quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A Separação

Há tempos não vejo um filme tão forte quanto “A Separação”, escrito e dirigido por Asghar Farhadi. É um drama familiar que nos diz muito sobre os conflitos políticos do Irã atual, mas acima de tudo é um exemplo de cinema humanista que transcende culturas e faz pensar nos trabalhos de velhos mestres como Roberto Rosselini ou Ingmar Bergman, pelo modo como apresenta dilemas individuais num mundo desordenado e injusto. Quase uma semana depois de vê-lo, me pego pensando em suas cenas e refletindo sobre seus diálogos.

O flime começa com o divórcio de um casal que está junto há mais de uma década e tem uma filha no início da transição da infância para a adolescência. A causa da separação é que a esposa quer emigrar, pois não vê futuro no Irã para a família, diante das “atuais circunstâncias” – que ela não explica, apesar de questionada por um juiz, mas que todos sabemos quais são. Seu temperamento inquieto é visível nos cabelos pintados de vermelho, entrevistos por baixo do véu. O marido quer ficar. Não por lealdade à República Islâmica, mas porque deseja permanecer ao lado do pai idoso e doente, que sofre de Alzheimer.

A esposa se prepara para sair do Irã e o casal decide quem ficará com a filha. Enquanto isso, o homem contrata uma empregada para cuidar do pai doente, enquanto ele está no trabalho. O salário é baixo, mas a mulher é muito pobre e enfrenta dificuldades extras: está grávida do segundo filho e o marido está desempregado e ocasionalmente na prisão, por não pagar suas dívidas. Ela está sob intensa pressão e tem problemas de saúde, não consegue lidar com o árduo trabalho físico de cuidar de um idoso, e sofre também com a dor de romper tabus religiosos, tendo que tocar um homem estranho. Acaba cometendo erros sérios, que darão origem a uma confrontação violenta com o patrão, numa escalada de conflitos que opõe as duas famílias e na qual todos e ninguem estão com a razão.

Como em no filme anterior do diretor, “À Procura de Elly”, é um ato inesperado de violência que revela as fissuras de uma sociedade aparentemente civilizada e organizada. São muitos focos de tensão: o econômico, entre os patrões de classe média (e suas redes de parentes e amigos) e os empregados pobres. O religioso, entre uma família quase laica e outra para quem as regras do Islã estão muito presentes no cotidiano e constituem a referência ética fundamental. O político, na relação com as autoridades do Estado que podem ser bastante duras na aplicação da lei, e bastante falhas no fornecimento de uma rede de proteção social e solidariedade.

O excelente roteiro coloca em cena personagens muito humanos: ambíguos, contraditórios, capazes de atos mesquinhos, mentiras, traições e egoísmos, e de gestos de generosidade e dedicação. Impossível esquecer a filha quase adolescente, que fará seu doloroso aprendizado da vida madura e da liberdade, sendo chamada a tomar decisões difíceis num ambiente de adultos confusos e que não servem como referência moral. O diretor afirma que ela representa a geração de jovens iranianos que, quiçá, poderão ter que aprender a viver na democracia. Terão um belo exercício neste filme de tantas vozes e visões de mundo.

6 comentários:

Drunkeynesian disse...

E a beleza da protagonista (Leila Hatami) é hipnótica. Espero que o Oscar faça justiça e deixe de lado qualquer motivação política para não premiar um iraniano.

Maurício Santoro disse...

Caro,

Verdade, ela é muito bonita. Me parece que o filme tem grandes chances no Oscar, inclusive pelo aspecto político, uma vez que critica (de maneira discreta) a República Islâmica.

Abraços

forum disse...

Ainda não vi o filme. Mas pelo trailer e pelo que vc conta, Mauricio, vemos que as contradições demasiadamente humanas se manifestam de forma muito interessante nesta película. Tá na minha lista.

Maurício Santoro disse...

Veja sim, você irá adorar. Grande filme.

abraços

Anônimo disse...

Uma pergunta de leigo meu caro: Como a cinema do Irã tem se destacado, principalmente com alguns filmes críticos? são gravações fora do país? a censura de Teerã é mais leve para o cinema?

obrigado meu caro!
abraços,

Helvécio.

Maurício Santoro disse...

Caro,

A maioria das produções acontece dentro do próprio Irã. Existe alguma abertura para críticas, contanto que elas não questionem os aspectos básicos do sistema político da República Islâmica.

Algo parecido acontece com o cinema cubano, que também critica problemas como a burocracia excessiva ou a escassez de produtos básicos, mas nunca ataca frontalmente os irmãos Castro.

Abraços