segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Reconstrução



Neste semestre devo lecionar dois cursos que envolvem o tema das relações raciais nos Estados Unidos, sempre com a perspectiva de discuti-las na com respeito à formação e às mudanças da democracia americana. Comprei uma série de bons livros que tratam de períodos nos quais esses temas foram decisivos, em particular a guerra civil e a época imediatamente posterior, conhecida como “Reconstrução” (1865-1877), abordado no ótimo “A Short History of Reconstruction”, de Eric Foner.

Até recentemente, a narrativa oficial era de que a Reconstrução havia sido um erro histórico, um esforço vingativo dos nortistas vitoriosos em impor seu modo de vida aos sulistas derrotados na guerra civil. Essa abordagem começou a mudar nos anos 1960, quando o movimento dos direitos civis fez muitas pessoas olharem o passado de maneira diferente, questionando o racismo e a persistência da discriminação. Nessa nova perspectiva, a Reconstrução passou a ser vista como a tentativa de implementar a “segunda revolução americana”, ou seja, consolidar o ideal de 1776 também para os antigos escravos, incorporando os negros às instituições políticas do país.



Foner conta como esse projeto ambicioso fracassou. A derrota não era inevitável: os senhores de escravos do sul haviam sido vencidos na guerra, suas plantações destruídas e o governo federal tinha novos poderes e recursos financeiros à sua disposição, adquiridos ao longo dos anos de conflito. Cerca de 200 mil negros haviam servido no Exército da União e conquistado um novo sentido do próprio valor e dignidade. A escravidão fora abolida e novas emendas constitucionais garantiam os direitos de todos os cidadãos, independente da cor da pele. Os estados do sul promoveram reformas e promulgaram novas constituições, mais democráticas para os brancos pobres e em muitos casos incorporando negros aos cargos públicos, nos governos locais e no Congresso, em Washington.

Contudo, Foner mostra não havia consenso no partido Republicano, que conduzira a guerra, com relação ao nível de apoio que o governo federal deveria dar aos ex-escravos. Projetos de reforma agrária foram abandonados e muitas autoridades estavam mais preocupadas em forçar os negros a voltar a cultivar algodão, fundamental para o comércio exterior dos EUA. Em muitos casos as plantações apenas mudaram de dono, dos antigos aristocratas sulistas para os novos interesses empresariais do norte. A reação do sul foi intensa, e o partido Democrata correu para aproveitar a oportunidade – consolidou-se como a força hegemônica na região até a década de 1960!

Os conflitos não se limitaram à esfera das instituições. Os novos limites das relações entre brancos e negros foram definidos muitas vezes pela violência, com o surgimento de grupos paramilitares (como a Ku Klux Klan) e a explosão de tumultos, linchamentos e pogroms racistas que parecem saídos de um Estado como a Rússia czarista.



As disputas políticas foram agravadas com a eclosão da depressão econômica de 1873, que colocou os Republicanos na berlinda e aumentou a força da oposição. A eleição presidencial de 1876 foi uma das mais disputadas do país e terminou em empate no Colégio Eleitoral. O vencedor foi o candidato republicano, que negociou um amplo acordo com o sul, às custas dos direitos dos negros. O governo federal interrompeu seus esforços pós-Abolição e os sulistas implementaram as leis racistas conhecidas como Jim Crow, sob o pretexto de que a segregação significava apenas “separados mas iguais”.

A Reconstrução não foi inútil. Foner a chama de uma “revolução incompleta”. Promoveu um renascer e florescimento das instituições da sociedade civil negra – igrejas, escolas, associações de ajuda mútua. Elas acabaram por afastar-se da política nacional, voltando-se para suas próprias comunidades, mas foram o celeiro que gestou os líderes do movimento dos direitos civis.

3 comentários:

Rafael Galvão disse...

A lista de livros inclui o Stampp, né?

A Reconstrução é, pra mim, um dos momentos mais fascinantes da história americana, junto com Jamestown e a conquista do oeste. E o mais interessante é que eu sempre tive a impressão de que ela é fundamental para a compreensão das ações afirmativas nos EUA, das relações raciais lá e, o que me importa ainda mais, a compreensão das diferenças e semelhanças da questão racial brasileira.

Deve ser um curso bem interessante.

Maurício Santoro disse...

Salve, Rafa.

Não inclui o Stampp - está mais focada em autores contemporâneos - mas quase todos o citam e dialogam com seu trabalho, em especial com o clássico sobre a "instituição peculiar".

A Reconstrução é mesmo uma época fascinante, e me impressiona como ela aparece pouco na ficção americana, como no cinema. Acho um período fundamental para entender os sonhos frustrados de igualdade racial e muito do rumo que a política dos EUA tomou no século XX.

abraços

Vivian Grassi disse...

Não sei qual será sua timeline, mas, dependendo, vale a pena tratar, ainda que brevemente, o caso Dred Scott da Suprema Corte dos EUA. Acho que esse caso reflete com clareza as divergências filosóficas e sociais do norte e do sul dos EUA e deixa muito claras as raízes do embate social que se trava desde então.