quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

J. Edgar

Se homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se anjos governassem os homens, não seriam necessários controles externos ou internos ao governo. Ao planejar um governo que será administrado por homens, sobre homens, a grande dificuldade é esta: você precisa primeiro habilitar o governo a controlar os governados, e em seguida obrigá-lo a controlar a si mesmo.”

Alexander Hamilton e James Madison, “Os Artigos Federalistas

“J. Edgar”, novo filme de Clint Eastwood, é um ensaio sombrio a respeito dos impactos do (abuso de) poder sobre o caráter de um homem extremamente habilidoso e dedicado a seu país, mas atormentado por fantasmas emocionais que pioram ao longo dos anos e o transformam numa pessoa ruim e mesquinha, corrompida pela enorme influência que obteve por seu trabalho policial. Está longe de ser o melhor filme de Eastwood - há problemas com o elenco e o roteiro – mas é mais um forte trabalho em sua trajetória como cronista e intérprete da democracia nos Estados Unidos.

Seu biografado é John Edgar Hoover, que chefiou o FBI entre 1924-1972 e o transformou de um insignificante escritório no Departamento de Justiça numa das forças policiais mais eficazes do planeta, uma referência em termos de ciência e tecnologia aplicadas às investigações e com uma história de realizações no combate ao crime organizado nos EUA. Contudo, Hoover também era responsável por muitos casos envolvendo delitos políticos e ameaças à segurança nacional, e extrapolou por diversas vezes os limites da lei, da ética e de suas responsabilidades – ocasionalmente por ganho pessoal, em outros momentos por fanatismo e paranóia, que o levaram a enxergar maquinações comunistas em grupos democráticos que questionavam as ações dos presidentes americanos, como o movimento dos direitos civis. Ele não hesitava em chantagear os ocupantes da Casa Branca com base num enorme arquivo pessoal secreto, com gravações, fotos e documentos incriminadores sobre os governantes ou seus parentes próximos. Nenhum deles ousou demiti-lo do cargo.

Hoover nunca se casou e morou com a mãe até a morte desta. Houve muitos rumores sobre sua sexualidade, atribuindo-lhe um romance homossexual com seu principal assistente no FBI e até o hábito de usar roupas femininas em casa. O filme toma esses boatos como verdadeiros, e os mostra de maneira mais explícita do que acho necesário. O ponto essencial é que se tratava de um homem infeliz e amargo, com dificuldades de se relacionar com as pessoas e com uma formação moral muito rígida que se manifestava com frequência em perseguições aos seus próprios agentes no FBI, proibindo-os de usar certos tipos de terno, de ter bigode ou barba.

Ele foi um administrador eficiente, inovador e habilidoso nas disputas burocráticas com o Congresso com outros departamentos do Executivo. O filme mostra sua importância em usar as impressões digitais como uma técnica de investigação, em criar laboratórios para apoiar a ação do FBI e conseguir a aprovação de leis que permitissem mais campo de atuação para seus agentes, por vezes se aproveitando de casos dramáticos que levaram o pânico aos EUA, como os atentados da extrema-esquerda após a Revolução Russa, ou o sequestro do filho do aviador Charles Lindbergh. Ele também era atento à importância da imprensa e da arte, buscando contatos com jornalistas, desenhistas de quadrinhos e roteiristas de Hollywood para que retratassem com simpatia as proezas do FBI.

Há dois problemas significativos no filme. O primeiro é a fragilidade como ator de Leonardo DiCaprio para encarnar um personagem tão complexo. Ele não dá conta da tarefa, imaginei como seria ter um mestre da atuação, como Phillip Seymour Hoffman ou Gary Oldman como Hoover. Teríamos outro filme, muito melhor.

O segundo obstáculo é o roteiro. A narrativa é confusa, dividida em três momentos: Hoover na década de 1960, narrando sua juventude para agentes do FBI, depois o próprio período dos seus anos iniciais, 1919-1934, e posteriormente seus últimos meses de vida, já no governo Nixon. As idas e vindas são um tanto confusas e não funciona bem do ponto de vista dramático a autojustificativa de Hoover ao narrar sua própria trajetória.

*** Abusos de poder e necessidade de controles democráticos sobre o governo não são, evidentemente, um problema exclusivo dos Estados Unidos. Nesta semana em que a presidente Dilma Rousseff visita Cuba, vale sempre boa discussão sobre o tema. Abaixo, duas de minhas intervenções recentes:

Entrevista à Globo News – Uma sociedade mais democrática no Brasil pressiona por posições pró-direitos humanos nas relações com Cuba, em meio a um novo contexto regional na América Latina.

Entrevista à Rádio Holanda Internacional – Por que a diplomacia brasileira passou a criticar o Irã por violações de direitos humanos, mas mantém a postura de não-intervenção com respeito a Cuba.

6 comentários:

Nixon disse...

Maurício,
Muito lúcida, objetiva e esclarecedora sua entrevista à Globo News sobre a visita da Presidenta à Cuba. Parabéns!

Adam Victor Nazareth Brandizzi disse...

Estava curioso para ver esse filme, mas pela sua crítica o resultado é bem desestimulador. Desperdiça-se um bom diretor e um grande personagem.

Já estava tendo a mesma sensação com outros filmes de Clint Eastwood. Achei Flag of Our Fathers, por exemplo, decepcionante exatamente por perder seu vigor com as idas e vindas entre passado e presente.

Agora, guardo minha expectativa para The Iron Lady - e para sua resenha dele, também :)

Até!

Anônimo disse...

Qualquer semelhança com o macartismo não é coincidência. Aliás, nem precisa ir tão longe no tempo assim: lembremos do caso da agente secreta cuja identidade foi revelada porque seu marido se opunha à guerra no Iraque.

Os americanos fariam um grande favor à humanidade se assumissem seus interesses e não posassem de libertários, democráticos, etc.

Maurício Santoro disse...

Caro Nixon,

Obrigado. Gosto muito das conversas com os jornalistas da Globo News e achei que essa foi das melhores.

Salve, Adam.

Minha expectativa com os filmes do Eastwood é sempre muito alta, acho que ele é um dos melhores cineastas do mundo, mas é claro que há altos e baixos na sua obra. Tendo a gostar mais dos filmes em que ele é o protagonista.

Anônimo,

Os Estados Unidos são um país muito diversificado e cheio de contradições, com grupos e setores que podem ser bastante autoritários, mas também com movimentos e pessoas que defendem as liberdades individuais e uma visão de mundo mais plural. Há de tudo.

Abraços

Marc Jaguar disse...

Amigo e Mestre Mauricio

apesar das eventuais fragilidades do filma, acredito que o mesmo deva servir para que tenhamos ao menos uma ideia de como as coisas se passavam nos bastidores do poder dos EUA em plena Guerra Fria, sob a otica de um de seus principais personagens.
Ao menos ainda exitem na industria ceneografica americana, um diretor que eh capaz de desenvolver um roteiro onde sejamos capazes de identificar algum tipo de auto-critica ao regime e seus personagens.
Se fosse na Coreia do Norte, estarimaos vendo mais um episodio de alguma porcaria do tipo "nos amamos o nosso Estimado Lider"....

Abracos, Mauricio!

Maurício Santoro disse...

Caro,

Exato. Há uma história fantástica sobre a censura na URSS autorizar o lançamento no país do filme americano "Doze Homens e uma Sentença", por conta de suas fortes críticas ao sistema judiciário, sem perceberem que a beleza da obra era sua aposta na democracia, justamente pela capacidade em se autofiscalizar e discutir seus próprios problemas.

Abraços