segunda-feira, 9 de março de 2009

A Dança de Natasha


Há um momento no romance “Guerra e Paz” na qual a condessa Natasha, educada nos moldes da cultura européia, entra numa cabana camponesa e começa a dançar ao som de uma melodia folclórica russa, com grande naturalidade e beleza. Tolstói escreveu a passagem como uma crítica à superficialidade dos costumes da nobreza russa, e como a defesa de um modo de vida mais autêntico, ligado às tradições populares. O historiador inglês Orlando Figes toma a cena como ponto de partida e título de seu magnífico “Natasha´s Dance – a cultural history of Russia”, outra das pérolas do meu pacote recente da Amazon.

O livro de Figes é uma interpretação da cultura russa da construção de São Petersburgo, no início do século XVIII, até o degelo comunista da era Brejnev, na década de 1960. Seu ponto alto é a análise da literatura, mas ele também examina música, cinema e um pouco de arquitetura. Seus oito capítulos podem ser lidos quase como ensaios independentes, que tratam de aspectos como a sociedade aristocrática de São Petersburgo e Moscou, a cultura popular camponesa, a influência da religião ortodoxa na sociedade, as difíceis relações entre os intelectuais e o governo soviético. Suas fontes são as obras de arte clássicas – em especial as criações de Pushkin, Tolstói, Dostoiévski, Tchecov, Nabokov, Einsenstein e Stravinsky – e um fascinante olhar sobre a vida privada, por meio de diários, cartas e memórias.



O grande tema que atravessa o período é a busca da construção de uma identidade nacional russa que incorpore as correntes mais dinâmicas da cultura européia (iluminismo, liberalismo, socialismo) às tradições populares do país (cristianismo ortodoxo e práticas camponesas, costumes asiáticos, a relação com a paisagem da estepes e das montanhas do Cáucaso). Um equilíbrio sempre tênue, com batalhas culturais entre ocidentalizantes, eslavófilos e movimentos revolucionários.

Num país sem parlamentos ou imprensa livre, a produção artística assumiu um papel político preponderante, quase messiânico, de debate sobre os rumos nacionais. Figes mostra com clareza a interação entre movimentos artísticos, sociais e políticos. Um exemplo são os Dezembristas – oficiais que derrotaram Napoleão e tentaram depois transformar o Czar num monarca constitucional. A experiência militar de lutar ao lado de camponses-soldados, frequentemente em guerrilha, os marcou para sempre, e influenciou gerações de artistas e ativistas. “Guerra e Paz”, de Tolstói, é o grande monumento literário ao espírito dezembrista. Figes não é tão simpático aos movimentos mais radicais, e seu livro toca apenas de passagem nos populistas russos, o grupo Vontade do Povo – um programa de radicalismo agrário que teve influência profunda no fim do século XIX.

Figes é autor de uma elogiadíssima história da Revolução de 1917, e os dois capítulos sobre a cultura soviética são muito bons, mostrando as diversas maneiras pelas quais os artistas e intelctuais se relacionaram com os bolcheviques. Depois de um breve entusiasmo inicial pelo colapso do velho regime, o resultado mais comum foram problemas políticos, perseguições e a dificuldade pura e simples das condições de vida muito precárias da Rússia. Ainda assim, houve realizações significativas, na poesia, na música e no cinema.

Há espaço inclusive para o humor. As melhores anedotas são sobre o cineasta Serguei Einsentein, cujos extraordinários filmes acabaram influenciando – erradamente – a maneira pela qual se escreve a história russa. Por exemplo, não houve massacre popular em Odessa, ao contrário do que é mostrado em “O Encouraçado Potemkin”. E a tomada do Palácio de Inverno durante a Revolução, retratada em “Outubro”, foi bem mais modesta, ocorreu por uma escada lateral e com menos participantes. Na realidade, a filmagem foi tão tumultuada, com empurrões e quebra-quebra, que o velho porteiro do edifício reclamou com o diretor: “O seu pessoal foi mais cuidadoso da primeira vez que entrou aqui”.

2 comentários:

Patricio Iglesias disse...

Caro Maurício:
A Rússia é um pais muito interessante e influiu muito na cultura universal e, especialmente, em nossos povos pela immigraçäo. Há alguns estudos sob as colónias russas na Argentina.
Saludos!

Maurício Santoro disse...

A comunidade russa no Brasil é pequena, mas curiosamente há uma bela igreja ortodoxa na rua em que vivem meus pais, no Rio de Janeiro.

Abraços