domingo, 29 de junho de 2008
Jefazo
Uma das boas coisas de Buenos Aires é a grande oferta de livros sobre a América Latina, a preços muito em conta para o sofrido bibliófilo brasileiro. Uma das aquisições que fiz em minha visita recente à cidade foi “Jefazo - retrato intimo de Evo Morales”, do jornalista argentino Martin Sivak. Trata-se de recém-publicado perfil dos primeiros dois anos de governo do presidente da Bolívia.
Muitos argentinos moraram e trabalharam na Bolívia e a qualidade da análise sobre o país andino é bem maior por lá do que no Brasil. Isso salta aos olhos tanto na produção jornalística quanto na academia, no cinema e na literatura. Sivak é um exemplo desse tipo de interlocução, pois foi correspondente de jornais argentinos em La Paz e ecreveu outros dois livros sobre a Bolívia, incluindo uma biografia do ex-ditador Hugo Banzer. Sivak conhece Evo desde meados da década de 1990.
Jefazo é, obviamente, uma descrição simpática da presidência de Evo, mas está longe de ser um panfleto de propaganda. Sivak narra as hesitações e erros do presidente boliviano e aponta as deficiências de sua equipe.
O presidente boliviano é retratado por Sivak como um homem carismático que é, sobretudo, um extraordinário dirigente sindical. Está muito mais à vontade como um líder de assembléias relativamente pequenas, nas quais possa estar em contato pessoal com os participantes, e adora viajar para pequenos povoados e ouvir diretamente as queixas e sugestões das pessoas. Esse estilo de liderança é incomum na Bolívia, e ajuda a explicar a alta popularidade de Evo entre os mais pobres. Seus discursos privilegiam a narrativa de sua própria vida – as dificuldades pelas quais passou fazem Lula parecer um próspero pequeno-burguês – e as analogias entre sua trajetória e a do país.
Evo e a maior parte de seu gabinete têm pouca instrução formal e deficiências sérias em áreas fundamentais como economia. Evo tende a não valorizar livros e conhecimentos acadêmicos, mas escolheu como vice um professor universitário, Alvaro García Lineira, famoso por sua biblioteca de 15 mil volumes. A opção por ele também se deu para dividir o movimento indígena mais extremista, pois García Lineira fora o braço-direito de Felipe Quispe, que lançou uma guerrilha de inspiração étnica nos anos 90. Para setores dos movimentos indígenas bolivianos, Evo é um “blancóide” que sequer fala fluentemente aymara e quéchua, e cujas origens políticas são muito mais as de líder de sindicato.
Sivak acompanhou Evo numa série de viagens internacionais e esse aspecto está muito bem coberto no livro. Assim, vemos a aliança que Bolívia, Cuba e Venezuela formaram, com direito a observações interessantes sobre Fidel Castro – suas análises se mostram mais argutas e precisas do que as de qualquer outro político retratado no livro. Para os leitores brasileiros, pode surpreender o quanto é ruim é difícil o diálogo entre Evo e Lula, motivado, evidentemente, pelo conflito em torno da Petrobras. Contudo, a pior relação é mesmo aquela entre Bolívia e Estados Unidos, por conta da tensão do cultivo da coca e da proximidade com Hugo Chávez. Evo não tem importância suficiente para ser recebido pelo primeiro escalão do governo americano, e o comportamento dos embaixadores em La Paz seria inadmissível em qualquer país um pouco mais desenvolvido.
Para alguém acostumado ao estilo conciliatório da política brasileira, chama a atenção o quanto a boliviana é polarizadora e conflituosa. Às vezes, é questão das disputas, como quando Evo e o presidente Carlos Mesa bateram de frente, porque este tentava se estabelecer como uma alternativa de centro aos movimentos sociais, que negava aos indígenas o direito à se auto-representarem. Outras, parece pura provocação e insegurança, quando Evo recita o credo terceiro-mundista e faz piadas sobre o neoliberalismo para possíveis investidores em Nova York.
Infelizmente, o livro não aborda em profundidade o conflito regional que é o mais sério da Bolívia neste momento. Não há, por exemplo, entrevistas com os líderes dos “comitês cívicos”, como o de Santa Cruz de la Sierra. Sivak se concentra mais nos esforços de Evo em construir pontes com os prefeitos, passando por cima dos governos regionais. Como essa estratégia tem fracassado, não é exatamente a que quero conhecer...
sexta-feira, 27 de junho de 2008
As Apostas de Sarkozy
Há alguns dias debatíamos neste blog sobre a capacidade de Nicolas Sarkozy em fazer com que seu país tenha um papel de liderança internacional mais sólida a partir de 1 de julho, quando a França assume a presidência da União Européia. Uma série de acontecimentos recentes e contraditórios joga mais lenha na fogueira.
Primeiro, houve a viagem de Sarkozy a Israel, na qual ele fez ótimo discurso na Knesset, o parlamento do país. Defendeu o estabelecimento de Jerusalém como “bicapital” para israeleneses e palestinos, o congelamento de construção de novas colônias judaicas na Cisjordânia e incentivou o diálogo entre Israel e o Hamas, ao mesmo tempo em que pregou mais sanções contra o Irã. O presidente francês aproveitou o vácuo de poder criado pelas crises nos Estados Unidos, e tem feito diversos lances ousados no Oriente Médio.
Um deles, bastante controverso, é sua proposta de criar uma União Mediterânea que juntaria Europa, África do Norte, Oriente Médio e Turquia. A Alemanha manifestou reservas com a idéia, porque seu foco é em outras regiões, como Rússia e Europa Oriental. Mas Sarkozy levou o plano adiante e haverá uma cúpula no dia 13 de julho. Concordo com a avaliação de Lluís Bassets, do jornal espanhol El País: “Sarkozy ha conseguido, como mínimo, que Francia vuelva a levantar cabeza y a existir diplomáticamente en la zona y quizás que detrás suyo también Europa exista. habrá que seguir atentamente esta jugada. “
Um diplomata europeu disse que Sarkozy segue a "estratégia de Casanova": convida várias moças para dançar, na esperança de que isso aumente suas chances de que pelo menos uma delas aceite o convite. Tendo em conta a atual primeira-dama da França, não se deve subestimar o potencial da doutrina.
Mas se Sarkozy brilha no exterior, enfrenta problemas em casa. Pesquisas de opinião divulgadas pelo Le Monde indicam que apenas 48% dos franceses acreditam que seu país se beneficia em fazer parte da União Européia, um índice muito baixo tendo em conta que se trata do pilar mais importante da política externa da França, há 50 anos! Pior ainda, 80% da população crê que “as coisas irão piorar”. Ora, pessoas céticas e pessimistas não apoiam grandes líderes, sua tendência é fechar-se numa agenda conservadora, receosa de mudanças.
A situação parece ainda mais difícil em outros países europeus. Na Alemanha, a vitória da seleção nacional sobre a Turquia, pela Eurocopa, foi o estopim para uma onde de ataques racistas contra imigrantes. Na Itália, o novo governo de Silvio Berlusconi aumenta a tensão com medidas xenófobas.
Eis a matéria-prima com a qual Sarkozy terá que trabalhar à frente da UE.
quinta-feira, 26 de junho de 2008
Di Tella
Eles foram industriais e políticos, intelectuais e mecenas das artes. E mais do que qualquer outra família encarnaram o sonho de uma Argentina próspera, moderna e culta, enfrentando desilusão, crises, uma complexa relação com o peronismo e o fracasso em viver de acordo com seus grandiosos projetos. “Los Di Tella – una família, un país”, do jornalista Nicolás Cassese, conta essa fascinante história. Minha vida se cruzou com a do clã: estudei na Universidad Torcuato di Tella, por coincidência para uma pesquisa que em grande medida tratou da política externa empreendida pelo chanceler Guido Di Tella.
A família é originária do sul da Itália e chegou a ter status de nobreza, mas declinou após a unificação do país. No início do século XX, emigrou para a Argentina, então em pleno ciclo de crescimento acelerado. Um dos membros do clã, o adolescente Torcuato, criou uma pequena oficina que produzia máquinas para padarias. Foi o início de um império industrial que se tornou um dos maiores da América do Sul e incluiu a fabricação de automóveis e eletrodomésticos.
Torcuato era um homem impressionante. Órfão de pai muito cedo, transformou-se no centro da família e ainda encontrou tempo para se formar em engenharia e lutar a Primeira Guerra Mundial no exército italiano. Foi crítico do fascismo e financiou organizações democráticas durante a Segunda Guerra Mundial. Tinha horror a Perón, a quem via como a versão local de Mussolini, mas se beneficiou muito de suas políticas de proteção industrial e manteve ótimas relações com seus governos.
Como um rei de contos de fada, Torcuato tinha dois filhos e tentou educar os jovens príncipes para que assumissem seu legado, pois devido aos seus problemas cardíacos, acreditava que morreria cedo, como de fato ocorreu. O primogênito, também chamado Torcuato (acima), nunca aceitou a tarefa, mas também teve medo em se rebelar. Aceitou a contragosto cursar engenharia, embora sonhasse em escrever livros e lecionar. Com a morte do pai, foi para os EUA, se pós-graduou em sociologia e virou um dos principais intelectuais argentinos.
O mais novo, Guido (acima), era mais próximo ao pai. Formou-se em engenharia, doutorou-se em economia e tentou conduzir os negócios da família. Não deu certo, lhe faltava o tino e o interesse apaixonado do patriarca. Más decisões, em especial a incapacidade de competir com as multinacionais automobilísticas, levaram à ruína do grupo empresarial, ainda que os Di Tella continuassem a ser muito ricos. As empresas do grupo foram em grande medida encapadas pelo Estado na década de 1960.
Guido teve melhor desempenho como animador cultural e fundador do célebre Instituto Di Tella, o epicentro da arte de vanguarda da Argentina nos anos 60 – até enfrentar as dificuldades duplas da crise financeira do grupo e da ojeriza das ditaduras militares, que temiam sua influência em degenerar a “moral e os bons costumes”. A foto abaixo retrata uma das obras mais polêmicas do instituto, “A Família Operária”, de Oscar Bony, que contratou trabalhadores para posar nas galerias e provocar a burguesia ilustrada que freqüentava o Di Tella.
Os Di Tella ilustram a ambigüidade da elite argentina com relação ao peronismo. Torcuato e os filhos foram opositores de Perón, mas acabaram se entendendo bem com o movimento. O pai, como um importante fornecedor industrial para o governo. Os rebentos, como altos funcionários e ministros em governos peronistas - Guido chegou a acompanhar o próprio general em seu retorno à Argentina, e se tornou homem de confiança e chanceler de Menem. Torcuato foi secretário da cultura de Kirchner. Cada um seguiu seu trajeto: Guido começou na democracia-cristã e se converteu ao liberalismo. Torcuato, do socialismo juvenil passou para visão próxima à social-democracia européia. Ambos acreditaram que o peronismo era o caminho para implementarem suas reformas na Argentina.
Fracassaram tanto quanto o projeto paterno de ser o Henry Ford da América do Sul, mas que belo fracasso! No processo, revolucionaram a indústria, a arte, fundaram uma universidade e escreveram livros importantes. Entre as novas gerações, destaco o trabalho do cineasta Andrés Di Tella, filho de Torcuato Jr, diretor de ótimo documentário sobre os Montoneros.
terça-feira, 24 de junho de 2008
Uma Visão da Crise Argentina
Sei que estou em casa quando o ônibus entra pela Avenida del Libertador e avisto o velho centro de Buenos Aires, ouço a cadência italianada do espanhol da cidade e os torcedores do River Plate comemoram junto ao Obelisco, que continua a velar orgulhosamente pela grandeza da 9 de Julho. Os muros seguem cheios de cartazes políticos e poucas coisas me deixam tão feliz quando caminhar meio sem rumo (“flaner”, diriam os franceses) pelas ruas portenhas, tomando o pulso dessa nação platina que é tão importante na minha vida, enquanto levanto a gola do casaco para me proteger do vento gelado do início do inverno. Bom também rever os amigos (Su, obrigado pelos presentes e pelo jantar com o pessoal da FLACSO) e me abastecer de livros e DVDs baratos sobre temas latino-americanos.
O trabalho foi intenso e produtivo. Apresentei à REJ as atividades do Conselho Nacional de Juventude. Contei a história da instituição e relatei nossas principais ações, sobretudo o processo de realização da Conferência Nacional de Políticas de Juventude. Procurei situar os desenvolvimentos nessa área no contexto mais amplo de criação de mecanismos de participação social no Brasil democrático.
O Brasil assume a presidência do Mercosul – e de suas reuniões especializadas – no próximo semestre, e as perspectivas são boas para ampliar o diálogo no campo de políticas juvenis, em particular com a Argentina, que acaba de criar seu próprio Conselho. A equipe do Ministério do Desenvolvimento Social, do qual ele faz parte, é jovem, entusiasmada, muito qualificada, de primeiríssimo nível. Será um prazer trabalhar com eles. Também estou curioso para observar o que irá acontecer no Paraguai, pois os movimentos jovens foram importantes na vitória de Lugo.
A rápida viagem foi uma oportunidade para olhar de perto a crise argentina. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o valor relativamente pequeno das cifras envolvidas. O aumento de impostos sobre as exportações agrícolas, que foi o estopim do conflito, envolve entre US$750 milhões e US$1,5 bilhões, dependendo da fonte.
A medida trouxe à tona uma série de insatisfações que estavam latentes, e os bloqueios de estrada promovidos pelo agronegócio serviram como ponto focal para a reorganização da (até então muito dispersa) oposição a Cristina Kirchner. As disputas tratam também da inflação e da reação dos donos dos meios de comunicação a um projeto governamental de mudar a regulamentação do setor.
A imprensa está totalmente contrária ao governo e até revistas de celebridades trazem reportagens sobre a crise, como perfis dos líderes do agronegócio. Contei três livros recém-lançados que tratam do conflito atual. Verdadeira proeza editorial, visto que a contenda tem apenas 100 dias... A popularidade de Cristina Kirchner despencou cerca de 30 pontos e está por volta de 25%.
A Praça do Congresso foi ocupada por militantes peronistas, que montaram tendas numa vigília para marcar posição e de certo modo prevenir que o local se tornasse palco de manifestações contrárias a Cristina Kirchner. O prefeito de Buenos Aires, o oposicionista Maurício Macri, quer tirá-los de lá, alegando que não têm licença e que não seguem normas de segurança. Mas a ação teria que ser executada pela Polícia Federal, controlada pela Casa Rosada, que obviamente se negou a cumprir a tarefa.
O período mais agudo da crise ocorreu há duas ou três semanas, no auge da falta de alimentos. As TVs agora noticiam a chegada de tantas centenas de caminhões com tantas mil vacas, como se Buenos Aires tivesse rompido o cerco de um Exército inimigo. Mas o clima político ainda é tenso. A presidente enviou ao Congresso projeto de lei sobre o aumento de impostos, que havia sido decretado por uma versão argentina das medidas provisórias brasileiras. O debate parlamentar será difícil, assim como as rodadas de negociações recém-iniciadas entre a Casa Rosada e os líderes do agronegócio. Me parece que os dois lados medem suas forças e estudam um ao outro, avaliando seus pontos fortes e fracos antes de se dispor a fazer concessões.
sexta-feira, 20 de junho de 2008
Rumo à REJ
O que faz da vida um sujeito que escreve uma tese de doutorado sobre a Argentina? Uma das respostas é se dedicar a aproximar esse país do seu próprio. Embarco no domingo para Buenos Aires, para representar o Conselho Nacional de Juventude na Reunião Especializada de Juventude (REJ) do Mercosul.
Tenho repetido com freqüência a meus alunos que a fronteira entre política doméstica e relações internacionais está cada vez mais fluida e porosa, e tenho experimentado isso na prática, em minha participação no Conselho. O Brasil iniciou tardiamente a implementação de políticas federais de juventude – só em 2005, enquanto nos demais países da América do Sul a tradição já tem em torno de 15 anos. Contudo, nesse curto período de tempo, as iniciativas brasileiras já se tornaram a referência para a região. Algo que credito à força do Estado, mas também a uma sociedade civil capaz de articulações e mobilizações expressivas.
Passei parte desta semana em Brasília, em reunião do Conselho, e entre outras coisas decidimos a agenda internacional da instituição, com concentração no Mercosul. No segundo semestre o Brasil presidirá o bloco e acreditamos que é boa ocasião para aprofundar a participação social no nível regional. Pensamos não apenas na Reunião Especializada de Juventude, mas também em instâncias semelhantes na área de políticas para as mulheres e para a agricultura familiar, das quais já fazem parte colegas conselheiras.
Não por acaso, eu havia apresentado trabalhos em congressos acadêmicos defendendo as reuniões especializadas do Mercosul como um espaço ainda pouco explorado, e bastante promissor, para a participação social e a formulação de políticas públicas. Passar da teoria à prática deveria ser rotina na vida acadêmica, infelizmente é algo muito raro, precioso e importante.
Além disso, as relações internacionais envolvendo a política de juventude incluem ampla gama de projetos de cooperação técnica com o sistema ONU (PNUD, OIT, Unesco, o processo de revisão da Conferência de Durban contra o racismo) e com a Organização Ibero-Americana de Juventude. Está sendo interessantíssimo acompanhar essas experiências.
Tenho aproveitado as reuniões do Conselho para propor projetos de cooperação envolvendo a América Latina e a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Por exemplo, o governo brasileiro lançou uma interessante bateria de cursos a distância para a formação de conselheiros nacionais, isto é, de representantes do Estado e da sociedade que fazem parte desse tipo de instância. Como os custos de comunicação são baixíssimos, é uma excelente maneira de oferecer os serviços a nações amigas, que com freqüência solicitam esse tipo de ajuda do Brasil.
Naturalmente, minha viagem à Argentina também será uma maneira de ver de perto a crise política atual e os conflitos entre os Kirchner e o setor agrário. Além de uma oportunidade de rever amigos fraternos do outro lado do Prata.
quinta-feira, 19 de junho de 2008
O Mal-Estar da Europa
Dois acontecimentos da última semana chamam a atenção para as dificuldades da União Européia em se adaptar às recentes transformações da economia global: a rejeição da Irlanda ao Tratado de Lisboa e as duríssimas diretrizes sobre imigração. Alguns analistas apontam esta crise como uma das mais sérias no processo de integração. Tenho minhas dúvidas, mas com certeza os problemas atuais apontam para um certo mal-estar europeu com relação ao lugar do continente na nova ordem mundial que se desenha com a ascensão da China e da Índia e os impasses dos Estados Unidos.
Ao longo desta primeira década do século XXI, a União Européia tomou várias medidas para tentar fortalecer a si mesma como uma instituição capaz de ter papel de liderança na política internacional. Um elemento central dessa estratégia era a aprovação de algum tipo de pacto constitucional que reforçasse os poderes das instituições de Bruxelas diante dos países que integram a UE. No entanto, o Tratado Constitucional de 2005 foi rejeitado em referendo pela França e pela Holanda. O Tratado de Lisboa, de 2007, era uma versão reduzida e mais simples, que visava a contornar a oposição a arranjos desse tipo. Não deu certo: a população da Irlanda o vetou em votação.
A rejeição surpreende porque a Irlanda é um dos países que mais se beneficiou com o ingresso na União Européia. O país das fomes coletivas e da pobreza em massa se tornou um dinâmico pólo exportador de serviços para os vizinhos europeus, auxiliado por boas políticas de Estado nos campos fiscal e educacional. Ainda assim, seus habitantes se manifestaram contra a UE, no que tem sido interpretado como uma crítica à burocracia complexa e distante de Bruxelas.
Como o Tratado de Lisboa precisa ser aprovado pela unanimidade dos membros da UE, criou-se uma crise bastante séria. Hoje e amanhã os líderes europeus estarão reunidos em cúpula de emergência para tentar solucionar a questão. O cientista político brasileiro José Luís Fiori publicou artigo pessimista sobre as desventuras européias:
Porque por trás deste impasse, existe um problema muito mais grave: o fato que a União Européia seja prisioneira, há muito tempo, de uma armadilha circular. Ela precisa de um poder centralizado, mas seus principais estados impedem este processo de centralização, porque, no fundo, a Europa está cada vez mais dividida, entre os projetos estratégicos de seus três principais sócios, a França, a Alemanha e a Inglaterra. Depois do fim da Guerra Fria e da reunificação da Alemanha, ela se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente, e passou a ter uma política externa independente, centrada nos seus próprios interesses nacionais, que incluem o fortalecimento dos seus laços econômicos e financeiros com a Europa Central, e com a Rússia. Este comportamento alemão acentuou o declínio da França, que tem cada vez menos importância internacional, e favoreceu o fortalecimento do “euroceticismo ” britânico, reacendendo a competição e a luta hegemônica dentro da União Européia, e trazendo de volta velhas fraturas e divisões que estiveram presentes, em suas infindáveis guerras seculares.
Em meio a tantas tensões, a questão da imigração - legal e ilegal - se torna cada vez mais explosiva. Há dez anos a UE tenta criar política comum de asilo e imigração e a ascensão de governos de direita na maioria do continente mudou o equilíbrio de forças. Uma coligação entre conservadores, liberais, nacionalistas e mesmo alguns partidos socialistas no Parlamento Europeu aprovou ontem rígida diretriz sobre o assunto, que estabelece a possibilidade de que imigrantes ilegais sejam detidos por até um ano e meio em "campos de detenção". A Espanha oferece pagamento para os imigrantes legais que queiram deixar o país e o Reino Unido aprovou lei que multa as empresas que contratem os ilegais.
A diretriz aprovada pelo Parlamento Europeu provou enorme repercussão internacional, com mensagens de condenação vindas dos países da América Latina, da Igreja Católica e de organizações humanitárias. Não acredito que tais pressões revertam a decisão da UE, mas demonstram a perigosa tendência ao isolamento do bloco europeu.
terça-feira, 17 de junho de 2008
A Outra Bolena
“A Outra” (The Other Boleyn Girl) poderia ter sido um grande filme sobre paixões intensas numa época em que a fronteira entre sentimentos privados e assuntos de Estado era pouco clara. Falta fôlego ao roteiro para isso, mas ainda assim a história da relação das irmãs Ana e Maria Bolena com o rei da Inglaterra, Henrique VIII, vale a matinê.
Ana, claro, é a mais conhecida das duas. A narrativa de como seduziu Henrique VIII e o levou a se divorciar da rainha Catarina, rompendo com a Igreja Católica, inspirou vários artistas, bem como as desventuras de seu curto reinado de mil dias. A nova versão coloca em primeiro plano sua irmã caçula, Maria, que também foi amante do monarca e teve um filho com ele. As duas são interpretadas, respectivamente, por Natalie Portman e Scarlett Joahnsson, com Eric Bana como o rei.
O trio está aquém da tarefa e às vezes o filme passa perigosamente perto de um programa de TV de disputas familiares, só que com figurino espetacular. Aqui e ali, aparecem questões de fundo interessantes. Henrique VIII foi o segundo monarca da dinastia Tudor, que encerrou longo ciclo de guerras civis na Inglaterra. Seu maior temor era o retorno da violência entre seus súditos, e para isso ele precisava de um herdeiro masculino, legítimo, que o substituísse. Sua esposa já entrara na menopausa e não havia conseguido.
O soberano reinava num período conturbado, em que o Estado absolutista estava em pleno processo de consolidação e a Inglaterra enfrentava rivais mais poderosos, como França e Espanha, temerosa dos conflitos religiosos que dilaceravam o continente. Casamentos reais eram assuntos de Estado, claro, mas a escolha de uma amante também impactavam politicamente, porque representavam a ascensão de grupos familiares, distribuição de favores e a escolha de determinados rumos diplomáticos. Ana Bolena, por exemplo, foi bastante influente nas relações entre Inglaterra e França , embora isso não apareça no filme.
O ponto forte de “A Outra” é a descrição da sociedade de Corte, onde tudo depende da proximidade do rei e os sentimentos pessoais são moeda de troca nas intrigas em busca de poder e privilégio. Maria é contraposta a Ana como a representante de um modo de vida mais simples, nostálgico da paz rural. Sua irmã mais velha e mais famosa é retratada como bastante à vontade nos conflitos do Palácio.
domingo, 15 de junho de 2008
Os Corpos da Paz no Brasil
Na campanha eleitoral que culminou em sua vitória à presidência, Kennedy fez discursos famosos no qual ressaltou que a velha fronteira oeste dos Estados Unidos estava completa, mas que havia uma “nova fronteira” a desbravar, o mundo em desenvolvimento. Promover o bem-estar, conter o comunismo e criar um instrumento para o idealismo de uma jovem geração que despontava o levaram a fundar os Corpos da Paz, que levou voluntários aos países pobres. Naqueles anos do calor pós-Revolução Cubana, Kennedy afirmou que a América Latina era “a região mais perigosa do planeta” e focou sua atenção no Brasil, em particular no Nordeste. A saga é contada no excelente livro da historiadora Cecília Azevedo, “Em Nome da América: os Corpos da Paz no Brasil”.
Soube do trabalho por acaso, através de uma amiga que foi aluna da autora. A primeira metade do livro narra a criação dos Corpos da Paz e destaca o quanto a instituição devia ao imaginário mobilizado por Kennedy e por seu ativo cunhado, Sargent Shriver, que mobilizaram os mitos tradicionais dos pioneiros e missionários americanos para os novos propósitos. A oposição conservadora protestou, acusando a nova agência de ser um refúgio para radicais e jovens que queriam fugir do alistamento militar.
Contudo, a tensão entre idealismo juvenil e os objetivos de política externa americana, em particular a contenção ao comunismo, permearam toda a história dos Corpos da Paz. Muitas vezes os voluntários da organização se rebelaram contra as diretrizes de Washington e questionaram os objetivos de suas missões.
No Brasil, as atividades dos Corpos da Paz foram numerosas e ocorreram no Vale do Rio São Francisco, nas favelas do Rio de Janeiro, na zona metropolitana da recém-fundada Brasília, na Bahia e no Mato Grosso. A maior parte dessa história é formada por desentendimentos, problemas de comunicação, treinamento inadequado e recursos insuficientes. Com freqüência, os americanos foram recebidos com desconfiança ou mesmo hostilidade. Mas também há casos bonitos de superação de dificuldades, crescimento pessoal e aumento da capacidade de diálogo entre culturas – sobretudo no projeto baiano, que se tornou referência para a agência. Aliás, os veteranos dos Corpos da Paz no Brasil mantém belo site, cheio de narrativas interessantes e carinhosas sobre o país.
Os Corpos da Paz ainda existem, mas deixaram de atuar no Brasil em 1981, depois que as relações entre Washington e a ditadura militar azedaram por causa do programa nuclear brasileiro e das violações de direitos humanos. A agência também passou por momentos difíceis nos governos republicanos, que a consideraram herança incômoda da administração Kennedy.
Curiosamente, no pós-11 de setembro a necessidade de tarefas de reconstrução nacional no Afeganistão e no Iraque tem levado à revalorização da experiência dos Corpos de Paz. Há muito do espírito de Kennedy em Barack Obama, e não é à toa que aquela família quase-real o adotou. O senador Edward Kennedy (foto acima) fez um discurso tocante no qual citou seu falecido irmão-presidente para dizer que Obama assumiu a tocha da nova liderança do país.
sexta-feira, 13 de junho de 2008
Um Beijo Roubado
Há muito não escrevo sobre cinema, simplesmente porque a safra 2008 de filmes está fraca, a maioria do que tenho visto me faz ter vontade de pedir o reembolso da entrada e da pipoca na bilheteria. Mas aqui e ali aparecem pérolas como “Um Beijo Roubado” (My Blueberry Nights), do diretor chinês Wong Kar Wai.
Certos filmes são em prosa, este é um poema. Conta a história de Elizabeth (a cantora Norah Jones, em estréia na tela grande e ótima atuação) uma moça que termina com o namorado e encontra consolo nas tortas de blueberry e nos papos que bate com Jeremy (Jude Law), dono de uma pequena lanchonete em Nova York. Confusa e deprimida, ela parte numa jornada pelos Estados Unidos, trabalhando como garçonete em vários bares e cidades e conhecendo pessoas excêntricas e um tanto marginais pelo caminho, como um policial alcóolatra e sua ex-mulher (David Strathairn e Rachel Weisz) e uma jogadora profissional em crise com o pai (Natalie Portman).
O enredo é pretexto para que Wong lance seu olhar sobre os Estados Unidos, sobre a América semi-mítica e solitária dos road movies, de longas estradas atravessando o deserto, placas de neon brilhando na noite das grandes cidades, bares esfumaçados com Try a little tenderness tocando ao fundo. É incrível a delicadeza com a qual ele filma pequenos gestos, como o cabelo cobrindo o rosto de Rachel Weisz, ou os sinais de trânsito numa madrugada chuvosa.
Os diálogos são simples e sem pretensão, como o enredo, mas com momentos muito bonitos. Meu favorito é a conversa entre Elizabeth e Jeremy, na qual ele fala sobre as chaves que diversos clientes lhe entregaram, que ninguém nunca apareceu para buscar, mas que ele guarda num jarro de vidro. Cada uma contém a história de uma amizade, de um amor, de uma separação.
“Por que você não as joga fora?”, ela pergunta.
“Porque então essas portas ficariam fechadas para sempre”, ele responde.
Que bom que existe o cinema, para nos abrir algumas delas.
quarta-feira, 11 de junho de 2008
Adeus às Armas
Hugo Chávez é um presente dos deuses para os analistas políticos da América Latina. Primeiro porque, faça o que faça, ele garante que nosso ofício será sempre agitado e emocionante. Segundo, seu comportamento errático reforça a necessidade de especialistas que o expliquem, o que ajuda a pagar as contas da minha categoria profissional. Sua mais recente declaração bombástica é o apelo às FARCs para que abandonem as armas e libertem unilateralmente seus reféns. Tudo isso coroado com frase de efeito digna de editorial da Veja ou do Estadão: “A guerra de guerrilhas passou para a história”.
O apelo de Chávez é, de fato, surpreendente. Em todos os seus pronunciamentos anteriores ele havia tratado as FARCs como um ator legítimo na política colombiana e até pleiteado seu reconhecimento como “beligerantes”. A meu ver, a guinada no discurso se explica por três razões:
1) As FARCs estão acuadas e enfrentam os maiores problemas de sua história. Nos últimos meses perderam três dos sete membros de seu Comitê Central (até então nenhum membro dessa instância havia sido morto), incluindo seu líder principal, Manuel Marulanda. Seus efetivos diminuíram muito, e segundo os relatos suas tropas passam por fome, escassez de equipamento, dificuldades de transporte e de comunicação.
2) O material apreendido com Raúl Reyes, um dos líderes guerrilheiros assassinado, tem causado constrangimentos para Chávez, Correa e aliados colombianos dos dois, como a senadora Piedad Córdoba. Os indícios apresentados até agora apontam para relações íntimas entre esses políticos e a guerrilha.
3) A situação econômica da Venezuela está bastante grave, com inflação acumulada de 30%, falta de alimentos e disputas eleições regionais em novembro. Muitos dos governos próximos a Chávez (como Evo Morales) também enfrentam problemas sérios.
Ou seja, nesse contexto, o apoio de Chávez às FARCs lhe traz mais dificuldades do que ganhos. A morte de Marulanda criou uma oportunidade para tentar algum tipo de rendição negociada por parte da guerrilha, à semelhança do que têm feito os paramilitares.
A reação internacional ao apelo de Chávez foi positiva, com Colômbia, França e Estados Unidos manifestando sua aprovação, ainda que cautelosamente.
terça-feira, 10 de junho de 2008
Soldados da Pátria
Muitas vezes bons livros entram na estante de um professor por causa dos alunos. Como diz Tom Zé, se a gente não aprende com eles (isto é, com a vida) estamos na profissão errada. “Soldados da Pátria – história do exército brasileiro, 1889-1937”, do historiador americano Frank McCann virou um campeão de popularidade entre meus estudantes, tanto militares quanto civis. Depois de ouvir pela terceira vez a pergunta sobre o que eu achava de sua análise sobre a missão francesa, resolvi comprar o livro.
É obra que impressiona pelo tamanho – cerca de 700 páginas, sendo 150 de notas e referências bibliográficas – e que cumpre a promessa do subtítulo. McCann é um brasilianista especialmente dedicado à influência do Exército na política e seu novo trabalho deve virar um clássico, ponto de partida para quem quiser estudar o tema, embora na boa companhia de autores nacionais como José Murilo de Carvalho (“Forças Armadas e Política no Brasil”), Celso Castro (“O Espírito Militar”, “A Invenção do Exército”) e Edmundo Coelho (“Em Busca de Identidade”).
McCann compartilha com esses autores a perspectiva de que é preciso estudar os aspectos institucionais do Exército, dos seus constantes esforços para se modernizar, para compreender seu papel político. Neste livro, seu panorama começa com o estabelecimento da República, passa pela revolta da Armada e pela guerra civil no sul (1893-1895), pela revolta da Vacina (1904), pelas rebeliões de Canudos e do Contestado, pelas insurreições dos tenentes na década de 1920, pela revolução de 1930, a guerra civil de São Paulo (1932), a Intentona Comunista (1935) e, finalmente, a implantação do Estado Novo. Tempos interessantes, nos quais o Exército jogou papel central nas principais crises políticas.
Contudo, McCann ressalta a todo momento a fragilidade institucional do Exército nesse período. Fraco militarmente, era facilmente sobrepujado por polícias estaduais como a de São Paulo, que tinha armamento mais moderno (incluindo aviação) e melhor treinamento. Cerca de 75% dos efetivos do Exército estavam concentrados no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, com as demais unidades muito dispersas pelo país. Os salários eram baixos, as instalações de má qualidade e o recrutamento, problema constante, em geral resolvido à força, pela incorporação de criminosos ou vagabundos. O envolvimento permanente dos oficiais com a política minava a disciplina, que funcionava mais por laços de amizade e aliança do que pelo respeito às patentes.
O livro de McCann também conta a história dos esforços de superação dessa fragilidade, como a reflexão promovida pelos militares da revista A Defesa Nacional, a campanha do poeta Olavo Bilac pelo recrutamento universal e obrigatório, os chamados “jovens turcos”, que buscavam inspiração e treinamento na Alemanha, e a questionável opção da elite brasileira em contratar uma missão militar na França, cujos métodos já estavam ultrapassados diante da ascensão dos Estados Unidos. Destacam-se oficiais como José Pessôa, Tasso Fragoso e Goés Monteiro.
McCann não descreve em detalhes as rebeliões tenentistas, como a Coluna Prestes (foto acima), e se concentra em seus impactos desastrosos para a estrutura de comando do Exército. Ele argumenta que ela simplesmente se dissolvera ao fim da década, o que ajuda a explicar a facilidade com que Vargas e seus aliados tomam o poder em outubro de 1930 (foto que abre o post). A história dos anos seguintes seria a luta do novo presidente para consolidar seu poder, manobrando com habilidade quase inacreditável entre as diversas oligarquias dissidentes, sobretudo a paulista e a gaúcha, e lidando com comunistas, integralistas e tenentes insurretos.
O resultado seria a implementação do Estado Novo, que Vargas bem resumiu: “Em 1930 fiz a revolução com os tenentes, em 1937, com os generais”. Homens como Dutra e Goés Monteiro, que ele promovera por seu desempenho na guerra civil, e que depois terminariam por derrubá-lo em 1945 e 1954.
segunda-feira, 9 de junho de 2008
Um pouco da JUBRA
Fiz uma viagem não planejada nos últimos dias e fui a Goiânia, participar de uma reunião no JUBRA - III Simpósio Internacional sobre a Juventude Brasileira. O evento reúne os pesquisadores da área - creio que havia umas 500 pessoas - e fui participar de um debate, como membro do Conselho Nacional de Juventude.
O centro da reunião foi a proposta do governo federal em criar mecanismos para aprimorar a avaliação de políticas públicas na área de juventude, pensando parcerias entre diversos órgãos do Estado (Ipea, IBGE) e pesquisadores da sociedade civil. A idéia é boa e com certeza renderá diversas conversas nos próximos meses.
Tem havido um bom interesse por parte da comunidade acadêmica brasileira em conhecer melhor a realidade dos demais países da América do Sul. Às vezes tenho a sensação de que esse desejo é ainda maior na área de juventude, mas talvez seja simplesmente por causa da ótima recepção à pesquisa sobre o tema da qual participei. Levei diversos pacotes para distribuir na JUBRA e os exemplares se esgotaram em menos de 10 minutos.
Ao mesmo tempo, é curioso ver as pessoas comentando os artigos que tenho escrito sobre esses temas. Recentemente, foram publicados dois: "Democracia e Participação: reflexões a partir da I Conferência de Políticas Públicas de Juventude", em co-autoria com minha amiga Patrícia, e um texto que saiu na revista Juventude.br.
Meu ritmo de trabalho está a correria de sempre e na próxima semana viajo novamente. Gostaria de um pouco de tranqüilidade, mas é bastante divertido ver as coisas acontecendo, além de eu gostar muito das pessoas que estou conhecendo no meio de políticas públicas juvenis.
quinta-feira, 5 de junho de 2008
Milagre Econômico na África?
Vagando pela Internet, encontrei um interessante artigo sobre o milagre econômico da África. Escrito pelo economista de Berkeley Edward Miguel, o texto analisa as razões do bom desempenho econômico do continente ao longo desta primeira década do século XXI.
Os primeiros anos da África pós-independência foram prósperos, mas o continente entrou num ciclo de decadência a partir de 1975 que se arrastou por longos 25 anos e culminou em tragédias como a fome na Etiópia, o colapso do Estado na Somália e guerras e extermínios no Congo, em Ruanda e Serra Leoa. As causas das catástrofes foram muitas: governos tirânicos, péssimas políticas econômicas, variações desastrosas nos preços internacionais das principais mercadorias exportadas pela região, o impacto das rivalidades da Guerra Fria.
De 2000 para cá, a tendência se inverteu. Em média, a renda per capita cresce a 3% anuais (gráfico abaixo) – menos que na China e na Índia, mas um número bastante bom para as séries históricas africanas. Muitos conflitos foram resolvidos e embora o autoritarismo persista na maioria do continente, as liberdades democráticas têm avançado de maneira persistente.
Miguel privilegia o impacto positivo da ascensão da China e da Índia na elevação dos preços das commodities. No período que ele examina, os valores do petróleo e do café triplicaram, e o do cobre se multiplicou por cinco. O comércio entre África e Ásia ultrapassou US$100 bilhões por ano e os investimentos chineses proliferam pela região.
Ele chama a atenção para o impacto que o aquecimento global pode ter no continente, em especial na faixa semi-árida do Sahel, entre o deserto do Sahara e as florestas equatoriais. Já um território muito pobre e violento, onde estão localizados Sudão e Chade. Há estimativas de que as chuvas por lá podem diminuir em até 25% por causa da mudança climática, o que tornaria o quadro ainda mais sombrio. Na realidade, muitos analistas afirmam que isso já influencia o genocídio em Darfur, na medida em que os recursos naturais escassos são uma das causas daquele conflito.
Miguel também dá uma estocada na política agrícola dos EUA, ressaltando o impacto negativo que os subsídios ao algodão têm para países como Benin, Burkina Faso, Mali e Tanzânia. Nesta semana o Brasil obteve mais uma vitória na Organização Mundial do Comércio contra os subsídios americanos ao algodão, parte de longo processo que move nesse setor.
As discussões sobre o milagre econômico na África fazem parte de um fascinante debate, mais amplo, sobre a capacidade dos especialistas em desenvolvimento em fazer valer suas idéias. Há uma corrente muito cética, liderada por William Easterly, moderados nos quais se destacam Dani Rodrik e o próprio Miguel e os otimistas simbolizados por Jeffrey Sachs.
quarta-feira, 4 de junho de 2008
As Armas e os Barões Assinalados
Um dos debates mais quentes hoje na América do Sul é se a região passa por uma corrida armamentista. Nos últimos cinco anos os gastos com defesa aumentaram muito no Brasil, no Chile, na Colômbia e na Venezuela. Boa parte desses recursos foi dedicado à compra de equipamento moderno - blindados, submarinos, fragatas, caças. O ponto controverso é em que medida tais investimentos se destinam à reposição do material deteriorado da década de 1990.
O estudo mais completo que li a respeito veio da Colômbia, da Fundación Seguridad y Democracia. O relatório analisa cada país sul-americano. Me limitarei aos maiores. O Brasil é quem mais gasta com defesa na América do Sul e no ano passado anunciou aumento de 50% nesse orçamento. O país tem as maiores Forças Armadas da região, a indústria bélica mais desenvolvida e projetos ambiciosos do ponto de vista científico e tecnológico, como a construção do submarino nuclear e a parceria estratégica com a França. Os focos das preocupações de segurança são a região amazônia e o Atlântico Sul.
Em termos proporcionais, os países sul-americanos gastam entre 1% e 2% do PIB com defesa (para os dados, chequem o Stockholm International Peace Research Institute). O Chile é exceção, com cerca de 3,5% dedicados às Forças Armadas. Por duas razões principais. Primeiro, uma lei da época da ditadura Pinochet destina automaticamente 10% das receitas de exportação do cobre para os militares - e preço desse minério se multiplicou por cinco ao longo desta primeira década do século XXI. O segundo motivo é a situação de tensão que o Chile vive com os vizinhos, em particular com o Peru, e a necessidade de manter poderio bélico para dissuadir agressões. Surpreendemente, as negociações com a Bolívia pelo acesso ao mar estão muito melhores, e até se especula sobre o anúncio de um acordo para os próximos anos.
Prosseguindo na escala de gastos, está a Colômbia, que desde a implementação do plano bilateral com os Estados Unidos se tornou o terceiro maior receptor de ajuda militar daquele país, atrás apenas de Israel e do Egito. Os colombianos ampliaram em muito suas Forças Armadas, para 200 mil homens - número impressionante para um país de 45 milhões de habitantes. Os equipamentos também foram modernizados, com a compra de uma moderna frota de helicópteros e de aviões de combate. Os objetivos são primordialmente internos: derrotar as guerrilhas.
Tudo que Chávez faz é controverso e o mesmo acontece com sua política de defesa. Seu governo aumentou os gastos nessa área em 50%. Claro que muito disso é fruto das benesses da disparada do preço petróleo, que quase decuplicou desde sua ascensão ao poder. Outro fator é a base original de apoio de Chávez vir das Forças Armadas, e ele precisar cortejar os militares com verbas e equipamentos. Não custa lembrar que foram os oficiais leais ao presidente que garantiram sua permanência no poder, revertendo o golpe que havia sido tentado pelos generais mais antigos.
Chávez inovou ao se voltar para Rússia e China em busca de armamento, em grande medida para contornar as restrições à venda de material militar à Venezuela, impostas pelos Estados Unidos. Isso explica porque ele está substitutindo os caças americanos por aeronaves russas. O ponto mais polêmico é sua aquisição de 100 mil fuzis AK-103 e AK-104, e a instalação de uma fábrica para produzir outros tantos. Essa arma é a versão mais moderna do célebre AK-47 (foto), considerada a melhor arma de guerrilha do mundo, porque é de facílima manutenção e funciona bem em ambientes hostis como, digamos, a selva colombiana.
Há certo consenso entre os analistas de que os principais objetivos de Chávez quanto à defesa são: 1) Criar um poderio que torne a possibilidade de um ataque à Venezuela (pelos EUA ou pela Colômbia) uma opção arriscada. 2) Fortalecer seu apoio entre os militares e armar milícias que possam impedir um golpe contra seu governo, ou socorrê-lo no caso de uma tentativa.
Em meio à tanta agitação, até que foi pouco divulgada no Brasil a decisão dos Estados Unidos em recriar a IV Frota Naval, que irá atuar no Caribe e no Atlântico Sul. Ela havia sido montada, originalmente, na década de 1940, quando os americanos e o Brasil lutaram aliados contra o nazi-fascismo. Sua sede, inclusive, ficava em Natal. Seu comandante, o almirante Ingram, tornou-se amigo íntimo de Getúlio Vargas - uma das imagens mais famosas da época mostra o presidente brasileiro rindo ao lado de Ingram, com seu homólogo americano, Franklin Roosevelt, no mesmo jipe.
A IV Frota não existe desde os anos 50. O sucessor de Ingram no comando da IV frota é o almirante Joseph Kernan. Ele tem um perfil inusitado para a função: só atuou como marinheiro tradicional no início de sua carreira. A maior parte de sua atividade profissional se deu como oficial do SEAL, especializado em operações especiais, como demolição submarina. Que falem os especialistas:
Considerando el perfil del Almirante Kernan, que parecería indicar que no sea el más apropiado para una flota de relaciones públicas y ayuda humanitaria, sugiere que la organización de la 4ta Flota, dependiendo orgánicamente del Comando Sur, responde mas bien a una apreciación estratégica para el mediano plazo, en la cual se visualiza que Centro y Sudamérica sufran un empeoramiento de sus actuales conflictos, los cuales podrían escalar hasta el nivel de lucha armada, de variada intensidad, con distintas características, en distintas regiones, desarrollándose en forma simultanea y sin que Brasil, por quien se esta apostando mucho en este sentido, no pueda o no quiera involucrarse decisivamente en su solución.
Colômbia e Venezuela, sem dúvida, mas também a importância crescente do Atlântico Sul para a indústria mundial de petróleo.
segunda-feira, 2 de junho de 2008
Um Lugar ao Sul
No fim de semana, meus alunos do Curso Clio fizeram a prova discursiva de política internacional, parte da etapa final da seleção para o Ministério das Relações Exteriores. O que mais me impressionou no concurso deste ano foi a ênfase dada à agenda diplomática entre o Brasil e os demais países em desenvolvimento.
Das quatro questões da prova de política internacional, duas trataram do tema, abordando potências emergentes e África. As restantes versaram sobre biocombustíveis e aquecimento global, que naturalmente são temas muito relevantes também no âmbito da cooperação sul-sul. Além disso, as provas de história e geografia incluíram questões a respeito do papel do Mercosul na diplomacia brasileira e a comparação entre os modelos de desenvolvimento da China e da Índia.
Curioso como a abordagem das provas está próxima à cobertura internacional sobre política externa brasileira. A imprensa estrangeira aborda o tema principalmente a partir da perspectiva da ascensão dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), considerando muito natural a guinada ao sul do Itamaraty. Bom exemplo é a coluna de Roger Cohen no International Herald Tribune, que afirma que “o mundo virou de cabeça para baixo” e os países emergentes apresentam hoje as melhores oportunidades de crescimento econômico, comércio e investimento.
Historicamente, o Brasil procurou definir a si mesmo como intermediário entre os países ricos e o mundo em desenvolvimento. A política externa brasileira nunca teve ideário terceiro-mundista significativo, como tiveram em certos momentos a Argentina e o México. Nem no governo Geisel? Nem lá, porque embora houvesse a forte agenda com a África e o Oriente Médio, ela era equilibrada pelo acordo nuclear com a Alemanha Ocidental e pela a parceria econômica com o Japão.
No governo Lula o país adotou uma identidade bem mais vinculada ao chamado “sul global”. Creio que as razões principais estão acima, mas também pesam fatores domésticos. Todos os dirigentes petistas com quem conversei sobre África frisaram que a aproximação com o continente não era apenas uma questão econômica, mas também o compromisso com a valorização do movimento negro brasileiro.
Concordo, mas penso que jornalistas como Fábio Zanini têm razão quando apontam que às vezes a identificação do Brasil com o sul se dá por posturas defensivas um tanto impensadas diante das pressões do mundo rico, sobretudo em questões ligadas à agricultura e à energia, como ele observou cobrindo a visita presidencial a Gana, durante a reunião da Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento:
Lula, nas 48 horas que passou em Gana, mostrou-se um perseguidor implacável e só faltou jogar a pia do banheiro em europeus e norte-americanos. Ele está acuado com as críticas a uma política estratégica de seu governo, a dos biocombustíveis. Eles eram, até pouco tempo atrás, uma unanimidade mundial: mais baratos que o petróleo, mais limpos, mais efetivos como fator de distribuição de renda. E, para Lula, o que é muito importante: um veículo para projetar sua influência sobre o Terceiro Mundo. (...) É uma tática deliberada, que ele pretende usar em todos os fóruns de que for capaz. Não foi à toa que Lula foi um dos pouquíssimos chefes de Estado a prestigiarem a reunião da Unctad, aqui em Acra, um dos mais desprestigiados órgãos da ONU.
Difícil imaginar um movimento como esse sendo bem-sucedido, inclusive porque o Brasil de hoje se desenvolveu a tal ponto que têm muitos elementos comuns com países ricos – por exemplo, a existência de um núcleo dinâmico de empresas transnacionais que atuam por todo o planeta, e pesquisa científica de ponta em diversos ramos. E apesar de questionar os subsídios agrícolas da União Européia e dos EUA, é pródigo em benefícios semelhantes ao setor industrial, via BNDES. Não dá para sustentar um discurso de identificação com os deserdados e desvalidos, e ao mesmo tempo conquistar grau de investimento e lucros recordes para Petrobras, Vale, Embraer...
Roger Cohen tem razão e o mundo está mesmo virando de ponta-cabeça. Nesse processo, o Brasil acabará também por se reinventar.
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