sábado, 10 de março de 2007

(In)Adaptações


Uma das vilãs da novela das 20h morreu quando seu ônibus foi queimado por bandidos, reproduzindo na ficção um fato da crônica policial do Rio de Janeiro. Na minha época, o pior que poderia acontecer numa trama escrita por Manoel Carlos era a personagem da Giulia Gam ter um ataque de ciúmes.

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Antropóloga que conheci nesta semana me recomenda assistir à minissérie de Glória Perez sobre a história do Acre. “Dá vontade de declarar guerra à Bolívia”, ela me garante. Aviso desde a novela América: essa mulher ainda vai provocar uma tragédia humanitária internacional.

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Sou o único na cidade que não sabe nada sobre as milícias que disputam o controle das favelas com os traficantes. As pessoas discutem a estratégia de cada uma delas como se fossem os times no campeonato de futebol: “O grupo tal tem uma ótima defesa” ou “Fulano recrutou 1.200 homens para o ataque, não vai ter para ninguém.”

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Todo dia vejo uma briga na rua. Em geral por razões de trânsito. As pessoas gritam, se xingam. Às vezes há um pouco de agressão física. Ninguém se machucou o suficiente para atrair a atenção da imprensa.

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Passeio pelos canais da TV. Novela. Acho que na Record. Uma tribo de índios, que parece saída de uma academia de ginástica de Ipanema, captura um grupo de playboys: "Agora vocês vão aprender a respeitar nosso povo." Horário nobre. Será que a Revolução começou e ninguém me avisou? Ou a televisão está exibindo produções bolivianas?


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Há gente demais na rua. Em especial no centro da cidade, na hora do almoço. Reclamo com uma amiga, que me consola: “Em Lagos, a capital da Nigéria, é pior. Leia o artigo na Piaui de fevereiro.”. Consolo relativo.

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- Você moraria em outra cidade, que não o Rio de Janeiro?
- Claro.
- Definitivamente?
- Sem dúvida!

As pessoas ficam um tanto escandalizadas com a rapidez das minhas respostas. Mas as amigas paulistanas adoram.

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- São Paulo talvez se torne como Buenos Aires daqui a 40 anos. O Rio de Janeiro, não, já decidiu que será outro modelo de cidade.
- Para São Paulo atingir o nível de desenvolvimento cultural de Buenos Aires, vai precisar comer muito bife de chorizo com alfajor.

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Lagoa.

Como esta cidade ainda consegue ser linda.

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Caminho ao redor da Lagoa. Um homem negro, vestindo farrapos, e aparentemente drogado ou alcoolizado, grita para todas as pessoas que passam: “Odeio você! Odeio você!”.

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Flamengo. Encontro um casal de amigos na calçada. Eles planejam ir à Argentina na Semana Santa e passo dicas de viagem. Um homem negro, aparentemente drogado ou alcoolizado se aproxima e balbucia algumas palavras. Com grande dificuldade, entendemos que ele se queixa. Tentou entrar na igreja da rua e foi expulso pelo padre. Aponta para meu amigo: “Se eu estivesse vestido assim, tão bonito como você, teria ficado lá numa boa.” Ele se afasta cambaleando.

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- Sim, a desigualdade social na Argentina é muito grande, quase tanto como no Brasil. E há um percentual significativo da população na pobreza extrema, cerca de 10% das pessoas. Mas é diferente daqui... Por exemplo, várias vezes eu almoçava na varanda de um restaurante e passava alguém vendendo canetas ou bilhetes de loteria. A pessoa então se aproximava muito tímida e me pedia um pouco de pão ou batata. Mas pela roupa que ela vestia, nunca diria que tinha fome.
- Também foi assim no Brasil, Maurício, mas você não tem idade para lembrar. Quando voltei dos EUA, nos anos 80, as pessoas me abordavam nos supermercados exatamente dessa maneira. Depois eu voltava para casa e caía no choro.

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Meu portugês está todo espanholado. Às vezes cometo expressões como "mais grande" ou "mais além", influenciado por más grande (maior) ou más allá (além). Fora os "muchas gracias", "permiso" e "muy amable", que às vezes pronuncio em honra da amabilidade que marcou a temporada argentina.

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Quinze graus a menos fariam maravilhas pela qualidade de vida nesta cidade.


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Imagem: uma foto que tirei do bairro de Puerto Madero, Buenos Aires, a antiga área de cais que foi restaurada e hoje abriga restaurantes, hotéis e prédios residenciais e de escritórios. E olha que nem é a parte mais bonita da cidade.

5 comentários:

Anônimo disse...

Puerto Madero é uma graça e tinha uns restaurantes ótimos quando estive em Buenos Aires, há sete anos. O tempo 'avua' mesmo!

Patrick disse...

Sobre as milícias, tem uma matéria interessante na Caros Amigos desse mês (a que tem os presidentes de esquerda da América Latina na capa): "Marcelo Salles entrevista a antropóloga criminal Ana Paula Miranda, sobre a segurança pública no Rio de Janeiro."

Há como entrar em contato com você pelo correio eletrônico? Meu endereço é allan ponto patrick no gmail ponto com.

Maurício Santoro disse...

Alô, Nica.

O bairro continua bonito, mas te confesso que nunca foi meu lugar favorito de Buenos Aires. Tem um certo ar de shopping center ao ar aberto que me faz preferir Palermo.

Olá, Patrick.

Obrigado pela dica, ainda não tinha visto a Caros Amigos. Faz tempo que não compro a revista. Quanto ao email, pode me escrever em msantoro@iuperj.br, achei até que o endereço estivesse disponibilizado no perfil do Blogger, devem ter mudado na nova versão.

Abraços

Anônimo disse...

"meu portugês"??? Ah, claro. Algúns autores "revolucionários" como García Márquez proponem eliminar issas regras ambíguas do espanhol, e agora você é o "importador" das idéias progresistas no Brasil. Como dizem seus amigos, volviu da Argentina como um revolucionário :)
(Isto me faz lembrar ao chiste dum argentino que creia que "jamón" -carne de porco- se dizia em italiano "camone" e lhe discutia ao mozo).
Me alegro de que ache sua estadia em Buenos Aires täo bonita, pois os portenhos creemos que temos a pior cidade e à pior populaçäo. E eu tendria mais esperanças no Rio, uma cidade com uma história e cultura täo ricas :)
Saludos

Maurício Santoro disse...

Patricio, mi caro.

Garcia Márquez conta em suas memórias que até hoje escreve com muitos erros de ortografia, levando os revisores ao desespero. Sempre é um consolo para este pobre escriba.

Abrazos