um problema, mas pareceria que o consenso político para limitar a missão e competências do órgão pesará mais do que a limitação de recursos. Com termos de referência estreitos demais, a Comissão corre o risco de ser um mero exercício cosmético.
Belo texto, professor.
E este comentário anterior também lança luzes sobre o tema.
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Salve, Matthias.
Sempre aprendemos muito com os seus comentários. Há vários aspectos jurídicos da discussão - particularmente o debate sobre "crimes conexos" - que espero compreender melhor.
Saíram algumas notas nas colunas políticas dos jornais mencionando a possibilidade que o ex-presidente FHC seja nomeado para a Comissão, possivelmente para estar à frente dela. Isso daria uma visibilidade política grande à iniciativa, além de compor uma frente que abarcasse muitos partidos, inclusive os de oposição.
Abraços
O assunto é interessante, mas essa comissão já nasce com um grave vício de origem.
Apesar da tal comissão ter autoridade para investigar viloações dos Direitos Humanos entre 1946 e 1985, acredito que o tempo anterior ao fim dos governos militares é mera retórica. Além disso, se é para investigar, por que não incluir o período em que o Brasil viveu sob a égide da Ditadura Vargas? Ou existe alguma virtude nesse período que deve excluí-lo das investigações?
De minha parte, só darei credibilidade a essa dita comissão quando presenciar a convocação daqueles que faziam parte dos grupos armados de esquerda que promoveram sequestros, atentados, justiçamentos, roubos e assassinatos.
Dilma Russef, Fernando Pimentel, Fernando Gabeira, José Genuíno, Alfredo Sirkis, Frannklin Martins e Paulo Vanucchi, entre outros, serão convocados a depor e esclarecer suas participações no período da luta armada à qual aderiram por vontade própria a fim de estabelecer um regime totalitário de esquerda no Brasil?
Se isso não acontecer, e eu acredito que não aocntecerá, essa tal comissão nada mais é do que uma manobra revanchista e a tentativa espúria de reescrever a história.
Grande abraço!
Gonçalez
Meu Caro:
Vejo que não só um argentino pouco entendido na área ve como insuficientes as medidas, mas também um erudito como o Matthias encontra com "sabor a poco" o projeto, aunque honestamente espero que seja o primeiro passo pra avançar na verdade e na justiça no Brasil.
O mapa tem um par de detalhes a revisar. As tristes leis de Punto Final é de 1986 e a de Obediencia Debida de 1987, mas foram do governo Alfonsin. Menem terminou de fechar os processos com as anistias de 1989 e 1990.
Abraços
Patricio Iglesias
Salve, Gonçalez.
Também acho que entrará pouca coisa do período de 1946-64 no trabalho da Comissão, nas próprias declarações do governo tem se ressaltado só o período do regime autoritário.
Na Argentina a Comissão teve um papel bastante ativo em levantar informações sobre a esquerda armada, em especial os Montoneros e o EPR, mas sou cético com relação à possibilidade de que isso aconteça por aqui, a não ser no caso de ex-ativistas que já se declararam publicamente arrependidos, como Fernando Gabeira.
Salve, dom Patricio.
Você tem razão, o mapa não reflete os indultos do Menem, mas tenho a sensação de que a Comissão brasileira irá se inspirar bastante no exemplo da Argentina.
abraços
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