segunda-feira, 13 de junho de 2011
Significados do Terrorismo: Brasil e Itália
A decisão do Supremo Tribunal Federal em libertar Cesare Batistti e não extraditá-lo para a Itália é um desfecho previsível diante das posições adotadas pelo ex-presidente Lula e pelo ex-ministro da Justiça Tarso Genro, mas a força da reação italiana mostra que nos dois países o terrorismo tem significados muito diferentes, que afetam suas relações diplomáticas. Tema especialmente caro a quem, como eu, é cidadão de ambas as nações.
No Brasil, “terrorista” era o epíteto que a ditadura militar dava a muitos de seus oponentes. Os da oposição armada preferiram outras denominações, como “guerrilheiros”. O abuso das doutrinas de segurança nacional pelo regime autoritário contribuiu para tornar os militantes da extrema-esquerda símbolos de idealismo e dedicação, até para pessoas que não compartilham de seu projeto político marxista. A palavra “terrorista” virou, compreensivelmente, um termo que raramente é usado, nem mesmo para classificar os atentados a bomba da direita (Riocentro, OAB) ou certas ações do crime organizado em São Paulo e no Rio de Janeiro.
A Itália após a Segunda Guerra Mundial viveu somente sob democracia, mas numa combinação de crescimento econômico acelerado com problemas sérios, como partidos muito corruptos e a persistência de bolsões de pobreza e da desigualdade regional Norte-Sul. O mal-estar se traduziu na década de 1970 na eclosão de conflitos entre grupos extremistas armados, de esquerda e de direita, sendo que estes últimos com frequência tinham vínculos com o Estado italiano.
Battisti estava na cadeia por crimes comuns quando ingressou num grupo da esquerda armada. Fugiu e foi preso novamente, em flagrante, com armas ilegais, explosivos e documentos falsos, e condenado por terrorismo, e crimes como assassinato e roubo. Uma das vítimas viu o pai ser assassinado e ficou paraplégica em consequência dos tiros que levou. Battisti fugiu durante o processo e foi julgado à revelia, com base na delação premiada de colegas de sua organização, depoimentos de testemunhas e provas recolhidas pela polícia. Ele afirma ser inocente e questiona a validade da condenação judicial que sofreu. Há denúncias de irregularidades no processo. A sentença foi confirmada por tribunais da França e pela Corte Européia de Direitos Humanos.
O terrorismo foi um golpe duro para a democracia na Itália, em especial para a esquerda, que foi prejudicada eleitoralmente porque os eleitores associaram até os moderados à violência extremista. O governo brasileiro tenta transformar o caso Battisti numa cruzada contra o primeiro-ministro Silvio Berlusconi, afirmando que sua condenação foi vingança ideológica da direita. Não é assim. Intelectuais progressitas italianos, como Umberto Eco, também defendem a extradição de Battisti.
O governo brasileiro tem usado com frequência o argumento da soberania, de que a Itália tem que respeitar a opção do Brasil em conceder refúgio político a Battisti. A retórica contradiz a prática - as autoridades brasileiras não aceitaram a decisão soberana da Justiça italiana em condená-lo por terrorismo.
Ao fim, o labirinto jurídico serve apenas para esconder a motivação partidária da decisão do governo brasileiro em proteger o integrante da organização Proletários Armados pelo Comunismo. Se Battisti fosse membro de um grupo da extrema-direita da Itália – digamos, Burgueses Armados pelo Capitalismo - já teria sido extraditado há muito tempo. Mas num Estado de Direito as leis devem ser iguais para todos, independente das ideologias que escolhemos para tentar dar sentido a este mundo confuso.
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15 comentários:
Caro Maurício,
Concordo que haja motivação política quanto à não extradição de Battisti, no entanto me parece que a itália grita agora muito além do que gritaria caso fosse um país "rico".
Fico com a impressão de que os europeus tentam jogar as culpas de seus fracassos nas costas do países em desenvolvimento.
Outra coisa que chamou a atenção nesse caso foi a cobertura da imprensa que em alguns casos (como a Rede Bandeirantes) só entrevistaram pessoas que eram a favor da extradição, em reportagens pra lá de parciais.
Abraço!
Rafael,
leia de novo o texto do Maurício, pois você não entendeu...
É a soberaniatite.. que só resulta em muito desgaste por nada. E menos gente simpatizando com o Brasil e nossos produtos. GENIAL pra turma do 13..
Gostaria de ter escrito este texto, Commendatore. Tá excelente.
Abraço.
Gabriel Trigueiro
Prezado Mauricio,
Concordo contigo, mas:
Sobre "ao fim, o labirinto jurídico serve apenas para esconder a motivação partidária da decisão do governo brasileiro em proteger o integrante da organização Proletários Armados pelo Comunismo. Se Battisti fosse membro de um grupo da extrema-direita da Itália – digamos, Burgueses Armados pelo Capitalismo - já teria sido extraditado há muito tempo".
Acho que existe um italiano que está preso nessa situação a um bom tempo, ele era dos grupos de direita, afinal lá teve bomba e mortes dos dois lados. Se não estou errado está parado no Conare se decidir o caso atual. Mas, acho que antes de partidário, ajudou muito o escritório de advocacia, que só tinha essa defesa para impedir a extradição.
E o executivo "aceitou" o argumento errado ao meu ver.
Abs,
Salve, Rafael.
Na realidade, a Itália teve um conflito diplomático sério com a França de Mitterand, quando esse presidente concedeu refúgio a vários italianos condenados por terrorismo, como o próprio Cesare Battisti e o o filósofo Antonio Negri.
A França acabou revogando o refúgio no governo Chirac, por um misto de mudança política interna (conservadores que substituíram os socialistas) e pressão internacional da Corte de Direitos Humanos da UE, que julguou a postura francesa incompatível com as leis anti-terrorismo da Europa.
Com relação à cobertura na mídia brasileira, tenho visto muitas opiniões simpáticas a Battisti, como as do jurista Dalmo Dallari. E a imprensa só se refere a Battisti como "ativista" ou "militante", enquanto nos jornais italianos ele costuma ser chamado só como terrorista.
Mário e Gabriel,
Grazie mille.
Caro Marcelo,
Não conheço o caso que você mencionou, mas ele soa muito interessante.
abraços
exatamente jogador, as pessoas falam da ferocidade italiana, argumentam por uma "patriotada", é essa a idéia que o governo quer que compremos! Mas em um ambiente de direito comunitário europeu já houve uma condenação do terrorista. O Brasil vai de encontro não só à Itália, mas também ao sistema de proteção de direitos humanos mais avançado do mundo. Em uma era de guerra internacional contra o terrorismo o Brasil mancha sua imagem.
abraços,
Helvécio.
Só uma correção:
'A sentença foi confirmada por tribunais da França e pela Corte Européia de Direitos Humanos.'
e, dos comentários,
'...e pressão internacional da Corte de Direitos Humanos da UE, que julgou a postura francesa incompatível com as leis anti-terrorismo da Europa.'
A Corte Européia de Direitos Humanos (CEDH) -- não há um tribunal de direitos humanos da UE -- nunca decidiu nada sobre os méritos do processo de Battisti na Itália.
A única decisão adotada pela CEDH com relação a Battisti foi uma decisão de inadmissibilidade de 2006:
http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action=html&documentId=812268&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649
Battisti não estava questionando a sua condenação na Itália, mas sim a decisão da Corte de cassação francesa, que permitia ao governo daquele país de extraditá-lo.
A Corte considerou que sua petição era manifestamente mal fundada porque ele não tinha apresentado, prima facie indícios suficientes de que sua condenação à revelia feria os princípios do devido processo.
Para informação, mais de 90% das petições apresentadas à CEDH são declaradas inadmissíveis (em 2006, das mais de 28000 decisões adotadas, apenas 253 foram de admissibilidade, ou seja, cerca de 0,8%)... isso não quer dizer que os fatos relatados nas queixas sejam falsos, ou que não hajam potenciais violações de direitos humanos. A decisão da CEDH no caso Battisti indica que a petição era falha, não que a CEDH confirmou, de algum modo, a condenação italiana.
Minha reação original ao julgamento está publicada aqui:
http://crimejusticaeguerras.wordpress.com/2011/06/09/o-fim-da-saga-battisti/
Quanto ao caráter ideológico da decisão política de não extradição, eu realmente não tenho opinião. O ato de dar asilo é uma decisão eminentemente política, e é por isso que há um processo em duas linhas, judicial e político. O Brasil deu asilo para o Stroessner, por exemplo. Discordo de terem feito isso, mas enfim, é uma orientação da política exterior brasileira. Podemos discutir os méritos e desméritos de uma decisão específica sem questionar a validade do princípio que, no final das contas, extraditar ou não é questão de política exterior. O Brasil podia ter colaborado com o governo italiano. Escolheu não fazê-lo e isso era direito seu. Como quando Blair decidiu não extraditar Pinochet à Espanha... desagradou a muitos, mas era uma decisão soberana.
A Corte Européia considerou legítima a decisão italiana acerca da prisão perpétua e negou o recurso de Battisti afirmando que não lhe caberia o status de refugiado.
Em uma análise de política externa as considerações de política de prestígio foram alijadas do processo. Prevaleceu uma ideologia tacanha contraproducente aos interesses de longo prazo do país.
abraços.
Helvécio.
Prezado Mauricio,
O italiano em questão chama-se Pierluigi Bragaglia, foi preso em Ilhabela.
Abs,
Caro Matthias,
Nossa, fantástico o seu blog. Acrescento à coluna dos "recomendados".
Obrigado pelas análises e comentários, foram muito esclarecedores. Me parece que, no essencial, a CEDH complicou a vida do Battisti e antes disso a própria vigência da Doutrina Mitterand, pelo que declarou sobre os processos in absentia. Mas preciso ler mais sobre o assunto.
Certamente a concessão do status de refugiado passa por princípios de política externa, e alguns são indigestos. No caso do ex-ditador do Paraguai tratou-se de proteger um importante aliado brasileiro e criar uma saída para a crise política no país vizinho. Não é uma decisão que eu tenha aprovado, mas entendo a lógica que levou a ela.
Minha crítica à decisão quanto a Battisti, em termos de realpolitik, é que ela não traz benefícios ao Brasil e indispõe o país com um parceiro econômico importante, além de reforçar certa imagem de impunidade com frequência associada ao Brasil.
Salve, Marcelo.
Muito obrigado pelo nome, vou googlear sobre o caso.
Abraços
Maurício
Caro Helvécio,
Você diz que 'a Corte Européia considerou legítima a decisão italiana acerca da prisão perpétua e negou o recurso de Battisti afirmando que não lhe caberia o status de refugiado.'
A não ser que você esteja falando de outra decisão (que eu ignoro), acredito que você está equivocado. A Itália não era parte diante da CEDH, e portanto o processo penal na Itália -- ou a sentença -- não estava sendo diretamente questionado à luz do artigo 6§1 da CEDH.
No caso de 2006 Battisti tentou resistir à extradição sob pretexto de que sua condenação à revelia violaria dito artigo: ora, a Corte decidiu que -- com base nos dados apresentados na fase preliminar de admissibilidade -- não havia elementos para concluir que a autorização francesa de extraditar poderia ser considerada violatória, mesmo se os fatos alegados fossem comprovados. Isso quer dizer, essencialmente, que os fatos alegados não eram suficientes. Então a petição de Battisti foi declarada inadmissível, como o foram 99,2% de todas as petições decididas em 2006.
Em direito, uma decisão de inadmissibilidade não é o mesmo que dizer que o caso é sem fundamento. Algum critério preliminar não foi respeitado. No caso de Battisti, o critério que faltou foi demonstrar que ele tinha elementos de prova que pudessem eventualmente levar o caso a uma condenação da França, na etapa de mérito. Isso não é nada incomum: basta os advogados de Battisti não terem tido tempo para preparar melhor o conjunto probatório, por exemplo.
Helvécio adicionou que '...as considerações de política de prestígio foram alijadas do processo. Prevaleceu uma ideologia tacanha contraproducente aos interesses de longo prazo do país.'
Com o Que Maurício concorda, de modo geral:
'...[a decisão] não traz benefícios ao Brasil e indispõe o país com um parceiro econômico importante, além de reforçar certa imagem de impunidade com frequência associada ao Brasil.'
Sem dúvida o Brasil não ganhou pontos com a administração italiana atual. Acho prematuro emitir juízos sobre o longo prazo. Não tenho conhecimento de efeitos econômicos negativos reais: negócios são negócios, e a questão mais retórica do que fundamental de um homem não é o que está impedindo ou facilitando a integração econômica entre os dois países. Mais importante, me parece absurdo esperar, como resultado de um pedido de extradição (no qual o que está em jogo são os direitos fundamentais de um indivíduo), que as relações econômicas bilaterais melhorem ou se mantenham estáveis. O Battisti não vale mais, para a Itália, do que valem boas relações comerciais com o Brasil.
Caro Maurício, obrigado por seu comentário detalhado e também por colocar o Blog CJ&G no 'blogroll' daqui (aliás aquele blog não é meu, sou apenas um dos comentadores que o João Roriz convidou). Só uma palavrinha sobre impunidade: a questão da impunidade no Brasil vai muito além dessa decisão particular, e creio que a Itália tem uma prática não muito exemplar nesse campo. Essa mesma semana os italianos rejeitaram a imunidade do Berlusconi em referendo popular, mas a administração atual não poupou esforços para manter-se impune. Não sei se essa reputação de impunidade pesa tanto nas relações bilaterais, não creio que os italianos estejam perdendo o sono porque o Brasil não puniu os atores principais da ditadura militar, ou porque não há um controle suficiente sobre o crime organizado no Brasil (problema considerável na Itália também, acho que eles podem entender). Enfim, creio que o assunto Battisti tem mais valor como assunto para as políticas interna brasileira e italiana do que tem na política bilateral entre os países... uma vez passada a onda retórica, we'll be back to business as usual...
A fila andou
A soltura de Cesare Battisti foi tecnicamente indiscutível. O STF apenas reconheceu que a Constituição garante ao governo federal a prerrogativa de negar-se a extraditá-lo. É razoável que a decisão do governo Lula suscite polêmicas ideológicas. Mas elas não têm nada a ver com o aspecto propriamente jurídico da questão.
Os defensores da extradição compartilham um pressuposto equivocado: o de que a Justiça, num país democrático, está livre de contaminações políticas e arbitrariedades. Segundo tal raciocínio, devíamos aceitar os campos de concentração em Guantánamo e, no limite, qualquer absurdo praticado por governantes que receberam votos populares. Esse argumento pretende ofuscar certas dúvidas tenebrosas que cercam o chamado “terrorismo de esquerda” dos anos 70 e que seriam fundamentais para compreendermos a lisura do processo italiano que condenou Battisti.
Quanto à seriedade das instituições italianas, lamento, mas a figura de Silvio Berlusconi não facilita.
http://guilhermescalzilli.blogspot.com
Caro Matthias,
Quem me dera que todo o debate sobre o caso Battisti tivesse tido o alto nível dos seus comentários. Aprendi muito.
Acompanhei o plebiscito sobre impunidade na Itália e fiquei muito satisfeito com o resultado, mostra uma reação da sociedade contra os aspectos mais negativos do governo Berlusconi.
Caro Gulherme,
Sem dúvida, o péssimo primeiro-ministro italiano causou grande dano ao país, mas o caso Battisti não é uma questão exclusiva desse governo, trata-se de uma demanda social mais ampla, uma questão de Estado. Tentar transformá-lo numa cruzada Direita x Esquerda foi simplesmente uma manobra do governo brasileiro para evitar o debate sobre o significado dos crimes pelos quais Battisti foi condenado.
Toda decisão judicial é sujeita a discussões, inclusive aquelas tomadas numa democracia. O STF não foi unânime quanto a Battisti. Sem dúvida, tem todo direito de recorrer da sentença que o condenou, mas pode perfeitamente fazê-lo na Itália.
Além disso, o governo brasileiro não é o Supremo Tribunal Internacional para negar a validade de sentenças de outros países democráticos, mesmo que de uma nação tão conturbada quanto a Itália. Ademais, país com sigilo eterno de documentos oficiais não está um posição para acusar os outros de serem pouco transparentes em seus assuntos públicos...
Abraços
Caro Maurício,
Obrigado pela resposta. Também tenho acompanhado o seu blog há alguns meses e aprendo batstante. Keep up the excellent work!
Você disse que 'Sem dúvida, [Battisti] tem todo direito de recorrer da sentença que o condenou, mas pode perfeitamente fazê-lo na Itália.' Não conheço o direito processual italiano, mas me parece pouco provável que Battisti possa, hoje, recorrer da sentença condenatória italiana. Ela deve ter transitado em julgado há muitos anos, e seria difícil alegar a emergência de fatos novos para reabrir o processo...
'...o governo brasileiro não é o Supremo Tribunal Internacional para negar a validade de sentenças de outros países democráticos...'
De fato, nenhum país tem o direito de anular uma decisão judicial estrangeira. Pode, no entanto, recusar-se a executá-la, ou a colaborar com o judiciário em questão, e é disso que se trata no caso Battisti. O judiciário dos EUA, por exemplo, não tem dificuldade alguma em recusar a execução de uma decisão equatoriana que condena uma companhia petroleira americana a pagar 8 bilhões de dólares em compensação por danos ambientais. A Corte Europeia de Direitos Humanos já condenou o RU por ter extraditado um homicida alemão aos EUA, onde ele estava sujeito a receber a pena de morte (caso Soering), por tratar-se de tratamento cruel, inhumano ou degradante. Enfim, estas coisas acontecem regularmente nas relações internacionais. Claro que há consequências em termos de atrito entre os dois Estados, mas isso passa...
'...país com sigilo eterno de documentos oficiais não está um posição para acusar os outros de serem pouco transparentes em seus assuntos públicos...'
De fato, já passou da hora do Brasil rever a sua lei sobre documentos sigilosos. Infelizmente, não se tem uma idéia muito precisa do que há em arquivos. Quando o Collor desmantelou o SNI, e antes que a ABIN viesse substituí-la, diversas autoridades públicas 'repartiram' os arquivos e há coisas importantes -- como os documentos sobre a Guerrilha do Araguaia -- que 'não existem mais'. Enfim, precisamos melhorar a lei, mas é preciso exercer mais controle em quem administra a lei...
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